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Movimento Social Como Categoria Geográfica

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  • FERNANDES, Bernardo Manano. Movimento social como categoria geogrfica. Terra Livre, So Paulo, n.15, p.59-85, 2000.

    Movimento social como categoria geogrfica

    Bernardo Manano Fernandes Professor no Departamento de Geografia da Faculdade de Cincias e Tecnologia da Unesp, campus de Presidente Prudente.

    Resumo: Este texto um ensaio terico que apresento como contribuio aos gegrafos que tm os movimentos sociais como objetos de estudo. uma reflexo que venho desenvolvendo com o objetivo de propor anlises dos movimentos sociais a partir de dois processos geogrficos: a espacializao e a territorializao. Neste estudo, analiso o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Todavia, os elementos e as reflexes aqui realizadas so referncias para se pesquisar outros movimentos sociais. Estudar um movimento social como categoria geogrfica condio essencial para a elaborao terica, considerando o crescimento de pesquisas geogrficas sobre movimentos sociais no campo e na cidade. Todavia, os referenciais tericos utilizados so em grande parte de outras reas do conhecimento. Estamos iniciando uma reflexo fundamental para compreendermos os movimentos sociais alm de suas formas de organizao, mas tambm pelos processos que desenvolvem, pelos espaos que constroem, pelos territrios que dominam. Desse modo, nosso desafio constituir elementos desses processos que sirvam como referncias para uma teoria geogrfica dos movimentos sociais. Palavraschave: MST; movimento social; movimento socioterritorial; espacializao; territorializao.

    Introduo Este texto um ensaio terico que apresento como contribuio aos

    gegrafos que tm os movimentos sociais como objetos de estudo. uma reflexo que venho desenvolvendo com o objetivo de propor anlises dos movimentos sociais a partir de dois processos geogrficos: a espacializao e a territorializao.

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    Neste estudo, analiso o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Todavia, os elementos e as reflexes aqui realizadas so referncias para se pesquisar outros movimentos sociais. Estudar um movimento social como categoria geogrfica condio essencial para a elaborao terica. Categorias so conceitoschave de uma cincia (Freire-Maia, 1998, p.38). So conceitos fundamentais construdos desde a anlise das experincias desenvolvidas na realidade at aos esforos lgicos para a elaborao de leituras e a construo de ensaios tericos. Compreendo que no possvel fazer uma leitura geogrfica dos movimentos sociais utilizando somente categorias de outras reas do conhecimento. De acordo com Santos: Conceitos em uma disciplina so freqentemente apenas metforas nas outras, por mais vizinhas que se encontrem. Metforas so flashes isolados, no se do em sistemas e no permitem teorizaes. (1996, p.70).

    Os movimentos sociais podem ser categorias de diferentes reas do conhecimento, desde que os cientistas construam os respectivos referenciais tericos. Esse o nosso desafio na Geografia. Os movimentos sociais constroem estruturas, desenvolvem processos, organizam e dominam territrios das mais diversas formas. Os movimentos so formas de organizao social e, principalmente, os socilogos, historiadores e cientistas polticos se dedicam a estud-los h muito mais tempo que os gegrafos. Nessas reas existem importantes e atuais trabalhos tericos como: Ghon (1997); Sztompka (1998); Tarrow (1994). Na Geografia, essa preocupao recente. Uma referncia o trabalho de Oliveira (1991, p.9), que registra os estudos de Orlando Valverde e Manuel Correia de Andrade a respeito da questo agrria e dos movimentos camponeses nas dcadas de 1950 e 60. Ainda assim, desde a dcada de 1980 vem crescendo o nmero de estudos geogrficos a respeito dos movimentos sociais. So vrias teses e dissertaes em Geografia referentes a esse tema.

    Hoje so diversas as pesquisas sobre movimentos sociais no campo e na cidade. Contudo, os referenciais tericos so em grande parte de outras reas do conhecimento. Estamos iniciando uma reflexo fundamental para compreendermos os movimentos sociais alm de suas formas de organizao, mas tambm pelos processos que desenvolvem, pelos espaos que constroem, pelos territrios que dominam. Desse modo, nosso desafio elaborar ensaios que sirvam como referncias para construes tericas.

    Uma tentativa de realizar esse trabalho est presente em Fernandes (1996 e 1999) e Martin (1997 e 1998), quando realizamos um dilogo a respeito da relao sujeitoespao. Os referenciais que permitiram esse debate foram nossos estudos sobre o MST. Das discusses foi cunhado o conceito de movimento socioespacial, utilizado para denominar os movimentos que tm o espao como trunfo (Martin, 1997, p.26). No desenvolvimento das pesquisas, das leituras e reflexes, continuei

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    a anlise do MST no s como forma, mas tambm como processo e os significados de suas dimenses e aes, principalmente pelas transformaes causadas na estrutura fundiria e nas relaes sociais, na conquista de fraes do territrio.

    O conceito de movimento socioespacial amplo, porque envolve as diferentes dimenses do espao geogrfico: social, poltico, econmico etc. Com o objetivo de aprofundar essa reflexo, analisei as aes do MST nos 22 estados onde est organizado. Procurei analisar suas prticas desde a construo de sua forma tendo como lugar de materializao algumas fraes do territrio. Movimentos sociais que tm o espao ou o territrio como trunfos, organizam suas formas e dimensionam-se a partir desse referencial. Em um debate a respeito dessas idias na Unesp, em Presidente Prudente, a professora Maria Encarnao Beltro Spsito me sugeriu o termo movimento socioterritorial. A seguir apresento o aprofundamento dessas reflexes analisando diferentes aes e elementos resultantes de processos geogrficos desenvolvidos por diferentes movimentos sociais, que denominei de isolados e territorializados.

    Neste texto analiso os significados de conceitos como ocupao, trabalho de base, acampamento, negociao poltica, organicidade, espacializao e territorializao. So elementos essenciais para compreendermos os processos desenvolvidos e formadores de movimentos socioterritoriais, na perspectiva da interao, considerando o territrio e/ou o espao como condio para a formao do movimento social. Partimos do pressuposto que movimentos socioterritoriais so todos os que tm o territrio como trunfo. Todavia, muitos movimentos no tm esse objetivo, mas lutam por dimenses, recursos ou estruturas do espao geogrfico, de modo que coerente denomin-los de movimentos socioespaciais.

    Trabalhos de base - construindo espaos de socializao poltica Um movimento socioterritorial como o MST tem como um de seus principais

    objetivos a conquista da terra de trabalho. E os realiza por meio de uma ao denominada ocupao da terra. A ocupao um processo socioespacial e poltico complexo que precisa ser entendido como forma de luta popular de resistncia do campesinato, para sua recriao e criao. A ocupao desenvolve-se nos processos de espacializao e territorializao, quando so criadas e recriadas as experincias de resistncia dos sem-terra. Neste sentido, procuro discutir algumas das principais noes e conceitos aprendidos ou construdos a partir da leitura bibliogrfica e da realidade estudada.

    Primeiro, preciso dizer que a ocupao uma ao decorrente de necessidades e expectativas, que inaugura questes, cria fatos e descortina situaes. Evidente que esse conjunto de elementos modifica a realidade,

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    aumentando o fluxo das relaes sociais. So os trabalhadores desafiando o Estado, que sempre representou os interesses da burguesia agrria e dos capitalistas em geral. Por essa razo, o Estado s apresenta polticas para atenuar os processos de expropriao e explorao, sob intensa presso dos trabalhadores. A ocupao , ento, parte de um movimento de resistncia a esses processos, na defesa dos interesses dos trabalhadores, que a desapropriao do latifndio, o assentamento das famlias, a produo e reproduo do trabalho familiar, a cooperao, a criao de polticas agrcolas voltadas para o desenvolvimento da agricultura camponesa, a gerao de polticas pblicas destinadas aos direitos bsicos da cidadania.

