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R e v i s t a e L a t o S e n s u F A C O S / C N E C V O L. 3, O U T U B R O / 2 0 1 3 - I S S N 2 2 3 7 9 6 0 6 Página 70 Guerra Farroupilha e subjetividade de gênero: representações da mulher na literatura e na História do Rio Grande do Sul Fabiana Sana Aliardi 1 Resumo: Este artigo objetiva realizar um diálogo entre a Literatura, a partir do cruzamento da obra A Casa das Sete Mulheres, com as representações do real vivido e da historiografia contemporânea das mulheres na Revolução Farroupilha. O cruzamento de olhares é pertinente para que haja o diálogo. Num recorte mais específico centrarei meu olhar na escrita literária a partir da questão de gênero feminino, procurando compreender as construções da mulher sul-rio-grandense. Palavras- chave: história literatura práticas de leitura subjetividade gênero. Abstract: This article aims to conduct a dialogue between the Literature, from crossing from the work “A Casa das Sete Mulheres” with representations of the real and lived contemporary historiography of women in “Revolução Farroupilha”. The crossing of the works is appropriate for there to be the dialogue. In a more specific cut I focused my gaze in the literary writing from the issue of female gender, seeking to understand the constructions of the women of the “Rio Grande do Sul”. Keywords: history - literature - reading practices subjectivity - gender. Primeiras palavras Iniciar uma escrita não é fácil, é uma tarefa que exige habilidade com o jogo das palavras, contudo, uma narrativa não precisa começar pelo começo. Posso iniciá-la no meio, ou até mesmo de traz pra frente; ou quem sabe ainda, ficar no vaivém. Enfim, o que posso adiantar é que a ordem aqui não altera a narrativa da Revolução Farroupilha, e muito menos atrapalha o entendimento da história das mulheres, todavia, a leitura de uma narrativa literária proporciona um conjunto de interpretações de acordo com a subjetividade de cada leitor. A fim de enquadrar a proposta deste artigo, esclareço que a vertente teórica que regem as argumentações aqui apresentadas pressupõe uma inclinação substantiva no campo literário, porém as representações do real vivido atuarão em filigrana a fim de efetivar o diálogo entre a História e a Literatura. O objetivo, portanto, da pesquisa foi dialogar o real com a representação da realidade da subjetividade de gênero da mulher gaúcha. 1 Graduada em Letras/licenciatura FACOS/CNEC. Acadêmica do curso de Pós-Graduação em Diálogos entre a Literatura e a História do Rio Grande do Sul pela FACOS/CNEC. E-mail: [email protected]

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Página 70

Guerra Farroupilha e subjetividade de gênero: representações da mulher na literatura e na História do Rio Grande do Sul

Fabiana Sana Aliardi1

Resumo: Este artigo objetiva realizar um diálogo entre a Literatura, a partir do cruzamento da obra A Casa das Sete Mulheres, com as representações do real vivido e da historiografia contemporânea das mulheres na Revolução Farroupilha. O cruzamento de olhares é pertinente para que haja o diálogo. Num recorte mais específico centrarei meu olhar na escrita literária a partir da questão de gênero feminino, procurando compreender as construções da mulher sul-rio-grandense. Palavras- chave: história – literatura – práticas de leitura – subjetividade – gênero. Abstract: This article aims to conduct a dialogue between the Literature, from crossing from the work “A Casa das Sete Mulheres” with representations of the real and lived contemporary historiography of women in “Revolução Farroupilha”. The crossing of the works is appropriate for there to be the dialogue. In a more specific cut I focused my gaze in the literary writing from the issue of female gender, seeking to understand the constructions of the women of the “Rio Grande do Sul”. Keywords: history - literature - reading practices – subjectivity - gender.

Primeiras palavras

Iniciar uma escrita não é fácil, é uma tarefa que exige habilidade com o jogo das

palavras, contudo, uma narrativa não precisa começar pelo começo. Posso iniciá-la

no meio, ou até mesmo de traz pra frente; ou quem sabe ainda, ficar no vaivém.

Enfim, o que posso adiantar é que a ordem aqui não altera a narrativa da Revolução

Farroupilha, e muito menos atrapalha o entendimento da história das mulheres,

todavia, a leitura de uma narrativa literária proporciona um conjunto de

interpretações de acordo com a subjetividade de cada leitor. A fim de enquadrar a

proposta deste artigo, esclareço que a vertente teórica que regem as argumentações

aqui apresentadas pressupõe uma inclinação substantiva no campo literário, porém

as representações do real vivido atuarão em filigrana a fim de efetivar o diálogo

entre a História e a Literatura. O objetivo, portanto, da pesquisa foi dialogar o real

com a representação da realidade da subjetividade de gênero da mulher gaúcha.

1Graduada em Letras/licenciatura – FACOS/CNEC. Acadêmica do curso de Pós-Graduação em

Diálogos entre a Literatura e a História do Rio Grande do Sul pela FACOS/CNEC. E-mail: [email protected]

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Ao lançar o olhar sobre a narrativa A Casa das Sete Mulheres percebe-se que a

família vem sendo desenvolvida por três gerações e que a escritora mesclou

realidade e ficção em uma narrativa histórica, onde fez o uso magistralmente, como

pano de fundo, a Revolução Farroupilha e o Rio Grande do Sul dos meados do

século XIX. A obra traz uma história dentro da outra, cada enredo complexando o

outro; a trama das sete mulheres, a vida de seus homens, tudo dentro de uma casa

e esta a mercê de um pampa sangrento e belicoso. “A força motriz desse épico são

as gentes, os agentes da Revolução Farroupilha, aqueles que lutaram nos campos

de batalha, e aqueles que esperaram na estância, defendendo suas propriedades e

seus filhos” (PESAVENTO, 1984, p.28) sobrevivendo com a esperança de que

chegue uma carta, um bilhete, um recado que acalente o coração e amenize o

sofrimento das mulheres da casa; decidindo ate mesmo o novo rumo e o destino de

todas.

O líder do movimento, o General Bento Gonçalves da Silva, isola as mulheres de

sua família na estância do Brejo, à beira do Rio Camaquã, afastadas da área de

conflito, na intenção de protegê-las durante a guerra. Porém esta demorou mais do

que elas esperavam. E o destino encarregou-se da história de cada mulher da casa.

Devido à diversidade da obra, vários aspectos compreendem o trabalho: a narrativa

histórica visto com base na História e na Literatura, onde serão apresentadas as

semelhanças e as diferenças de um e de outro; a Literatura como suporte sendo a

subtração do mundo à sombra do presente, partindo de fragmentos da obra; e por

fim, Literatura e História e a Subjetividade do Gênero. São neste excerto que serão

expostos fatores ficcionais e reais da obra. Devo adiantar que o fato real foi a

Revolução Farroupilha e a ficção fez parte da descrição das mulheres e de seus

afazeres na obra literária. A ficção inspirada na história gera conhecimento e, assim

como o historiador, o ficcionista tem de representar a história para relatá-la. Já o

termo gênero, segundo Guacira Louro (1997), vem circulando nas ciências sociais,

psicológicas e literárias com uma concepção específica e uma intenção de explicar e

descrever o conjunto de comportamentos atribuídos a homens e mulheres. E o

gênero vem na companhia da subjetividade feminina no que diz respeito à questão

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do outro, e o outro é sempre o próprio sujeito e não um outro sujeito com dignidade

equivalente.

