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PARADIGMA INDICIÁRIO FEMINISTA: UMA REANÁLISE DA OBRA DE CARLO GINZBURG A PARTIR DAS TEORIAS FEMINISTAS DE SILVA FEDERICI Manoel da Paixão Lordelo da Silva Junior Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras da Universidade Estadual da Bahia [email protected] RESUMO: O artigo propõe uma reinterpretação do processo inquisitório de uma bruxa apresentado no trabalho do historiador Carlo Ginzburg, a partir das novas contribuições das reflexões e paradigmas propostos pela obra “O calibã e a bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva”, da historiadora ítalo-estadunidense Silva Federici. O texto apresenta as teorias desses dois pensadores a fim de entender em uma perspectiva interseccional feminista a política da “caça às bruxas” como uma ferramenta de representação e legitimação de controle e extermínio do Outro, sobretudo das mulheres, trazendo ao debate a importância de algumas categorias de análise na pesquisa histórica. Palavras-chave: bruxa, feminismo, Silva Federici, Carlo Ginzburg. As análises dos documentos dos processos de Inquisição da Igreja Católica na Europa nos séculos XV à XVII apresentadas nas obras de Carlo Ginzburg, tornaram-se importante referenciais para as pesquisas históricas, não só por inaugurar novas possibilidades metodológicas investigativas, mas, sobretudo, por incluir temas e áreas de conhecimento aparentemente dispares em perspectivas inovadoras além de tornar protagonista diversos sujeitos negligenciados e marginalizados na história. Ginzburg tem por excelência em seus trabalhos uma ampla investigação de indivíduos e manifestações, que a partir de uma matriz religiosa foram julgados e estigmatizados como hereges, diabólicos e monstruosos como as bruxas, feiticeiros e lobisomens. No seu mais famoso livro O queijo e os vermes (1976), o autor revela a história de Menocchio, um moleiro italiano acusado de heresia por apresentar uma cosmovisão diferente do pensamento da Igreja Católica vigente na época.

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PARADIGMA INDICIÁRIO FEMINISTA: UMA REANÁLISE DA

OBRA DE CARLO GINZBURG A PARTIR DAS TEORIAS

FEMINISTAS DE SILVA FEDERICI

Manoel da Paixão Lordelo da Silva Junior

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos

Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras

da Universidade Estadual da Bahia

[email protected]

RESUMO: O artigo propõe uma reinterpretação do processo inquisitório de uma bruxa

apresentado no trabalho do historiador Carlo Ginzburg, a partir das novas contribuições das

reflexões e paradigmas propostos pela obra “O calibã e a bruxa: mulheres, corpos e acumulação

primitiva”, da historiadora ítalo-estadunidense Silva Federici. O texto apresenta as teorias desses

dois pensadores a fim de entender em uma perspectiva interseccional feminista a política da “caça

às bruxas” como uma ferramenta de representação e legitimação de controle e extermínio do

Outro, sobretudo das mulheres, trazendo ao debate a importância de algumas categorias de análise

na pesquisa histórica.

Palavras-chave: bruxa, feminismo, Silva Federici, Carlo Ginzburg.

As análises dos documentos dos processos de Inquisição da Igreja Católica na

Europa nos séculos XV à XVII apresentadas nas obras de Carlo Ginzburg, tornaram-se

importante referenciais para as pesquisas históricas, não só por inaugurar novas

possibilidades metodológicas investigativas, mas, sobretudo, por incluir temas e áreas de

conhecimento aparentemente dispares em perspectivas inovadoras além de tornar

protagonista diversos sujeitos negligenciados e marginalizados na história.

Ginzburg tem por excelência em seus trabalhos uma ampla investigação de

indivíduos e manifestações, que a partir de uma matriz religiosa foram julgados e

estigmatizados como hereges, diabólicos e monstruosos – como as bruxas, feiticeiros e

lobisomens. No seu mais famoso livro O queijo e os vermes (1976), o autor revela a

história de Menocchio, um moleiro italiano acusado de heresia por apresentar uma

cosmovisão diferente do pensamento da Igreja Católica vigente na época.

