mota, fábio reis. cidadãos em toda parte ou cidadãos à parte (2)

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    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSEPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

    CIDADÃOS EM TODA PARTE OU CIDADÃOS ÀPARTE? DEMANDAS DE DIREITOS E RECONHECIMENTO NO BRASIL E NA FRANÇA.

    Niterói2009

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    FABIO REIS MOTA

    CIDADÃOS EM TODA PARTE OU CIDADÃOS ÀPARTE? DEMANDAS DE DIREITOS E RECONHECIMENTO NO BRASIL E NA FRANÇA.

    Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação emAntropologia da Universidade Federal Fluminense,como requisito parcial para obtenção do Grau deDoutor.

    Orientador: Professor Roberto Kant de Lima

    Niterói2009

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    CIDADÃOS EM TODA PARTE OU CIDADÃOS À PARTE?DEMANDAS DE DIREITOS E RECONHECIMENTO NO BRASIL E NA FRANÇA.

    Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em Antropologiada Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial paraobtenção do Grau de Doutor.

    Niterói, 20 de fevereiro de 2009.

    Banca Examinadora

    ____________________________Professor Roberto Kant de Lima (orientador).

    PPGA/UFF.

    ____________________________Professor Daniel CefaïUniversité de Paris X e CEMS-EHESS.

    ____________________________Professora Eliane Cantarino O’Dwyer

    PPGA/UFF.

    ___________________________Professor Luís Roberto Cardoso de Oliveira

    PPGAS/UnB.

    ___________________________Professor Marco Antônio da Silva MelloPPGA/UFF.

    __________________________Professor Ronaldo Joaquim da Silveira Lobão.

    PPGSD/UFF.

    ____________________________Professora Maria Stella Amorim - suplente

    Universidade Gama Filho

    ____________________________Professor Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto – suplente

    PPGA/UFF.

    Niterói, 2009

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    Às diversas pessoas que, com amor e carinho,incentivaram esta longa jornada pelos“mares” que naveguei. Em especial, à Leticia

    e aos meus pais, Edna e Toninho, cujo amortem sido um sopro de vento para as “velas”

    dos barcos em que andei.

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    Agradecimentos:

    A vida é a arte do encontro, pois é através dele que podemos coexistir e transformar oscontornos e traçados de nossa história. Essa tese é fruto de diversos encontros que, aolongo de meu percurso pessoal e profissional, colaboram com meu velejar por essasdiferentes praias e mares. Pessoas com as quais encontrei portos, naveguei, pensei earrisquei... Sou grato por suas palavras, gestos, amizades e força nos melhores epiores momentos dessa navegação.

    Pelas ondas do mar da vida, pela Marambaia muito naveguei. Por lá muitos amigos,colegas e companheiros encontrei. Foram muitas travessias por essas águas quebanham a Ilha. Aos muitos que encontrei, agradeço pelo acolhimento, pelas palavras,pela luta, pelas portas abertas de suas casas e histórias. Não poderia deixar de citaralguns. Sem dúvida, a luta de Adriano (e de sua família Lima), sua amizade, carinho, foivento inspirador para outras partidas para outros portos perdidos. Agradeço ao SeuJoel, Seu Adilino, Dona Antônia, entre outros, por terem me permitido compreender oquanto uma luta pode ser também diversão. Agradeço a Dona Sebastiana pela maneirasutil de persistir em existir. Muito obrigado à Vânia, Pedrão, João Paulo, Seu Nana,Toca e muitos outros que muito me ajudaram nesse navegar.

    Dentre os portos que aportei, foi no NUFEP que troquei com muitos amigos, parceiros ecamaradas. Lá, com eles, muito arrisquei... Não poderia deixar de agradecer aotimoneiro dessa grande embarcação que tem a conduzido por mares diversos comdeterminação. Agradeço ao Kant, professor, amigo e orientador, pela sua dedicação emsuas orientações. Homem do mar que é, sempre estimulou seus alunos, orientados eamigos a navegar e seguir pelo mar sem pestanejar. Foi incentivador de muitoscaminhos que tomei, discutindo, escutando, ensinando e apoiando. Entusiasta datransformação, conduziu esse rico lugar de encontros que é o NUFEP. Meu muitoobrigado ao dedicado, ético e comprometido (com a coisa pública) professor e amigoque me apoiou por muitos mares em que naveguei! Para cima e para o alto, sempre...

    Nessa embarcação encontrei amigos e parceiros de pesquisa, discussão e intervenção.O colega, amigo e professor Ronaldo Lobão foi, sem dúvida, um grande camarada,amigo e professor das companhas montadas para nossas campanhas no mar. Pormuitos lugares que passamos, por muitas águas que navegamos, sua amizade,opiniões e observações foram essenciais. Camarada para todas as horas, observadorsagaz, Lobão foi um amigo e parceiro de trabalho que fez do mar um bom lugar paracontinuar a navegar. Espero que possamos continuar a nos aventurar por essas águas

    de uma antropologia possível.Outro navegante e condutor dessa embarcação, que tem seguido e apoiado meuspassos nos mares em que andei, é o professor e amigo Marco Antonio da Silva Mello.Mello foi sempre um entusiasta das aventuras antropológicas de seus alunos,apoiando-os e estimulando-os com leituras, dicas e conversações. Passar horas deconversa, escutando suas orientações, foi fundamental para minha formação. Muitoobrigado, Mello.

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    Outros amigos e colegas do NUFEP foram figuras ímpares nesse trajeto por maresrevoltos. Lúcio e Lênin foram amigos e cúmplices incontestes dessas guinadas dadaspelos mares do mundo. Sou muito grato pela amizade de Lucía, de sua sempredisponibilidade para colaborar. Agradeço aos amigos Christian, Sabrina e Roberta pela

    colaboração, seja de perto ou de longe, sempre presente. Aos novos colegas e amigos,obrigado por partilhar bons momentos: obrigado Virgínia, pela dedicação e colaboração;valeu Fred, por ser parceiro, e obrigado Antônio Rafael, pelo empenho no ofício. Tenhoque agradecer a Gláucia Mouzinho pelo apoio e incentivo freqüente, bem como aosamigos Zé Colaço, Brigida e Vivian pela grandiosa amizade no NUFEP e no NUFAS.

    Nas ondas da Pós-Graduação, agradeço aos meus professores do PPGA que muitopartilharam e ensinaram. Em especial, agradeço a professora Eliane Cantarino pelasdiscussões em seus cursos, bem como o Professor Paulo Gabriel pelas indicaçõesbibliográficas e apoio constante. Agradeço a Ilma pela ajuda na construção desseespaço. Outros professores que passaram pelo PPGA e pelo NUFEP foramfundamentais nesse percurso. Agradeço pelas gentis contribuições do professor LuísRoberto, cujo trabalho tem sido fonte de muitas e novas discussões entre nós doNúcleo e do Programa.

    Quero expressar meus sinceros agradecimentos para os amigos e colegas queestiveram entre as praias e morros que freqüentei. As prazerosas vezes que estive emItaipu e no Morro das Andorinhas foram marcadas pela hospitalidade da família de SeuChico e de seu Bichinho, demonstrando que os gestos de fraternidade podem superaras mais difíceis barreiras. Obrigado em especial ao Seu Chico, Tidi e Seu Bichinho.

    Já distante do mar, no ritmo de samba de bambas, sou grato ao acolhimento da famíliaSacopã, cuja luta pelos humanos direitos inspirou este trabalho. Sou grato pelosprazerosos momentos que passei por lá, partilhando as conversas, escutando ossambas, degustando a amizade, a feijoada e a cerveja gelada ao lado de pessoas comum espírito vibrante. Um agradecimento ao Luís pela sua lição de perseverança.

    Em outros mares em que naveguei, tive a oportunidade de partilhar muitos projetos,discussões e ações na UENF e no ISP. Na UENF, encontrei bons marinheiros, mestresdo mar que colaboraram com a construção deste trabalho. Em especial, agradeço aocolega e amigo Arno Vogel pelas conversações e aulas. Agradeço aos meus amigosFreitas, Wânia e Javier pelas boas horas de discussão. Agradeço aos meus alunos, queacreditaram nesse trabalho e continuaram a trilhar seus caminhos. No ISP, pudeexperimentar outros mares e construir novos portos ao lado de amigos e colegas. Adeterminação, ética e compromisso de Ana Paula foram essenciais para todos quenaquele barco se encontravam. Encontrar e trabalhar com Kátia nos levou a uma longaamizade. Agradeço à minha amiga Solange, em especial, pela amizade, carinho econselhos amigos. Também meu muito obrigado para Lana pelo apoio. Agradeço aos“camaradas do mar”, parceiros de longas jornadas, Fabio Fabiano e Eduardo TavaresPaes, pelas ações e projetos em comum. Não poderia deixar de expressar minhagratidão aos companheiros da Habtec, em especial meu muito obrigado ao Paulo peloacolhimento e confiança.

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    A grande parte dessa tese foi escrita ao “pé” da montanha, em Piabetá, numa pequenae aprazívelmaison . Morada da avó de minha querida amiga Soninha, foi lá que ergui osprimeiros alicerces desse trabalho. Obrigado Soninha, pela amizade e apoio. Tambéma doce presença de Leticia foi estímulo constante para a superação dos momentos

    mais difíceis. Sua ajuda, leituras, observações, amor e carinho foram ventos queajudaram a embarcação navegar. Agradeço muito a Lete, cujo amor superou mesmo adistância!

    Essa tese é fruto também de encontros por mares distantes. Do outro lado do oceano,encontrei muitos amigos e parceiros nessa empreitada. Agradeço muito aos amigos deprimeira hora: Rita, por sua tenra amizade, Sidão, pelas longas conversações edesconstruções, André, pelas noites com cachaça e Foucault, Biaggio, pelo estímulo,Amílcar, pela ajuda constante, e Abraão, pelas boas horas de conversa. São pessoassem as quais me desterritorializar e me aventurar na França não seria tão agradável.Agradeço aos amigos Etienne, Sophie e Virginia pelas histórias vividas e pelossentimentos partilhados.

    Agradeço imensamente ao Jean-Claude, com quem naveguei por mares diversos emnossas histórias, conversações e discussões. Foram as belas palavras e imagenspinçadas por Chamoiseau que fizeram de nossas conversas uma vibrante amizade.Obrigado pelas portas abertas, gargalhadas e andanças pelos mares do Caribe e doBrasil. Valeu, meu amigo, pela grande amizade!

