movimento feminista na fonte dos centros de combate à violência contra mulheres - monicadias

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41 Anais do I Simpósio sobre Estudos de Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina, 24 e 25 de junho de 2010 GT 2. Gênero e movimentos sociais – Coord. Renata Gonçalves Movimento feminista na fonte dos centros de combate à violência contra mulheres Mônica Ribeiro Resumo: Neste trabalho, examinaremos o trajeto de construção dos centros de combate à violência contra mulheres. Apresentamos a trajetória das políticas sociais voltadas para o enfrentamento da violência contra a mulher como fruto das mobilizações de movimentos de mulheres e feminista dos anos 70 e 80. Um dos aspectos que enfatizaremos é a complexa relação entre as mulheres vítimas de violência que procuraram os centros especializados e as mulheres do outro lado do balcão. As instituições criadas em defesa das mulheres são importantes no combate à violência mas, na contramão de alguns estudos que observam que os serviços sociais desta natureza não funcionam ou estão sucateados por falta de repasse de verbas, indagamos se este não funcionamento não teria uma relação profunda com a função que o Estado desempenha na sociedade capitalista. Palavras-chave: Violência; Mulheres; Feminismo; Estado. Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina; pesquisadora, nesta mesma Universidade, do Grupo de Estudos sobre Feminismo e Marxismo, vinculado ao Grupo de Estudos de Política da América Latina (GEPAL). End. eletrônico: monica_diasribeiro59@hotmail.com

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Movimentos Sociais

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    Anais do I Simpsio sobre Estudos de Gnero e Polticas Pblicas, ISSN 2177-8248

    Universidade Estadual de Londrina, 24 e 25 de junho de 2010

    GT 2. Gnero e movimentos sociais Coord. Renata Gonalves

    Movimento feminista na fonte

    dos centros de combate violncia

    contra mulheres

    Mnica Ribeiro

    Resumo:

    Neste trabalho, examinaremos o trajeto de construo dos centros de combate violncia contra mulheres. Apresentamos a trajetria das polticas sociais voltadas para o enfrentamento da violncia contra a mulher como fruto das mobilizaes de movimentos de mulheres e feminista dos anos 70 e 80. Um dos aspectos que enfatizaremos a complexa relao entre as mulheres vtimas de violncia que procuraram os centros especializados e as mulheres do outro lado do balco. As instituies criadas em defesa das mulheres so importantes no combate violncia mas, na contramo de alguns estudos que observam que os servios sociais desta natureza no funcionam ou esto sucateados por falta de repasse de verbas, indagamos se este no funcionamento no teria uma relao profunda com a funo que o Estado desempenha na sociedade capitalista.

    Palavras-chave: Violncia; Mulheres; Feminismo; Estado.

    Graduanda em Cincias Sociais pela Universidade Estadual de Londrina; pesquisadora, nesta mesma Universidade, do Grupo de Estudos sobre Feminismo e Marxismo, vinculado ao Grupo de Estudos de

    Poltica da Amrica Latina (GEPAL). End. eletrnico: [email protected]

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    Para tratar do tema da violncia contra as mulheres, importante observar que nossa sociedade, em sua forma mais genrica enquanto civilizao ocidental, se funda a partir de uma concepo de um mundo masculinizado. O masculino, o homem, desde os tempos imemoriais ocupa um lugar de maior prestgio e poder e tenta nos fazer acreditar que sempre foi assim e que sempre o ser, pois est na natureza das coisas. Contudo, a prpria idia de natureza uma construo cultural e, portanto, humana. O que distingue os seres humanos dos animais exatamente a capacidade de instituir a linguagem, o sentido das coisas. Sendo assim, todas as explicaes fundantes, os mitos e significados so socialmente construdos. Isto no significa que os mitos sejam as causas da dominao masculina, mas sim que eles se instituem com a finalidade de dar um sentido, uma justificao a esta dominao.

    Vrios estudos j enfatizaram que as razes da subordinao das mulheres esto fundadas, embora no exclusivamente, na diviso sexual do trabalho, que organiza as tarefas produtivas e reprodutivas entre homens e mulheres, identificando as atividades produtivas como masculinas e as atividades reprodutivas como femininas. A pergunta a ser feita : qual a razo pela qual esta diviso gera valores diferentes para cada atividade e, consequentemente, valoriza tambm diferentemente aqueles(as) que as praticam?