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Em “Feitiçaria e piedade popular – Notas sobre um processo Modenense de

1519”, artigo que abre o livro Mito, emblemas, sinais (1989), o autor apresenta uma

análise do julgamento de Chiara Signorini, uma camponesa da região de Módena acusada

por feitiçaria em dezembro de 1518 e condenada em fevereiro de 1519 à prisão perpétua,

como pena alternativa a ser queimada (por ter se arrependido) após um longo processo de

interrogatório e tortura atribuído ao vigário da Inquisição na região, o frade Bartolomeo

da Pisa.

No caso descrito, Chiara Signorini foi denunciada por lançar um feitiço que

deixou enferma a senhora Margherita Pazzani, como vingança após ela ser expulsa com

o marido de uma herdade em que moravam de propriedade de Margherita. No relatório

do processo, algumas testemunhas e acusadores afirmam que a própria Chiara assumiu

publicamente ser a responsável pela enfermidade de Margherita – usando como

chantagem a possibilidade de cura com a condição de poder retornar a herdade.

Ao analisar este fato, Ginzburg menciona a possibilidade de que a feitiçaria era

muitas vezes utilizada como uma ferramenta de defesa dos camponeses mesmo quando

eles não tinham crenças reais em tais poderes. Em uma breve nota, ele apresenta a

possibilidade do “caráter de uma revolta social disfarçada, muitas vezes assumido pela

feitiçaria” (GINZBURG, 2016, p.224), contudo, a sua principal preocupação

investigativa refere-se ao aspecto do imaginário e crença das bruxas e inquisidores que

ele desenrola ao longo do texto (e praticamente em toda sua obra que se trata deste

assunto).

Para o autor, há um hiato nesses diferentes níveis de leituras da realidade,

sobretudo entre a Igreja e feiticeiras, entre a “fisionomia real da feitiçaria popular distinta

da feitiçaria “culta” dos tratados de demonologia” (ibidem., p.30). Deste modo, Ginzburg

alerta para as limitações e parcialidades da leitura dos documentos da Inquisição – já que

as confissões eram redigidas pelos inquisidores através de experiências de tortura e medo,

em que não é possível acessar o ponto de vista das acusadas, além de possíveis

“rachaduras indiretas” de um pensamento popular presente no relato.

Nos documentos do caso de Chiara, por exemplo, há “uma claríssima tentativa,

por parte do juiz, de fazer coincidir a confissão da acusada com a verdade que ele já

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detém” (ibidem, p.30). Por isso, nessas declarações é impossível perceber o pensamento

dela, mas uma tentativa conduzida de seu relato para algo determinado pelo frade em que

busca arrancar “verdades” já esperadas. O método interrogatório utilizado, além de

recorrer a tortura, sugere implicitamente à acusada o conteúdo da resposta,

ressignificando suas falas até alcançar a confissão prevista.

No próprio relatório das confissões, Chiara modifica a todo momento seu discurso

em diversas versões a cada sessão, não só pelas práticas utilizadas, como ela mesmo

declara “que nada do que disse é verdadeiro, mas que tudo disse por temor da tortura”

(ibidem, p. 29), além de recorrer a elementos da liturgia cristã (a aparição da Virgem

Maria, por exemplo), possivelmente esperando ser liberta. Como alerta Ginzburg, são

documentos que devem ser lidos na sua parcialidade.

O próprio arrependimento final é algo em que não se pode determinar a sua

autenticidade. A declaração de arrependimento, descrita como feita de forma voluntária

por Chiara, sobrepõe diversos elementos entre as ideologias distintas da camponesa e do

inquisidor. É um documento historicamente importante pois registra a legitimação da

“caça às bruxas” e suas punições enquanto ferramenta utilizada pela Igreja. Este

arrependimento faz com que Chiara seja “salva” de ser queimada na fogueira, sendo

condenada à prisão perpétua.

Entre esses importantes pontos apresentados na análise deste caso, Ginzburg não

menciona dois “indícios” fundamentais – como ele próprio propõe em seu método

indiciário – para a leitura desses documentos: o novo regime de privatização das terras na

lenta construção do capitalismo e as relações de gênero estabelecidas entre os dois

agentes. Sendo que este segundo é completamente ignorado em toda análise, em que o

autor não refere em nenhum momento a acusada enquanto mulher. Tais recortes

possibilitariam entender em uma nova perspectiva a política de caça às bruxas durante o

início da Idade Moderna na Europa e no Novo Mundo.