    A organizao de uma ocupao decorre da necessidade de sobrevivncia. Acontece pela conscincia construda na realidade em que se vive. , portanto, um aprendizado em um processo histrico de construo das experincias de resistncia. Quando um grupo de famlias comea a se organizar com o objetivo de ocupar terra, desenvolve um conjunto de procedimentos que toma forma, definindo uma metodologia de luta popular.1 Essa experincia tem a sua lgica construda na prxis. Essa lgica tem como componentes constitutivos a indignao e a revolta, a necessidade e o interesse, a conscincia e a identidade, a experincia e a resistncia, a concepo de terra de trabalho contra a de terra de negcio e de explorao, o movimento e a superao.

    Na formao do MST, os sem-terra criaram distintas metodologias de luta. So procedimentos de resistncia desenvolvidos na trajetria da luta. Essas aes so diferenciadas em todo o Brasil. Na espacializao da luta pela terra, os espaos de socializao poltica podem acontecer em momentos distintos, com maior ou menor freqncia. Os acampamentos so de diversos tipos: permanente ou determinado a um grupo de famlia. As formas de presso so distintas, de acordo com a conjuntura poltica, bem como as negociaes. Essas prticas so resultados dos conhecimentos de experincias, das trocas e da reflexo sobre elas, bem como das conjunturas polticas e das situaes em que se encontram as fraes dos territrios a serem ocupadas, em diferentes regies brasileiras. Os elementos que compem as metodologias so a formao, a organizao, as tticas de luta e negociaes com o Estado e os latifundirios, que tm como ponto de partida o trabalho de base. As Comunidades Eclesiais de Base CEBs, os Sindicatos de Trabalhadores Rurais, as escolas e as prprias moradias so alguns dos principais lugares e espaos sociais, onde se realizam as reunies dos trabalhos de base.

    Os trabalhos de base podem ser resultados da espacializao e/ou da espacialidade da luta pela terra. Nascem sempre da prpria necessidade das comunidades. A espacializao um processo do movimento concreto da ao em sua reproduo no espao e no territrio. Desse modo, os trabalhos de base

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    podem ser organizados por pessoas que vieram de outro lugar, onde construram as suas experincias. Por exemplo: um ou mais sem-terra de um estado que se deslocam para outras regies do pas para organizar famlias sem-terra. E, dessa forma, vo criando o Movimento na sua territorializao. A espacialidade um processo contnuo de uma ao na realidade, o dimensionamento do significado de uma ao. Desse modo, as pessoas do prprio lugar iniciam o trabalho de base porque ouviram falar, viram ou leram sobre ocupaes de terra, ou seja, tomaram conhecimento por diferentes meios: falado, escrito, televisivo etc. E assim, iniciam a luta pela terra construindo suas experincias.

    Portanto, os trabalhos de base so realizados em diferentes lugares e em distintas condies. Acontecem por meio da construo do espao de socializao poltica.2 Esse espao possui trs dimenses. Uma o espao comunicativo, construdo desde as primeiras reunies. o momento da apresentao, do conhecer-se e da definio dos objetivos. Sabem o porqu de estarem naquele lugar. Os motivos so a necessidade e o interesse que, juntos revolta e indignao, representam atitudes e sentimentos que determinam o tempo de ocupar. o incio de uma experincia de transformao de suas realidades. Outra dimenso o espao interativo. Este, dependendo da metodologia, realiza-se antes, durante ou depois da ocupao da terra. No desenvolvimento dessas prticas e dessa lgica, constroem uma forma de organizao social.

    O espao interativo um contnuo processo de aprendizado. O sentido da interao est nas trocas de experincias, no conhecimento das trajetrias de vida, na conscientizao da condio de expropriados e explorados, na construo da identidade sem-terra. O contedo das reunies dos trabalhos de base a recuperao das histrias de vida associadas ao desenvolvimento da questo agrria. Assim, a vida experimentada como produtora de interaes. Fazem suas anlises de conjuntura, das relaes de foras polticas, da formao de articulaes e alianas para o apoio poltico e econmico. Desse modo, desenvolvem as condies subjetivas por meio do interesse e da vontade, reconhecendo seus direitos e participando da construo de seus destinos. Defrontam-se com as condies objetivas da luta contra os latifundirios e seus jagunos, do enfrentamento com a polcia, com o Estado.

    Esse um processo de formao poltica, gerador da militncia que fortalece a organizao social. Todos esses processos, prticas e procedimentos colocam as pessoas em movimento, na construo da conscincia de seus direitos, em busca da superao da condio de expropriadas e exploradas. A superao de suas realidades comea com a deliberao a respeito da participao na ocupao da terra. Essa tomada de deciso tem como pressuposto que somente com essa ao podero encontrar soluo para o estado de misria em que vivem. Devem decidir tambm sobre qual terra ocupar, onde ocupar. Os latifndios so muitos, no h

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    dificuldade em encontr-los. H vrias fontes de informaes sobre a localizao das terras que no cumprem com sua funo social. Desde o conhecimento que as comunidades possuem dos inmeros latifndios, pelos quais muitas vezes esto cercadas, at informaes conseguidas nas diversas instituies governamentais ou no governamentais que trabalham com a questo agrria. Definida a terra, falta somente a deciso de quando ocupar. Ocupando-a, dessa forma que os trabalhadores sem-terra vm a pblico, dimensionam o espao de socializao poltica, intervindo na realidade, construindo o espao de lutas e resistncia, quando ocupam a terra ou acampando nas margens das rodovias.

    Participar de uma ocupao no uma deciso to simples, afinal, mais do que experincia, significa transformar a prpria vida. Por essa razo, muitas vezes, para algumas famlias, existe a indeciso e o medo. Para superar o medo preciso confiana nas pessoas que compem e coordenam o Movimento. Assim, uma liderana tem a responsabilidade de, ao defender a ocupao, apresentar idias e referncias que permitam a superao das dvidas. So os argumentos desenvolvidos nas reunies dos trabalhos de base, no dimensionamento do espao de socializao poltica. Desse modo, os coordenadores tornam-se importantes referncias para os trabalhadores indecisos. Outra forma de convencimento a visita aos acampamentos e aos assentamentos, ou quando assentados do testemunhos de suas lutas. Todavia, muitos ficam na espreita e vo para o acampamento depois de efetivada a ocupao. Essas atitudes acabam gerando um debate interno, quando muitas famlias reclamam pelo fato de se sentirem boi de piranha. H tambm os que so chamados de andorinhas, que so os que aparecem vez ou outra no acampamento. Esses so a expresso da indeciso ou do oportunismo. H, tambm, aqueles que participam de vrios grupos de famlia, assistem a realizao de vrias ocupaes, at decidirem-se por ocupar.