    Friedrich Engels, em seu livro, lanado em1884, A origem da famlia da propriedade privada e do Estado, contribuiu para o desencadeamento das anlises acerca das verdadeiras origens da opresso da mulher. Neste sentido, alm de fornecer elementos para a compreenso das origens da opresso feminina, o autor tambm criou as primeiras condies para que fossem constitudos os caminhos que conduzissem sua liberao. Nesta obra o pensador socialista apresentou o primeiro antagonismo de classe que apareceu na histria coincidindo com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia e a primeira opresso de classe coincidindo com a opresso do sexo feminino pelo sexo masculino. Para Engels, a famlia representa ento o lugar por excelncia onde ocorre a dominao das mulheres. na famlia que a desigualdade entre homens e mulheres paira soberana. Nesta perspectiva, o autor enfatiza a necessidade de que esta saia da esfera domstica para se incorporar indstria.

    De igual maneira, o carter particular do predomnio do homem sobre a mulher na famlia moderna, assim como a necessidade e o modo de estabelecer uma igualdade social efetiva entre ambos, no se manifestaro com toda a nitidez seno quando homem e mulher tiverem, por lei, direitos absolutamente iguais. Ento que se h de ver que a libertao da mulher exige, como primeira condio, a reincorporao de todo o sexo feminino indstria social, o que, por sua vez, requer a supresso da

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    famlia individual enquanto unidade econmica da sociedade. (ENGELS, 1997, p. 22).

    A condio feminina tambm foi tratada por outros pensadores socialistas do sculo XIX, como Saint Simon e, mais radicalmente ainda, e Charles Fourier. Este ltimo ganhou simpatia de mulheres que, ainda no sculo XIX, apresentaram idias que fariam delas feministas pioneiras (SCAVONE, 2004). o caso, por exemplo, de Flora Tristan. Uma jovem mulher francesa com idias socialistas e ainda muito pouco conhecida dentre os estudiosos do assunto. Flora Tristan foi muito ousada para seu tempo: lutou pela lei do divrcio, deixou filhos para se dedicar causa operria, especialmente causa das mulheres operrias; morreu exausta pelas constantes viagens pelo interior da Frana, quando falava diretamente a operrios e operrias sobre a necessidade de se construir uma Unio Operria (KONDER, 1994). Antes mesmo de Marx e Engels apresentarem as idias contidas no Manifesto Comunista, Trabalhadores do mundo: uni-vos!, Flora Tristan j se dedicava organizao proletria.

    Aqui no Brasil, no mesmo perodo, muitas mulheres iniciavam suas lutas por meio de organizaes femininas. Nsia Floresta, por exemplo, abolicionista, republicana e feminista, nascida no Rio Grande do Norte, foi ardorosa defensora da educao feminina, denunciou a ignorncia em que eram mantidas as meninas, protestou contra a condio de dependncia em relao aos homens, ancorada no desprezo com que era vista a educao das mulheres. Na cidade do Rio de Janeiro, em 1852, a argentina Joana Paula Manso de Noronha fundou o Jornal das Senhoras, onde discutiam sobre o melhoramento social e a emancipao moral da mulher. Chiquinha Gonzaga, foi outra importante figura feminina que com muita coragem defendeu sua liberdade de escolha e lutou por sua verdade maior: a arte.

    J no incio do sculo XX, Bertha Lutz, pesquisadora e fundadora da Liga pela Emancipao Intelectual da Mulher, representou o Brasil no Conselho Feminino internacional da Organizao Internacional do Trabalho. E Ind Soares Casanova (por influncia de Bertha Lutz), escreveu inmeros artigos em defesa do voto feminino e defendeu os direitos da mulher por um novo lugar na sociedade (COELHO, 2001). Ou seja, so muitos os exemplos que mostram que as mulheres no aceitavam passivamente seu destino de subordinao feminina. No entanto, para os propsitos deste artigo, nos deteremos ao exame das organizaes de mulheres no Brasil, impulsionadas pela nova onda feminista europia e estadunidense, que datam da segunda metade do sculo XX. As polticas sociais de combate violncia contra as mulheres so, em grande medida, resultados das reivindicaes destas organizaes de mulheres que tiveram a proeza de unir movimentos de mulheres dos bairros populares e

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    movimentos feministas cujas integrantes eram, sobretudo, mulheres de classe mdia que, em grande parte, voltavam do exlio que lhes foi imposto pela ditadura militar (GONALVES, 2009). Nas palavras de Souza-Lobo (1991), nascia ali um feminismo revisitado ou ainda, como escreve Soares (1998), tratava-se de uma dupla face.