Caça às mulheres: Uma leitura feminista

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De certo que a compreensão do Sujeito Universal descrito no pensamento da

História Geral sempre foi entendida a partir do homem, eurocêntrico, cisheteropatriarcal

e branco – a própria forma da nossa linguagem usual em referir ao geral/todo usando o

gênero masculino das palavras torna-se uma denúncia dessa compreensão. Enquanto, xs

demais sujeitxs, que não se enquadravam no modelo androeurocêntrico, sempre foram

classificadxs como Outro. A filósofa Simone de Beauvoir vai trazer essa importante

evidência ao revelar a partir da dialética masculina a mulher como Outro, assim como “os

judeus são “outros para os anti-semita, os negros para os racistas norte americanos, os

indígenas para os colonos...” (BEAUVOIR, 1980, p. 11, apud RIBEIRO, 2017, p. 39)

Logo, as histórias na perspectiva da mulher e do feminino ocuparam por diversos

anos uma subcategoria nos diversos campos de saberes. Joan Scott, historiadora

estadunidense, analisando os novos paradigmas propostos nas obras das autoras

feministas, apresenta o recorte de gênero como uma categoria útil para a análise histórica,

de modo que

inscrever as mulheres na história implica necessariamente a redefinição e o

alargamento das noções tradicionais do que é historicamente importante, para

incluir tanto a experiência pessoal e subjetiva quanto as atividades públicas e

políticas. Não é exagero dizer que por mais hesitante que sejam os princípios

reais de hoje, tal metodologia implica não só em uma nova história das mulheres,

mas em uma nova história. (SCOTT, 1995, p. 73)

É a partir dessa perspectiva que o pensamento da historiadora Silvia Federici

apresentado em Calibã e a bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva (2004) torna-

se um importante paradigma de ressignificação da compreensão da história geral em que

a experiência masculina é apresentada como única e invisibiliza as mulheres enquanto

agentes históricas.

Em seu livro, a autora denuncia como o processo de acumulação primitiva do

surgimento do capitalismo e o controle do corpo do proletariado descritos por Karl Marx

e Michel Foucault ignoraram completamente a sujeição das mulheres através de uma das

principais políticas adotadas pela Igreja e Estado neste período, que foi o extermínio das

“bruxas”. Para Federici, a perseguição às feiticeiras serviu como justificativa para o

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controle do corpo feminino e das mulheres nas práticas sociais – foi um ataque genocida

contra as mulheres.

Ela discorre apesentando como a construção do capitalismo se deu através de

“uma acumulação de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora, em que as

hierarquias construídas sobre gênero, assim como sobre a “raça” e a idade, se tornaram

constitutivas da dominação de classe e da formação do proletariado moderno”

(FEDERICI, 2017, p. 119). A história não pode ser apenas compreendida como uma luta

de classes, sem perceber seus diversos aspectos interseccionais que envolve outras

categorias.

Partindo dessas novas conexões apresentadas por Federici em análise da caça às

bruxas, proponho uma apresentação de suas teorias intercalando com alguns indícios

presentes nos documentos inquisitórios do Caso Chiara não apresentados por Ginzburg

em sua análise. Não se trata de uma crítica anacrônica ou ideológica à obra do autor,

mediante as importantes contribuições de seu trabalho, mas uma maneira de construir

leituras possíveis de um mesmo fenômeno a partir de uma pluralidade de ângulos.

Um novo paradigma indiciário

O modelo epistemológico apresentado por Carlo Ginzburg de um método

heurístico que valoriza os resíduos, os detalhes, vestígios, sinais e dados marginais

presentes na fonte ou no relato da testemunha possibilitou uma importante ferramenta nas

pesquisas de construção das narrativas históricas e das análises sociológicas nas últimas

décadas.

Ao apresentar o modelo, o historiador cita em epígrafe: “Um objeto que fala de

perda, da destruição, do desaparecimento de objetos. Não fala de si. Fala de outros.

Incluirá também a eles?” (GINZBURG, 2016, p. 143). Este processo, cunhado pelo autor

como “paradigma indiciário”, possibilitou que pesquisadores e pesquisadoras se

atentassem aos vestígios ocultos e excluídos dos documentos históricos, fazendo o uso de

sua intuição e sensibilidade para revela-los.

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Notoriamente, os trabalhos realizados pelas pesquisadoras feministas nas últimas

décadas contribuem de modo significativo para se pensar em um novo paradigma nas

pesquisas acadêmicas. Talvez sejam os trabalhos mais importantes que por excelência

tenha utilizado dos indícios de uma história apagada e marginalizada para uma proposição

de revisão e construção de novas epistemologias neste século.