    As reunies realizadas nos trabalhos de base so espaos geradores de sujeitos construindo suas prprias existncias. Essas reunies podem durar um, trs, seis meses ou at anos, dependendo da conjuntura. Podem envolver um municpio, vrios municpios de uma microrregio, vrios municpios de vrias microrregies, ou at mais de um estado em reas de fronteira. Com a territorializao da luta e o aumento da participao das famlias, essas reunies se multiplicaram, deixando de ser reunies com dezenas para contar com centenas de famlias. Esse crescimento tambm trouxe problemas. Policiais e jagunos passaram a se infiltrar nas reunies para espionar o desenvolvimento e o irrompimento da luta. Esses espies muitas vezes no so descobertos, e a ocupao acaba sendo frustrada. Para evitar esse fato, as lideranas passaram a informar aos coordenadores de grupos de famlias o dia e lugar das ocupaes horas antes de suas realizaes. Por outro lado, o crescimento das ocupaes

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    decorrente no s da organizao dos sem-terra, mas tambm do aumento das formas de apoio. Cada vez mais, as famlias que participam dessas reunies recebem apoio das comunidades urbanas e dos assentados, bem como das prefeituras que cedem transporte para participarem, inclusive, da ocupao. O apoio das comunidades, por meio de alimentos e/ou recursos financeiros, resultado dos trabalhos de base tanto pelo MST, quanto por parte da Comisso Pastoral da Terra CPT. So nessas comunidades que so formados vrios grupos de famlias para participar da ocupao. Igualmente, muitas famlias assentadas contribuem com a organizao de uma ocupao, doando alimentos que cultivaram, cendendo seus caminhes para transporte das famlias e tratores para o primeiro plantio das terras ocupadas. Essas aes resultam da compreenso de que a luta pela terra no termina com a conquista da terra, mas continua na formao de novos grupos de famlia e na luta contra o latifndio. O apoio de prefeituras tem como significado a possibilidade de se transformar um latifndio em um assentamento, onde as famlias excludas iro se ressocializar, trabalhando, gerando renda, moradia, conquistado a terra e direitos bsicos como a educao e a sade.

    No entretanto desse processo procuram negociar com o Estado o assentamento das famlias. Promessas e compromissos que na maior parte das vezes no se realizam so sempre as respostas que obtm. No conhecimento das experincias aprenderam que devem construir as condies necessrias para conquistar a terra, participando da formao do Movimento compreendido pela criao de comisses, ncleos, setores, coordenaes. So partes da forma de organizao em movimento. Cada uma composta por grupos de pessoas responsveis pelas diversas necessidades das famlias. A comear pela alimentao e na preocupao de ter escola para as crianas, para os jovens e os adultos. Criam comisses de negociao para acompanhar o andamento do problema junto s instituies e informar a sociedade sobre seus atos; ncleos e coordenaes para manter o acampamento informado e organizado; setores de educao e sade entre outros. No MST, esses trabalhos so realizados por diversos setores, tendo o setor de Frente de Massa como o responsvel pelo trabalho de base e desenvolvimento das aes.

    Os trabalhadores sem-terra so os principais sujeitos desse processo. Desde o princpio da luta recebem o apoio de diferentes instituies, por meio de alianas que formam uma articulao poltica. As instituies envolvidas defendem a ocupao como forma de acesso terra. Nos vinte anos de sua formao, em diferentes conjunturas, o MST recebeu ou tem recebido apoio da Comisso Pastoral da Terra, CPT, dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais, da Central nica dos Trabalhadores CUT, do Partido dos Trabalhadores PT, de outros partidos polticos e de diversas outras organizaes. Todavia, a relao na

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    articulao sempre gerou um embate poltico, por causa das diferentes concepes das atribuies que as partes das alianas tm no desenvolvimento da luta pela terra. Algumas das questes do embate so relativas autonomia dos trabalhadores. Muitas vezes, as organizaes tentaram interferir nas decises dos trabalhadores, no distinguindo as respectivas competncias. Isso acontece, por exemplo, quando pretenderam coordenar as lutas, tentando representar os trabalhadores, defendendo que o MST devesse apenas apoiar os sem-terra, quando na verdade os sem-terra so e fazem o Movimento.

    O embate tambm acontece por causa das diferentes concepes de luta. Estas so extremamente diferenciadas em todas as regies do pas. H concepes favorveis s posturas defensivas, outras que defendem posturas ofensivas na realizao das ocupaes, compreendidas como diferentes formas de resistncia ao das polcias e dos pistoleiros. As posturas mais defensivas sustentam o no enfrentamento, optando apenas pela negociao, enquanto as ofensivas sustentam a negociao e o enfrentamento. A superao do embate acontece pelo reconhecimento da autonomia dos trabalhadores e das competncias de cada instituio. Na formao do MST, essa superao foi possvel depois de rompimentos e retomadas das relaes, por meio das lies construdas nas lutas. De diferentes formas, persistiu sempre a concepo que ocupar a soluo. Esse foi, para todas as organizaes envolvidas na luta, um processo de aprendizagem.

    Depois de anos de embate, as instituies reconheceram as experincias e a autonomia dos sem-terra. Assim esses camponeses sem-terra falam suas prprias linguagens, conquistando o respeito e a admirao de alguns e a averso de outros. Foi a luta incessante pela autonomia poltica que muito contribuiu para a espacializao e a territorializao do MST pelo Brasil. Nesse sentido, o MST no resultado de uma proposta poltica de um partido, no fruto de uma proposta da Igreja, nem do movimento sindical. Embora tenha recebido apoio da conjugao dessas foras polticas, o MST uma realidade que surgiu da lgica desigual do modo capitalista de produo. O Movimento fruto dessa realidade e no das instituies.

    O processo de espacializao nem sempre desenvolvido em todas as suas dimenses nas experincias dos sem-terra. O que determina a efetivao de todos os procedimentos para o dimensionamento do espao de socializao poltica a conjuntura. Essas experincias tm sido estudadas por pesquisadores que analisaram as prticas de diversos movimentos sociais.3 H tambm movimentos que mobilizam as famlias sem a construo do espao de socializao poltica, como o caso do MAST, estudado por Feliciano (1999, p.125).4

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    Processos de ocupao: tipos e formas - espacializao e territorializao A ocupao, como forma de luta e acesso terra, um contnuo na histria

    do campesinato brasileiro. Desde o princpio de sua formao, os camponeses em seu processo de criao e recriao ocuparam terras. Nas ltimas quatro dcadas, os posseiros e os sem-terra so os principais sujeitos dessa luta. Todavia, fundamental diferenciar os posseiros dos sem-terra. Em uma das entrevistas que fiz no estado de Gois, perguntei a um sem-terra: qual diferena que havia entre ele e um posseiro, e ele me respondeu: os posseiros ocupam l pr aqueles trem escanteado, ns ocupamos aqui, nas beiras das BRs. Essa resposta significativa porque remete a diferentes espaos e aes distintas. Os posseiros ocupam terras, predominantemente, nas faixas das frentes de expanso, em reas de fronteira. Com o avano da frente pioneira, ocorre o processo de expropriao desses camponeses, desenvolvido principalmente pela grilagem de terra por latifundirios e empresrios.5 Os sem-terra ocupam terras, predominantemente, em regies onde o capital j se territorializou. Ocupam latifndios propriedades capitalistas terras de negcio e explorao - terras devolutas e/ou griladas. As lutas por fraes do territrio os assentamentos representam um processo de territorializao na conquista da terra de trabalho contra a terra de negcio e de explorao. Essa diferena fundamental, porque o grileiro, o latifundirio, o empresrio chegam onde o posseiro est. Os sem-terra esto ou chegam onde o grileiro, o latifundirio, o empresrio esto.

    Desde meados da dcada de 1980, quando o MST se territorializou pelo Brasil afora, os trabalhadores sem-terra, juntos com os posseiros, os pequenos proprietrios, meeiros, rendeiros e parceiros, intensificaram o processo de formao do campesinato brasileiro. A intensificao das ocupaes de terra causou grande impacto poltico, de modo que os sem-terra passaram a ser os principais interlocutores, no enfrentamento com o Estado, na luta pela terra e pela reforma agrria. Esses trabalhadores de origem rural ou urbana esto lutando pela terra em todas as grandes regies. Para compreender melhor esse processo, analiso os tipos e formas de ocupaes realizadas pelos sem-terra.