    Tenho que agradecer muito ao meu amigo Moise, pelas conversações e discussõesque ganhavam as madrugadas da cidade de Paris. Sua inquietude com o mundo foiporto importante para a coexistência que ali fundamos. As portas abertas de sua casa,suas iguarias, sua amizade, serviram de estímulo para continuar a navegar. Tambémgostaria muito de agradecer ao Eddy, a Ana Julieta, a Mona e ao Antônio, pelasagradáveis conversas e discussões. Também meu muito obrigado aos amigos ecamaradas Gabriel, Alexandre Werneck e Fernando Fontainha, companheiroscombativos dessa grande companha brasileira em Paris. “É nóis”... Um agradecimentoespecial ao Fernando pela solícita ajuda na tradução de um dos documentos jurídicosanalisados por mim. Valeu!

    Nos mares da academia, encontrei pessoas que muito colaboraram com esse trabalho.Daniel Cefaï foi um mestre e companheiro fundamental nessa companha. Estimulou-mea seguir por mares desconhecidos, abriu novas portas, foi amigo compreensível nashoras em que o mar se agitava. Obrigado pelas conversas e indicações. O professorLaurent Thévenot, com sua dedicação em escutar, discutir e orientar, colaborousignificativamente na condução desse trabalho. As discussões em seus seminários, noscaffés e nos outros espaços de convívio foram importantes para o esboço dessa tese,pois seu trabalho foi, sem dúvida, uma das fontes de inspiração. Muito obrigado por suagenerosidade, amizade e apoio. Sou muito grato aos outros colegas e amigos daEHESS e da Université Paris X, em especial os professores Marc Breviglieri e PedroSanchez, pelas portas abertas, dicas, conversas e interesse em colaborar. ObrigadoMarc, pelos jantares amigos e divertidos. Valeu Pedro, pela atenção e carinho. Na

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    França, pude ainda encontrar e estreitar os laços acadêmicos e de amizade com oprofessor José Resende, de Lisboa, um incentivador de minhas investidas por maresdistantes e inconstantes. Desse laço, espero que possam surgir novas parcerias paraoutros também navegarem. Agradeço ao meu amigo e colega Matthieu, pelasestimulantes discussões, seja nos ares da academia francesa, seja nos bares do Rio de

    Janeiro. Independentemente do lugar, foram ricas as contribuições. Não possoesquecer das outras pessoas que ajudaram direta ou indiretamente esse trabalho.Agradeço ao René Levy, do CESDIP, pelas dicas, pois foi ele o primeiro a chamarminha atenção para a questão dos Antilhanos na França. Sou grato também a AntoineGarapon, do IHEJ, pelas dicas, conversas e material destinado para minha tese.Algumas conversas com ele aqui no Rio foram decisivas para tomar alguns novosrumos. Gostaria também de agradecer imensamente o professor Pierre Teisserenc porsuas generosas contribuições.

    Sem o apoio das instituições de fomento à pesquisa não teria sido possível caminharpor esses mares. As bolsas e auxílios concedidos pela CAPES, que me destinou umabolsa-sanduíche para realizar o estágio doutoral na França, e pelo CNPq, que medestinou uma bolsa de Doutorado, foram centrais para minha formação e para aprodução dessa tese. Espero ter retribuído com um trabalho que tenha algum efeito nomundo acadêmico, bem como no campo político e social. Agradeço também a FAPERJpelos diversos apoios à pesquisa e extensão, bem como o CNPT/IBAMA, FNMA quecontribuíram com recursos essenciais à minha pesquisa.

    Por fim, devo um agradecimento especial para minha família. Ainda que muitos nãocompreendam bem meus passos e escolhas, eles aceitaram e apoiaramincondicionalmente os rumos que imprimi em minha vida. Agradeço meu pai Toninho eminha mãe Edina que me educaram, lutaram e batalharam para que eu chegasse atéaqui. Uma família humilde, portadora de outras riquezas: o companheirismo, afraternidade, a amizade e o cuidado com o outro. Sou grato pelo amor destinado poreles a mim. São eles que, com suas lições, carinho e ensinamentos, fizeram que meutrajeto fosse tão bom. Sou grato ao meu irmão por sua garra e determinação. Aprendimuito com ele nessa vida. Como sou de uma família extensa, não poderia deixar deregistrar meus agradecimentos aos meus tios, cujas estradas construídas serviram deinspiração pro meu navegar. Em especial agradeço aos meus tios Chiquinho, Feliciano,Mundico e Edson pela garra e coragem. Agradeço meu primo Edilvan pela amizade ecarinho. Uma grandiosa família em extensão de amor e coração.

    Como o mar é o “meu ninho, meu leito, meu chão”, espero poder, a partir dessetrabalho, continuar a navegar com os colegas e amigos que me incentivaram ecolaboram decisivamente para a produção dessa tese. Meu muito obrigado pelaamizade, ajuda e colaboração! Que venham os novos encontros!

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    “O caminho para uma produção intelectual que sejasempre crítica de si mesma passa pela identificaçãodesse modelo para agilizar sua capacidade criadora eoriginal. Há que utilizar com fecundidade nossas formasde expressão literárias e criativas, incapazes dedescobertas bem comportadas; nossa oralidade eprolixidade; nossa impontualidade e falta deobjetividade, sem reificá-las mas sem reprimi-las,percebendo-as pelo que são enquanto expressão denossa identidade e reflexo de choques com outrasidentidades. Há que também conviver e exercitar-serevolucionariamente nessas característicasindividualistas e disciplinares, fundadas no rígidocontrole de produção individual e na suposta liberdadede questionamento ilimitado dentro da forma acadêmicapreestabelecida, exigente de um grande caos interiorpara parir estrelas bailarinas”.

    (Roberto Kant de Lima, Quando os índios somos

    nós,1997).

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    SUMÁRIO:

    RESUMO/ABSTRACT 12 INTRODUÇÃO 13

    - Algumas linhas teóricas. 20- Os caminhos percorridos e as metodologias empregadas. 29

    CAPÍTULO 1: AS POPULAÇÕES TRADICIONAIS, OS QUILOMBOLAS E OS ANTILHANOS : DISPOSITIVOS POLITICOS NAS MOBILIZAÇÕES COLETIVAS. 44 1.1 Populações Tradicionais: Rosseauversus Lavoisier. 471.2 Quilombos de ontem, quilombos de hoje: a “desfrigorificação” de um conceito. 571.3 Os Antilhanos e o paradoxo republicano. 78 CAPÍTULO2: POSSE DA HISTÓRIA: O PROCESSO DE REIVINDICAÇÃO DO RECONHECIMENTO DACOMUNIDADE QUILOMBOLA DAMARAMBAIA. 90 2.1 Memórias da escravidão. 952.2 Memórias da escola de pesca. 1112.3 No tempo da Marinha e a posse da história. 121

    CAPÍTULO3: QUANDO A CIDADE VIRA MEIO AMBIENTE: O PROCESSO DE RECONHECIMENTO DOSDIREITOS TERRITORIAIS DA COMUNIDADE TRADICIONAL DOMORRO DASANDORINHAS 151 3.1 “Tanto quem faz e se apraz, um dia a casa cai!” 1583.2 Em cena, a associação. 166 3.3 O meio ambiente não desiste. 176

    CAPÍTULO 4: AS IDENTIDADES MEURTRIÈRES E O CORPUS REPUBLICANO: O PARADOXO

    FRANCÊS 185 4.1 Ser nacional é ser universal. 1884.2 Ser negro francês e ser francês negro: entre assimilação, integração ereconhecimento. 1984.3 O jogo pelo reconhecimento. 210 4.4 O reconhecimento e a luta pela reparação da memória. 221

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    CAPÍTULO5 CIDADANIA, HIERARQUIA E DEMOCRACIA : NOTAS SOBRE O UNIVERSALISMOFRANCÊS E O PARTICULARISMO BRASILEIRO 235 5.1 A noção de igualdade a prova das sensibilidades jurídicas. 2405.2 Ser cidadão, ter cidadania: alguns apontamentos. 2435.3 Dignidade, diferença e igualdade: o reconhecimento em jogo. 261

    ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS: RECONHECER E SER CONHECIDO: DUAS LÓGICAS E UMPARADOXO. 272

    Legislação citada. 281

    Documentos diversos citados. 283 Bibliografia. 284 Anexos. 302

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    Resumo:Propomos discutir na tese os processos de mobilizações coletivas que envolvem demandas dedireitos e de reconhecimento vinculadas às reivindicações de identidades diferenciadas.Discutindo esta problemática sob o ponto de vista antropológico, empreendemos uma análisecontrastiva entre as sensibilidades jurídicas e as gramáticas políticas, jurídicas e moraisbrasileira e francesa, para lançar um olhar sobre os processos reivindicatórios de gruposconcebidos nestes dois espaços públicos como "minoritários". No Brasil as demandas dedireitos vinculados a reivindicações de identidades diferenciadas, podem ser observadas emsituações de conflitos que envolvem o reconhecimento das identidades e de direitos dosdenominados "remanescentes de quilombos" e das "populações tradicionais". Portanto,elegemos como campo empírico a controvérsia pública relacionada ao reconhecimento dacomunidade "remanescentes de quilombos" da Ilha da Marambaia, localizada no litoral sul doEstado do Rio de Janeiro, e o conflito existente entre o "meio ambiente" e a ComunidadeTradicional do Morro das Andorinhas, localizada no bairro de Itaipu, Niterói. Na França, cujacomposição cultural, étnica, nacional e religiosa é diversa, tais processos podem serobservados em diferentes contextos. Lançamos nosso olhar para as demandas dereconhecimento de direitos e de identidades diferenciadas levadas a cabo pelos "Antilhanos"que moram em Paris, em especial os martiniquenses, cujo paradoxo de ser francês negro,promove uma oscilação entre ser "français à part entière et français entièrement à part ".Propomos discutir de que modo estes atores lançam mão de diferentes regimes deengajamento para justificar suas reivindicações, tornando-as legítimas ou não nestas arenaspúblicas. Partindo do princípio que estes regimes obedecem a diferentes gramáticas jurídicas,políticas e morais, chamamos atenção para o fato que as denominadaspolíticas dereconhecimento ganham contornos distintos de acordo com os contextos locais.Palavras-chave : antropologia ; reconhecimento ; ação afirmativa ; Brasil e França.