Há importantes autores que discorrem sobre o fato histórico “A Guerra dos

Farrapos”, fator que deu embasamento à narrativa histórica (A Casa das Sete

Mulheres). Contudo, a fundamentação teórica norteadora da pesquisa empírica teve

a contribuição de sólidas documentações compulsada de Fábio Kuhn e Sandra

Pesavento.

Foi no dia 19 de setembro de 1835 que eclodiu a Revolução Farroupilha no

Continente de São Pedro do Rio Grande. Para Fábio Kuhn (2004), os

revolucionários exigiam a deposição imediata do presidente da província, e uma

nova política para o charque nacional e menores impostos para o sal. Coerente com

a concepção teórica perfilhada, Sandra Pesavento (2004) focaliza a instância de

formação do processo gaúcho: a da hegemonia dos quadros da República Velha e a

civilização dos interesses da mesma no interior da sociedade civil; nos retratos de

cada autor observou-se que mais cedo ou ais tarde, o Rio Grande do Sul correria o

risco de ser dominado, e o andamento do cotidiano poderia ser alterado.

Entretanto, esse não é um trabalho de história regional somente, é uma tentativa

bem sucedida de inserir as variáveis específicas da área em contato mais amplo,

escapando assim ao vezo historiográfico de explicar o processo histórico regional da

Guerra dos Farrapos, isolado da realidade mais abrangente na qual se norteou a

pesquisa, pois, o objetivo pretendido foi apresentar as mulheres, que tomaram as

rédeas da casa enquanto seus homens lutavam pela causa do Rio Grande na

guerra, e também apresentar Anita, única mulher que combateu ao lado dos

soldados. A pesquisa mostrou a realidade da mulher gaúcha durante os dez anos da

guerra e como esse tempo transformou a realidade das gaúchas.

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A narrativa histórica: história e literatura Sul-Rio-Grandense

Antes de adentrar especificamente na discussão do tema – mulher e subjetividade

de gênero - entendi como pertinente e necessário elucidar algumas questões

relacionadas à História e a Literatura.

A História pôde ser compreendida como duas tendências, na primeira o historiador

se questiona o que é pensável e sobre suas condições de compreensão; usa os

documentos como uma possibilidade, um inventário. Essa visão leva o historiador,

segundo Michael de Certeau (1982 p.45), às hipóteses metodológicas de seu

trabalho e a uma situação epistemológica presente no conjunto da pesquisa

características da sociedade onde trabalha.

Já na segunda tendência tenta encontrar o vivido, exumado graças a um

conhecimento do passado, privilegiando a relação do historiador “reviver ou

ressuscitar” um passado. Essa quer encontrar os homens através dos traços que

eles deixaram, implicando também em um gênero literário próprio: o relato, enquanto

a primeira, muito menos descritiva, confrontam mais as séries que resultam de

diferentes tipos de métodos (CERTEAU, 1982 p.46).

Quando recorre-se aos caminhos da identidade nacional implica assumir o

entrecruzamento da história e da literatura, a partir de um novo patamar conceitual.

Sandra Pesavento (1998), afirma que as vinculações entre as duas correspondem a

uma abordagem bastante antiga. Entretanto, o que se pôde analisar em seu vasto

trabalho foi o que fez o uso recorrente da contextualização histórica, do discurso

literário ou empregam a literatura como uma forma alternativa para a construção do

conhecimento histórico. Logo esse entrecruzamento de literatura e história:

[...] que permitiu superar esse tipo de abordagem, importaria no endosso de uma nova leitura, na qual fosse possível pensar a História como Literatura e a Literatura como História. Cremos que o patamar conceitual que torna possível esse entrecruzamento e esse novo olhar é dado pela noção de representação (PESAVENTO, 1998 p.19).

Tomei como pressuposto que, segundo Sandra Pesavento (1998), a representação

enuncia o outro distante no espaço e no tempo, estabelecendo uma relação de

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correspondência entre ser ausente e ser presente; ou seja, as representações do

mundo social não são o reflexo do real e nem a ele se opõem de forma antitética,

numa contraposição vulgar entre imaginário e realidade concreta.

A Literatura difere da História, na maneira como ela narra os acontecimentos, porém

deve-se saber que Literatura é arte e não constitui uma reprodução simples ou até

mesmo uma fotografia do mundo externo. Letícia Wierzchowski manuseou esse

material empírico como um romance de forma não-passiva, ela não utilizou os fatos

como se fossem apenas dados sociais e psíquicos, tampouco, utilizou a razão como

um filósofo. Ela vai tecendo sua obra com a realidade histórica e muita imaginação,

porque a:

[...] atividade artística não possui comprometimento com o rigor do registro científico. Ela se descompromete da exatidão dos acontecimentos que a inspiram, misturando, eventualmente, fatos históricos com acontecimentos fictícios. Ela não tem a pretensão de formular um conhecimento objetivo que é função da História. (CHAVES, 2006 p.45).

Na fronteira da verossimilhança nasce, pois, a verdade da Literatura, mas qual seria,

então, a verdade? Se a literatura vem a ser o compromisso com a realidade, por que

os livros fazem o uso de tantas representações e ficções? Porque a Literatura traz

vestígios e lidas de um tempo; sensibilidades e sentimentos do passado. E supõem-

se mais um questionamento, qual é o compromisso da Literatura? Sabemos que no

fundo, o livro é a denúncia ao fato histórico, contudo, o compromisso da Literatura

fica na circunstancialidade, embora, sempre tenha sido com a temporalidade, digo,

com o tempo histórico em que o autor vive e produz o seu texto. E segundo Sandra

Pesavento (1998), o discurso ficcional, a narrativa A Casa das Sete Mulheres, é

quase História, na medida em que os acontecimentos relatados são fatos passados

para a voz narrativa, como se tivessem realmente ocorrido.

Segundo Flávio Chaves (2006), ocorre que a retomada desse tempo e sua

representação não dependem das intenções, mas, antes, da força simbólica do

texto, da eficácia do sistema de significados, e, assim, da força de convicção

presente em diferentes momentos históricos. Vale lembrar que o texto possui uma

linguagem simbólica, mas que se torna verdadeira, que torna verossímil o

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compromisso, nada mais é que uma estranha forma da verdade, própria, aliás, da

Literatura, capaz de referir diferentes significados em diversos momentos históricos.

Segundo Paul Veyne (1971), a História da qual se fala muito desde há dois séculos,

não existe. Então o que é História? A resposta ao questionamento é simples desde

que os sucessores de Aristóteles criaram-na, ela continua sendo a mesma até hoje.