    Tomando como referncia a abordagem analtica em Ocupaes de terras por camponeses, de Eric Hobsbawm,6 procuro refletir sobre a questo das ocupaes. Nesse trabalho, o autor, utilizando a expresso tipo, abordou o componente terra. Neste ensaio utilizo outros componentes, como famlias e experincias. Desse modo, os tipos de ocupao esto relacionados propriedade da terra: pblica, capitalista, de organizaes no governamentais; s formas de organizao das famlias e aos tipos de experincias que constroem. Trabalho com as expresses tipos e formas, procurando entender os processos de desenvolvimento da

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    ocupao de terra. Neste contexto tambm procuro aprofundar minhas reflexes a respeito dos processos de espacializao e territorializao da luta pela terra.

    Hobsbawm destaca trs tipos de ocupaes: a) recuperacin ou terras de trabalho reconquistadas que estavam ocupadas h dcadas por camponeses, mas se encontram em litgio por causa da territorializao do capital na expropriao das famlias camponesas; b) terras devolutas, quando os camponeses ocupam terras pertencentes ao Estado, em reas de fronteira, e cujas terras passam a ser griladas por latifundirios, e c) ocupao de latifndios. Nesse estudo, Hobsbawm preocupou-se, principalmente, com as ocupaes do primeiro tipo, que tambm tm relevncia no Brasil, especialmente na Amaznia, onde parte das terras de posseiros foi apropriada e grilada pelos latifundirios e empresrios. Contudo, no nosso pas predominam as ocupaes de terras devolutas e/ou pblicas, e as ocupaes de latifndios, que tm sido importantes formas de acesso terra.

    Com referncia forma de organizao dos grupos de famlias, h dois tipos: movimentos isolados e movimentos territorializados. Os movimentos territorializados so construdos por diferentes categorias e suas estruturas podem ter duas formas; movimento social ou movimento sindical.7 Esses movimentos recebem apoios de diferentes instituies em conjunto ou em separado. As formas de apoio so poltica e econmica e acontecem por meio de articulaes e/ou alianas. O movimento social pode receber apoio e/ou estar vinculado a alguma pastoral da Igreja Catlica (Comisso Pastoral da Terra ou Pastoral Rural). Da mesma forma, pode receber apoio de centrais sindicais, partidos e organizaes no governamentais. Essas so as instituies que tm apoiado a luta pela terra, principalmente as ocupaes. O movimento sindical, igualmente, pode receber apoio dessas instituies atravs de articulaes e/ou alianas.

    Os significados de movimentos isolados e movimentos territorializados tm como referncia a organizao social e o espao geogrfico. Compreendo como movimento isolado uma organizao social que se realiza em uma base territorial determinada. Que tem o seu territrio de atuao definido por circunstncias inerentes aos movimentos. Ou seja, nascem em diferentes pontos do espao geogrfico, em lutas de resistncias. Brotam em terras de latifndios atravs da espacialidade da luta. Construindo, dessa forma, a sua territorialidade, compreendida como processo de reproduo de aes caractersticas de um determinado territrio. O movimento territorializado ou socioterritorial est organizado e atua em diferentes lugares ao mesmo tempo, ao possibilitada por causa de sua forma de organizao, que permite espacializar a luta para conquistar novas fraes do territrio, multiplicando-se no processo de territorializao. Um exemplo de movimento socioterritorial o MST. Os

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    sindicatos de trabalhadores rurais filiados s federaes e Contag tambm so exemplos de movimentos territorializados.

    Os movimentos sociais isolados so aqueles que se organizam em um municpio ou um pequeno conjunto de municpios, para efetivar uma ocupao. Esses movimentos recebem apoios de uma ou mais parquias, por meio ou no das pastorais, de sindicatos, de partidos, de polticos, prefeituras etc. Tambm podem ser resultados de dissenses de movimentos socioterritoriais. Todavia, sua base territorial est limitada pela ao do movimento. Superando essa condio, pode vir a ser um movimento territorializado, organizando aes para alm de sua base territorial de origem ou se vincular a uma organizao territorializada. Foi desse modo que os recentes movimentos sociais de luta pela terra se desenvolveram.

    Sem a superao de suas circunstncias, os movimentos isolados se extingem. A perspectiva da territorializao est relacionada com sua forma de organizao sciopoltica. Quando esses movimentos so resultados de interesses imediatos da comunidade, defendidos por lideranas personalistas e prticas populistas, que criam relaes de dependncia, a tendncia o esgotamento do movimento. Quando os movimentos contemplam objetivos mais amplos, que no sejam apenas resolver o prprio problema, mas inserir-se no processo de luta, e as lideranas promovem espaos de socializao poltica, para a formao de novas lideranas e experincias, a tendncia de desenvolvimento da forma de organizao, espacializao e territorializao. Dessa forma, amide, trabalham no somente com o prprio problema, mas carregam a dimenso da luta pela terra, organizando novos grupos de famlias, inaugurando novos lugares, espacializando e territorializando o movimento e a luta. Todo movimento socioterritorial nasce de um ou mais movimentos sociais isolados.

    Embora o MST seja, com certeza, o mais organizado, o mais amplo movimento socioterritorial organizado nacionalmente, desde 1994 surgiram outros movimentos. Conforme apresentado no quadro a seguir, registrei mais 15 movimentos sociais lutando por terra. Essa luta feita em grande parte por movimentos sociais socioterritoriais, como tambm por movimentos isolados.

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    Movimentos socioterritoriais ou territorializados Nome Estado(s) Incio

    Comisso Pastoral da Terra CPT BA e PB 1975 Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MST

    RS - SC - PR - SP - MG RJ - ES - BA SE - AL - PE PB - RN CE - PI - MA - PA - AM TO - DF - GO - RO - MT MS

    1984

    Movimento de Luta pela Terra MLT BA PA 1994 Movimento Sem-Terra do Sul do Mato Grosso MST-SMT

    MT 1994

    Federao dos Trabalhadores na Agricultura Pernambuco FETAPE

    PE 1995*

    Federao dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Mato Grosso do Sul FETAGRI MS

    MS 1996*

    Coordenao de Associao de Assentados do Mato Grosso do Sul COAMS

    MS 1996

    Movimento da Terra MT PE 1996 Movimento de Comisses de Luta MCL PE 1996 Federao dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Estado de Minas Gerais FETAEMG

    MG 1996*

    Movimento Campons de Corumbiara MCC RO 1996 Movimento da Libertao dos Sem-Terra MLST MA PE MG, RN e SP 1997 Liga Operrio Camponesa RO 1998 Movimento Brasileiro dos Sem-Terra MBST DF MA PA 1998 Movimento dos Agricultores Sem-Terra MAST SP (Pontal do Paranapanema) 1998 Movimento Unificado dos Sem-Terra MUST SP (Pontal do Paranapanema) 1998

    Pesquisa e organizao dos dados: Bernardo Manano Fernandes, 1998. * Ano em que intensificou o processo de ocupao de terra.

    Os movimentos isolados so de difcil registro por causa da rapidez das aes da luta e da efemeridade inerente a esse tipo de organizao social. Selecionei alguns movimentos isolados que surgiram na regio do Pontal do Paranapanema entre os anos de 1995 a 1998. A maior parte desses movimentos no existe mais. Parte se uniu e se transformou em movimento socioterritorial, outros foram extintos.