    Violncia domstica na agenda feminista

    Em 1975 a ONU realizou o primeiro Dia Internacional da Mulher, ao mesmo tempo em que se criava, em So Paulo, o Movimento Feminino pela Anistia, que culminou na fundao do Centro de Mulher Brasileira, primeira organizao do novo feminismo, no Rio de Janeiro e em So Paulo.

    Ao movimento feminista se aglutinou uma srie de grupos que atuaram cotidianamente reivindicando direitos de melhores condies de vida, pela anistia e pela igualdade de direitos entre homens e mulheres.

    A formao de entidades voltadas a abrigar vitimas de violncia domstica no tardou a se formar. Por todo Brasil grupos de ativistas voluntrias procuravam enfrentar todos os tipos de violncia: estupros, maus tratos, incestos, perseguies a prostitutas, e infindveis violaes dos direitos humanos de mulheres e meninas. Diferentemente das dcadas de 1910 e 1920, agora as denncias destes crimes escondidos na e pela famlia tornaram se pblicos. (BLAY, 2003).

    Segundo Gonalves (2001), esses grupos de mulheres eram parte da espinha dorsal de vrias organizaes chamadas sociedades civil e dos partidos de oposio, desafiando com sucesso as regras do regime militar nos anos 70 e incio dos 80. Movimento de mulheres que denunciavam as discriminaes, interferindo nas mudanas de valores e comportamentos em relao aos preconceitos de gnero, raa, etnia e opo sexual. Mulheres que ultrapassaram os meios privados e domsticos, para ocuparem espaos pblicos, sociais e polticos de forma organizada e combativa. Essas mulheres haviam descoberto os seus direitos e, mais do que isso ,talvez a mais desafiadora das descobertas: haviam descoberto os seus corpos, com suas mazelas e prazeres.

    Nos anos 80, o tema da violncia domstica ocupa boa parte da agenda das reivindicaes feministas. H tambm um avano nos estudos sobre o assunto. O episdio do assassinato de ngela Diniz, em 1976, e a absolvio do agressor que usou o argumento de t-la matado em legtima defesa da honra foi um dos fatores importantes que impulsionaram as primeiras grandes campanhas pblicas das feministas no Brasil. Zimmermann observa que na grande imprensa do perodo destaca-se um protagonista atordoado pela paixo ao cometer o crime. Esse conjunto de

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    notcias sobre o crime, o criminoso, a vtima, o julgamento e a priso tornou-se um emaranhado de jogos estratgicos que envolvia a dominao masculina (2009, p. 171). O desfecho do caso foi considerado smbolo do machismo. A autora observa que a jurisprudncia nacional do perodo cunhou o direito ao homem de matar pela honra. Ao alegar traio, o crime deixava de existir como tal. A eliminao da mulher era um direito legitimado (ZIMMERMANN, 2009, p. 172).

    De acordo com Cli Pinto, estava inaugurada uma nova fase na histria da violncia contra mulher no pas (PINTO, 2003, p. 80). Surgiram no Brasil vrias organizaes, cujo principal objetivo era o atendimento mulher vtima de violncia: a primeira delas foi o SOS-Mulher. Para Cli Pinto, esta organizao procurava se constituir como um espao de atendimento de mulheres vtimas de violncia e tambm um espao de reflexo e de mudana das condies de vida dessas mulheres (PINTO, 2003, p. 81). No entanto, observa a autora, esta organizao logo entra colapso. A autora enfatiza que as feministas entraram em crise ao ver que seus esforos no resultavam em mudana de atitude das mulheres atendidas, que, passado o primeiro momento de acolhimento,voltavam a viver com seus maridos e companheiros violentos, no retornando aos grupos, de reflexo promovidos pelos SOS-Mulher (PINTO, 2003, p. 81).

    A crise instaurada dizia respeito origem social das mulheres que prestavam atendimento e as que utilizavam os servios: as primeiras eram as militantes cultas e politizadas, enquanto que as segundas eram as companheiras da classe operria, as realmente vtimas do patriarcalismo burgus. A autora enfatiza que as mulheres que formavam o SOS-Mulher no eram as vtimas de violncia fsica. A vtima, isso sim, a outra, aquela que no era feminista, aquela que no tinha cultura, aquela que no tinha condies econmicas (PINTO, 2003, p. 81).