Os historiadores narram acontecimentos verdadeiros que tem o homem como autor:

a história é um romance verdadeiro. De acordo com ele:

Como o romance a história seleciona, simplifica, organiza, faz resumir um século numa página e esta síntese da narrativa não é menos espontânea do que a obra nessa memória, quando invocamos os dez últimos anos em que vivemos (VEYNE, 1971 p.14).

Entretanto, nas palavras de Michael de Certeau (1982), a História é encarada como

um texto que organiza unidades de sentido e nela opera transformações cujas

regras são determináveis. Logo se pode recorrer aos procedimentos semióticos para

renovar as práticas de pesquisa. Porém o que vale ressaltar é que a História é a

narrativa de acontecimentos e que a partir deles tudo decorre.

O cotejo entre o compromisso da Literatura com a realidade histórica pode fazer

com que História e Literatura confundam-se intimamente; e a Literatura corre o risco

de ser mera crônica histórica. Já a História narra o fato.

Com este aparato de informações determina-se que Literatura não é História.

Entretanto, ao ser produzida numa dada circunstância, implica sempre numa

referência à História. O seu diferencial reside na distinção entre a circunstância e a

historicidade, que ultrapassa para representar a realidade, porém:

A verdade da ficção ou da Literatura, como em qualquer campo do imaginário, reside na sua possibilidade de convicção, por isso, embora sabendo que Capitu, Emma Bovary, Ana Karenina ou Ana Terra não pertencem a realidade, nós acabamos por incorporá-las efetivamente ao nosso mundo real, fazendo até com que aí resida justamente o julgamento de um bom ou mal romance. Se nos convence, passa a ser verdadeiro; se não nos convence, nós o abandonamos e as suas criaturas, relegando-os ao esquecimento. (CHAVES, 2004 p.10).

E convence porque os personagens produzem cenas e momentos que levam o leitor

ao convencimento. Mesmo que o texto possua uma escrita simbólica como acontece

na obra empírica sua linguagem torna-se verdadeira, verossímil, capaz de referir

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diferentes significados em diferentes momentos históricos, devido ao

comprometimento da Literatura.

Segundo Sandra Pesavento (1998), a narrativa literária não precisa comprovar nada

ou se submeter à testagem, mas guarda preocupações com certa refiguração

temporal, partilhada com a História, dando voz ao passado; História e Literatura

proporcionam a erupção do ontem no hoje. Esta representação daquilo que “já foi” é

que permite a leitura do passado pelo presente como em “ter sido”, ao mesmo

tempo figurando como o passado e sendo dele o destino. Porém o

[...] compromisso intencional que está na origem da obra literária, nem sempre se dá como significado que a faz perdurar no tempo, mesmo depois de esgotada ou esvaziada a circunstância. Sua duração depende da transformação dessa circunstância em metáfora ou alegoria capaz de ser apropriada em momentos ulteriores, tornando vigente então uma leitura histórica do texto (CHAVES, 2004 p.10).

Letícia Wierzchowski apesar de ter entrado na Literatura de cunho histórico, por

distração, agradou a muitos com sua maneira de escrever. Sabe-se também que a

escritora vive em uma época muito diferente à do romance, em algumas cenas

acaba colocando a visão do mundo atual; logo alguns fatos devem ser observados

para que haja uma melhor compreensão da imaginação de Letícia, ocorrendo assim

[...] o resgate deste tempo e sua representação que não dependem das intenções, mas antes, da força simbólica do texto, da eficácia do seu sistema de significados e, assim, da força de convicção presente em diferentes momentos históricos (CHAVES, 2004 p.10).

A autora Letícia Wierzehowski busca na História apenas um pano de fundo, mas

isso não quer dizer que ela tenha usado exatamente o que pesquisou. Em alguns

momentos se deixa levar pela emoção e acaba por recriar a realidade do passado

com os olhos do presente. É preciso saber que

[...] a Literatura situa-se então muito próxima da simples crônica episódica dos fatos reais. E tanto mais complexa torna-se a sua passagem daí à representação, isto é, à linguagem simbólica capaz de traduzir não apenas a circunstancia, mas o próprio tempo (CHAVES, 2004 p.10).

Pode-se dizer que são complexas as relações entre Literatura e História, pois ambas

estão na base do compromisso e de seu tempo; e precisam representar o vivido e o

imaginário a partir da escrita, pois elas têm como base o compromisso social. Mas

quando tratamos da Literatura, não devemos buscar nela o real vivido, e sim,

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encontrar os indícios de um tempo percebendo que o texto literário não interessa à

História enquanto transcrição, mas enquanto instauração no seu significado.

Por vezes, a aproximação da História com a Literatura tem um sabor de dejà vu,

dando a impressão de que tudo o que se apregoa como novo já foi dito e de que se

está “reinventando a roda”. Segundo Sandra Pesavento (1998), a sociologia da

literatura desde há muitos anos circunscrevia o texto ficcional no seu tempo,

compondo o quadro histórico no qual o autor vivera e escrevera sua obra. A História,

por seu lado, enriquecia por vezes seu campo de análise com uma dimensão

“cultural”, na qual a narrativa literária era ilustrativa de sua época. Neste caso, a

literatura cumpria face à história um papel de descontração, de leveza, de evasão,

“quase” na trilha da concepção beletrista de ser um sorriso da sociedade.

A romancista Letícia Wierzehowski assinala um momento em que a História e a

Literatura se cruzam para definir a unidade da elocução da narrativa. Ao ir ao

encontro do contexto histórico da Guerra dos Farrapos assume a plena consciência

que não lhe cabe traçar a crônica dos fatos translatados, porém revelar a sua

historicidade, contextualizando em um campo semântico com muitas vertentes.

A narrativa A Casa das Sete Mulheres dá conta, por um lado, da visão de mundo

que o texto contém, e, por outro, assegura sua vigência na representação da

realidade de diferentes leitores. Diante dessas articulações e mediações

relembramos que os grandes textos literários são aqueles que possibilitam uma

forma de atualização e sempre se renovam ao serem relidos; e o diagnóstico faz

parte das diversas perspectivas de cada leitor e seu momento.

A narrativa A Casa das Sete Mulheres é portadora de uma verdade, porque além de

não precisar comprovar nada ela cria as representações da realidade. Seu

significado permanece vivo e aberto, o compromisso se cumpre apenas na

representação simbólica dos fatos. Além do mais Sandra Pesavento (1998) diz que

as representações do mundo social não se medem pela sua veracidade, mas pela

sua credibilidade, aceitação e capacidade mobilizadora; e diante da pluralidade de

significados que a Literatura proporciona, a interpretação será sempre um

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compromisso do leitor. A literatura é, no caso, um discurso privilegiado de acesso ao

imaginário das diferentes épocas. No enunciado célebre de Aristóteles, em sua

“Poética”, ela é o discurso sobre o que poderia ter acontecido, ficando a História

como a narrativa dos fatos verídicos, palavras de Sandra Pesavento, (1998). Mas o

que vemos hoje, nesta nossa contemporaneidade, são historiadores que trabalham

com o imaginário e que discutem não só o uso da literatura como acesso privilegiado

ao passado.