    Movimentos sociais isolados Pontal do Paranapanema/SP

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    Nome Municpio(s) Incio Movimento Sem-Terra de Rosana Rosana 1995 Brasileiros Unidos Querendo Terra Pres. Epitcio 1996 Movimento Esperana Viva* Mirante do Paranapanema 1996 Movimento da Paz Regente Feij 1997 Movimento Terra Brasil** Pres. Venceslau 1997 Movimento Unidos pela Paz Tarabai 1997 Movimento da Paz Sem-Terra*** Taciba 1997 Movimento Terra e Po Santo Anastcio 1997 Movimento Sem-Terra do Pontal Teodoro Sampaio 1997 Movimento Terra da Esperana*** Pres. Bernardes 1998

    Pesquisa e organizao dos dados: Bernardo Manano Fernandes. 1998. *Dissenso do MST - **Dissenso do Brasileiros Unidos Querem Terra. - ***Dissenso do Movimento Unidos Pela Paz Obs.: Nas mudanas ocorridas nas trajetrias desses movimentos, o Movimento Brasileiro Unidos Querendo Terra, ampliou-se, passou a realizar ocupaes em outros municpios e tornou-se o Movimento Unificado dos Sem-Terra. Quanto ao Movimento dos Agricultores SemTerra - MAST, foi formado pela fuso dos outros movimentos sociais, ou pelo menos pelas dissidncias desses movimentos.

    As ocupaes realizadas por esses movimentos, podem ser desenvolvidas por meio dos seguintes tipos de experincias: espontneas e isoladas, organizadas e isoladas, organizadas e espacializadas. As experincias so sempre formas de luta e resistncia, porque inauguram um espao, na luta pela terra, que o acampamento. Com relao quantidade de famlias envolvidas, podem ser em pequenos grupos ou massivas. No h uma referncia muito precisa a respeito do nmero de famlias para distinguir uma ocupao massiva8 da ocupao por pequenos grupos. Todavia, as ocupaes massivas so assim denominadas quando renem vrias centenas ou at milhares de famlias.

    As ocupaes isoladas e espontneas acontecem majoritariamente por pequenos grupos, numa ao singular de sobrevivncia, quando algumas famlias ocupam uma rea sem configurarem uma forma de organizao social. Entram na terra em grupos e ento, pela prpria necessidade, passam a constituir um movimento social. O carter da espontaneidade est no fato de no haver uma preocupao anterior em se construir uma forma de organizao, o que acaba por acontecer, ou no, no processo de ocupao. Essas ocupaes podem resultar em um movimento social isolado.

    As ocupaes isoladas e organizadas so realizadas por movimentos sociais isolados de um ou mais municpios. A predominncia de formao de pequenos grupos, mas tambm ocorrem ocupaes massivas. As famlias formam o movimento antes de ocuparem a terra. Organizam trabalhos de base, realizando vrias reunies at a consumao do fato. As tendncias desses movimentos so:

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    findarem depois da conquista da terra ou se transformarem em movimentos territorializados.9 Esses dois tipos de ocupao so frutos da espacialidade e da territorialidade da luta pela terra.

    Esses tipos diferem das ocupaes realizadas pelos movimentos socioterritoriais, que executam ocupaes organizadas e espacializadas. Essas so experincias de luta resultantes de experincias trazidas de outros lugares. Esto contidas em um projeto poltico mais amplo e podem fazer parte de uma agenda de lutas. O significado de espacializao tem como referncia a participao de trabalhadores, que j viveram a experincia da ocupao em diversos lugares e regies, e, como militantes, espacializam essas experincias, trabalhando com a organizao de novas ocupaes, territorializando a luta e o movimento na conquista de novas fraes do territrio o assentamento a terra de trabalho. nesse processo que se formam, num refazendo constante ou, para usar uma expresso de Thompson (1987), fazendo-se em movimentos sociais, construindo seus espaos e seus tempos, transformando suas realidades.

    Com o diagrama abaixo procuro ilustrar as idias apresentadas nesta anlise.

    Processos de ocupao de terra: tipos e formas

    Componentes constitutivos

    Os movimentos socioterritoriais realizam a ocupao atravs do desenvolvimento dos processos de espacializao e territorializao da luta pela terra. Ao espacializarem o movimento, territorializam a luta e o movimento. Esses processos so interativos, de modo que espacializao cria a territorializao e reproduzida por esta.10

    Terra tipos de propriedades Famlias formas de

    organizao: movimentos isolados

    movimentos territorializados

    Experincias formas de luta e resistncia: isoladas: espontneas ou organizadas;

    organizadas e espacializadas

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    A experincia da ocupao no processo de territorializao um aprendizado. da construo de conhecimentos nas realidades dos grupos de famlias e das lutas de referncias que aprendem a fazer as suas lutas. Lutas de referncias so aquelas que lhes so relatadas ou que conheceram. Os movimentos socioterritoriais, em seus processos de formao, multiplicaram suas aes e passaram a fazer vrias ocupaes num pequeno espao de tempo ou ao mesmo tempo. No entretanto dos processos de negociao dessas ocupaes para implantao de assentamentos, fazem novas ocupaes, num contnuo de espacializao e territorializao. Por essa razo, definimos o entretanto como um importante intervalo de tempo, quando no enquanto de uma luta comea a nascer outra. Desse modo, possvel intensificar o nmero de ocupaes, mobilizando e organizando cada vez mais famlias. Nesse sentido, a ocupao um processo socioespacial, uma ao coletiva, um investimento sciopoltico dos trabalhadores na construo da conscincia da resistncia no processo de excluso. E, dessa forma, multiplicam-se as ocupaes e o nmero de famlias participantes.

    O processo de territorializao fortaleceu os movimentos porque possibilita a espacializao das experincias, que muito contribui para o avano da luta em outros estados e regies. Experincias espacializadas agilizam a organizao porque os grupos de famlias trabalham desde as experincias vividas e avaliadas. Nesse sentido, o comeo de uma luta tem como referncias outras lutas e conquistas. Assim, ao consumarem suas conquistas, territorializando-se, tero suas lutas relatadas na espacializao do movimento. Dessa forma, vo construindo suas histrias, suas existncias.

    No curso das experincias, os sem-terra passaram a combinar vrias formas de luta. Essas acontecem em separado ou simultaneamente com ocupaes de terra. So as marchas ou caminhadas, as ocupaes de prdios pblicos e as manifestaes defronte as agncias bancrias. Esses atos intensificam as lutas e aumentam o poder de presso dos trabalhadores nas negociaes com os diferentes rgos do governo. Igualmente, expem suas realidades, recebendo apoio e crticas da opinio pblica e de diversos setores da sociedade. As caminhadas e marchas so formas de manifestao poltica produzidas na espacializao e produtoras de espacialidades.

    Pelo desenvolvimento dos procedimentos das prticas de lutas, nos processos de espacializao e territorializao, possvel definir dois tipos de ocupao: ocupao de uma rea determinada e ocupao massiva. A principal diferena desses tipos est no fato que, no primeiro, o tamanho da rea critrio para a mobilizao e organizao das famlias. Dependendo do tamanho da rea pode ser uma ocupao de pequenos grupos ou at numerosos grupos,

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    massificando a luta. No segundo, a mobilizao e organizao tm como critrio assentar todas as famlias sem-terra, ocupando quantas reas forem necessrias.

    No primeiro tipo, a ocupao realizada com o objetivo de conquistar somente a rea ocupada. Portanto, as famlias so mobilizadas e se organizam para reivindicar a terra ocupada. Havendo famlias remanescentes, iniciam uma nova luta para se conquistar uma outra rea. Cada ocupao resulta na conquista de um assentamento. A lgica da organizao das famlias mobilizar conforme as reas reivindicadas. Essa lgica muda com as ocupaes massivas. Nesse caso, os sem-terra superaram a condio de ficarem limitados ao tamanho da rea reivindicada. O sentido da ocupao deixou de ser somente pela conquista de uma determinada rea, e passou a ser o assentamento de todas as famlias, de modo que uma ocupao pode resultar em vrios assentamentos. Essa forma de organizao intensificou a territorializao da luta. O critrio principal para assentar as famlias no mais o limite territorial, mas o tempo e as formas em que as famlias participam da luta. A ocupao transformou-se numa luta contnua pela terra, num refazendo constante, conforme as famlias vo sendo assentadas, novas famlias unem-se s famlias em luta. Assim, conforme vo conquistando fraes do territrio, vo somando mais grupos de famlias aos grupos de famlias remanescentes.