Utilizando, por exemplo, da análise dos “atos falhos” e dos elementos de

construção de nossa linguagem para denunciar a construção da diferença de gênero,

discutindo a importância do lugar de fala para perceber o lugar histórico e social do

sujeito na desconstrução da ideia do sujeito universal, a necessidade de uma investigação

interseccional proposta pelo feminismo negro para denunciar os diferentes níveis de

opressão, da decolonização das formas de representação... 1 Além de centenas de

trabalhos científicos publicados recentemente, as autoras feministas apresentam um novo

panorama acadêmico, reivindicado esses elementos tangenciados à um segundo plano na

história.

Tais trabalhos incitam para além da sensibilidade e atenção ao “despercebido”, a

necessidade de deslocamentos e processos de alteridade das pesquisadoras e

pesquisadores. Há um importante alerta do poder que move a estrutura institucional do

conhecimento – não só exigindo mas apresentando mudanças em sua construção.

Em seu texto, por exemplo, tendo em vista que os processos inquisitórios foram

realizados de forma criminosa, Silvia Federici passa a se referir as mulheres que

enfrentaram esses julgamentos de feitiçarias não mais como “acusadas” mas como

“vítimas”. Parece ser uma mudança simples, mas há uma nova concepção que busca

reparar erros históricos cíclicos que permeiam as estruturas sociais até hoje.

Novos indícios de um processo

Retornando ao nosso caso, o problema de Chiara ter sido expulsa da terra

(herdade) que estava sobre o poder da família de Margherita Pazzani é um ponto crucial

1 Ver AKOTIRENE (2018); COLLINS (2017); CRENSHAW (2019); DAVIS (2016); GONZALES (1984); hooks (2019); OYEWÚMI (2017); PEDRO (2005); RIBEIRO (2017).

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nesta narrativa, tendo em vista que é a partir deste fato que ocorrem as acusações de

feitiçaria. Abordado brevemente por Ginzburg como uma possibilidade de utilizar a

crença popular da feitiçaria como elemento de defesa dos bens, Silvia Federici,

conterrânea do autor, apresenta uma nova interpretação de elementos importantes que

cruzam a partir desse fato.

Frederici explica que o processo de privatizações das terras comunais no

desenvolvimento embrionário do capitalismo, resultou na dependência de uma classe de

maneira que destitui as principais formas de poder e atividades das mulheres na garantia

de sua autonomia, sociabilidade e proteção junto as outras mulheres. Para a autora é

possível dizer que “as terras comunais também foram o centro da vida social das

mulheres, o lugar onde se reuniam, trocavam notícias, recebiam conselhos e podiam

formar um ponto de vista próprio – autônomo da perspectiva masculina” (FEDERICI,

2019, p. 138).

É esta situação difícil e inconveniente dramatizada por Chiara neste momento do

cercamento das terras comunais. Viver em um território que não é seu não lhe permite

realizar com independência suas atividades. Esses grupos destituídos de autonomia são

enfraquecidos e desarticulados por políticas maiores – sobretudo da Igreja – que

permitiam a sua existência. Assim, passam a viver sob o olhar atento e inquisidor dos

seus próprios vizinhos, em um fator de proximidade e hostilidade que recai sobretudo nas

mulheres.

Jean Delumeau (2016, p. 87) lembra que

entre as pessoas que eram bem conhecidas na aldeia, havia aquele ou aquela

que assistia e que era procurado em caso de doença ou de ferimento porque ele

– ou ela – sabia as fórmulas e as práticas que curam. Essa atividade lhe conferia

poder e autoridade no horizonte de sua notoriedade. Mas tal pessoa era suspeita

para a Igreja porque empregava uma medicina não endossada pelas autoridades

religiosas e universitárias e, se suas receitas fracassavam, ela era acusada pelo

rumor público.