A literatura é, pois, uma fonte para o historiador, mas privilegiada, porque lhe dará

acesso especial ao imaginário, permitindo-lhe enxergar traços e pistas que outras

fontes não lhe dariam. Fonte especialíssima, porque lhe dá a ver, de forma por

vezes cifrada, as imagens sensíveis do mundo. A literatura é narrativa que, de modo

ancestral, pelo mito, pela poesia ou pela prosa romanesca fala do mundo de forma

indireta, metafórica e alegórica. Por vezes, a coerência de sentido que o texto

literário apresenta é o suporte necessário para que o olhar do historiador se oriente

para outras tantas fontes e nelas consiga enxergar aquilo que ainda não viu.

Leitura do Passado à sombra do Presente

Nas aulas da disciplina de Historiografia, fiquei conhecendo o escritor Saint Hilaire,

viajante francês, que passou pelo Rio Grande do Sul no século XIX. Em seu livro

Viagem ao Rio Grande do Sul, destaca a mulher gaúcha com uma imagem

depreciativa que imputava a brasileira em geral, quando comparada com a européia,

pois notou que aqui as mulheres conversavam sem constrangimento com os

homens.

Na obra, em analise, percebe-se que as mulheres têm um contato exagerado para

aquela época quando o assunto se refere a conversar como os homens. A imagem

que se tem daquele tempo, conforme quadros e pinturas são de que as mulheres

eram muito reservadas, contudo o fragmento a seguir destorce tal imagem:

Ao desmontar do cavalo, encontrou Perpétua sentada à varanda lendo um livro. [...]. Inácio sentiu uma alegria nova, percebendo que fora ele a causa daquele rubor. Subiu os degraus da varanda. - Como está a senhorita, nestes dias?

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Perpétua largou o livro para o lado e sorriu. Vestia-se de carmim, os cabelos presos numa trança solta, e tinha um perfume de lírios que a circundava como um ralo. Fazia uma tarde bonita. - Estou muito bem, senhor Inácio. E como Le vai a vida? Inácio adiantou-se num arroubo, beijou a mãozinha branca. (WIERZCHOWSKI, 2003 p.183)

Nessa pequena parte da obra, como em tantas outras, percebe-se Perpétua, filha

mais velha de Bento e Caetana, com um livro na mão. Outro fator que ajuda à

compreensão da representação da realidade feminina do século XIX, onde os

homens liam jornais e as mulheres escolhiam os romances.

Na Casa das Sete Mulheres a escritora nos apresenta o hábito da leitura, muito

propício às mulheres do século XIX. Em várias páginas da obra depara-se com uma

das mulheres lendo ou escrevendo. Manoela aparece lendo cartas e escrevendo em

seu diário, quase sempre, as outras moradoras da casa, exceto as de mais idade,

geralmente aparecem na varanda, na biblioteca ou até mesmo em seus aposentos

praticando o ato da leitura.

Segundo Michael de Certeau (1982), com base em historiadores chega-se a

concluir, nesse momento, que as jovens mulheres liam para a fruição, para passar o

tempo, embora em nenhum momento da obra mencione o estilo de literatura, porém

podemos afirmar, que elas liam sozinhas e em silêncio, através de fragmentos da

obra, como o mencionado acima, por exemplo, seguido das palavras de Márcia

Abreu.

[...] Imaginava-se que a leitura sempre se fizera como supomos que ela hoje se faz, em silêncio e solitariamente, de modo a favorecer a concentração e o recolhimento. Supunha-se que, em todas as épocas, ler implicava pensar sobre textos e interpretá-los, exigindo habilidades superiores à capacidade para decifrar os sinais gráficos da escrita. Acreditava-se que o contato com os livros foi sempre valorizado por favorecer o espírito crítico, tornando o leitor uma pessoa melhor por meio do contato com experiências e idéias registradas por escrito. (ABREU, 2006 p.13).

Segundo palavras de Roger Chartier (1999), a leitura silenciosa é um encantamento

perigoso (p.124). A leitura em voz baixa funciona “como a imaginação do leitor

pudesse ser mais facilmente arrebatada por uma leitura silenciosa.” (p.124). É como

se o leitor compreendesse melhor o que se está lendo.

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Enquanto a leitura oral proporciona uma nitidez na entonação das frases, fazendo o

uso de seus pontos e vírgulas, e acima de todos os fatores, a expressão facial

precisa ser adequada a circunstância; a leitura silenciosa proporciona uma paz

interior, um navegar nas páginas e uma melhor percepção da história.

Diante das mulheres casadas, a leitura, com exceção das cartas, não foi destacada,

porque segundo Roger Chartier (1999) a leitura às mulheres representavam um

perigo para o marido. “O romance poderia excitar as paixões e exaltar a imaginação

feminina.” O hábito da leitura poderia incentivar idéias eróticas, e isso ameaçava a

castidade e a boa ordem. Em função disso

[...] o romance do século XIX, pois associado com as (supostas) características femininas de irracionalidade e de vulnerabilidade emocional. Não é simples coincidência que o adultério feminino tenha se tornado nessa época o arquétipo de transgressão social descrito pela Literatura, de Emma Bovary a Anna Karenina e Effi Brist. (CHARTIER, 1999 p.172).

A partir do século XIX a mulher vem se destacando, e a leitura começa a ter um

importante papel na sociabilidade feminina. Houve uma época em que foi visível a

percepção de duas categorias: de um lado os homens que se reuniam nos bares e

cabarés para fumar e jogar; e de outro, as mulheres jovens, cuja vida estava sendo

dividida entre a Literatura e a Música. Entretanto, segundo Roger Chartier (1999),

quando pessoas de dois sexos estavam juntas em uma mesma situação de leitura, a

mulher ficava em posição de tutelada em relação ao homem. Em algumas famílias

católicas, as mulheres eram proibidas de lerem o jornal. O mais freqüente era o

homem ler em voz alta; isso mostra, na época, mais um sinal de superioridade do

homem.

Márcia Abreu (2006) ressalta e concorda que a leitura de romances levava ao

contato com cenas reprováveis, estimulando a identificação com personagens

envolvidos em situações pecaminosas como as mentiras, as paixões ilícitas e os

crimes. Um leitor de romances certamente desejaria transportar para sua vida real

as situações com que travara contato por meio do texto. Também perigoso era o

impulso de imaginar-se no lugar dos personagens envolvidos em situações

criminosas: supor-se no lugar de uma adúltera era quase tão grave quando praticar

o adultério. Mesmo os que resistissem à tentação de aproximar a matéria lida do

mundo vivido seriam prejudicados, pois ocupariam tempo precioso com a leitura de

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material tão pouco elevado, esquecendo-se de suas obrigações cotidianas. (ABREU,

2006 p.15)

Ao longo da leitura da obra percebe-se que algumas das mulheres da casa faziam

parte de uma sociedade de poder aquisitivo elevado. E que elas não necessitavam

trabalhar fora enquanto seus homens encontravam-se na guerra. Logo procuravam

ocupações nos bordados do enxoval e na prática de leituras. Suponho que essa

segunda ocupação fazia parte de uma associação de prazer e enobrecimento do

sujeito, construído historicamente pela ascensão da burguesia. Além de passar o

tempo, enriqueciam seus vocabulários enquanto se divertiam.

