camila mota farias
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O COCO T NO SANGUE: A (RE)INVENO DE UMA TRADIO
EM FLUXOS DANANTES POR MULHERES NO CARIRI CE (1979-
2012)
CAMILA MOTA FARIAS*
I. Os Cocos poticas de cantos danados
Os Cocos se constituem a partir de saberes/fazeres danantes, musicais e poticos.
Mrio de Andrade (2002) e Cmara Cascudo (1979) afirmam que os Cocos so cantos
danados. Para aquele, a msica construda, recorrentemente, no binrio 2/41, provocando
uma problemtica na definio da prtica cultural, pois essa marcao recorrente em
poticas populares, entretanto Se popularmente ela um conceito vago, que designa muita
coisa [...] a forma frequentssima (sic) e mais original do coco o dueto de solo e coro, isto
uma pea musical de carter antifnico (ANDRADE, op. cit.: 364).
Assim, h entre solista e coro uma relao que singulariza os Cocos e mapeia os
papis existentes na sua produo, o de solista2 e o de coro3. Cmara Cascudo (op. cit.: 237)
registra outro elemento caracterstico do Coco, [...] apenas, o refro fixo, constituindo o
caracterizador do coco. As estrofes [...] so tradicionais ou improvisadas. Ambos
singularizam o que demarca tradicionalmente a construo potica das msicas de Coco, ou
seja, a relao entre coro-solista e a presena de estrofes improvisadas ou tradicionais e refro
fixo. Estes elementos, de um modo geral, no foram abandonados nos processos de
transformaes que a prtica vem vivenciando.
Quanto origem dos Cocos, Mrio de Andrade (op. cit.) afirma uma ascendncia
afro-indgena e portuguesa. Os traos portugueses relacionam-se s rodas coreogrficas para
adultos da regio da Beira4, pois que o Coco ocorre normalmente em roda5, e pelos cantos de
* Mestranda em Histria pelo Mestrado Acadmico em Histria da Universidade Estadual do Cear (UECE),
com bolsa Capes. Integrante do Laboratrio de Estudos e Pesquisas em Histria e Culturas (DCTIS). 1 Representa a diviso de tempo de cada compasso, no caso dos Cocos um tempo forte e outro fraco. 2 o mestre de Coco, tambm chamado de tirador, puxador, quebrador, conduz a brincadeira e o canto. 3 Formado por uma coletividade responsvel pela dana e por cantar os respondimentos, tambm produzindo
sons com suas batidas de palmas e com as suas pisadas. 4 At o sculo XIX a regio da Beira era uma das seis comarcas em que se dividia Portugal, Aps diversas
divises administrativas, em 1936, o antigo territrio que correspondia a Beira foi dividido em Beira Litoral,
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quadras6, nos quais versos portugueses aparecem com o uso de neumas silbico-musicais7. O
autor, tambm, aponta elementos amerndios como o uso de refros curtos e semelhanas de
formas poticas, assim como elementos das culturas africanas como a umbigada e os
instrumentos de percusso.
Maria Ignez Ayala e Marcos Ayala (2000), tambm, esforam-se para elencar as
caractersticas da manifestao que as ligam s culturas negras, considerando que h
encontros entre os Cocos, o Batuque, os Sambas e o Jongo estes so revelados no uso de
instrumentos de percusso (ganz, bumbo, zamb, caixa, entre outros), na umbigada ou na sua
simulao e no canto com estrofe seguida de refro.
Alguns autores mais preocupados em identificar uma origem localizada para a
manifestao, como Jos Alosio Vilela (1980), propem uma hiptese de que a prtica
cultural surgiu no Quilombo dos Palmares como canto de trabalho dos escravos que catavam
e quebravam coco. Entretanto, mesmo com a aceitao desta verso, principalmente por
folcloristas, ela criticada, tendo em vista que no h fontes e referncias que possam
sustent-la (AYALA; AYALA, op. cit.). No estamos em busca de mapear as origens da dana,
mas de compreender suas caractersticas e possibilitar um panorama geral da prtica no
Nordeste, percebendo que existe uma variedade de Cocos que produzem diversos sons,
movimentos, sentidos e sentimentos que se revelam como convites a um bailar potico
composto por passos que constroem os trnsitos de uma tradio.