    Abstract:Our focus in this thesis is to discuss several collective action processes which are aimed onquests for rights and recognition that activate claims for distinctive identities from ananthropological point of view.

    We undertake a contrastive analysis between Brazilian and French legal sensibilities and moral,legal and political grammars in order to pursue an understanding over the claims of groups whoare conceived in the public spaces of these two cultures as "minorities".In Brazil , we can see claims for land rights and others, tied to a recognition of distinctiveidentities, as the struggle for recognition of traditional peoples and former slaves descendants,called "quilombolas " shows. Our fieldwork was done among thequilombolas of MarambaiaIsland (located on south shore of Rio de Janeiro State ), and along the conflict betweenenvironmental activists the traditional community of Andorinhas Mountain (located in the city oNiterói , State of Rio de Janeiro ).In France , we could see these claims in different contexts, once this country has anothercultural, ethnic, national and religious background. In a fieldwork of eighteen months in Paris ,we could follow the demands for rights and for distinctive recognition held by people from the

    Antilles that live in Paris, mainly the ones from Martinique . They live a particular paradox inwhich being black and French promotes a pendulum between being "français à part entière etfrançais entièrement à part ".Our ethnography shows these actors activate different "regimes d'angagement" to support theirclaims, which in distinctive public space, become legitimate or illegitimate, accordingly. The clueis that these regimes are build from different legal, political and moral grammars and sorecognition politics are conceived and practiced according to local contexts.Keys-word : anthropology ; recognition ; affirmative action ; Brazil and France.

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    INTRODUÇÃOLa pensée archipélique convient à l’allure de nos mondes.Elle en emprunte l’ambigu, le fragile, le dérivé. Elle consent àla pratique du détour, qui n’est pas fuite ni renoncement. Elle

    reconnaît la portée des imaginaires de la Trace, qu’elleratifie. Est-ce là renoncer à se gouverner ? Non, c’ests’accorder à ce qui du monde s’est diffusé en archipelsprécisément, ces sortes de diversités dans l’étendue, quipourtant rallient des rives et marient des horizons. Nous nousapercevons de ce qu’il y avait de continental, d’épais et quipesait sur nous, dans les somptueuses pensées de systèmequi jusqu’à ce jour ont régi l’Histoire des humanités, et qui neson plus adéquates à nos éclatements, à nos histoires ni ànos moins somptueuses errances. La pensée de l’archipel,des archipels, nous ouvre ces mers.

    Edouard Glissant Traité duTout-Monde(1997)

    O mundo dos arquipélagos desenhado por Glissant nos parece adequado para aintrodução de nosso trabalho. O “mundo ocidental” dos tempos atuais comporta umemaranhado de “arquipélagos culturais” que permite a coexistência de uma pluralidadee diversidade de modos de pensamento e ação que não estão isolados, masinterconectados e atravessados por múltiplas redes de significados. Como Hannerz(1997) propõe em um de seus trabalhos, as categorias fluxo, mobilidade, recombinaçãoe emergência são palavras chaves do vocabulário da antropologia, da política e daimagem que habita o “pensamento ocidental” contemporâneo.

    Do mesmo modo, a “pensée archipélique ”1 de Glissant é pertinente pela suacapacidade de implodir os sistemas explicativos monolíticos e homogêneos, que visamreduzir a conduta humana a um conjunto de práticas “racionais” e “maximizadoras”,inscritas numa lógica utilitarista. A abordagem que atravessa esse trabalho é de cunhoantropológico, cuja perspectiva relativizadora implica estranhamento não só dos Outros,mas de nós mesmos, e visa inserir esta “racionalidade prática” num conjunto designificados próprios do sistema cultural “ocidental”, que, como Sahlins (1979) propõe,tem a noção “razão prática” inscrita no seumodus operandi . Assim, a abordagemantropológica aqui adotada visa entender como os atores, com suas múltiplas

    1 Gostaríamos de ressaltar que a partir desse momento os conceitos serão citados em negrito, ascategorias nativas serão sublinhadas (as que são em francês ficarão também em itálico) e asexpressões, termos, etc., ficarão entre aspas. As palavras em inglês, francês, etc. ficarão em itálico.

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    capacidades de leitura e re-significação do mundo, reelaboram suas Histórias (Sahlins,1990).

    Ao analisarmos os dispositivos jurídicos e discursivos e os vocabuláriosempregados pelos atores em suas reivindicações de direitos e reconhecimento emtorno de “identidades diferenciadas” no Brasil e na França, pretendemos fazer emergiras distinções existentes entre as duas gramáticas políticas sem cairmos nas armadilhasdo “essencialismo cultural” (Said, 2004). Nossa intenção é realçar, através da pesquisaantropológica, as diversas formas como os atores operam suas ações e críticas emsituações diversas. Como a etnografia consiste numa leitura e descrição relativa àssituações experenciadas por múltilplos sujeitos (o antropólogo e seus infinitosinterlocutores), ela implica em circunscrever e escolher focos de análise e interpretação,

    sem reduzi-los às “ilhas de entendimento”.Nesse sentido, as sensibilidades das tradições jurídicas locais são fundamentais

    para a constituição do modelo jurídico-político e suas definições múltiplas a respeito,por exemplo, das categorias diferença, desigualdade e igualdade. Ora, o que queremosressaltar é que os significados e sentidos referentes às categorias democracia,República, etc, apresentam características que devem ser problematizadas,confrontado-as com as formas como os atores lidam com suas instituições e seucorpusrepublicano .

    No presente trabalho, um dos pontos centrais é o questionamento acerca daspolíticas públicas voltadas para o reconhecimento, ou não, de diferenças, na gramáticae no vocabulário político “ocidental”. Do exército francês, que distribui comidas semporcos aos soldados muçulmanos, às castas dos intocáveis na Índia, passando pelosremanescentes de quilombos que se organizam no Brasil e asaffirmative actions nosEUA, a gramática do reconhecimento (Fraser, 2005) tem figurado como pano de fundodas ações e mobilizações públicas em diferentes cantos do mundo.

    Sob este ponto de vista, os acontecimentos das últimas décadas parecemrecompor a paisagem social e cultural de alguns “arquipélagos mundiais”. Nessesentido, em 2008, a ascensão de um Presidente negro à Casa Branca foiparadigmática. A vitória de Barack Obama levou o mundo a se questionar a respeitodos efeitos de um sistema político que tem privilegiado, nas últimas três décadas, a

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    constituição de mecanismos de inclusão de minorias que, desde 1964, com oCivilRights Act , têm provocado resultados inusitados no cenário jurídico-político dos EUA.Uma vitória emblemática num país espelho para outras democracias ocidentais, masque havia convivido durante décadas com um sistema social, político e jurídicosegregacionista, no qual negros e brancos tinham acesso desiguais aos bens públicose do mercado. Na década de 60 a política deaffirmative actionnasce com a finalidadede corrigir as desigualdades e discriminações às quais as “minorias” (negros,hispânicos, indígenas, etc.) foram submetidas (Sabbagh, 2003).

    Enquanto a affirmative action tem sido colocada em xeque em diversos Estadosamericanos - como a Califórnia, Missipi, Flórida, Texas, entre outros – temos assistidona Europa e na América Latina tentativas de transposição desse modelo. Na França,

    em particular, a percepção no círculo político e acadêmico a respeito daaffirmativeaction é de que elas contribuíram para a fragmentação da nação americana emcomunidades constituídas em frações antagônicas (Viprey, 2005). A partir dessapremissa, a affirmative action na França tem se baseado em critérios sócio-econômicose não em critérios raciais, como nos EUA:

    Os EUA concebidos como uma federação de povos, uma “nationof many peoples ”, uma nação “multiétnica e multiracial” não podeser pensada, como é o caso da França, por exemplo, como umaRepública “una e indivisível”, como uma categoria não suscetívelde toda subdivisão. Desse modo, se do lado americano asoberania é dividida em “segmentos étnicos”, do lado francês elaforma um “bloco indivisível” onde não se fala nunca em raça.(Viprey, 2005: 37)2.

    Entretanto, as tensões sociais crescentes nas grandes capitais francesas, aorganização de movimentos sociais de negros e imigrantes no espaço público francês,alguns eventos paradigmáticos, como osémeutes nas banlieues em 20053, permitiram

    a emergência de um debate intenso no meio acadêmico e político francês acerca do2 Cabe ressaltar que as traduções são livres e foram realizadas por mim.3 O termo é polissêmico e possui diversos sentidos na língua francesa. Na imprensa francesa asmanifestações nas principais capitais da França metropolitana, levadas a cabo por jovens da periferiadestas áreas, culminando em destruição de vários patrimônios privados e públicos, foram objeto dediscussão acerca de qual terminologia a ser empregada nesse caso.Émeute é um eufemismo de revolta,pois designa uma emoção manifesta publicamente e coletivamente. Foram amplamente noticiadas asrevoltas de 2005 em que jovens atearam fogo em carros e lojas em Paris, Lyon e etc.

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    modelo republicano jacobino. Alguns grupos têm organizado suas ações, mobilizando odireito em prol das lutas contra as discriminações e desigualdades existentes. Em 2008,pela primeira vez, uma empresa francesa foi condenada pela Justiça a pagar pesadasindenizações para dois Antilhanos por discriminação. Os dois entraram na Renault aomesmo tempo em que outros dois colegas brancos, com a mesma formação escolar,porém com melhores avaliações no decorrer da carreira, chegando, todavia, no fim davida profissional, a níveis (hierárquicos e de salário) sensivelmente inferiores aos deseus colegas brancos. Moveram uma ação e foram indenizados por terem sido,segundo a justiça, vítimas de discriminação4. A assunção do status de negro-francês,por um lado, e a política assimilacionista francesa, por outro, tem sido a força motrizdas tensões existentes nas interações cotidianas no espaço público francês e a

    conseqüente emergência de demandas de reconhecimento por igualdade e dasespecificidades de alguns grupos que compõem a nação francesa.

