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Movimentos das imagens José Carlos Abrantes Universidade de Coimbra Março de 1999 Índice 1 Movimentos das imagens: a repre- sentação .............. 2 1.1 O não-movimento na representa- ção ................ 2 1.2 A ilusão de movimento na repre- sentação ............. 2 1.3 Movimentos "escondidos"na re- presentação ........... 3 1.4 Os movimentos da câmara, ou a descoberta da narratividade . . . 3 1.5 A imagem numérica, ou o movi- mento na imagem ........ 3 2 Movimentos das imagens: modos de conhecer ............ 4 2.1 O movimento dos conhecimentos 4 2.2 Movimento dos conhecimentos na actualidade .......... 4 2.3 Movimentos sobre a raíz episte- mológica do conhecimento ... 5 2.4 Da produção para a teoria, da te- oria para a produção ....... 6 3 Movimentos das imagens: partilhas 6 3.1 A partilha de representações so- ciais ............... 6 3.2 A partilha de representações es- téticas .............. 7 3.3 A partilha económica ...... 7 3.4 A partilha da técnica ...... 8 4 Bibliografia ............ 8 A relação com as imagens tem propici- ado, ao longo das últimas décadas, um de- bate filosófico e epistemológico centrado nas questões da objectividade/subjectividade do mundo representado (Bazin, 1945, Kracauer, 1960). A influência dos dispositivos técnicos sobre os modos de representação adoptados (McLuhan, 1964, Debray, 1991), o papel da recepção na construção do sentido das ima- gens (Eco, 1962, Hall, 1973, Certeau, 1980, Katz e Liebes, 1990), a relação das imagens com a escrita (Postman, 1986), são alguns exemplos mais recentes de questionamentos em volta da imagem. Neste fim de século, a transferência para o futuro destas problemá- ticas, como de outras igualmente importan- tes, parece inevitável. Para esta intervenção procurei interrogar- me sobre movimentos que se encontram as- sociados à imagem. Um primeiro movi- mento pode ser definido à volta das questões de representação que a imagem consubstan- cia, ou seja, das relações das imagens com os modo de as fabricar. Um segundo movi- mento pode agrupar-se à volta dos modos de

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Movimentos das imagens

José Carlos AbrantesUniversidade de Coimbra

Março de 1999

Índice

1 Movimentos das imagens: a repre-sentação. . . . . . . . . . . . . . 2

1.1 O não-movimento na representa-ção . . . . . . . . . . . . . . . . 2

1.2 A ilusão de movimento na repre-sentação. . . . . . . . . . . . . 2

1.3 Movimentos "escondidos"na re-presentação. . . . . . . . . . . 3

1.4 Os movimentos da câmara, ou adescoberta da narratividade. . . 3

1.5 A imagem numérica, ou o movi-mento na imagem. . . . . . . . 3

2 Movimentos das imagens: modosde conhecer. . . . . . . . . . . . 4

2.1 O movimento dos conhecimentos 42.2 Movimento dos conhecimentos

na actualidade. . . . . . . . . . 42.3 Movimentos sobre a raíz episte-

mológica do conhecimento. . . 52.4 Da produção para a teoria, da te-

oria para a produção. . . . . . . 63 Movimentos das imagens: partilhas63.1 A partilha de representações so-

ciais . . . . . . . . . . . . . . . 63.2 A partilha de representações es-

téticas . . . . . . . . . . . . . . 73.3 A partilha económica. . . . . . 7

3.4 A partilha da técnica . . . . . . 84 Bibliografia . . . . . . . . . . . . 8

A relação com as imagens tem propici-ado, ao longo das últimas décadas, um de-bate filosófico e epistemológico centrado nasquestões da objectividade/subjectividade domundo representado (Bazin, 1945, Kracauer,1960). A influência dos dispositivos técnicossobre os modos de representação adoptados(McLuhan, 1964, Debray, 1991), o papel darecepção na construção do sentido das ima-gens (Eco, 1962, Hall, 1973, Certeau, 1980,Katz e Liebes, 1990), a relação das imagenscom a escrita (Postman, 1986), são algunsexemplos mais recentes de questionamentosem volta da imagem. Neste fim de século, atransferência para o futuro destas problemá-ticas, como de outras igualmente importan-tes, parece inevitável.