    Uma ocupao de uma rea determinada pode se transformar em uma ocupao massiva, no s pela quantidade de famlias que participam, mas por causa do desdobramento da luta. Isso acontece quando, depois da conquista da terra reivindicada, passa-se a ter conhecimento de um conjunto de reas que podem ser conquistadas e da perspectiva de se reunir diversos grupos de famlias em uma mesma ocupao. Desse modo, importante destacar que a massificao no tem s o sentido de quantidade, mas tambm o de qualidade. Este determinado pelo dimensionamento do espao de socializao poltica, principalmente no fortalecimento do espao interativo, que acontece por meio da difuso de ncleos, setores e comisses, de modo a fortalecer o movimento. Nesses espaos, as famlias passam a trabalhar mais intensamente suas necessidades e perspectivas, como alimentao, sade, educao, negociao etc.

    Com essas prticas, os sem-terra renem-se em movimento. Superam bases territoriais e fronteiras oficiais. Na organizao da ocupao massiva, agrupam famlias de vrios municpios e de mais de um estado, quando em reas fronteirias. Desse modo, rompem com localismos e outras estratgias advindas de interesses que visam impedir e/ou dificultar o desenvolvimento da luta pelos trabalhadores.11 Assim, os critrios de seleo das famlias a serem assentadas no podem ficar restritos procedncia das famlias. As pessoas que compem as comisses de seleo precisam considerar como critrio, entre os determinados pelo governo,12 a histria da luta.

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    Na execuo das ocupaes, os sem-terra podem realizar diferentes formas de estabelecimento na terra. H experincias em que ocupam uma faixa de terra e prosseguem com as negociaes, reivindicando a desapropriao da rea. H experincias em que ocupam a terra, dividem em lotes e comeam a trabalhar, noutras demarcam uma nica rea e plantam coletivamente. Essas prticas so resultados do desenvolvimento da organizao dos sem-terra. So formas de resistncia que colocam em questo a terra de trabalho contra a terra de explorao.

    Os processos de espacializao e territorializao diminuem e podem terminar quando as famlias sem-terra conquistam todos os latifndios de um ou mais municpios.13 Encerra-se assim o que chamamos de ciclo das ocupaes. Esse ciclo inicia-se com as primeiras ocupaes e dura o tempo que existir terra para ser ocupada.

    Por mais que se tenha um planejamento, a espacializao da luta por meio da ocupao da terra sempre um devir. Possui o sentido das possveis transformaes incessantes, quando as conjunturas construdas dissolvem-se e/ou relacionam-se, formando novas conjunturas, superando-se ou retrocedendo. Portanto, por mais que os sem-terra tenham construdo experincias diversas, a espacializao de uma ocupao nunca um fato completamente conhecido, tampouco desconhecido.

    Os acampamentos: espaos de lutas e resistncia As experincias nos acampamentos marcam as histrias de vida dos sem-

    terra, conforme o exemplo descrito nas estrofes abaixo: Nestes versos simples eu quero relatar Detalhes das tralhas de um acampado J desgastadas de tanto se lesar Porm para mim muito representam Porque me ajudaram terra conquistar Um machado bueno e um trs listras que no entrego Um mao de prego, um martelo e uma lona preta Uma caneta e um caderninho para escrevinhar Quando a conjuntura desta luta dura Sempre que mudava eu tinha que anotar Tralhas de um acampado Letra: Clodoveu Ferraz Campos Msica: Amilton Almeida 1 Festival Nacional da Reforma Agrria Palmeiras das Misses - RS, 04 a 07 de fevereiro de 1999.

    Ser acampado ser sem-terra. Estar no acampamento resultado de decises tomadas a partir de desejos e de interesses, objetivando a transformao

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    da realidade. O acampado o sem-terra que tem por objetivo ser um assentado. So duas categorias em uma identidade em formao.

    Os acampamentos so espaos e tempos de transio na luta pela terra. So, por conseguinte, realidades em transformao. So uma forma de materializao da organizao dos sem-terra e trazem em si os principais elementos organizacionais do movimento. Predominantemente, so resultados de ocupaes. So, portanto, espaos de lutas e de resistncia. Assim sendo, demarcam nos latifndios os primeiros momentos do processo de territorializao da luta. As aes de ocupar e acampar interagem os processos de espacializao e territorializao. Podem estar localizados dentro de um latifndio ou nas margens de uma estrada, conforme a conjuntura poltica e a correlao de foras. Tambm podem ser as primeiras aes das famlias ou podem ser a reproduo dessa ao por diversas vezes. H experincias em que o acampamento lugar de mobilizao para pressionar o governo na desapropriao de terras. Todavia, em suas experincias, os sem-terra compreenderam que acampar sem ocupar, dificilmente leva conquista da terra. A ocupao da terra um trunfo nas negociaes. Muitos acampamentos ficaram anos nas beiras das rodovias sem que os trabalhadores conseguissem ser assentados. Somente com a ocupao obtiveram xito na luta.

    primeira vista, os acampamentos parecem ser ajuntamentos desorganizados de barracos. Todavia, possuem determinadas disposies conforme a topografia do terreno e as condies de desenvolvimento da resistncia ao despejo e das perspectivas de enfrentamento com jagunos. Podem estar localizados em fundos de vale ou nos espiges. Os arranjos dos acampamentos so predominantemente circulares ou lineares. Nesses espaos existem lugares onde, muitas vezes, os sem-terra plantam suas hortas, onde estabelecem a escola e farmcia, bem como o local das assemblias. Um olhar de fora dificilmente pode reconhecer a organizao existente nessa desordem aparente.

    Ao organizar um acampamento, os sem-terra criam diversas comisses ou equipes, que do forma organizao. Participam famlias inteiras ou parte de seus membros, que criam as condies bsicas para a manuteno das suas necessidades: sade, educao, segurana, negociao, trabalho etc. Dessa forma, os acampamentos, freqentemente, tm escolas, ou seja, barracos de lona em que funcionam salas de aula, principalmente as quatro primeiras sries do ensino fundamental; tem um barraco que funciona como uma farmcia improvisada e quando dentro do latifndio, plantam em mutiro para garantirem parte dos alimentos que necessitam, quando na estrada, plantam entre a rodovia e a cerca. Quando prximos de assentamentos, os acampados trabalham nos lotes dos assentados, como diaristas ou em diferentes formas de meao.

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    Tambm vendem sua fora de trabalho como bias-frias para usinas de lcool e acar ou outras empresas capitalistas, ou para pecuaristas.

    Na dcada de 1980, os acampamentos recebiam alimentos, roupas e remdios, principalmente das comunidades e de instituies de apoio luta. Desde o final dos anos 80 e o incio da dcada de 1990, com o crescimento do nmero de assentamentos, estes tambm passaram a contribuir com a luta de diversas formas. Muitos cedem caminhes para a realizao das ocupaes, tratores para preparar a terra e alimentos para a populao acampada. Esse apoio mais significativo quando os assentados esto vinculados a uma cooperativa. Essa uma marca da organicidade do MST. Com o crescimento do apoio das comunidades, das instituies, dos assentamentos e com a consolidao do MST, os sem-terra conseguiram intensificar o nmero de ocupaes e desenvolver a resistncia, de modo a realizar dezenas de ocupaes simultneas.