    Noutro continente, na Índia, as primeiras políticas públicas de fomento de açõesde discriminação positiva - na época colonial em que Jeremy Bentham e Jonh StuartMill visavam transformar a colônia britânica num laboratório de melhoria da condiçãohumana – foram implementadas pela administração britânica com o intuito de suprimiras desigualdades ocasionadas pelo sistema de castas que desigualava os brâmanes eos intocáveis (Jaffrelot, 2002). Foram estes, portanto, beneficiários da política colonialde discriminação positiva através de um sistema de cotas/ reservations (Jaffrelot, 2002:131). As primeiras investidas dereservation de vagas nas escolas às castas baixasforam infrutíferas, pois os intocáveis foram vítimas da rejeição de pais e professoresnas escolas. Ainda, os britânicos introduziram anos depois um sistema de cotas nodomínio da representação política (Jaffrelot, 2002). O princípio de complementaridade ehierarquia (Dumont, 1966) que vigorava no sistema de pensamento indiano seconfrontou com o princípio dos direitos individuais liberais, que se opõe:

    O impacto da discriminação positiva indiana em termos depolitização das castas baixas, isso que a gente chama deempowerment , teve duas conseqüências inesperadas. Em

    4 Esta informação me foi passada por um amigo francês, Jean-Claude, a quem agradeço imensamentepela generosa colaboração.

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    primeiro lugar os OBC e osscheduled castes tomaram o poderpolítico na grande parte dos Estados em que eram marginais nasfunções públicas. Em segundo lugar, o Norte não somentealcançou o Sul como o superou, não em termos de cotas, mas emtermos de acesso das baixas castas ao poder político (Jaffrelot,

    2002:144).É o caso da primeira-ministra do Presidente Uttar Pradesh, Kumari Mayawati,

    proveniente de uma casta baixa.No Brasil, diversas ações têm sido levadas a cabo a partir da década de 90 do

    século XX, com vistas a superar as desigualdades existentes entre os múltiplos setoresda sociedade brasileira. Essas políticas de ação afirmativa têm se caracterizado, e seconcentrado, na discussão acerca das cotas nas universidades, reduzindo o debate

    entre defensores e opositores (Pinto e Clemente Júnior, 2004). Noutros domínios elatem ganho destaque em conflitos territoriais ou de acesso aos recursos naturaisrenováveis, envolvendo “populações tradicionais”, de um lado, e fazendeiros do agro-negócio, Forças Armadas e empresários, de outro. Seja através das demarcações deterras indígenas, ou da titulação das comunidades remanescentes de quilombos, oucom as políticas públicas como as Reservas Extrativistas Marinhas e Terrestres, asdemandas destes atores, sob a bandeira da “tradição” e “memoralidade”, têm adquiridovisibilidade e destaque na arena pública brasileira.

    Recentemente, grupos indígenas que disputam seus territórios com arrozeirosem área do Estado de Roraima tomaram o plenário, com seus trajes típicos, na altacorte da justiça brasileira, o Supremo Tribunal Federal, para assistir ao julgamentosobre o modelo de demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol. Coube àadvogada Joênia, índia wapichina nascida e criada na reserva, apresentar osargumentos de defesa da demarcação do território pleiteado pelos grupos indígenas,como noticiado em vários jornais. “Que nossos valores espirituais, nossas terras, matas

    e águas sejam considerados como necessários para nossa vida”, assim iniciou seudiscurso com a frase de língua wapichana.

    Noutro canto do Brasil, camponeses, pescadores artesanais e descendentes deescravos travam uma batalha jurídica e política contra a Base de Lançamento defoguetes em Alcântara, Maranhão, confrontando-se com as Forças Armadas, grupos

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    empresariais internacionais, políticos regionais e nacionais. Anos de conflitos eembates, culminaram em 2008 na publicação do Relatório Técnico de Identificação eDemarcação das terras dos moradores tradicionais de Alcântara, sendo reconhecidospelo Estado brasileiro como remanescentes de quilombos. No coração de um dosbairros mais valorizados de uma das maiores metrópoles brasileira, o Rio de Janeiro,uma família descendente de escravos pleiteia a propriedade de seu território ocupadodesde o final da década de 30 do século XX, frente às ações do poder imobiliário local.No bairro da Lagoa habitado por políticos, artistas, juízes, desembargadores eempresários, há a conflituosa co-habitação deste mundo com o da família Pinto,descendente de negros, ex-escravos, cujo patriarca aportou no local para a aberturadas ruas na região. Embora a família tenha adquirido suas terras por uma ação de

    usucapião, em primeira instância, o Tribunal de Justiça entendeu que os mesmos nãoeram portadores deanimus domini e negou a propriedade da terra à família. Por suas“raízes negras”, seus vínculos culturais com a “africanidade”, como o tradicional sambae a feijoada, a família Pinto vem demandando o reconhecimento como remanescentede quilombos.

    Estas situações, encontradas em diferentes cantos do mundo, evidenciam afundamentação de demandas de direitos de cidadania, articulados com demandas porreconhecimento de identidades (Taylor, 1994; Cardoso de Oliveira, 2006 e 2004b).Demandas que articulam lógicas próprias, que informam as ações e cosmologias dosatores em contextos particulares e locais. Ora, se a lógica do “todos juntos, masseparados” imprime um ritmo às coordenações das ações dos atores nos EUA, oprincípio de complementaridade é o pano de fundo das ações dos atores na Índia(Dumont, 1996). Por outro lado, no Brasil, os princípios holista e individualista convivemdinamicamente, possibilitando que os atores usem contextualmente os dois regimes: odo paralelepípedo e o da pirâmide (Kant de Lima, 2000), ao passo que na França, o

    valor republicano, uno e indivisível se mescla com os princípios igualitários euniversalistas (Boltanski e Thévenot, 1991). Embora estes diversos regimes possam serencontrados em todas as situações acima listadas, em cada um deles será enfatizado ereforçado um, mais do que o outro. Trata-se, do nosso ponto de vista, da legitimidade,face aos outros interlocutores, de lançar mão de um regime, ou de outro, em uma

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    situação de interação. Por exemplo, será que seria possível fazer uso legítimo, eficaz econveniente do “Você sabe com quem está falando ?” para um agente público francês,americano ou indiano?5

    5 De acordo com DaMatta (1979), na gramática americana estaduninese o interlocutor, em talcircunstância, lançaria mão do “Who do you think you are ?”, ao passo que na Argentina, o mesmodispositivo discursivo iria obter a seguinte indagação: “que mierda me importa ?”. (O’Donnel, 1997).

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    Algumas linhas teóricas.A “africanidade”, a “tradicionalidade”, a “quilombolice”, a “cor da pele”, o

    pertencimento a uma casta, ou a um determinado grupo étnico, tem sido um importantedispositivo na luta pelo reconhecimento (Honnet, 2000) e um elemento fundamental aovocabulário das mobilizações políticas contemporâneas. Ainda que elas detenham umaamplitude global, elas se manifestam de acordo com as gramáticas e cosmologiaslocais e são apropriadas, lidas e incorporadas pelos atores no espaço público de mododiverso.

    Portanto, no lugar de pensá-las como categorias estáveis ou estáticas,buscamos contextualizá-las, inscrevendo-as nas ações dramatúrgicas cotidianas dosagentes sociais. Os mesmos são detentores de uma capacidade crítica que lhes

    permite lançar mão de diferentes papéis sociais, ou como propomos em nosso trabalho,de distintos regimes de engajamento 6 (Thévenot, 2006) diante das controvérsiaspúblicas.

    Ora, quando falamos de mobilizações coletivas, não estamos nos referindonecessariamente a grupos organizados, em manifestações coletivas ou associativas.Embora elas façam parte das questões empíricas aqui tratadas, nossa preocupação, aonos referirmos às ações coletivas, é compreender as formas como os atores,individualmente, ou em grupo, mobilizam dispositivos discursivos, jurídicos e simbólicospara fazer valer suas demandas, diante de seus interlocutores. O que torna possível,por exemplo, que uma família negra na Lagoa Rodrigo de Freitas possa lançar mão de justificativas legítimas, ou agir convenientemente, segundo a situação e circunstânciatemporal e espacial precisa, reivindicando sua quilombolice? Em que medida o uso, ounão, de determinada “roupagem social” - identidade, papel social, etc. - permite avisibilidade ou invisibilidade das demandas dos atores?

    Partilhamos da premissa de que estas ações, inscritas nas estruturas sociais,

    não estão em equilíbrio, ou harmonia. Ao contrário, como propõe Edmund Leach (1993:68), mesmo que “os modelos conceituais de sociedade sejam necessariamente

    6 Sugerimos que orégime de engagement possa ser melhor traduzido para o português como regime decompromisso, pois engajamento em nossa língua pode ter outra compreensão como o de “tomar partidode algo”. Esse sentido, também pode existir na língua francesa, como se “engajar politicamente”, mascomo veremos mais à frente não é o sentido preciso atribuído pelo autor. Vamos manter a traduçãoliteral, regime de engajamento, no decorrer do texto, mas que fiquem essas ressalvas para o leitor.

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    modelos de sistemas de equilíbrio, as sociedades reais jamais podem estar emequilíbrio”. As ações sociais são portadoras de um desequilíbrio, flexibilidade e fluidezprópria das dinâmicas das relações estruturais e de poder. Leach (1993) chamaatenção para que a instabilidade estrutural, sua dinamicidade e fluidez, decorre dasrelações de poder e de sua distribuição no interior da sociedade. A possibilidade depertencer aos grupos não é inerente aos traços culturais ou estruturais, mas da própriadinâmica das relações internas e externas (o que, neste caso, diz respeito ao podercolonial). Segundo Leach (1993: 72):

    quando nos referimos à mudança estrutural, temos de considerarnão apenas as mudanças na posição dos indivíduos com respeitoa um sistema ideal de relacionamentos de status, mas também àsmudanças no próprio sistema ideal: ou seja, mudanças naestrutura de poder

    A sociedade birmanesa, da época estuda por Leach, assim como os Nuer,estudados por Evans-Pritchard, possuem uma dinâmica estrutural que destina múltiplaspossibilidades de combinações das identidades e distintas fronteiras, no caso entre osNuer. Estes últimos, por exemplo, são definidos em função dos valores, pelas relaçõesentre seus segmentos e por suas inter-relações enquanto segmentos de um sistemamaior, numa organização da sociedade em determinadas situações sociais, e nãoenquanto partes de uma espécie de moldura fixa, dentro da qual vivem os atorespertencentes ao grupo Nuer (Evans-Pritchard, 1978: 59). Leach e Evans-Pritchardressaltam o aspecto instável e conflitante da constituição das “categorias identitárias”. Oantropólogo brasileiro, DaMatta, de uma outra perspectiva, chama atenção para ocaráter assimétrico das relações estruturais e de poder estabelecidas no jogo deidentidades. Como enfatiza ele:

    em vez de tratarmos as identidades sociais como um conjunto dedireitos e deveres que comportam ´desvios´ e seleçõesincongruentes, podemos chamar a atenção para o fato de que asidentidades sociais estão correlacionadas a domínios, que osdomínios têm relações estruturadas entre si, que cada domíniopode ter mais ou menos recursos para institucionalizar seu pontode vista da totalidade social, estendendo ou não tais pontos devista à totalidade social. O jogo de seleções de identidades sociais

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    está relacionado ao jogo de poder sistematicamente elaborado edesenvolvido pelos domínios sociais de uma sociedade (DaMatta,1976: 38).