Para esta intervenção procurei interrogar-me sobre movimentos que se encontram as-sociados à imagem. Um primeiro movi-mento pode ser definido à volta das questõesde representação que a imagem consubstan-cia, ou seja, das relações das imagens comos modo de as fabricar. Um segundo movi-mento pode agrupar-se à volta dos modos de

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conhecer associados à imagem, ou seja, dasrelações epistémicas que levantam. Um ter-ceiro movimento pode encarar-se no sentidoda partilha social das imagens, logo da rela-ção social que estas provocam, estimulam ouneutralizam. Um quarto movimento, que nãoserá analisado neste texto, tem a ver com osolhares dos receptores, isto é, centra-se nasmultifacetadas relações dos olhares com asimagens.

1 Movimentos das imagens: arepresentação

1.1 O não-movimento narepresentação

Do século passado herdámos o retrato dessatensão entre o movimento e o não movi-mento que a fotografia e o cinema procurammimar da realidade. E assim logo em 1839,numa vista do Boulevard du Temple tomadapor Daguerre, tudo se pode ver com uma ni-tidez que espanta Samuel Morse, então emParis. Tudo menos o movimento (Delpiree Frizot, I, 1989: 12). De facto, só o quenão mexe tem registo. Nenhuma pintura ougravura pode pretender aproximar-se a esteresultado, escreve Morse à família, preten-dendo assim dar a ideia da objectividade es-sencial da fotografia (Bazin, 1992:17). Pa-radoxo: essa objectividade essencial retiraà representação fotográfica uma das carac-terísticas primeiras do mundo físico, a domovimento. Nesse conhecido daguerreótipotudo fica registado, excepto o buliçoso movi-mento das carruagens e pessoas que o longotempo de exposição não deixa registar. Oúnico sinal humano é o homem que engraxaos sapatos, mesmo assim não fielmente re-

produzido, pois as partes do corpo que semovem não foram também registadas comperfeição. A técnica, fonte de objectividade,reproduz, por um lado, com extrema fideli-dade, por outro não consegue captar o mo-vimento, característica essencial da vida hu-mana. Na carta de Morse este refere: "Nullepeinture ou gravure ne peut prétendre s’enapprocher [...]; en parcourant une rue du re-gard, on pouvait noter la présence d’une pan-carte lointaine sur laquelle l’oeil arrivait àpeine à distinguer l’existence de lignes oude lettres, ces signes étant trop menus pourqu’on puisse les lire à l’oeil nu. Grace àl’aide d’une lentille puissante, dirigée sur cedétail, chaque lettre devenait clairement etparfaitement lisible, et il en était de mêmepour les plus miniscules brèches ou fissuressur les murs du bâtiment, et sur les pavés dela rue."(Delpire e Frizot, I, 1989: 12). Morseexplica depois que, pelo contrário, os ob-jectos em movimento não deixam qualquertraço.

1.2 A ilusão de movimento narepresentação

Mas se Daguerre não captou o movimentooutros pioneiros da fotografia o tentaramfazer: Étienne-Jules Marey e Eadweard J.Muybridge, o primeiro na Europa, o segundonos EUA, procuram, mesmo com uma téc-nica ainda incipiente, mas que vão fazer evo-luir, registar essa ilusão de movimento queo cinema iria conseguir dentro em pouco.Muybridge faz 24 fotografias da corrida deum cavalo através de um engenhoso sistemade disparos. Marey decompõe os movimen-tos permitindo também registar o que o olhohumano não vê (Delpire e Frizot, II, 1989:10 e 12).

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Em 1895 começa a exibição pública de pe-quenos filmes. É conhecida, e paradigmá-tica, a reacção de fuga de alguns espectado-res das imagens recolhidas pelos irmãos Lu-mière (L’arrivée du train en gare de la Cio-tat, 1886), assustados pelo realismo do "mo-vimento"do combóio que entrava na estação.

1.3 Movimentos "escondidos"narepresentação

Em 1840, um dos inventores da fotografia,Bayard faz um auto-retrato como afogado.Conhecem-se três versões ligeiramente dis-tintas umas das outras. Esta imagem éacompanhada de um comentário escrito ondeBayard explica a sua decepção por ter sidopreterido pelo governo francês em proveitode Daguerre. Bayard mostra-se em corponu, com os olhos fechados, dando uma im-pressão de morte (Delpire e Frizot, I, 1989:16). Bayard inicia assim o trabalho de ence-nação que tem alimentado a fotografia artís-tica, mas também a fotografia de informação.José Benoliel, um fotojornalista português,encena também uma fotografia de João Cha-gas, da Penitenciária de Lisboa, local ondeestivera preso por motivos políticos. Chagasjá saíra quando Benoliel chegou. Benolielnão hesita: pede-lhe que volte para tràs, atéà porta da prisão. Benoliel obtém assim achapa da alegre "saída"da prisão de Chagas(Barreto, 1995).