Neste campesinato polarizado pelas privatizações de terra e trabalhos

individualizados, as relações e discussões se encontravam situadas de um lado pela a

opinião pública odiosa e ressentida e do outro pela Igreja, controladora do saber, que

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convergiam no processo regulador de caça às bruxas. Federici apresenta que por trás de

muitas acusações de feitiçaria estavam problemas relacionados à inadimplência de

aluguéis, à entrada de animais sem autorização na aldeia ou pedidos de ajuda não

solucionados. “A Igreja, por sua vez, usava a acusação de heresia para atacar toda forma

de insubordinação social e política” (FEDERICI, 2019, p. 73)

O outro aspecto que Ginzburg não menciona é situar Chiara Signorini em um

recorte de gênero – isto é, uma mulher no início do século XVI. Ora, em um período que

a Igreja pregava a submissão da mulher e a Lei Canônica permitia o direito ao marido de

bater em sua esposa (ibidem, p. 53), delinear as diferenças entre os gêneros da vítima e

do padre inquisidor fundamenta ainda mais a discrepância dos “hiatos” entre ambos e

suas relações no processos de tortura e interrogatório.

Isto nos é revelado também com outro indício: no processo contra Chiara haviam

dois homens acusados, seu marido e um frade, que nunca chegaram a ser punidos ou

mesmo interrogados. Na verdade, as acusações lançadas contra Chiara iniciaram como

secundárias no processo aberto contra o frade servita Bernadino de Castel Martino.

Bernadino havia sido acusado de recorrer a feitiçaria para curar Margherita,

segundo testemunhos tal frade “não desprezava à ajuda de estatuetas de cera”

(GINZBURG 2016, p.18) além de realizar exorcismos com “um grupo de mulheres

reconhecidamente endemoninhadas” (ibidem, p.18).

É a partir da citação desse grupo de mulheres e de um relato do irmão de

Margherita que o nome de Chiara aparece e de coadjuvante passa a protagonizar o caso.

Os testemunhos contra o frade Bernadino seguiram até dias antes da pena final assumida

por Chiara. Nos outros documentos pesquisados por Ginzburg, não há mais nenhuma

referência ou continuação das acusações contra o frade acusado de heresia.

Se Ginzburg afirma que há uma busca de comoção por elementos de uma piedade

popular, a forma em que se deu o encerramento do caso revela uma outra face da

expectativa pública: a punição de Chiara – mesmo que ela não tenha sido queimada na

fogueira. Mas a sua prisão perpétua é suficiente para que o litígio seja dado por encerrado,

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e os demais envolvidos – todos homens - não só sejam “absolvidos”, como ao lhes relegar,

é retirado qualquer responsabilidade ou culpa.

A “bruxa” presa assume o poder do controle da Igreja e, neste contexto, satisfaz o

desejo público dos envolvidos na ocorrência. A mulher presa ou queimada é a reposta

esperada por todos os movimentos nesses inquéritos guiados com decisões previamente

estabelecidas pois este é o seu principal objetivo – camuflados por uma cortina religiosa,

que apresenta o feminino como misterioso e perigoso.

Como lembra Federici (2019, p. 83), “um dos aspectos mais significativos do

movimento herético é a elevada posição social que este designou às mulheres”. Nas seitas

hereges, as mulheres exerciam os mesmos direitos que os homens além de manter seu

trabalho fora do controle e subordinação masculina e monástica. No entanto, a partir da

catástrofe demográfica produzida pela Peste Negra, as coisas “mudaram drasticamente

logo que o controle das mulheres sobre a reprodução começou a ser percebido como uma

ameaça à estabilidade econômica e social” (ibidem, p. 85).

Diversos autores apontam a perseguição seletiva às mulheres, de modo que

“estivessem mais presentes na história da heresia que em qualquer outro aspecto da vida

medieval” (ibidem, p. 84), como fica evidente nos diversos tratados de demonologia ou

estatutos sinodais que circulavam nos diferentes grupos culturais. Estes processos

marcam uma

transição da perseguição à heresia para a caça às bruxas, [em que] a figura do

herege se tornou, cada vez mais, a de uma mulher, de forma que, no início do

século XV, a bruxa se transformou no principal alvo da perseguição aos hereges

(ibidem, p. 86)

Em o Martelo das Feiticeiras, famoso manual de combate a heresia publicado em

1486, existia um capítulo inteiro destinado a acusar como as parteiras/feiticeiras infligiam

os maiores males às crianças em seu nascimento – algumas inclusive acusadas de

provocar o óbito de crianças natirmortas, já que, no imaginário coletivo, Satã exigia que

crianças morressem sem batismo cristão (DELUMEAU, 2016).