    Desse ponto de vista, algumas análises de Roberto Cardoso de Oliveira sãotambém importantes para a compreensão desta problemática, sobretudo aquelesrelacionadas aos contatos inter-étnicos no Brasil. Roberto Cardoso de Oliveira (1996)aponta para os aspectos conflitantes inerentes ao processo de inter-relações étnicas.Ele ressalta a necessidade de compreendermos as dinâmicas de poder no interior danoção de “identidade”. O conceito defricção interétnica (Cardoso de Oliveira, 1996)nos fornece elementos importantes para o entendimento das relações sociais e dascoordenações das ações não mais no interior das “comunidades” enquanto grupos

    isolados, mas na dinâmica das suas próprias fronteiras. Os atores, portanto, seinscrevem numa dinâmica de interação e de posições estruturais que lhes permiteutilizar contextualmente determinadas identidades na afirmação do nós diante do outro(Cardoso de Oliveira, 1976).

    Entre essas abordagens atuais, que consistem numa das principais linhas decondução da compreensão sobre a questão das interações étnicas do processo demudança social, dos efeitos sobre oself nos contatos inter-étnicos e culturais, talvezseja a de Fredrik Barth a mais abrangente. Barth (2002), em um de seus artigosclássicos, propõe que estas conformações sociais devem ser pensadas a partir deoutros artifícios analíticos, nos quais a identidade é vista como algo que se reatualizano tempo e espaço. Para ele, as fronteiras que definem a identidade destes grupos nãosão geográficas; ao contrário, constituem-se em formas que são reinventadas ereinterpretadas dinamicamente pelo grupo, a partir dos critérios inclusão/exclusão, cujavariação resulta dos processos de interação e tensão (Barth,1987). Como salientaBarth:

    a manutenção de fronteiras étnicas implica também a existênciade situações de contato social entre pessoas de diferentesculturas: os grupos étnicos só se mantêm como unidadessignificativas se acarretam diferenças marcantes nocomportamento, ou seja, diferenças culturais persistentes (...)assim a persistência de grupos étnicos em contato implica nãoapenas a existência de critérios e sinais de identificação, mas

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    também uma estruturação das interações que permita apersistência de diferenças culturais (Barth, 2002: 35).

    Por outro lado, as persistências das diferenças culturais diluem-se diante de

    outras formas de classificação, que persistem em atribuir categorias externas ao grupo,sujeitando-o às visões totalizantes que estão ancoradas em premissas de outros gruposmajoritários, do próprio Estado ou de agências não estatais. A dinâmica de mobilizaçãopolítica dos grupos sociais está relacionada com as estratégias de agentes políticos,mediadores e “empreendedores étnicos” (Barth, 2005). Por outro lado, d euma maneirasensivelmente a de Barth, Sahlins questiona as condições que têm levado a disciplinaantropológica a repensar seus modelos, em decorrência do que Sahlins denominou de“pânico pós-moderno”. Segundo o mesmo (Sahlins, 2000: 202):

    The discipline was seized by a postmodern panic about thepossibility of the culture concept itself. Just when the peoples theystudy were discovering their “culture” and proclaiming their right toexist, anthropologists were disputing the reality and intelligibility ofthe phenomenon. Everyone had a culture; only the anthropologistsdoubt it.

    A proclamação do direito de existência e da descoberta das “culturas particulares”

    foi terreno fértil para a emergência das reivindicações do reconhecimento dasautenticidades e diferenças (Taylor, 2000 e Kymlicka, 1995). Do nosso ponto de vista,tais reivindicações e “definições identitárias” não são independentes dosinvestissements de forme 7 (Thévenot, 2006) que guiam as ações e julgamentos dosatores sociais. Nesse sentido, a abordagem adotada por Thévenot, bem como peloscolaboradores de seu grupo de pesquisa8, distingue-se daquelas que entendem a formacomo uma construção social. Ora, esforçamo-nos para nos resguardar do nominalismodas teorias do construtivismo social9, ou seja, aquelas que concebem, por exemplo, aemergência da categoria quilombo como uma construção social. Não nos interessam

    7 Os investissements de formes , elaborado em um artigo de 1986 (Thévenot, 1986), visa chamaratenção para o papel dos objetos nos procedimentos de construção e representação dos atores em suasações práticas e do estado problemático, fluído e incerto das interações.8 Trata-se do Groupe de Sociologie Politique et Moral (GSPM), da EHESS-Paris/França.9 Sobre uma crítica aos limites do construtivismo, ver o artigo de Bruno Latour (2003).

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    aqui as abstrações conceituais preparadas para “desvelar” suas origens convencionais,ou as concepções teóricas que não consideram a capacidade crítica dos atores.Pressupomos, ao contrário, que esta noção permite vislumbrar o caráter de incerteza,fluidez e instabilidade das ações sociais, diante das operações críticas que permitemmúltiplas leituras sobre as categorias sociais e múltiplos usos das mesmas pelos atoresnas situações de conflito e controvérsia (Castelbajac, 2008). É por isso que nãopodemos reduzir as categorias sociais a simples construções sociais, sob pena derestringirmos o caráter dinâmico e crítico das relações.

    Desse modo, buscamos consagrar uma análise mais pormenorizada sobre asnormas e formas que informam a constituição das referidas categorias. Pretendemosnos debruçar sob as situações de prova (épreuve ) às quais os agentes sociais são

    submetidos nas controvérsias e conflitos. Como, por exemplo, a categoria jurídicaquilombo permite mudanças no âmbito das relações familiares e de vizinhança demoradores de uma Ilha ou de um bairro do Rio de Janeiro. A categoriaépreuve , tantona língua francesa, como na sociologia pragmática desenvolvida por Thévenot eBolstanski, para citar dois deles, possui algumas nuances. Ela pode na língua francesaremeter a uma dimensão de “provação”, como de uma ação de se “colocar à prova”.Para os dois autores citados, aépreuve é um momento crucial para a qualificação dosseres e para a mobilização das formas de justificações que definem os critérios quetornam plausíveis e legítimos os acordos (Boltanski e Thévenot, 1991; Nachi, 2006: 60).Na língua portuguesa, provação tem um sentido que não se aplica ao modo como acategoria é utilizada pelos autores. No nosso entendimento, uma sugestão de traduçãodo termo seria “colocar à prova”, pois a noção remete a um estado de ação em curso ede liminaridade. Por exemplo, num concurso público para professor, em que é exigida aapresentação de determinados documentos, como o CV, não é suficiente apresentar asprovas de comprovação do CV, mas é, contudo, necessário que o candidato se coloque

    à prova demonstrando que é capaz de construir adequadamente um CV para aquelasituação10.

    10 Este exemplo foi dado pelo meu orientador numa conversa que tivemos sobre esta categoria. Achamosque ele merece de fato uma reflexão mais acurada. O termoépreuve é ao mesmo tempo um conceito euma categoria. Vamos mantê-la em itálico em nossas citações.

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    Em consonância com esta abordagem, pressupomos que sejam pertinentes paraa nossa discussão as contribuições de Thévenot (2006) no que concerne aoentendimento destas múltiplas formas de pertencimento. Para ele, mais do queexpressões identitárias ou étnicas, as dinâmicas de interação e de julgamento críticopodem ser lidas sob a noção deregimes de engajamento (Thévenot, 2006). Estes sãoconcebidos como as relações com o mundo envolvente e não diretamente com o outro.A razão dessa guinada diz respeito à preocupação de dirigir o olhar sobre as diferentesmaneiras de ser do agente, dos poderes e das modalidades de dependência. É porqueos regimes são comumente reconhecidos que eles servem a todos, e cada um podediscernir as condutas de maneira congruente. Os julgamentos, as ações e as formas decoordenação das ações intra e interpessoais estão fundadas na ordem de um

    julgamento no quadro dos regimes de justificação, revelando que os atores, quandoapresentam as suas justificações em situações de conflito, não se escondem pordebaixo de interesses manifestos, ou latentes, que encobrem correlações de força,escamoteadas pelas ideologias que as dissimulam (Boltanski, 1990), mas sãoresultados das épreuves às quais os mesmos estão sujeitos nestas disputas (Boltanskie Thévenot, 1991).

    Os regimes de engajamento comportam uma compreensão instável e fluída dasrelações, fruto da inquietude da ação desses diferentes atores, pois a ação humanamais do que fruto de uma comunicação, de umhabitus , de um conjunto derepresentações, de diferenças de papéis, é um deslocamento constante em que osatores fazem usos diversos de engajamentos que podem ser públicos, íntimos, cívicos,marchands , industriais, etc, criando uma multiplicidade de condutas e de arquiteturasque convencionam as condutas em ação (Thévenot, 2006).