    Na segunda metade da dcada de 1990, em alguns estados, o MST comeou uma experincia que denominou de acampamento permanente ou acampamento aberto. Esse acampamento estabelecido em uma regio, onde existem muitos latifndios. um espao de luta e resistncia para onde as famlias de diversos municpios se dirigem e se organizam. Desse acampamento permanente, os sem-terra partem para vrias ocupaes, para onde podem se transferir ou, em caso de despejo, retornarem para o acampamento. Tambm conforme vo conquistando a terra, vo mobilizando e organizando novas famlias que passam a compor o acampamento. Como afirmamos, o acampamento acontece no processo de espacializao da luta, inaugurando a territorializao. Ao organizarem a ocupao da terra, os sem-terra promovem uma ao concreta de repercusso imediata. Essa ao poltica e se efetiva como ato de resistncia, como condio para negociao, cujos desdobramentos esto condicionados origem do fato. A ocupao coloca como questo a propriedade capitalista da terra, no processo de criao da propriedade familiar.

    O acampamento lugar de mobilizao constante. Alm de espao de luta e resistncia tambm espao interativo e espao comunicativo. Essas trs dimenses do espao de socializao poltica desenvolvem-se no acampamento em diferentes situaes. No incio do processo de formao do MST, na dcada de 1980, em diferentes experincias de acampamentos, as famlias partiam para a ocupao somente depois de meses de preparao nos trabalhos de base. Desse modo, os sem-terra visitavam as comunidades, relatavam suas experincias, provocavam o debate e desenvolviam intensamente o espao de socializao poltica em suas dimenses comunicativa e interativa. Esse procedimento possibilita o estabelecimento do espao de luta e resistncia de forma melhor organizada, pois as famlias so conhecedoras dos tipos de enfrentamentos da

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    luta. Durante seu processo de formao, pela prpria demanda da luta, o MST construiu outras experincias. Assim, nos trabalhos de base no se desenvolveram as dimenses interativas, que passaram a acontecer no espao de luta e resistncia. E ainda, quando h um acampamento permanente ou aberto, as famlias podem iniciar-se na luta inaugurando o espao comunicativo, desenvolvendo o espao interativo no espao de luta e resistncia. o caso de quando os sem-terra esto lutando pela conquista de vrias fazendas e as famlias vo se somando ao acampamento, quanto outras vo sendo assentadas.

    No acampamento, os sem-terra fazem periodicamente anlises da conjuntura da luta. Essa leitura poltica facilitada para os movimentos socioterritoriais porque esto em contato permanente com suas secretarias, de modo que podem fazer as anlises a partir de referenciais polticos amplos, como por exemplo, as negociaes que esto acontecendo nas capitais dos estados e em Braslia. Assim, associam formas de luta local com as lutas nas capitais. Ocupam a terra diversas vezes como forma de presso para abrir a negociao e fazem marchas at as cidades, ocupam prdios pblicos, fazem manifestaes de protestos, reunies etc. Pela correspondncia entre esses espaos de luta no campo e na cidade, sempre h determinao de um sobre o outro. As realidades locais so muito diversas, de modo que tendem a predominar nas decises finais as realidades das famlias que esto fazendo a luta. Dessa forma, as linhas polticas de atuao so construdas a partir desses parmetros. E as instncias representativas do MST carregam essa espacialidade e essa lgica, pois um membro da coordenao ou da direo nacional participa do processo desde o acampamento at as escalas mais amplas: regional, estadual e nacional.

    Com essas aes, que contam com o apoio das articulaes polticas, os sem-terra procuram mudar a conjuntura para desemperrar o processo de negociao. Todavia, nem sempre conseguem modificar a conjuntura. Quando as negociaes chegam no impasse, acontecem os conflitos violentos, como por exemplo: a Praa da Matriz, em Porto Alegre e o massacre em Eldorado dos Carajs.

    Todos os acampamentos tm suas histrias nas lutas das famlias sem-terra. Vale destacar pelo menos dois dos acampamentos histricos do processo de formao e territorializao do MST: o acampamento da Encruzilhada Natalino, em Ronda Alta no Rio Grande do Sul, e o acampamento dos capuchinhos, em Itamaraju na Bahia.14 Garantir a existncia do acampamento, por meio da resistncia, impedindo a disperso causada por diferentes formas de violncia fundamental para o sucesso da luta na conquista da terra. Essa foi a preocupao do MSTMT em sua primeira ocupao no estado, como a preocupao de todos os sem-terra a cada nova ocupao.

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    Salvar a ocupao, com a transferncia das famlias para fora do latifndio, garantindo sempre um lugar para o acampamento, faz parte da lgica da resistncia. Quando acontece o despejo - essa palavra que tambm significa livrar-se de estorvo, em que as pessoas so tratadas como coisas, num ato de violncia legitimada pela judiciarizao da luta pela terra (Fernandes, 1997; Moreyra, 1998) - as famlias transferem o acampamento para outras reas, como por exemplo, s margens das rodovias, ou para terrenos cedidos pelas prefeituras, ou por outras instituies. Quando so despejadas das margens das rodovias, montam acampamentos dentro de assentamentos prximos, esse territrio dos sem-terra, expresso da conquista na luta e resistncia.

    A sustentao dos acampamentos uma forma de presso para reivindicar o assentamento. E essa uma prtica do MST, garantir o acampamento at que todas as famlias sejam assentadas. Para os outros movimentos, essa prtica no to permanente. Muitas vezes negociam com o governo o assentamento e, acreditando nas promessas, as famlias retornam para seus municpios. De modo que, evidentemente, a maior parte dos assentamentos no se realiza. No incomum, tambm, muitas famlias que permanecem acampadas acabarem desistindo por uma srie de motivos, principalmente pela falta de perspectiva e pela violncia dos despejos e dos jagunos.

    Na poltica de implantao de assentamentos rurais do governo federal, os acampamentos (e as famlias participantes nos trabalhos de base que esto se mobilizando para ocupar) so tambm uma forma de presso e uma contribuio dos sem-terra para a realizao do cadastramento das famlias beneficirias, bem como para intensificar a arrecadao das reas. Essa uma prova insofismvel que as aes dos governos federal e estaduais derivam das aes dos movimentos sociais. O acampamento espao de luta e resistncia no processo de espacializao e territorializao da luta pela terra. Entre o tempo de acampamento e a conquista do assentamento (que configura a territorializao), desenvolve-se a espacializao. Uma forma por meio das romarias e/ou das marchas.