O cotejo de escritores relacionados, que ressaltam sobre a mulher leitora, confirma

que as mulheres que liam era somente aquelas com poder aquisitivo elevado; entre

a classe operária, por exemplo, as mulheres mesmo com vontade não tinham

tempo. “Descascar batatas, bordar, fazer pão e sabão eram tarefas que não

deixavam tempo livre para a recreação.” (p.174), pois:

[...] os afazeres domésticos vinham em primeiro lugar, e admitir que liam equivalia a confessar que estavam negligenciando suas responsabilidades familiares de mulher. A imagem idealizada da boa dona de casa parecia incompatível com a leitura (CHARTIER, 1999 p.174).

Contudo, alguns estudiosos, segundo Roger Chartier (1999), vão dizer que essas

mulheres se rendiam a algumas leituras sempre que possível, porque a leitura era

condenada como desperdício de tempo, ofendendo uma ética de trabalho bem

exigente, já as mulheres de classe média e alta, tipo as da casa, não enfrentavam

esses obstáculos, talvez porque para elas a leitura fosse um meio de amenizar os

sofrimentos da guerra.

Os pais, como homens e maridos, não apreciavam muito a leitura das filhas

mulheres, mas como estavam exclusivamente envolvidos com a guerra, não sobrava

tempo para atender a esses caprichos. Intencional ou não, Letícia discorre sobre os

devaneios das mulheres da casa que liam. Manoela se apaixona perdidamente pelo

italiano Giuseppe Garibaldi, e esta foi a personagem que mais se destacou na

escrita e na leitura; Rosário, por várias vezes, encontrava-se na biblioteca na

companhia dos livros e de suas visões de um caramuru, conhecido como inimigo da

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família de Bento; Perpétua se enamora de um homem casado que tem uma mulher

enferma; e por última, Mariana que se apaixona por um índio, totalmente fora das

tradições da família de Bento, e por ironia, seguindo um destino do qual sua mãe

não teve coragem. Percebe-se na narrativa que:

[...] como nunca antes, a figura da mulher leitora demandava reconhecimento, por parte de romancistas, editores, bibliotecários e pais dispostos a desencorajar a perda de tempo ou proteger suas filhas dos caprichos da imaginação ou da estimulação heróica (CHARTIER, 1999 p.174).

Muitas vezes o ato de leitura foi representado em pinturas como algo que ocorria em

um grupo feminino em lares burgueses ou uma imagem de uma jovem mulher

solitária. Em contraposição, a leitura em voz alta era mais comum nos grupos

masculinos do café ou da oficina. Porém as mulheres leitores do século XIX são

associadas ao desenvolvimento da leitura individual e silenciosa, talvez a leitura

representasse, naquele momento, um conceito de privacidade e intimidade. As

jovens da Casa mantinham o hábito da leitura silenciosa.

Diante da inserção dos levantamentos até agora presume-se o questionamento: O

que significava a leitura da mulher? Ler como uma mulher significava incorporar um

viés novo e desafiador, pois, ao ler, a mulher além de inovar e desafiar destruía

ideias prontas e ainda introduzia novos nomes à literatura consagrada. A crítica do

gênero feminino desafiou a própria noção de cânone, palavras de Marisa Lajolo;

essa guerra de hábitos ofereceu ao mundo da literatura uma nova ordem, elaborada

a partir do gênero, onde:

[...] não é necessária a leitura prolongada, nem são precisos os livros complicados. Coisa leve, variada, que nos de uma visão rápida do mundo em que estamos e do que acontece nele, no campo das ciências, das artes, da política e dos disse me disse. (LAJOLO, 20098 p.118).

A seleção na leitura é algo imperioso, do contrário, o tempo perdido na leitura de

páginas medíocres não compensa o sacrifício de horas de trabalho ou até mesmo

de repouso, se não irá aprender nada. Devemos salientar que a mulher, com sua

marca feminina, em seu discurso de literatura, ganhou os jornais, as revistas, a

televisão, entre outros espaços.

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Literatura e História: a subjetividade de gênero

As preocupações relativas ao gênero como uma categoria de análise histórica

emergiram nas últimas décadas do século XX. Segundo Guacira Louro (1997), a

categoria gênero tem sido apresentada por historiadores como uma rejeição ao

determinismo biológico implícito no uso dos termos sexo ou diferença sexual e com

isso acabou introduzindo uma idéia de desigualdade entre homens e mulheres,

construído a partir de atribuição de papeis diferenciados.

Segundo Áurea Petersen (1999), embora vários estudos utilizem gênero como

categoria de análise, em muitos casos, os escritores usam gênero simplesmente

para substituir a expressão história das mulheres. Essa utilização de gênero poderia

ser entendida como uma busca de legitimidade, vista que a palavra feminismo nos

anos oitenta estava carregada de uma forte conotação negativa, devido ao impacto

produzido pelo movimento feminista. Lembra ainda que a informação sobre o

assunto mulheres é necessariamente informação sobre os homens, ou seja, que o

estudo de um implica no estudo de outro. Por essa razão está presente uma crítica

na categoria gênero relacionada aos estudos femininos.

Pode-se compreender gênero como sendo composto por duas partes: a primeira diz

que é um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre diferenças

percebidas entre os dois sexos; já a segunda parte é um primeiro modo de dar

significados as relações de poder. Com essas definições evidencia-se o caráter de

construção social das relações entre homens e mulheres. Nas palavras de Joan

Scott (1990), gênero constitui-se como um:

[...] meio de decodificar o sentido e de compreender as relações complexas entre as diversas formas de interação humana. Quando as historiadoras buscam encontrar as maneiras pelas quais o conceito de gênero legítima e constrói as relações sociais elas começam a compreender a natureza recíproca do gênero e das sociedades e das maneiras particulares e situadas dentro de contextos específicos, pelas quais a política constrói o gênero e o gênero constrói a política (SCOTT, 1990 p. 16).

Em congruência ao que foi exposto até aqui a categoria gênero vem-se constituindo,

portanto, uma ferramenta fundamental para os diferentes campos do conhecimento;

onde se preocupam com o estudo de relações entre homens e mulheres. Segundo

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Guacira Louro (1999), os estudos feministas estiveram sempre centralmente

preocupados com as relações de poder. E para Focault, consiste em perceber o

poder não apenas como coercitivo e negativo, mas como produtivo e positivo. O

poder, não apenas nega, impede, coíbe, mas também faz, produz, incita. O poder

produz sujeitos e induz comportamentos.

Sabe-se que a partir do momento em que pensamos homens e mulheres em

separados, temos dois pontos a serem analisados. Apresento aqui somente a

questão da mulher com seu lado feminino e heróico. Todo povo, toda cultura tem o

seu herói, o que o diferencia é apenas a sua época. Por ser parte real, parte

construído, por ser fruto de um processo de elaboração coletiva, o herói nos diz

menos sobre si mesmo do que sobre a sociedade que o produz ( MARKUN, 1999

p.26).