Hoje, a encenação do real deixou frequen-temente de exigir ao fotógrafo estes movi-mentos escondidos, prévios ao registo. Bastamuitas vezes que este os ignore, fazendo afotografia (ou a imagem de televisão) comoexpressão de um real transparente, não fabri-cado.

1.4 Os movimentos da câmara,ou a descoberta danarratividade

Movimento das imagens que se traduz ob-viamente no cinema. A imagem-tempo e aimagem-movimento (Deleuze, 1994) criamuma narratividade associada ao novo tipo deimagens. O próprio objecto move-se. Rá-pidamente o cinema instaura outros movi-mentos associados à narratividade em des-coberta. Assim, um operador dos Lumière,ao colocar uma câmara numa gôndola des-cobre, com perplexidade, o "travelling". Es-creve aos patrões perguntando se pode conti-nuar nesta via, pois os registos dos Lumièreeram invariavelmente obtidos com a câmarafixa. A imagem torna-se uma forma de mo-vimento, torna-se imagem-movimento. Es-tes movimentos narrativos iriam ser progres-sivamente enriquecidos pela criação de pla-nos específicos (como o grande plano) ouda montagem como forma de criar estruturasnarrativas. Tais narrativas vêm a construir-senum duplo sentido: ora procurando a imita-ção mimética dos movimentos da realidade,ora tentando soluções mais adequadas à re-construção, a interpretação fílmica dessesmovimentos encontrados no real.

1.5 A imagem numérica, ou omovimento na imagem

Nos dias de hoje, o movimento saíu do exte-rior da imagem para se situar no seu interior,na sua estrutura interna. A imagem cria-sepelo cálculo, pela digitalização, sem que arealidade exista como prévio indício físico.Por outro lado, na imagem fabricada pelosmeios tradicionais tornou-se possível juntar,tirar, modificar, transformar. O "morphing",

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por exemplo, permite passar de um rosto aoutro, metamorfoseando uma representaçãonoutras representações. Estes movimentostornaram-se interiores à imagem permitindovisualizações impossíveis a partir do registofísico da realidade (veja-se, por exemplo, aMáscara) dando à imagem movimentos pró-prios, distintos do que o olho humano podever (Barboza, 1997: 90).

Nesta categoria de movimentos podere-mos incluir também as "imagens"médicas,imagens que registam movimentos invisíveishá uma ou duas décadas: os movimentos dofeto, os movimentos de um tumor ( a suaaparição, o seu desenvolvimento, a sua de-saparição), ou os movimentos dos neuróniosem actividade. A imagem vai assim permi-tindo criar novos movimentos ou ver mo-vimentos internos, outrora inacessíveis. E,ainda no caso da imagem médica, científicaou técnica, essa imagem permite movimen-tos físicos de novo tipo (operar a distância,operar a partir de um écrã de televisão, co-mandar utensílios técnicos a distância). No-vos movimentos que por sua vez exigem no-vas aprendizagens, novas imagens que exi-gem novos questionamentos sobre os modocomo os médicos vêm (ou não vêm) a do-ença a partir da imagem.

Estes movimentos das imagens radicamna função de representação que tradicional-mente atribuímos à imagem. Representaro movimento, eis uma ambição conseguida,mas em mutação permanente. Porém, outrosmovimentos estão contidos na imagem, so-bretudo se alargarmos o seu espectro de fun-ções, atribuindo-lhe, para além da tradicio-nal função de representação, outras funçõesmenos convencionais, nomeadamente a fun-ção de transformação e a função de envolvi-mento (Tisseron, 1995).

2 Movimentos das imagens:modos de conhecer

2.1 O movimento dosconhecimentos

Logo, poderemos identificar um movimentode transformação dos nossos conhecimen-tos. O aforismo "uma imagem vale mil pala-vras"pode querer significar esta transforma-ção que gera em nós uma simples imagemvista. A imagem didáctica de um corte de ummotor de explosão leva-nos rapidamente deum ponto do conhecimento a outro. São asimagens e os sons que conseguem esse mo-vimento no conhecimento de cada um.