    As distncias entre as duas realidades, sobretudo marcada pela classe social, no permitia a existncia de um ponto de contato. Certamente, as mulheres que procuravam o SOS-Mulher como apoio se sentiam protegidas e capazes de intimidar o agressor, pois a organizao se tornava uma arma de negociao com o parceiro que temia represlias. Porm, as mulheres que procuravam o SOS-Mulher no pretendiam se tornar feministas, apenas no queriam mais ser agredidas. Esta realidade contribuiu para que no houvesse uma identificao entre feministas (que prestavam apoio) e mulheres dos meios populares que buscavam por estes servios.

    No entanto, a criao dos SOS-Mulher constitui um marco no atendimento direto s mulheres vtimas de violncia no Brasil. Foram criados no final da dcada de 70, no processo de luta pela redemocratizao

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    no Brasil, num momento em que o movimento feminista discutia duas opes: assumir a luta pelas questes poltico-sociais mais gerais ou enfrentar as chamadas questes especficas das mulheres. Os SOS se tornaram a primeira experincia de contato direto com as mulheres vtimas de violncia e trouxe tona desafios que ainda no foram completamente superados. As discusses e as prticas da entidade contriburam para estabelecer um precioso campo de reflexo sobre a violncia de gnero e tambm referncias para as iniciativas de combate. No II Congresso da Mulher Paulista (1980), realizado na cidade de Valinhos (SP) foi criada uma Comisso de Violncia contra a Mulher, que passa a fomentar as discusses sobre o tema.

    Um conjunto de fatores, tais como a falta de estrutura e apoio, o isolamento da instituio e as j mencionadas concepes feministas que conflitavam com os interesses das mulheres vtimas de violncia, culminou no fechamento do SOS-Mulher. interessante observar que grande parte destes problemas iriam se repetir e marcar posteriormente outras experincias de combate violncia contra a mulher, tanto nas prticas governamentais como no-governamentais.

    Com o fechamento dos SOS foi necessria a implantao de redes como uma alternativa promissora, no sentido de ampliar a compreenso e abordagem do fenmeno, alm de fortalecer os servios especializados para garantir melhor assistncia e qualidade na ateno ao combate da violncia contra a mulher. Deste modo, os SOS foram substitudos por centros de referncia e atendimento, delegacias especializadas e casas abrigo.

    Centros de referncia, casas-abrigo e a relao classe e gnero

    Sem dvida alguma, o cenrio internacional tem influenciado na reflexo e nas polticas de combate violncia. Desde a dcada das mulheres iniciada em 1975, a ONU realizou vrias conferncias mundiais sobre mulheres. Foi da Conferncia realizada em Viena, na ustria, em 1993, que surgiu uma classificao clara das diferentes formas de violncia. Azambuja e Nogueira e as descrevem da forma a seguir:

    1) Violncia praticada por outros membros da famlia (abrangendo as agresses fsicas e psicolgicas, as sevcias sexuais infligidas s crianas do sexo feminino, violao conjugal, mutilaes genitais e outras prticas tradicionais, bem como explorao econmica);

    2) Diversos tipos de violncia ocorridos no contexto das comunidades locais (violao, intimidao sexual e intimidao no local de trabalho, ensino ou outras instituies, proxenetismo e prostituio forada);

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    3) Violncia perpetrada ou tolerada pelo prprio Estado (seja por negligncia ou falta de respostas dos servios institucionais) (AZAMBUJA e NOGUEIRA, 2008, p. 104-105)

    No caso brasileiro, aps o fim dos SOS, os centros de referncia tm sido considerados equipamentos estratgicos na rede antiviolncia. Contudo, na maior parte dos casos, sua atuao se limita ao acolhimento e orientao, pela falta de polticas pblicas locais articuladas que ofeream respostas eficazes para as mulheres em situao de violncia. Muitas vezes estes centros encontram-se diante de dilemas muito parecidos com aqueles encontrados nas primeiras experincias. As mulheres que procuram os Centros se sentem fora do lugar.