Para a História o herói é um ser que pode lhe ser atribuído um acontecimento,

porém as conseqüências seriam diferentes se ele não agisse. Já na Literatura o

herói é visto, até os dias atuais, como um produto, onde o leitor é quem determina

seu papel.

Na obra A Casa das Sete Mulheres encontram-se alguns tipos de heroínas. A

maioria delas fez parte da Revolução Farroupilha, entretanto estão envoltas no

anonimato. Heroínas são as esposas, filhas e escravas das estâncias que

entretinham os serões familiares desfazendo telas para os curativos ou gastando os

dedos nos teares para tramar os ponchos que agasalhariam os farroupilhas. E ainda

as mulheres heroínas eram apaziguadoras dos ânimos dos povoados das estâncias

e recebiam os visitantes de ambas as facções, oferecendo a todos a mesma

hospitalidade.

A Casa das Sete Mulheres questiona a condição de mulher na época do Império

através das sinhazinhas da República Rio-Grandense. Ao negar a mão de Manoela

em casamento para Garibaldi, Bento diz: Nossas esposas ficam em casa, não vão

para a guerra. Só as chinas, as lavadeiras, as vivandeiras e as mulheres de soldado

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raso vão para a guerra. As nossas esposas são fortes, corajosas até o ponto que lhe

é exigido.

Pode se perceber outro exemplo quando a mãe de Manoela diz que “Liberdade para

os homens é uma coisa, para as mulheres é outra” talvez ela esteja censurando a

filha e faz um discurso dominante da época sobre a honra da mulher, sendo que ela

também foi desonrada antes do casamento. Manoela reconhece a importância

conferida ao gênero feminino: “Prodigiosa sorte nascer homem e ter tanto poder.”

Mariana também desabafa com Manoela sobre o papel da mulher na sociedade: “Eu

queria ser homem, um soldado farrapo, eles são livres para pelear, embebedar-se e

divertir-se com as chinas.” Em outro momento Manoela diz que sentia muita inveja

da liberdade das chinas, porque elas iam para onde queriam e não para onde os

homens mandavam.

Sendo uma fronteira entre a ficção e o real a obra é considerada narrativa de

mundo, de fato, um tanto quanto traiçoeira. Contudo é nessa fronteira que os heróis

se movem, e onde eles mais habitam; reconstruindo através da ficção

acontecimentos, costumes e personagens históricos.

Essa fantasia acaba dando abertura à ficção e sabemos que História é uma coisa e

ficção é outra. Letícia ao fazer o uso da ficção, muitas vezes, deu a entender que

sua obra não valeria de cunho histórico. A autora acaba recriando uma

representação da realidade em alguns momentos.

As mulheres sentiam saudades por traz da vida rude que levavam nas estâncias e

charqueadas nas lidas do dia-a-dia; a mulher do sul desenvolveu todo um ritual de

delicadeza a primeira vista, porém o homem estava na guerra e acabou sendo da

mulher a responsabilidade de, na medida do possível, manter a estância em

funcionamento, não permitindo que se desativasse a charqueada, sustentando a

casa, quer na cidade ou no campo, mantendo a esperança.

Mesmo não participando diretamente da guerra, como Anita, a mãe-esposa-filha dos

farroupilhas promoveu todo um envolvimento com a tragédia que se desenvolvia nos

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campos de batalha. A obra A Casa das Sete Mulheres foca a questão onde a mulher

soube manter com dignidade e envergadura gigantesca, o merecimento de ser a

reconfortante lembrança de seus heróis.

Segundo Aldira Rematozo (s-d), “Às vezes a mulher acompanhava o homem às

aventuras da guerra. Anônimas heroínas, nenhuma delas teve relevância na história.

Mas Anita Garibaldi nos Campos do Sul, não foi um caso isolado.” (p.31). Na

verdade as mulheres acompanhavam as batalhas porque levavam mantimentos,

peças de roupas e até mesmo as crianças para rever seus pais; claro que elas não

se envolviam nos conflitos, embora padecessem os horrores da guerra. Já Anita

acompanhou mesmo os guerreiros, ela foi combatente, lutou pela causa ao lado dos

homens.

Outro bom exemplo de mulher pode ser encontrado em Caetana, esposa de Bento

Gonçalves, mulher sensível, frágil:

Desculpe esta sua esposa tão fraca, que, de tanto viver esta angústia, já desaprendeu a suportá-la. A espera é um exercito duro e lento, meu querido, que só os fortes logram vencer. Vencê-la-ei por usted. Nunca ignorei a sua fibra, nem a força dos seus sonhos e luto para estar eu à altura da sua companhia e da grandeza dos seus atos. (WIRZCHOWSKI, 2003 p.33).

Caetana não era uma mulher como Anita, que foi para luta armada defender seu

homem. Entretanto também foi uma guerreira na lida da casa e na criação dos filhos,

enquanto Bento estava ausente. De qualquer forma, cada mulher da casa teve a sua

maneira de ser uma lutadora de seus direitos. Letícia Wirzchowski cria um enredo

onde cada mulher representa uma realidade feminina.

Caetana acompanhou Bento Gonçalves nos momentos de prosperidade e na

miséria, nas vitórias e nas derrotas. Deu-lhe nove filhos, dos quais Bento, Caetano,

Joaquim e Leão foram soldados da República Rio-Grandense. A filha Perpétua, por

sua vez, casou-se com Inácio, um importante farroupilha.

Vale lembrar que as moças daquela época eram vigiadas dia e noite, geralmente por

uma escrava, ou dama de companhia, porém a autora transcreve de outra forma

aquela realidade quando redige: “... Mariana ficou desolada, fugiu para a sanga,

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restou lá uma tarde inteira a chorar...” (p.132). Como em um tempo em que os

cuidados com as moças eram sigilosos uma menina poderia ficar sozinha, ainda

mais numa sanga?

Outro ponto onde devemos prestar atenção é quando Letícia menciona na obra que

as mulheres viúvas mergulham em um sofrimento profundo, muito pelo contrário,

pela maioria dos casamentos serem contratos, as viúvas se sentiam libertas e

seguiam com suas vidas com naturalidade. Essas e outras representações

distorcidas da realidade da época se deram pelo motivo, talvez, da obra ser escrita

muito tempo após seus acontecimentos e a autora ser parte deste tempo.

Todavia quero me ater um pouco mais em Anita, cujo nome foi Ana de Jesus

Ribeiro, já mereceu biografia de vários historiadores ilustres; segundo Aldira

Rematozo (s-d), foi uma pessoa profundamente humana, intensamente feminina,

não permitindo que as aberrações a desviasse da condição de mulher. Também não

podemos negar que seu amor a Garibaldi foi muito mais significativo que o amor ao

Rio Grande. Porém sem a avassaladora paixão que a uniu até a morte, ao

aventureiro Giuseppe Garibaldi, não seria a heroína guerreira, mas isso em nada

diminuiu seu valor. Contudo, Anita, aquela que demonstrou bravura e efetiva

atuação, sendo heroína de dois mundos. Na obra ela só aparece citada: “Uma brava

dona, condenada a ser mulher nesse mundo de machos.” (ABREU, 2006 p.24).