Galileu percebeu que a lua não era um ob-jecto plano pela observação cuidada atravésda sua luneta. E esse movimento individualde conhecimento associado à imagem podeter também representação colectiva: o "olharaumentado"da luneta teve efeitos num tempomais rápido, foi objecto de uma apropriaçãosocialmente mais alargada que o "olhar au-mentado"pela lente do microscópio. (Sicard,1998, ). A lembrar-nos que os movimentoscognitivos que as imagens geram se situamem certos contextos históricos e culturais quelhes condicionam ou expandem a força in-terna.

2.2 Movimento dosconhecimentos naactualidade

E nos dias de hoje? Como estão as imagensa influir na cultura de massas? Tema con-troverso, fruto de contributos contraditórios,analisado amiúde, teve recentemente um de-senvolvimento interessante.

Estamos a ficar mais inteligentes por causa

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das imagens, esta é a opinião de um repu-tado investigador, Ulrich Neisser, da Uni-versidade de Cornell. Numa investiga-ção publicada na revista American Scientist,encontra-se a descrição do problema e o es-tado de reflexão sobre ele (Neisser, 1997).De que se trata? Nas décadas mais recen-tes, tem-se verificado uma subida dos níveisde resposta aos testes de inteligência: nosúltimos 50 anos o QI "subiu"15 pontos nosEUA, e 21 pontos, em 30 anos, na Holanda.Há muitas hipóteses explicativas para estasubida. Uma delas seria uma maior aptidãopara a resolução dos testes, hoje banaliza-dos. Mas outras explicações são possíveis:seria plausível que as populações se tivessemtornado mais inteligentes, devido a melhoriada alimentação, a maior escolaridade, a di-ferentes atitudes dos pais das crianças e jo-vens em idade escolar. Segundo o autor doartigo, embora cada um destes factores tenhaa sua importância, nenhum pode ser a chaveexplicativa desta evolução positiva. A hipó-tese mais verosímil é muito interessante e re-pousa nas mutações culturais ligadas ao actode ver. Até por que os ganhos mais significa-tivos nos testes se verificam numa sua conhe-cida componente visual, a matriz de Raven.

O investigador considera que a mudançamais significativa ocorrida no ambiente inte-lectual do século XX foi a exposição aos me-dia visuais (fotografia, cinema, televisão, vi-deo, banda desenhada, cartazes, imagens vir-tuais...), que teriam criado ambientes icóni-cos progressivamente enriquecidos, levandoa que os jovens dediquem mais tempo aosprojectos visuais que as gerações anterio-res (diminuindo porventura o tempo dedi-cado às competências outrora mais desen-volvidas como o "tradicional", mas semprenecessário, ler, escrever e contar). Ora, se-

gundo Neisser, nós não olhamos apenas asimagens, também as analisamos. E, sendoassim, é possível admitir que a exposiçãoa ambientes visuais cada vez mais comple-xos esteja a produzir melhorias significativasnuma forma específica de inteligência, quali-ficada como "análise visual". Esta tese viriaconfirmar uma ideia desenvolvida entre osespecialistas (entre os quais o mais salienteserá Howard Gardner, que esteve entre nósem 1998) segundo a qual existiriam diferen-tes formas de inteligência que repousariamem diferentes tipos de experiência. Ainda se-gundo Neisser esta constatação poderia sig-nificar que estamos mais "espertos"que osnossos avós no domínio da análise visual, omesmo não acontecendo quanto a outras for-mas de inteligência. O que a ser verdadeiro,não deixa de ser um bom desafio para paise professores, para escolas e universidades,para jornalistas e cidadãos. É que os jovens( e os outros cidadãos) não esperaram peloestudo de Neisser e foram progressivamentemergulhando no mares da imagem, sem asajudas e orientação a que a sua condição lhesdá direito.