    As delegacias especiais, por sua vez, acabam perdendo suas caractersticas policiais para se moldarem s demandas psicossociais imediatas das mulheres. A falta de equipamentos e de infraestrutura impede a adequada interveno nos casos em que a gravidade exigiria uma ao de carter policial, como para os casos de porte de arma, ameaas de morte, violncias graves. Alm destes problemas, a lei 9.099-951, acabou contribuindo para a ineficincia do combate violncia. Esta lei que entrou em vigor em 1995 e criou os Juizados Especiais nas reas cvel e criminal, tem se revelado uma lstima na resoluo de conflitos domsticos, na opinio da maioria das delegadas de DDMs e de outros profissionais do ramo (SAFFIIOTI, 2004, p. 91). Como observa a autora, a lei extingue a figura do ru, da perda de primariedade, dependendo das circunstncias, das penas de privao de liberdade, substitudas por penas alternativas, em benefcio da oralidade, da agilidade, da conciliao (SAFFIIOTI, 2004, p. 91). Neste sentido, a lei se contrape aos direitos humanos das mulheres e os agressores se sentem autorizados a voltar a agredir suas companheiras, pois pagam as multas e no perdem a primariedade e, logo, se sentem livres para continuar sua carreira de violncias. Saffioti (2004) enfatiza que houve casos em que mulheres apresentaram queixas de um mesmo agressor por 3 e at 7 vezes!

    Paradoxalmente, aumenta o nmero de Delegacias da Mulher (DDMs). De acordo com a Secretaria Especial de Polticas para Mulheres (2007), todas as capitais e o Distrito Federal possuem pelo menos uma unidade dessas delegacias, mas sua distribuio bastante desigual no territrio nacional. Menos de 10% dos municpios brasileiros possuem delegacia da mulher; 11% esto situadas nas capitais; 49% esto situadas na regio Sudeste (que concentra 43% da populao feminina); 32% esto localizadas no estado de So Paulo (que concentra 22% da populao

    1 Sobre esta lei, consultar: http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L9099.htm

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    feminina). tambm importante notar que, embora a criao das delegacias da mulher seja regida por decretos e leis estaduais, muitas vezes suas instalaes dependem de acordos entre o governo do estado e dos municpios, que ficam responsveis por ceder e administrar os espaos fsicos necessrios para o funcionamento das delegacias. O Brasil conta com aproximadamente 65 Casas Abrigos e 101 Centros de Referncias distribudos nos estados e no Distrito Federal .

    Estudos feitos pela SPM mostram que as usurias desses servios so de faixas mais jovens e das camadas mais pobres, so as mais vulnerveis que, em geral, correm risco de morte ou de sofrer violncia ainda mais forte ao voltar para suas casas. Mulheres que na maior parte das queixas referem-se a leses corporais e ameaas em situao de conflitos conjugais, com idade entre 19 e 34 anos; baixo nvel de escolaridade e baixa qualificao profissional e quando exercem atividades remuneradas, atuam no comrcio, no setor de limpeza ou no mercado informal.

    Essas mulheres so atendidas em casas-abrigo, que tambm se multiplicaram e cuja finalidade consiste em garantir a integridade fsica e psicolgica de mulheres em risco de morte e de seus filhos menores de idade. Estas ficam nas casas em carter sigiloso. So protegidas e a no divulgao do endereo preservada. Fomentada pelo Ministrio da Justia, em parceria com o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, desde 1997, foi fundamental para atender aos casos de violncia mais agudos. Entretanto, ainda temos um monitoramento frgil destes servios, o que nos leva a indagar se de fato este modelo o mais adequado para proteger as mulheres em risco de vida. Aqui, ao contrrio da punio do agressor, elas que so privadas do direito de ir e vir. So tratadas como refugiadas, vivem na solido, envergonhadas pelo espancamento, se sentem marginais, tm de deixar seus lares e se adequarem s normas dos abrigos, etc., enquanto os agressores permanecem em liberdade. Estaria havendo uma inverso?

    Saffioti (2004) j chamou a ateno para o fato de que os operadores do Direito (os juzes, promotores do povo) implementam a legislao, mas com muito desprezo pelas vtimas e, como escreve a autora, com tanto sexismo, que conseguem torn-la pior (2004, p. 93). Observa que tais profissionais carecem de qualificao em relaes de gnero. Mas ser que isto basta? Como no perceber a enorme distncia entre as classes sociais daqueles que implementam a lei e as que buscam apoio nas DDMs?

    Sem dvida alguma as instituies criadas em defesa das mulheres so importantes no combate violncia. No entanto, compreender as razes de seu no funcionamento requer que se faa uma anlise do Estado como desorganizador das classe sociais, medida em que este atua em interesse

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    das classes dominantes. Nos resultados dos vrios estudos sobre o perfil das mulheres que buscam apoio nas DDMs esto ausentes as mulheres burguesas, que, podemos suspeitar, gozam de outras redes (viagens tursticas, spas sigilosos, etc.) para amenizar suas dores sem expor o prestgio social de seus agressores. Ou seja, no se trata apenas de uma questo de gnero!

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