Em 20 de outubro de 1839, Anita, tendo abandonado o marido Manuel Duarte de

Aguiar, estava a bordo do Rio Pardo para início da fabulosa aventura que a levaria a

acompanhar o novo companheiro em dois mundos: América e Europa. Nas

proximidades de Mostardas, em São Simão, nasce Menoti, no dia 16 de setembro

de 1840, o primeiro filho do casal.

Ainda casada, quebrou regras que vigoravam na sociedade do período. A solução

para viver novamente de forma honrada foi acompanhar Garibaldi. O seu

envolvimento na Revolução Farroupilha não foi por crença em uma causa, mas por

Garibaldi. Anita lutava para convencê-lo que poderia segui-lo e que também era uma

guerreira. Podemos afirmar que a primeira batalha de Anita, talvez a mais difícil, foi

trocar seu casamento, abandonar sua reputação e ir viver com o outro, um

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aventureiro, e com apenas dezenove anos de idade Ana Maria Ribeiro dava seu

primeiro passo em direção à História. E por amor ao Garibaldi, apaixonou-se pela

causa dos Farrapos. Nesse momento, quando o gênero feminino vai a guerra,

percebemos que aqui começa a representação masculina da mulher gaúcha.

Criada e recriada, Anita Garibaldi, foi uma personagem com moldes republicanos, foi

considerada uma heroína republicana, onde criou uma representação para legitimar

algo, estando presente em todas as sociedades e períodos.

O mais significativo em sua decisão de seguir o homem amado foi a estabilidade de

seu comportamento: em todos os momentos por que passaram, Anita foi sempre a

mesma mulher decidida, companheira, repleta de bravura e solidariedade, provando

que, ao seguir com Garibaldi, atendeu não um rasgo banal de emoção, e sim ao

apelo do que é mais duradouro: o sentimento. “Anita sofreu toda a casta de

privações e incômodos com um estoicismo e uma coragem admiráveis.” (p.09). Anita

derramou seu sangue pela Revolução de 1835 e Garibaldi sempre a apresentou

como um soldado ao grupo. Ela não teria nenhuma regalia por ser esposa do chefe,

seria tratada como todos, sem distinções.

Anita Garibaldi, no monumento concretizado na Itália2 em 1913, está sendo

representada como se estivesse no campo de batalha; esse é o perfil de Anita

romanceado na obra A Casa das Sete Mulheres. No monumento ela é apresentada

com uma posição de ataque, passa a ideia de estar à frente de uma tropa, tomando

a iniciativa de investida contra os inimigos. O canhão, que aparece ao lado, agrega à

pose o verdadeiro cenário de enfrentamento e luta. Vendo as fotos do monumento

percebe-se que Garibaldi parecia mais um coadjuvante; ainda apresenta um olhar

que mistura contemplação e apreensão; e o cenário representa não ser o mesmo.

No combate à Laguna, Anita ainda estava tentando convencer Garibaldi de que a

levasse junto. É difícil de acreditar que nesse período, uma mulher, da cidade,

jovem, em meio a vários homens, teria a chance de comandar uma tropa, se

colocando à frente como símbolo de liderança. E Garibaldi, como capitão da

2A imagem do monumento encontra-se no anexo do artigo.

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embarcação, deixaria sua autoridade de lado e repassaria a uma mulher pela qual

não queria que estivesse ao seu lado nesse momento? Complicado, hoje, entender

algumas das representações que a autora nos apresenta na narrativa. Todavia,

devemos salientar que a narrativa é Literatura.

E ao pesquisar sua morte percebe-se que foi feita uma alusão à morte de Anita,

pois, foi reinventada a partir do imaginário da escritora. Mesmo havendo uma versão

bem diferente da apresentada, justamente essa que fez Anita e Giuseppe Garibaldi

os heróis que são hoje. Porém se investigar nos textos históricos e jornais da época

tem uma representação da realidade um pouco distorcida à da Literatura. Quando

Anita e Garibaldi chegam a Mandrioli na Itália, Anita além de estar grávida encontra-

se muito doente e acaba sendo um atraso para a fuga de Garibaldi. Segundo a

pesquisa de Sérgio ele a deixa ali mesmo no chão da praia e promete que um dia

voltará para enterrá-la dignamente. Até volta, após ter decorrido dez anos.

Por volta do dia 10 de agosto de 1849, segundo informações da aula, algumas

crianças que brincavam acharam um braço e uma mão para fora da terra. No

relatório do delegado local, lia-se o seguinte: Observou-se que os olhos estavam

salientes e metade da língua para fora, entre os dentes, além da traquéia com sinais

de que sofreu estrangulamento. O cadáver foi encontrado grávido de

aproximadamente seis meses.

Aqui não restam dúvidas, Anita grávida e muito doente só prejudicaria os planos de

Garibaldi. O delegado com a ajuda de algumas denúncias anônimas e mais o laudo

médico concluiu que: [...] denunciava que o responsável pelo estrangulamento da

desconhecida (Anita) era justamente Giuseppe Garibaldi, num ato de desespero

destinado a facilitar sua fuga, dificultada pela gravidez da mulher que o seguia.

(MARKUN, 1999, p.20).

Contudo, Aldira Rematozo (s-d), relata que Anita, prestes a completar trinta anos de

idade morre nos braços de Garibaldi, encerando um período de dez anos ao lado do

homem amado que lhe valera por toda uma vida. Ficando conhecida como a heroína

de dois mundos, pois a Itália também viria a amá-la; deixava ao guerreiro os filhos

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que jamais tivera com outro homem. Ao morrer deixava ainda um dos maiores

exemplos de bravura que o mundo já viu; Assim foi Anita, uma admirável mulher que

ao deixar a vida, já conquistara a eternidade pelos caminhos do amor.

Fruto de várias construções, Anita se tornou uma representação para o povo

Lagunense, e para os republicanos no início do século XX. É um exemplo de

feminilidade, de coragem e de mãe. Ao nos reportarmos a Anita, logo nos vem à

imagem de uma mulher em meio aos homens lutando por uma causa, porém neste

recorte da obra percebe-se que Anita tinha outro lado também:

[...] Anita depositou Menotti no berço e voltou para o lado do marido. [...] Menotti geme em seu bercinho. [...] Anita vai até o berço e sossega o filho. [...] Anita segura nas mãos grandes, calosas, de pele clara, entre as suas. [...] Ela as leva aos lábios e beija aquelas palmas que conhece de cor. Aspira o cheiro daquele homem que tanto ama. (WIERZCHOWSKI, 2003 p.365).