    Já em seu livro clássico, escrito na década de 1990 com Luc Boltanski, erareconhecido, a partir do desenvolvimento da idéia deordres de grandeur , o pluralismo

    radical ao qual as pessoas são confrontadas nas sociedades. Como assinala Dodier(1991), no livroDe la Justification,Boltanski e Thévenot inauguram uma perspectivateórica que concebia a ação humana como algo situado em diferentes seqüências ondeas pessoas mobilizam competências diversas para se adequar a uma situaçãoapresentada. Os autores apresentam um modelo que visa cobrir a pluralidade das

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    atividades humanas, em seus múltiplos momentos de disputas, de conflitos e decontrovérsias públicas, onde as pessoas evidenciam suas críticas ou justificações(Breviglieri e Stavo-Deubage, 1999). Ou seja, mais do que a constituição de um quadroque considere as diferenças destatus e de pertencimentos a grupos sociais, Thévenote Bolstanski (1991) buscaram explorar uma hipótese ortogonal sobre a vida emsociedade:

    As mesmas pessoas são levadas a fazer de sua experiência umapluralidade, de maneira a qualificar uma conduta e de a colocar àprova. Mais do que uma diferença de papéis, de mundos sociaisou mesmo de identidades escolhidas, essa pluralidade acarretaoscilações de provas da realidade, submetendo as pessoas àstensões críticas, bem como comunidades inteiras (Thévenot, 2006: 6).

    Portanto, a noção de engajamento “designa tanto a dependência das pessoas,quanto das coisas, e faz evidenciar a prova dessa dependência” (Thévenot, 2006: 13).Thévenot desenvolve, a título analítico, gradualmente, a análise de três regimes deengajamento, no qual “diferentemente dos modelos que dão visibilidade ao ator, suacoletividade, sua individualidade, sua consciência ou inconsciência, sua reflexão, nossacaracterização de regime de engajamento evidencia a forma como as pessoas

    modelam seus engajamentos no meio” (Thévenot, 2006: 14). A partir da exposição deum cenário, passado num transporte público e anônimo, Thévenot (2006) segue odesenvolvimento de um nômade entre os lugares e no meio de transporte, que o leva ase deslocar entre estes regimes. O transporte, rememorando a sutil sociologia do usodo público de Isaac Joseph (1988), representa nessa circunstância uma possibilidadede lidar com um “eu” durável em direção à concepção de um “eu” em transição. Naperspectiva de Thévenot, os atores, humanos e não humanos, são levados a umaexperiência virtual, em movimento, em rede e em transição para um exame da vida emsociedade e da figuração da conduta humana.

    O viajante eleito é aquele que se instala se esparramando, distribuindogenerosamente seus objetos, suas duas crianças em torno dos quatro assentos dotrem. “Tal como um polvo que se defende contra o estrangeiro expandindo todos osbraços” (Thévenot, 2006: 26), esse homem vai ocupando progressivamente os

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    assentos. Vinculando-se ao espaço pelas “ligações tentaculares” que prolonga suapessoa, esse homem, denominado de Ocupante , faz uso de um primeiro tipo deengajamento, que não corresponde em nada ao indivíduo planificador e calculador,daquele relativo à idéia do bem comum, pincelado pelas ciências humanas.Preocupado em dispor dos elementos da ação que compõem a cena, Thévenot elege afigura de outros personagens que avançaram em direção aos assentos. OsTitulares,como ele os denomina, em cada momento de disputa, lançarão diferentes tipos de justificativas, reportando-se a engajamentos diversos para fazer valer seus argumentosdiante das controvérsias. Esse cenário, suas disputas, conflitos e controvérsias,possibilitam focalizar os engajamentos que dão consistência às pessoas, com opropósito de precisar o retrato da pessoa como ator, situando-o em comparação a

    outras figuras da própria pessoa, ou seja, em sua multiplicidade de vínculos e de ações.Pois, o objetivo “é poder seguir as mudanças profundas dos engajamentos dos sereshumanos no mundo” (Thévenot, 2006: 43). Mais do que seguir um “eu” que representa(Goffman, 2001), Thévenot propõe constituir um quadro, uma variedade de figurações,o qual não seja reduzido em escalas de representações, mas que o mesmo possa sediferir de acordo com as animações de figurinos, onde os seres humanos sãoequipados da capacidade de ação e de interação com um meio apropriado, podendofazer o mesmo uso de diversos regimes.

    Pressupomos que tal noção seja mais apropriada para nosso trabalho diante damultiplicidade de engajamentos possíveis nas interações sociais envolvendopopulações tradicionais e quilombolas, no Brasil e antilhanos, imigrantes, na França.Um morador da Marambaia pode lançar mão numa interação de distintos figurinos: o denegro, pescador artesanal, quilombo, descendente de escravos, etc. O mesmo sepassa quando nos deparamos com franceses provenientes das Antilhas, que orainteragem fazendo uso dos códigos gauleses, ora utilizando os códigos antilhanos,

    créole . O mesmo ator, em uma situação pode fazer uso desta multiplicidade deregimes: cívicos, familiar, do mercado...

    Ainda, para ultrapassarmos as posições normativas e dicotômicas do conceito deespaço público, utilizado aqui em nosso trabalho, mas, sobretudo, para superar tanto asconcepções demasiadamente estáticas sobre tal categoria, propomos a utilização da

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    noção arena pública (Cefaï, 2002). Para Daniel Cefaï o conceito deespaço público apresenta uma conotação demasiadamente estática e não dá o devido relevo ànatureza dramatúrgica dos confrontos públicos. Não deixamos de levar emconsideração as valiosas contribuições de Habermas (1993) a respeito da suaconstrução sobre a categoria sociológica de espaço público, cujo conteúdo visa articularum quadro de análise relativo ao princípio da publicidade e aos fundamentosreferenciais da filosofia kantiana. Embora seminal, a perspectiva habermasiana nãopermite, do nosso ponto de vista, compreender outras realidades empíricas que nãoestejam fortemente marcadas por uma cosmologia liberal. Sua proposição busca darconta, universalmente, de um conceito que é inscrito numa ordem local. Como expostoacima, nossa intenção é de entender as estruturas locais que compõem a ação e a

    situação, que são apreendidas e dadas dentro de um conjunto de percepções que sãoinscritas numa cosmologia particular.

    Como bem frisa Kant de Lima (2000), a questão do espaço público deve seranalisada não apenas em relação a sua propriedade – se pública ou privada -, mas emrelação às formas de sua apropriação - se universalizadas ou particularizadas. Ou seja,sua proposição visa compreender o modo como os atores se apropriam destes espaçosancorados em lógicas distintas, sejam elas individualistas e igualitárias, holistas ehierárquicas, combinando de maneira dinâmica tais princípios.

    Desse modo, a categoria arena pública é um importante instrumento analítico porpermitir uma compreensão sobre o processo de constituição do público sob o prisma deuma multiplicidade de cenários que são constitutivos de interações que enquadramdistintas experiências dos atores (Goffman, 1991 e 2001). Diante das atividades críticase a exposição pública dos atores e, por isso, a sua participação nas discussões,parece-nos mais ajustada à concepção de público que pretendemos apresentar nestatese.

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    Os caminhos percorridos e as metodologias empregadas.

    Essa pluralidade de coordenação que os atores operam condiz com a modocomo construímos os dados de nosso trabalho e com o tipo de antropologia –considerando seus múltiplos paradigmas – que buscamos exercitar: uma antropologiaque visa estudar as sociedades, sejam elas “tradicionais” ou “modernas” sob o ponto devista nativo, considerando os seus diferentes lugares de falas e suas múltiplasrepresentações.

    Pressupomos que o conhecimento antropológico não depende apenas de umponto de vista particular, situado e datado, de um observador com relação ao seuobjeto. O fato de sermos espectador e participante, observador e interlocutor, que toma

    emprestado um ponto de vista, faz com que a atividade prática do trabalho de camposeja objeto de observação e reflexão (Bourdieu, 2000). Consideramos, assim comoBourdieu (2000), que esse tipo de experiência cruzada à qual os antropólogos sãosubmetidos - a familiarização com um mundo estrangeiro e o desenraizamento de ummundo familiar - ensina outras coisas “do que somente um retorno aos mistérios e àsmiragens da subjetividade” (Bourdieu, 200: 236): a atividade antropológica possibilita aconstituição de um conhecimento que rompe com as pré-noções e classificações pré-estabelecidas dos outros e de nós mesmos.

    Adquirindo a familiaridade com outra cultura ou sistema de valores, buscamosdesempenhar o papel de “tradutor” dos sistemas de valores, códigos e cosmologias queinformam a coordenação das ações dos atores, buscando torná-los inteligíveis para onosso próprio sistema de pensamento e de significados. Uma tradução que se efetuanuma interação entre observado e observador, na medida em que este é parteobrigatória do campo de observação, sendo que o quadro que ele fornece sobre o outroé algo visto e interpretado por alguém, em um momento particular e em circunstâncias

    específicas (Dumont, 2000). Nessa perspectiva, coube a mim, de modo a compreenderoutro sistema, construir dados que fossem comparáveis “aqui” e “lá”, permitindo,através da explicitação das categorias estranhas à compreensão de minha própriacultura, estabelecer as similitudes e diferenças entre dois ou mais sistemas de valores(Kant de Lima, 1997).

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    Desse modo, privilegiamos o método comparativo, através do contraponto ou deuma comparação por elucidação recíproca (Cardoso de Oliveira, 2000) entre duasgramáticas política e jurídica, como um dos utensílios metodológicos e analíticos denossa pesquisa. O método comparativo, assim como proposto contemporaneamentepela disciplina antropológica, remete-nos ao problema da relação e interlocução com ooutro, pois é a partir do deslocamento em direção à outra sociedade, do contato comoutros sistemas de valores estranhos ao do antropólogo, que se pode realizar oexercício de transformação do exótico em familiar - traduzindo e explicitando ascategorias locais - assim como transformar o familiar em exótico, na medida em que oconvívio com outra cultura permite a dolorosa desnaturalização e o difícilestranhamento dos próprios códigos e valores do observador (DaMatta, 1997). Fazendo

    uso do método comparativo, visamos produzir um conhecimento fundado nasdiferenças entre sistemas sociais, “estranhando” nossa própria sociedade, descobrindoneles aspectos inusitados e ocultos por uma familiaridade embotadora da imaginaçãosociológica (Kant de Lima, 1995).

    Privilegiamos o contraponto em diferentes caminhos. De um lado, num processode exotizar o familiar e de “desenraizamento interno”, dirigimos nossa atenção, emespecial, para dois campos empíricos no Brasil: a Marambaia e o Morro dasAndorinhas. Noutra direção, lançamos mão de outro artifício metodológico: o de“desenraizamento externo” e de familiarização do exótico, elegendo a questão dosAntilhanos em Paris comolócus privilegiado para nossa pesquisa.