    A marcha uma necessidade para expandir as possibilidades de negociao, para gerar novos fatos. Em seus ensinamentos e aprendizados, por meio de suas experincias, os sem-terra tiveram diversas referncias histricas. Alguns exemplos utilizados na mstica do Movimento so: a caminhada do Povo Hebreu rumo terra prometida, na luta contra a escravido no Egito; a caminhada de Gandhi e dos hindus rumo ao mar, na luta contra o imperialismo ingls; as marchas das revolues mexicana e chinesa entre outras.15 Dessa forma, os sem-terra ocupam a terra, prdios pblicos e os transformam em espaos polticos para denunciar os significados da explorao e da expropriao,

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    lutando para mudar suas realidades. Ou, ento, como o cineasta Paulo Rufino conseguiu exprimir de maneira to objetiva quanto potica:

    Dos campos, das cidades, das frentes dos palcios, os Sem Terra, este povo de beira de quase tudo, retiram suas lies de semente e histria. Assim exprimidos nessa espcie de geografia perdida que sobra entre as estradas, que por onde passam os que tm aonde ir, e as cercas, que onde esto os que tm onde estar, os Sem Terra sabem o que fazer: plantam. E plantam porque sabem que tero apenas o almoo que puderem colher, como sabem que tero apenas o pas que puderem conquistar. (Paulo Rufino. O canto da terra, 1991). Organicidade e vinculao Uma importante condio para o avano da luta pela terra a organicidade

    dos movimentos sociais. Esta representada pela interao entre as distintas atividades do movimento social e pela expresso do acmulo de foras, na espacializao e territorializao, que de acordo com Bogo :

    [...] a conquista de espaos social e geogrfico, e sua manuteno atravs da interveno organizada das pessoas ou de um movimento de massas, elevando o nvel de conscincia atravs da perseguio de objetivos que se queiram alcanar a curto, mdio e longo prazos [...] O acmulo de foras se mede no simplesmente pela quantidade de pessoas que participam das atividades, mas da quantidade e da eficincia da diversidade de atividades que envolvem cada vez mais as pessoas que participam diretamente e a influncia que estas tm sobre as demais. (Bogo, 1999, p.138- 140). A organicidade uma caracterstica dos movimentos socioterritoriais.

    representada na manifestao do poder poltico e de presso que os sem-terra possuem no desenvolvimento da luta, tanto para conquistar a terra, quanto para as lutas que se desdobram nesse processo. A separao das lutas pela conquista da terra das lutas de resistncia na terra uma forma de fragilizar os movimentos. Portanto, a conscincia das realidades em que vivem fundamental para a construo da organicidade no processo de formao da identidade dos sujeitos da luta. E essa condio est associada vinculao das famlias aos movimentos. E como Bogo evidencia, quantidade s serve como referncia para se compreender a organicidade se estiver associada participao das pessoas nas diversas atividades da organizao, em suas diferentes escalas: local, regional, estadual e nacional, de acordo, evidentemente, com a extenso da ao dos movimentos sociais.

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    A vinculao das famlias aos movimentos componente da dimenso da organicidade. E, neste sentido, componente qualitativo. Como tambm quantitativo. Assim, muito trabalhoso calcular os graus de vinculao das famlias aos movimentos, por ser um atributo qualitativo de identificao, cujas dimenses so de difcil mensurao. Todavia, a vinculao expressa identidade dos membros com o movimento que constroem. Quanto maior a vinculao, mais orgnico o movimento, condio fundamental para sua consolidao.

    Concluso Este texto representa uma contnua reflexo. Meu objetivo ampliar esse

    ensaio terico atravs do debate com colegas que pesquisam movimentos sociais, de modo que consigamos reunir referncias que nos possibilitem a construo terica por meio de elaborao de um corpo conceitual que nos ajudem a realizar diferentes leituras geogrficas sobre os movimentos sociais.

    Recebido para publicao em 31 de maio de 2000

    Notas 1 Um excelente trabalho terico a respeito deste tema Sujeitos irreverentes, de Nogueira, 1993.

    2 A respeito da construo desse conceito, ver Fernandes (1996, p.225 et seq.).

    3 Bons estudos a respeito desses processos esto em Farias (1997, p.119 et seq.); Momesso (1997, p.33 et seq.);

    Cintra (1999, p.122 et seq.). 4 Ver tambm Mitidiero Jr. (1999) e Lima (1999).

    5 A respeito, ver Martins, 1997a, p.145 et seq.

    6 Ver a respeito: Hobsbawn, 1998, p.241 et seq.

    7 Movimentos sindicais por sua prpria estrutura so movimentos territorializados, todavia no so movimentos

    sociais. 8 O conceito de ocupao massiva tem como significados: quantidade e extenso. Portanto, considera-se tanto o

    grande nmero de famlias envolvidas, quanto a prtica de desdobramento da luta, quando a ocupao organizada no para conquistar uma rea determinada, mas sim para conquistar determinadas reas para todas as famlias. 9 Um bom exemplo so os movimentos sociais no estado do Paran, na primeira metade da dcada de oitenta:

    MASTRO, MASTES, MASTEN, MASTRECO e MASTEL, que formaram o MST PR. 10

    Um primeiro ensaio terico a respeito dos processos de espacializao e territorializao est em Fernandes, 1996. 11

    Um exemplo disso o Decreto 35.852 do Governo do Estado de So Paulo. Em seu artigo 1, 1 determina que as famlias no residentes h pelo menos dois anos na regio, no podem ser assentadas.

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    12 Entre os critrios determinados pelo governo esto: ser trabalhador rural, no ser proprietrio de terra, no

    ser funcionrio pblico etc. 13

    Raros exemplos so os municpios de Mirante do Paranapanema SP, Ronda Alta RS e Ponto RS, onde os sem-terra conquistaram a maior parte dos latifndios. 14

    Ver Fernandes, 1999, captulo 2 O acampamento Encruzilhada Natalino e no captulo 3 Bahia. 15

    Ver a respeito: Stedile e Fernandes, 1999, p.149-155.

    FERNANDES, Bernardo Manano. El movimiento social como una categora geogrfica. Terra Livre, So Paulo, n.15, p.59-85, 2000.

    Resumen: Este texto es un ensayo terico dirigido a los gegrafos que se dedican al estudio de los movimientos sociales. Se trata de una reflexin que vengo desarrollando con el objetivo de proponer anlisis de los movimientos sociales a partir de dos procesos geogrficos: la espacializacin y la territorializacin. En este estudio se analiza el Movimiento de los Trabajadores Sin Tierra (MST). Sin embargo, los elementos y las reflexiones presentes aqu pueden servir de referencia para las investigaciones de otros movimientos sociales. Considerando que hay un aumento de investigaciones geogrficas sobre los movimientos sociales en el campo y en la ciudad, el estudio de un movimiento social, como una categora geogrfica, es condicin esencial para la elaboracin terica. Sin embargo, las referencias tericas utilizadas en las investigaciones provienen, en su mayora, de otras reas del conocimiento. Estamos iniciando una reflexin fundamental orientada a comprender los movimientos sociales, no solamente su forma de organizacin, sino que tambin los procesos que se derivan de los mismos, los espacios que se construyen y los territorios que dominan. As pues, nuestro desafo consiste en rescatar elementos de estos procesos que puedan servir como referencia para construir una teora geogrfica de los movimientos sociales. Palabras-clave: MST; movimiento social; movimiento socioterritorial; espacializacin; territorializacin.

    FERNANDES, Bernardo Manano. Social movement as a geographical category. Terra Livre, So Paulo,15:59-85, 2000.

    Abstract: This paper is a theoretical essay presented as a contribution to the geographers who have the social movements as their object of study. It has resulted from some considerations I have been developing with the purpose of treating the analysis of the social movements from the point-of-view of two geographical processes: spatialization and territorialization. In this study I analyze the Movement of the Landless Rural Workers (MST). However, the elements and the reflections carried out here are thought of as references for researching other social movements. To address the study of a social movement as a geographical category is considered here as a basic condition for theoretical elaboration, taking into account the increase in geographical research about social movements in the countryside and in the cities. However, the theoretical references now in use come from other areas of knowledge. We are, therefore, initiating a basic reflection in order to understand the social movements beyond their forms of organization, which means that we will also examine the related processes which develop from them, the spaces that they create, the territories that they dominate. In this sense, the challenge is to point out the elements of those processes that can be used as references for a geographic theory of the social movements. Key words: MST; social movements; socioterritorial movement; spatialization; territorialization.

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    Bibliografia ALENTEJANO, Paulo Roberto R. A Geografia das lutas pela terra no Rio de

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