Com base na narrativa literária temos a representação da Anita como mãe e esposa;

dedicada ao esposo e protetora de seus filhos. Anita foi uma mulher diferente, foi a

pioneira ao enfrentar uma luta armada, ficou famosa por suas atitudes; também foi

com a história dessa brava guerreira que iniciou um novo momento histórico para as

mulheres, distinto e promissor. As mulheres até aquele momento eram vistas de

maneira sensível e frágil e o caráter conservador da mulher na educação das filhas

dos estancieiros gaúchos no século XIX, assim como a pobreza e a rotina de seu

cotidiano (especialmente na situação de confinamento em que estavam expostas),

realidades que até aquele momento elas não estavam acostumadas. Porém as

mulheres da casa eram bem vistas por todos, distorcendo um pouco a realidade do

Brasil e mostrando o seu potencial. Naquele momento as

mulheres não tinham uma presença significativa na historiografia brasileira. Eram vistas com olhar preconceituoso, isso quando eram mencionadas. As mulheres eram citadas como prostitutas ou feiticeiras. Só eram associadas á relações não discriminatórias, quando eram observadas como esposas e mães e se a sua submissão ao marido fosse total. Mulheres que tomavam participação política, mesmo em casa, eram muito mal vistas. As que faziam isso eram adúlteras ou bruxas, tornando-se um mal para a sociedade. (DEL PRIORE, 1994 p. 12). Mas as mulheres não tinham nenhum poder?

Em meados de 1835 as mulheres ainda eram submissas aos homens e não tinham

autoridade perante a sociedade, todavia, as mulheres da casa, com seus homens na

guerra durante tantos anos, tiveram que se habituarem a exercer novas tarefas

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assumindo responsabilidades e com isso começaram a adquirir poder. Segundo

Mary Del Priore:

[...] melhor do que tentar responder se as mulheres tinham poder, é tentar decodificar que poderes informais e estratégias elas detinham por trás da ficção do poder masculino, e como se articulavam a tal subordinação e resistência. O estudo dos discursos normativos sobre a mulher deve ser estimulado quando levar em conta as práticas sociais, do contrário, tendo no homem o sujeito das falas, e a mulher seu objeto, corre-se o risco de fazer um retrato fora de foco do segmento feminino. (DEL PRIORE, 1994 p 13).

A questão apontada por Del Priore (1994) traz algumas reflexões sobre a história

das representações criadas sobre Anita Garibaldi. Mas porque a personagem de

Anita, não tinha os aspectos relacionados á mulher, assim como as mulheres

descritas na história da casa? Para Anita sua condição de ser mulher era inferior, o

que importava era ela ser guerreira, esposa, mãe, completa e acima de todos os

conceitos, lutadora pela liberdade e o progresso do Rio Grande.

No contexto histórico da Revolução, essa mulher nascida em outro estado

demonstrou que o herói é um cidadão do mundo. De sua vida breve doou

significativa parte à causa dos Farrapos e soube fazer, desse período em que esteve

entre nossos heroicos idealistas, uma obra completa e feliz. “Era necessário possuir

um coração de leão para assim se arriscar. Felizmente Anita ignorava o que era

medo.” (p.11), e até mesmo que era mulher, muitas vezes.

Segundo Marô Silva (1985), só existiam duas opções para a vida das mulheres:

dona de casa ou cortesã, sendo definidas, muitas vezes, já em seu nascimento.

Raras foram às vezes que as moças foram contra os postulados que as mantinham.

Na época da Revolução Farroupilha não existia profissões femininas que lhes desce

independência econômica. E Anita quebrou todas as regras e padrões femininos

existentes da época, representando outro perfil de mulher.

Representar é, sobretudo, estar no lugar de outro, é a presentificação de uma

ausência, é sempre uma atividade que envolve a imaginação criadora, é um

processo onde combina a exposição de um significante, portador de um significado,

que remete a algo ou alguém oculto. Segundo Roger Chartier, a representação é

uma apresentação pública de uma pessoa, é uma construção de um grupo que

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detêm o poder e almeja constituir uma identidade de si mesmo em busca de uma

unidade. (CHARTIER, 1991 p. 183-184).

Já para Pesavento (1998), a representação da realidade anuncia um outro, distante

no espaço e no tempo, estabelecendo uma relação de correspondência entre ser

ausente e ser presente que se distancia no mimetismo puro e simples. Em outras

palavras as representações do mundo social não são o reflexo do real. No entanto

há no ato de tornar presente ou ausente, a construção de um sentido ou de uma

cadeia de significações que permite a identificação. “Representar, portanto, tem o

caráter de anunciar, “pôr-se no lugar de”, estabelecendo uma semelhança que

permite a identificação e o reconhecimento do representante com o representado.”

(PESAVENTO, 1998 p.19); portanto não se pode levar toda a obra como uma

veracidade, mas sim, como a representação de uma realidade que viveu a mulher

gaúcha na Revolução Farroupilha.

De certa forma cada mulher do enredo fugiu às regras se adaptando às novas

realidades e assim, aos poucos, revolucionando as rotinas femininas; tamanha

foram às mudanças que hoje temos uma mulher no cargo mais alto do Brasil.

Considerações finais

Chego à ilação com a certeza de que o artigo não termina aqui, porém dou um

tempo, nesse momento, com a pesquisa. Talvez eu devesse ter seguido outro viés,

o da História, por exemplo, onde a visão do historiador seria a mais relevante,

todavia o que realmente me importa nesse momento é que a obra silenciosa da

mulher prevalece mantendo viva a engrenagem doméstica, de alimentar, de criar, e

de tecer, além de aquecer o corpo e o coração de seus homens. A mulher na quadra

farroupilha subiu de condição, e ainda hoje, diariamente, se destaca na sociedade

apesar da Revolução Farroupilha, depois de tanta luta e sofrimento a todos, não

obteve um vencedor e sim um empate entre os homens da Corte Real com os

Farrapos.

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E quanto à subjetividade de gênero ainda temos muito a estudar, mas posso

adiantar de acordo com o aporte teórico translatado, que a mulher vem dominando o

mercado cada vez mais enaltecendo a posição masculina. Devo mencionar que a

mulher teve uma visibilidade muito maior, a partir da época de 1835 e que depois da

Revolução, a gaúcha obteve certo poder diante da sociedade rio-grandense. Vale

lembrar que o objetivo foi alcançado, onde foi obtido com clareza que as mulheres

tomaram as rédeas da casa enquanto seus homens lutavam, com isso conquistando

dependência e mais destaque; recordo ainda que, a leitura direcionada às mulheres,

foi de grande valia para ajudar no seu enobrecimento e crescimento social;

juntamente com a representação masculina na guerra; fator determinante para seu

destaque.

No diálogo que se estabeleceu com o jogo transdisciplinar e interdiscursivo das

formas de conhecimento sobre o Rio Grande, onde a História e literatura se

encontraram foi preciso definir o que era realidade histórica da ficção para que a

continuidade da pesquisa não ficasse prejudicada e o objetivo se mantivesse

inalterado.

Referências

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BERTUSSI, Lisana. Literatura Gauchesca: do Cancioneiro Popular à

Modernidade. Caxias do Sul: Educs, 1997.

CERTEAU, Michael. Representação e Realidade. In: - A Escrita da História. Rio de

Janeiro: Farense Universitária, 1982.

CHARTIER, Roger (Org.). Práticas de Leitura. São Paulo: Estação Liberdade,

1991.

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