No julgamento de Chiara, o padre-vigário conduz diversos interrogatórios

tentando a confissão de que ela tenha oferecido a alma de seus filhos ao demônio. Em um

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testemunho, uma antiga patroa declara que “não quis admitir Chiara em sua propriedade

como colona [...] temendo que enfeitiçasse sua filha” ( GINZBURG, 2016, p.21)

Na suspeita e no medo popular criado pela Igreja sobre essas profissionais,

classificadas como feiticeiras ou abortadeiras em potencial, não demorou muito que o

Estado regulamentasse a profissão de parteiras e curandeiras, passando a ser realizada

principalmente por homens. Sobre o cruzamento do discurso de acusações religiosas e de

condições de higiene, essa ordem possibilitou que além do regimento dos ofícios, a Igreja

e o Estado passassem a ter controle e domínio completo nas decisões sobre o corpo

feminino, sobretudo no que referia ao processo de reprodução.

Tal processo ignorado por Marx em sua análise ao capitalismo, é apresentado por

Federici como uma das principais ferramentas usada por essa nova ordem econômica para

sujeitar o corpo feminino como uma máquina reprodutora de mão de obra. A autora

apresenta como essas novas políticas de biopoder que constituem o surgimento do

capitalismo estão intrinsicamente ligadas ao racismo e sexismo, fundamentado profundas

diferenças entre gênero, classe e raça.

Camponesa, mulher, acusada de praticar curas e sortilégios através de

encantamentos, malvista por seus patrões entre lutas trabalhistas e territoriais, Chiara

dramatiza enquanto vítima de uma das mais terríveis políticas de perseguição e

extermínio do “Outro” que sustentam ainda hoje o modelo capitalista, através de novas

nomenclaturas e agentes. Se Ginzburg conclui que o caso Chiara, mesmo nos seus

aspectos irredutivelmente individuais, assume importantes contribuições metodológicas,

de certo podemos afirmar que, nesta perspectiva, também assume uma nova forma

paradigmática feminista.

Considerações Finais

A proposta aqui realizada de reinterpretar a análise do caso Chiara feita por

Ginzburg teve por principal objetivo perceber como os novos trabalhos realizados por

autoras feministas podem contribuir de forma decisiva nas análises dos mais diversos

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trabalhos acadêmicos das diferentes áreas de conhecimento, destacando, neste caso, o

trabalho de Silvia Federici pela aproximação temática.

Em sua própria obra, Federici traz importantes críticas ao trabalho de Ginzburg e

de outros autores homens que estudaram o fenômeno político da caça às bruxas. Ao

enquadrar as discussões no campo do imaginário, qualificando por exemplo as orgias

associadas ao sabá como alucinações de mulheres pobres, ele mantém a centralização de

culpa nas vítimas e ignora o fato de que quem discutiu exaustivamente essas

“alucinações” foi na verdade uma elite europeia masculina que dizia acreditar nelas.

Nessas políticas de biopoder, termo cunhado por Foucault para descrever o controle

estatal do corpo dos indivíduos, os regimentos sobre o corpo da mulher sempre utilizaram

de uma culpabilização da vítima para justificar sua penalidade. É deste modo que

investigar o quadro psicológico de mulheres acusadas de bruxaria equivale igualmente

nos dias atuais a famosa indagação “com que roupa estava?” feita normalmente às

vítimas de estupro.

A proposição teórica feita no título deste artigo sobre um paradigma indiciário

feminista não busca enquadrar as produções intelectuais feministas dentro de uma

metodologia histórica machocentrada, sem perceber tais conhecimentos em seus níveis

questionadores. Trata-se apenas de um “trocadilho” de palavras para classificar os pontos

de relações entre a obras comparadas, por usarem temas e documentos próximos em

diferentes perspectivas.

Foi apresentado apenas um recorte de alguns conceitos da obra de Federici que

possibilitassem a interpretação do caso Chiara a partir desses elementos. Em seu livro,

Federici desenvolve com mais aprofundamento uma análise surpreendente das relações

entre o capitalismo, colonialismo e ideologias religiosas, sendo um aporte elementar para

perceber ainda hoje como os discursos racistas, machistas e misóginos são fundamentados

por diversas esferas sociais, que, assim como no início da Idade Moderna, permitiram a

morte de inúmeras mulheres em nome de uma ordem.

Referências

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AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? São Paulo: Letramento, 2018.

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DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São

Paulo, SP: Companhia de Bolso, 2009.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São

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Companhia das Letras, 2016.

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