    Os caminhos percorridos nos trabalhos de campo nas três situações elegidastiveram trajetórias distintas, em tempos distintos e com perspectivas metodológicasdiferentes.

    O trabalho de campo na Ilha da Marambaia iniciou-se em 1999 e foi objeto deminha dissertação de mestrado (Mota, 2003), cuja abordagem etnográfica consistia em

    analisar os processos de produção da verdade e de administração de conflitos queforam desencadeados a partir de ações judiciais contra a população nativa local. Apesquisa empreendida na Marambaia rendeu diversos outros trabalhos acadêmicospublicados, apresentados em Congressos nacionais e internacionais (Mota, 2005; Mota,2005b; Mota, 2004; Mota, 2003; Mota e Freire, no prelo).

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    No período de 1999 a 2002, atravessei diversas vezes os caminhos das águasda baía de Sepetiba em direção à Marambaia com o propósito de coletar dados para adissertação de mestrado sobre as relações de vizinhança, de parentesco, a atividadeda pesca, as representações sobre o conflito, etc., mas também para participar deatividades, como reuniões da Associação de Moradores, reuniões com os moradores,etc. Compreender a realidade social, seus meandros, seus contornos mais singelosexpressos na vida cotidiana, constituiu elemento essencial para a pesquisaantropológica empreendida no local.

    Travessia de canoa para Ilha da Marambaia (foto tirada por Fabio Reis Mota)

    Os contornos das hipóteses, questões e problemáticas foram se delineando emudando de acordo com as interações e interlocuções empreendidas por mim com osmúltiplos atores encontrados no campo, com os quais, muitos, da posição deinterlocutores passaram a figurar como amigos. Os meus interesses e propósitos foram

    também mudando com a dinâmica do trabalho de campo. Seja na posição decolaborador da população local, seja como um observador externo dos conflitos, foipossível produzir um conhecimento a respeito das questões que eram trazidas pelotrabalho de campo.

    Como a etnografia não foi realizada em uma Ilha distante, habitada por povosque se comunicavam em língua distinta da do pesquisador, seus hábitos não diferiam

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    em grande escala daquelas do etnógrafo. O exercício, aqui, não consistia em descobriros significados de rituais “exóticos”, de práticas religiosas incomuns aos olhos distantesdo etnógrafo. Ao contrário, o exercício nesse caso consistia em observar práticas erituais que se aproximavam das minhas, de minha vida cotidiana. Nessa circunstância,o outro que se aproxima do etnógrafo, é o daqui, as histórias locais e a do pesquisadorpor vezes se confundem, entrecruzam-se e se inserem em um sistema holista derepresentações. Esse exercício de estranhamento do próximo, do familiar, foi marcadopor uma postura de um cientista social/cidadão (Peirano, 1991). Como salienta Peirano(1991: 85):

    Permanece o reconhecimento da pesquisa de campo como omodo privilegiado do conhecimento antropológico, a situação porexcelência do encontro com o ‘outro’. No entanto, a própriapesquisa de campo também passou a ser vista, e aceita, como umfenômeno histórico, e o ‘nativo’ perdeu o caráter passivo.Reconhece-se hoje que, longe de uma fórmula, a pesquisa decampo está inserida em contexto biográfico (do própriopesquisador).

    O fato de pertencer, nesta época, à mesma camada social, e partilhar de algunscódigos, sentimentos e valores dos moradores da Marambaia, imprimiu um ritmo ao

    trabalho de campo, propiciando, em grande medida uma abertura ao longo da interaçãoneste controle de impressões (Berreman, 1980). Por outro lado, me foi exigido exercitarum distanciamento de olhar para uma compreensão não esterotipada ou eivada de pré-noções acerca das representações dos moradores da Marambaia.

    Também, de modo diferente de uma pesquisa desenvolvida além-mar, noutrasociedade, noutra cultura, a realização de uma pesquisa nos moldes preconizados pelaantropologia pode adquirir contornos distintos. Como cientista social-cidadão fuidiversas chamado para atuar como consultor, analista, interlocutor e parceiro dacomunidade da Ilha da Marambaia, produzindo materiais, como relatórios, laudos,matérias jornalísticas, participando de reuniões com a comunidade discutindo osmeandros das ações judiciais e do processo de identificação e reconhecimento dacomunidade como remanescente de quilombos, bem como do processo de construção

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    de uma Reserva Extrativista Marinha. Enfim, em distintas ocasiões fui mobilizado paraatuar no campo como um participante-observador.

    Ora, foi a proximidade, a confiança e a interlocução efetiva que colaborou comum efetivo trabalho de compreensão antropológica acerca desse Outro. Se a “ilusãopositivista”, do distanciamento e imparcialidade, não se traduz na prática em outrosdomínios científicos - seja das Ciências Exatas, Naturais ou Humanas, pois o olhar docientista está necessariamente inscrito num sistema de pensamento e de ensinolocalizado, circunscrito a uma realidade escolar particular, datada (Bourdieu, 1987) - naantropologia, diante das características do fazer antropológico, esta “imparcialidade” émenos provável. Isso não significa uma falta de rigor metodológico e científico. Pelocontrário, minhas intervenções e atuações nos conflitos proporcionaram a coleção de

    um repertório de dados que foram cruciais para a compreensão dos processos sociais.Por exemplo, na ocasião de uma das atuações do NUFEP11 na assessoria para um dosmoradores da Ilha, foi possível ter uma dimensão precisa disso que denominamos deprocessos de demandas de direitos e reconhecimento a partir de reivindicações deidentidades diferenciadas. Uma ação de reintegração de posse havia sido julgadafavorável ao Estado e o morador da Ilha, portanto, deveria sair de sua casa.Contatamos uma advogada para assessorá-lo e procuramos um colega jornalista pararealizarmos uma matéria no jornal a respeito do caso e do conflito existente. Na época,a comunidade da Marambaia havia sido identificada pelo Estado Brasileiro comoremanescente de quilombos. Na conversa entre os pesquisadores do NUFEP e o jornalista, traçamos uma linha para a matéria: explicitar as relações entre amemoralidade e ancestralidade da ocupação dos moradores da Ilha, enfatizando seus

    11 O NUFEP (Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisa) está vinculado academicamente ao Programade Pós-graduação em Antropologia (PPGA) da UFF. Ele foi criado em 1994 por professores deantrpologia da UFF, estimulados pelo antropólogo Luiz de Castro Faria, na época Professor Emérito daUFF e da UFRJ e decano da disciplina no Brasil. O NUFEP comporta uma estrutura acadêmica compesquisadores do Brasil e de diversos países, como a França, Canadá, Portugal, Argentina, Angola, etc.Os projetos desenvolvidos buscam focalizar os processos de administração institucional de conflitos, emperspectiva comparada. Nesta perspectiva, dois ambientes empíricos concentram as abordagens dospesquisadores: as políticas públicas ambientais envolvendo pescadores artesanais; e os sistemas desegurança pública e de justiça criminal. No primeiro, procura-se analisar a administração dos chamadosconflitos ambientais envolvendo os pescadores de beira de praia, instituições do Estado e outros atoresque participam das disputas por recursos naturais e pelo controle material e simbólico do espaço público.No segundo, se busca analisar tais processos, também de forma comparada, envolvendo instituições eatores vinculados às áreas da Segurança Pública e da Justiça Criminal.

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    laços com a escravidão, ou seja, fizemos uso dos dispositivos discursivos locais quehaviam sido identificados pelas pesquisas desenvolvidas por nós do NUFEP naMarambaia. De fato, nossa hipótese, de que essa distintividade da história daMarambaia permitiria a visibilidade da demanda do grupo e, consequentemente, umaação pró-ativa do Estado Brasileiro, concretizou-se. Esse caso, em certa medida,permitiu esboçar os primeiros passos de algumas reflexões que colaboraram com aprodução do presente trabalho (Mota, 2004), em que foi possível compreender essanecessidade de aquisição de uma espécie de substância moral digna (Cardoso deOliveira, 2002) para ter acesso aos direitos mínimos. Ou seja, ao invés de pensarmosnossas ações como um “voluntarismo” ou “militantismo”, ela foi prática essencial para aprodução dos dados e de intervenções qualificadas para as mudanças sociais.

    Associadas a esta pesquisa de campo, realizei diversas outras incursões decampo em diferentes regiões do Rio de Janeiro e em outros estados brasileiros. Numaprodução antropológica em rede realizei atividades de pesquisa com colegas doNUFEP em comunidades denominadas tradicionais, em particular com as populaçõesde pescadores artesanais, compartilhando impressões, dados, perspectivas teóricas eobservações acerca de processos de demandas de direitos e implementação depolíticas públicas especiais dirigidas para tais grupos. O Professor Luiz de Catro Faria,que fundou o NUFEP, introduziu uma tradição de estudo da pesca e pescadores, apartir de pesquisas empreendidas na metade do século XX em regiões litorâneas, comoArraial do Cabo, foco, nessa época, de políticas “modernizadoras”. Seus trabalhospioneiros inspiraram outras diversas pesquisas acadêmicas (Kant de Lima e Pereira,1997; Mello e Vogel, 2004). Arraial do Cabo continuou nas décadas posteriores a serum espaço de produção acadêmica, por conta da forte concentração da atividadepesqueira artesanal. Diversas pesquisas e ações de consultorias foram levadas à cabopor colegas do NUFEP na região (Lobão, 2000 e 2006; Prado, 2002; Goulart, 2000 e

    Britto, 1999). Pesquisadores do NUFEP desempenharam importante papel naassessoria aos pescadores da região e para o órgão do IBAMA, o CNPT, responsável àépoca, pela formulação e criação da Reserva Extrativista Marinha (RESEX) de Arraialdo Cabo (Lobão, 2000 e Prado, 2002). Participei de diversas campanhas de campo e

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    de reuniões na Associação da RESEX com colegas do NUFEP, tomando emprestadoesse campo como contraste.