2.3 Movimentos sobre a raízepistemológica doconhecimento

Estes movimentos referem-se a uma outratransformação radical que a imagem provocano olhar humano: a dos dispositivos que asfabricam e dos efeitos de transformação crí-tica que estes têm com os modos de ver.Na altura da descoberta das lentes para osmicroscópios e dadas as diferenças de poli-mento e fabrico dessas mesmas lentes, a pró-pria incidência da luz na plaqueta provoca

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imagens diferentes no sujeito que vê. Ouseja, há dúvidas e discussões não só porque oque é visto nunca fora visto dessa forma (vergravura de Robert Hooke, de 1665 - Sicard,1998: 67-84) como também o que cada mi-croscópio vê pode ser diferente de aparelhopara aparelho ou de situação para situação.Reflexões que questionam o acto de ver, queobrigam a movimentos de pensamento sobrea relação do que é visto com o mundo. Dis-cussão que não está terminada e mesmo setornou mais premente pelos novos dispositi-vos de visão do mundo de hoje. Jean PierreMeunier interpelou-nos nas conferências daArrábida, em 1997, sobre o "God’s view"eo nosso "point of view", sobre a oposiçãoentre o objectivismo e o experiencialismo.Questões que têm toda a pertinência em re-lação às imagens mentais que fabricamos so-bre (com) o mundo, mas que os dispositivostécnicos mediadores, entre a nossa visão e arealidade, amplificam de forma gigantesca.Habituámo-nos a acreditar que o golo exis-tiu a partir da imagem que não existiu comoregisto directo da realidade. Habituámo-nosa considerar que o ponto de vista da câmarafotográfica era melhor que o nosso olhar, queo ponto de vista múltiplo da filmagem de ví-deo (mais tarde o ralenti e outras manipula-ções da imagem) nos davam um retrato maisfiel do que o produzido pelos acontecimen-tos. Estamos agora a deixar que a imagemvirtual (que não é uma imagem no sentidoindicial de Bazin) nos diga sobre o que é ver-dade e o que não é. Estamos no coração deum movimento epistemológico gerado pelopapel da imagem pois ligámos irremediavel-mente o nosso modo de ver a dispositivostécnicos fabricantes de imagens, como a fo-tografia, o computador e a televisão.

2.4 Da produção para a teoria,da teoria para a produção

Não será possível continuar a produzir ima-gens, a usar novas tecnologias para as criar,a utilizar os espaços da memória individual ecolectiva para as armazenar, sem simultane-amente acrescer o capital de reflexão que aeste movimento produtivo se associa. Mo-vimentos de produção, de criação, por umlado, de reflexão, de estudo científico, poroutro lado. Movimentos que se podem au-tonomizar mas que se interpenetram, se in-fluenciam, se potenciam reciprocamente.

3 Movimentos das imagens:partilhas

3.1 A partilha de representaçõessociais

Outros movimentos se acentuam, se amplifi-cam, com as imagens: movimentos sociais,por exemplo. Basta lembrar o papel desem-penhado por Jacob Riis, o primeiro reforma-dor a usar uma câmara fotográfica, um imi-grante dinamarquês que se torna jornalistaem Nova York (Jeffrey, 1996: 156-177). Osseus textos e imagens (How the other halflives) denunciam as péssimas condições devida dos imigrantes, condições que ele pró-prio conhecera. As suas fotografias ilustrame denunciam as insalubres condições de ha-bitação dos imigrantes. Roosevelt, então go-vernador de Nova York, vai dar-lhe atenção eproporcionar fortes melhorias nas condiçõesde vida e e de acolhimento dessa massa hu-mana que procura um novo mundo.

Idêntico trabalho foi feito por Lewis Hineque se centra na captura de imagem do tra-balho de crianças e jovens. As imagens dos

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jovens que trabalhavam foram decisivas nacriação de um ambiente favorável à aprova-ção de legislação que veio a proteger os di-reitos dessas crianças e jovens (Jeffrey, 1996:156-177).

O FSA permitiu idênticas condições detomada de consciência dos americanos so-bre as condições de vida dos agricultoresna sequência da grande depressão. Durantemuitos anos pensei que essa consciência so-cial, para as gerações actuais, provinha so-bretudo da leitura das Vinhas da Ira, de JohnSteinbeck. Hoje julgo poder sustentar queos fotógrafos do FSA ajudaram a construirmovimentos sociais que, não devendo tudo àimagem, nela encontram fortes ligações es-truturais (Hagen, 1983).

Poderíamos lembrar as imagens mais pró-ximas do espancamento de Rodney King, domassacre do cemitério de Timor ou as ima-gens cruas do carro espatifado onde viajavaa princesa Diana. Todas essas imagens se re-lacionaram com movimentos sociais e políti-cos, neles tiveram influência, neles imprimi-ram a marca dos seus movimentos.