    Outra etapa importante do trabalho de campo, foi a participação em um projetointerdisciplinar, envolvendo biólogos marinhos, oceanógrafos e antropólogos doNUFEP. O projetoMecanismos Reguladores da Produção Pesqueira: subsídios para agestão de uma Reserva Extrativista Marinha (Itapesq), aprovado pelo edital do PADCTIII, iniciado em 2000, foi um investimento de campo novo, em Piratininga e Itaipu,regiões habitadas por populações tradicionais de pesca e a classe média e média altade Niterói. Na época estava em discussão o processo de criação de uma RESEX emItaipú, sendo possível tomar notas, em reuniões e no trabalho de campo junto aospescadores na praia, sobre esta política pública (Lobão, 2006).

    Imagem da pesca na Praia de Itaipu (Foto tirada em trabalho de campo pela equipe do NUFEP).

    Os nossos trabalhos produziram um conjunto de reflexões sobre esta situaçãosocial, articulando questões referentes ao meio ambiente e à administração de conflitos

    neste espaço público. No Paraná, para citar uma de outras investidas de campo,tivemos a possibilidade de realizarmos um trabalho de consultoria para uma ONGambientalista que visava promover ações de melhoria na atividade pesqueira na Ilha deSuperagui. Uma equipe extensa do NUFEP esteve diversas vezes em campo,realizando etnografias sobre a pesca, os pescadores e suas formas de administraçãode conflitos, suas demandas de direitos, etc. Atualmente, estamos realizando pesquisas

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    e atuando como assessores, em conjunto de uma equipe de pesquisadores daFaculdade de Direito da UFF, sob a coordenação do Professor Ronaldo Lobão, nacomunidade remanescente de quilombos do Sacopã, na Lagoa Rodrigo de Freitas/RJ.Não descreveremos todos estes casos aqui, mas eles permanecem como referênciasfundamentais para as questões levantadas neste trabalho e como ponto de constrasteou apoio para as reflexões e conclusões de nossa tese.

    Em decorrência dessa associação feita por nós, entre a pesquisa e a assessoriaaos grupos com quais nos relacionamos no campo, e a proximidade e familiaridadecom os pescadores artesanais de Itaipu, fomos convidados a atuar num dos conflitosenvolvendo a comunidade de Itaipu, por conta de uma Ação Civil Pública do MinistérioPúblico Estadual (MPE/RJ) que visava despejar os moradores do topo do Morro das

    Andorinhas, cuja presença, como fomos descobrir a partir de levantamentosempreendidos por pesquisadores do NUFEP no local, remonta ao final do século XIX(Mendes, 2004 e Lobão, 2006).

    Cartaz com as fotos retratando os momentos, lugares e personagens importantes da história dacomunidade do Morro das Andorinhas (Foto tirada por Leticia de Luna Freire)

    Os moradores do Morro das Andorinhas mantêm vínculos de parentesco ecompadrio com os pescadores de Itaipu. Em 2002, uma das lideranças da praia de

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    Itaipu solicitou nossa colaboração. Para tanto, um grupo de pesquisadores do Núcleorealizou levantamentos arquivísticos, de genealogia de parentesco, da organizaçãosocial local, etc, culminado em produções acadêmicas, como a dissertação de Mendes(2004), a monografia de Maranhão (2007), trabalhos apresentados em Congressoscientíficos nacionais e internacionais e em algumas reflexões em formato de artigos ecapítulos de tese (Lobão, 2006 e Mota, 2004). Ademais, participamos de dezenas dereuniões na Câmara Municipal de Niterói, no Ministério Público Estadual, no topo doMorro das Andorinhas e na Praia de Itaipu a propósito das questões que envolviam estegrupo.

    É importante que se frise que não realizei uma pesquisa sistemática, com idasfreqüentes ao topo do Morro das Andorinhas, realizando entrevistas semi-estruturadas

    etc., como no caso da Marambaia. Desse modo, adiantamos ao leitor que a densidadeda descrição entre um capítulo e outro se distingue pelo investimento destinado aotrabalho de campo em ambos os locais. Esse desequilíbrio decorre destas diferentesetapas de produção da pesquisa, mas esperamos que não comprometa o conteúdoanalítico de nossa tese.

    Tanto na Marambaia, como no Morro das Andorinhas, fomos inseridos nas redesde sociabilidade local. Na Marambaia, cuja população é contabilizada em 400 pessoas,inicialmente reinava uma forte desconfiança de que eu pudesse pertencer ao serviço deinteligência da Marinha. A entrada no campo foi difícil no início. Mas com o tempo,estas desconfianças foram se dissipando e os laços foram se estreitando. Atualmente,somos conhecidos por grande parte dos moradores e nossa entrada é facilitada porisso. No caso do Morro das Andorinhas, um núcleo familiar com cerca de 40 pessoas, aentrada no campo foi rápida, pois conhecíamos há muito tempo os pescadores de Itaipue, em particular aquele que nos procurou (Kant de Lima e Pereira, 1997).

    O terceiro caso empírico que elegemos para nossa tese resulta de uma

    experiência antropológica e acadêmica sensivelmente diferente das situações descritasacima, fruto de um deslocamento em direção a uma sociedade estrangeira, cuja língua,hábitos, corporalidades, valores e princípios se distinguem sensivelmente do nosso.Partilhar de novos códigos de conduta e de um novo sistema de pensamento,representou muito mais do que um deslocamento físico, mas um deslocamento efetivo

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    e afetivo no ritmo de umanthropological blues (DaMatta, 1978). Nessa circunstância, fuienvolvido por um processo de aprendizado e compreensão tanto da língua francesa,que não dominava na época, quanto dos códigos sensoriais, que desconhecia, pois jamais tinha ido à França e vivido em outro país. Se no Brasil dominava relativamentebem a língua e os códigos no campo, na França tudo era praticamente estranho paramim.

    Se considerarmos que o trabalho antropológico consiste em olhar, ouvir eescrever (Cardoso de Oliveira, 1996b), pude vivenciar durante alguns meses de minhaexperiência acadêmica na França um “handicap antropológico ”, no período em que fuipara lá (julho de 2006 até dezembro de 2007). Fui acometido por um certo “daltonismosocial e antropológico”, pois muito do que via e vivenciava não compreendia ou tinha

    uma leitura equivocada. Não dominava efetivamente os gestos, por exemplo, aplicadosnuma situação envolvendo uma “batida policial”. Colocar a mão para trás, olhar nosolhos do agente de polícia, baixar a cabeça? Uma situação vivenciada num curso defrancês que fazia em Vichy, cidade francesa, é ilustrativa a esse respeito. Um colegachinês do curso, dias após nossa chegada, veio me interpelar sobre o significado deminha mão estendida todas às vezes que o via na rua. Tratava-se de um gesto desaudação, que era natural para mim, mas incompreensível para ele e muitos outros.

    Ainda, como não dominava a língua francesa no momento em que cheguei àFrança, tive que vivenciar também uma inusitada experiência de relativa “surdez sociale sociológica” pela incompreensão do que supostamente deveria ouvir, impossibilitandouma interlocução mais efetiva com as pessoas que faziam parte de meu círculo social.Aos poucos fui adquirindo a capacidade de poder escutar, no sentido de compreenderas sonoridades da língua local, e ouvir, no que concerne à capacidade de deter umentendimento mais acurado das nuances daquilo que as pessoas almejavam meexplicar. Lembro-me bem de uma cena no metrô parisiense em que consegui, pela

    primeira vez, de longe escutar uma conversa entre duas pessoas. Isso me proporcionouuma sensação de alívio por perceber que estava readquirindo uma capacidademomentaneamente perdida.

    Ao mesmo tempo, a ida para outra sociedade exigiu a aquisição de novascompetências cotidianas, a princípio, banais, como fazer compras no supermercado ou

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    re-aprender a fazer determinados cálculos para minha economia doméstica; foinecessário aprender a lidar com a corporalidade numa outra situação climática, bemcomo na interação diária com os outros indivíduos, mudar hábitos alimentares, ativarnovos laços de amizade com pessoas socializadas num outro sistema de valores. Porexemplo, foi necessário entender qual o significado e limites atribuídos ao termoamizade e como dominar os códigos locais com o propósito de demonstrar, ou não,uma amizade ao outro. Nesse caso, partilhamos uma temporalidade relativamente curtano que diz respeito ao início e a concretização da amizade, quando de um ponto devista deles, por exemplo, a temporalidade concernente ao domínio da amizadeinscreve-se numcontinuum em que diferentes provas e etapas devem ser superadaspara que se possa classificar alguém como amigo (ou umpote ). Difícil é fazer amigos

    nas ruas parisienses, aonde as pessoas parecem estar sempre com um tempo “curto”,como também é complexa a operação de encontrar um amigo no Rio que, marcado poruma temporalidade “elástica”, sempre lança mão da conhecida máximavamos tomarum chope um dia desses, me telefona ...

    Foi na busca do aprendizado da língua francesa que terminei tomando contatocom a problemática dos Antilhanos em Paris, que ignorava totalmente em minhachegada. Tinha ido para França com o objetivo de fazer uma pequena incursãoetnográfica nas escolas para analisar as controvérsias em torno do uso do véu. Essaidéia permaneceu até um determinado período quando passei a me interessar pelodebate sobre os Antilhanos na Metrópole. Ainda no Brasil, na festa de um amigo, ex-morador da Ilha da Marambaia, havia conhecido, antes de minha partida para meuestágio doutoral, que durou um ano e seis meses, um francês de origem martiniquenseque se encontrava de férias. Ele falava um pouco de português e eu achava que falavafrancês e assim empreendemos uma conversa sobre a obra de um grande escritormartiniquense, Patrick Chamoiseau. Antes de partir, trocamosmails e ficamos de nos

    comunicar assim que eu chegasse em Paris. Como fui antes para Vichy realizar o cursode francês para adquirir uma competência mínima na língua local, que permitisse aomenos pedir uma baguete e um leite na padaria, cheguei à Paris um mês depois. Ocolega francês já havia gentilmente escrito e perguntado sobre minha chegada na

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    França. Assim que cheguei lá, marcamos um chope num bairrobobo (bohêmio-burguês) da cidade para tomar uma cerveja Brahma e escutar música brasileira.

    Como ele estava estudando português do Brasil e eu estava tentando aprender ofrancês, resolvemos fazer uméchange linguísitico para que pudéssemos aprimorar omeu francês e ele o português. Nossos échanges passaram a se tornar discussõesextremamente ricas a respeito do Brasil e da França, em particular das condições donegro nos dois países, das questões relacionadas ao reconhecimento das dif