3.2 A partilha de representaçõesestéticas

A estética é outro terreno de movimento pro-fundamente ligado à imagem. É certo queexistem estéticas literárias e de outros tipos.A imagem provocou porém movimentos in-dividuais e colectivos indiscutíveis. O que ébelo, o que é feio, quantas vezes passa peloolhar?

A perspectiva renascentista pôs o homemno centro do mundo, os pintores do renasci-mento procuram a ilusão que nos aproximada realidade (Krauße, 1995: 6-13). A pro-cura dessa ilusão é reflexo de escolhas es-

téticas e provoca um usufruto estético so-bre quem vê. Provoca outras vezes pertur-bação em quem vê: Veronese foi chamadoà Inquisição por ter pintado criados e cães,pouco representados até então. Respondeuaos seus interrogadores: "Pinto o que vejo".Esse "pintar o que vejo"estava em contradi-ção com as práticas anteriores, muito cen-tradas na perspectiva hierárquica, que davaapenas lugar ao que era importante e atribuíamaior relevo visual aos elementos mais va-lorizados nas representações das épocas pre-cedentes (por exemplo, Cristo, os santos, osreis eram geralmente representados em ta-manho maior do que outros personagens).

No romantismo, os pintores usam estéti-cas que obrigam o espectador a investir osseus sentimentos, a sua cultura, na leitura dasobras (Krauße, 1995: 56-64). O século XXdeu origem a estéticas novas provindas do ci-nema, da televisão, da cultura de massas emgeral, da imagem virtual, das performancesartísticas. Hoje são bem claros estes movi-mentos, demasiado evidentes para que nelesseja preciso insistir.

3.3 A partilha económicaNo início do século a França dominava omercado de filmes a nível mundial. Pathé eGaumont haviam-se instalado nos EUA. Apartir da 1a Guerra Mundial o centro econó-mico gerado pela criação no cinema, altera-se e coloca os EUA como o 1o local de cria-ção, de distribuição, de economia das ima-gens. Em 1915, um autor, D.W. Griffith,lança as bases de uma nova forma de contarhistórias com imagens e sons (Nascimentode uma Nação) introduzindo várias inova-ções narrativas.

Entre elas a de uma nova duração (só em

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Itália se fazia cinema com uma duração demais de uma hora), a de uma nova econo-mia. O filme, que havia sido financiado porprodutores de algodão sulistas, torna-se umsucesso comercial que atrai os financeiros daWall Street. Estes não recuarão com o de-sastre comercial em 1916 do novo filme deGriffith (Intolerance), preferindo o contrôledos realizadores ao abandono de um projectoeconomicamente prometedor. O cinema,como arte e como indústria, nasceu em si-multâneo, os milhões de bilheteira nasceramao mesmo tempo que a montagem paralela.Junte-se-lhe hoje as receitas do multimédia,das imagens virtuais, da publicidade, da te-levisão, da internet. Liguemos-lhe a imagemmédica, o mercado artístico. Emprego, no-vas profissões, grupos económicos. "Ame-rica’s moovie industry has created more jobssince 1990 than car makers, pharmaceuti-cal phirms and hotels combined. "podia ler-se no The Economist, Setembro/Outubro de1996. Movimentos das imagens que soam,neste aspecto, qual jackpots contínuos de umvasto casino mundial onde a imagem é figurade proa.

3.4 A partilha da técnicaTodos estes movimentos se baseiam numaoutra partilha: a partilha das técnicas asso-ciadas ao fabrico e manipulação das ima-gens. Tais partilhas têm permanentementerevolucionado os equipamentos, tornando-osde pesados a leves, de grandes a miniaturiza-dos, de toscos a esteticamente apetecíveis.

Tais partilhas têm criado movimentos dedemocratização no uso e paropriação dastécnicas (a fotografia, o video). Mas por ou-tro lado, podem também ver-se, nestes mo-vimentos, outros pólos de desenvolvimento

mais orwelianos, afuniladores da capacidadede criação (por exemplo, a estandardizaçãoestereotipada da imagem de televisão), oumesmo de interpretação técnica, especiali-zada das imagens de novo tipo, como sejao caso da imagem médica.

Movimentos que, por o serem, nunca terãouma direcção única, mas antes serão porta-dores de sentidos múltiplos, de forças de ac-tuação contraditórias, de interpretações com-plexas. Movimentos que desencadeiam ou-tros movimentos: os diferentes olhares dosreceptores na apropriação das imagens quo-tidianas, terreno que deixaremos para outrareflexão.

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