Os Cocos, segundo os Ayalas, podem ser encontrados em suas formas danada,
cantada e escrita. Sendo os Cocos danados e cantados mais comuns, naqueles h o
predomnio do coletivo: para que haja a dana preciso gente para (a)tirar os cocos e para
responder dentro da roda de danadores, gente que toque os instrumentos, gente que saiba os
passos que caracterizam a dana e esteja disposto a entrar na roda (ibidem: 22) e estes so
realizados em desafio, os emboladores improvisam seus versos, cada qual utilizando um
instrumento de percusso [...] para marcar o ritmo, que faz fluir a poesia (ibidem: 22). Por
Beira Baixa, Beira Alta e Beira Transmontana, mas as provncias foram extintas em 1976, sendo a regio
chamada de Beiras. Cf: Disponvel em: Acessos em: 19.03.2015. 5 Entretanto, as rodas no Coco tambm so tidas como de origens indgenas. Cf. CASCUDO, op. cit. 6 As quadras so estrofes compostas de quatro versos. No Coco o poeta pode compor seu solo e o refro coral em
dois versos, ou mesmo em um verso, no h uma mtrica prpria, da mesma forma pode elaborar a rima de
forma livre, por isso h uma riqueza potica nos Cocos. Cf. ANDRADE, op. cit. 7 Andrade aponta como neumas silbico-musicais o emprego de expresses como tum-tum, iaiai, ch, oll,
llll, lalalal, h, lilili Cf. ANDRADE, op. cit.
http://www.infopedia.pt/
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fim, os estudiosos buscam o perfil dos coquistas, identificando que a dana uma prtica de
sujeitos marginalizados por diversas condies: pela etnia, pela situao econmica, pela
escolaridade e pelas profisses.
Com base nestas breves observaes, os Cocos podem ser compreendidos, na
perspectiva de Roger Chartier (2002), como prticas das culturas populares, tendo em vista
que so modos de criar desenvolvidos a partir de saberes/fazeres compartilhados por sujeitos
na produo de objetos culturais. Assim, para alm da ao de danar e de cantar, os Cocos se
constituem dos saberes envolvidos, dos usos, das formas, das representaes e dos
significados que constroem e so construdos na/pela prtica em um processo recproco que
produz formas de existir e de significar o viver, o que em discusso com a a filosofia
deleuziana propomos denominar de fluxos danantes.
II. Danadeiras e Coquistas do Cariri Cearense sujeitos e(m) artes
Os Cocos podem ser encontrados no litoral e no serto nordestino8. No Estado do
Cear esses cantos danados vm se consolidando como tpicos da zona costeira, sendo mais
praticados por homens, pescadores (AMORIM, 2008; FARIAS, 2012). As mulheres aparecem
em nmero menor, comparado ao dos homens, sendo sua presena mais frequente nos Cocos
do serto. O perfil dos coquistas cearenses se assemelha ao elaborado por Maria Ignez Ayala
e Marcos Ayala (op. cit.).
O Cariri, Microrregio do Cear, localiza-se na Mesorregio Sul do Estado9 e
possui uma significativa dinmica cultural, sendo palco de diversos grupos de cultura popular
- Bandas Cabaais, grupos de Reisado, Maneiro Pau, Coco, etc. Possui uma rea,
aproximadamente, de 4.115,828 km e uma populao de 528.398 habitantes10.
8 Pode-se encontrar os Cocos em Estados como Paraba, Rio Grande do Norte, Bahia, Pernambuco, Alagoas, Maranho, Sergipe, Piau e Cear. 9 Composto por oito municpios: Barbalha, Crato, Jardim, Juazeiro do Norte, Misso Velha, Nova Olinda, Porteiras e Santana
do Cariri. 10 Disponvel em: . Acesso em: 14 de agosto de 2015.
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Ao nos depararmos com os Cocos danados nesta regio, identificamos quatro
grupos11 formados essencialmente por mulheres12, agricultoras ou profissionais autnomas.
Nos grupos assumem as funes de mestras e de danadeiras. Cada grupo possui uma
trajetria particular, assim como formas especficas de danar e de cantar.
As reminiscncias das brincantes sobre suas experincias com esta dana, remetem-se
a um outro tempo, antigamente, referindo-se a um passado que interpretado no presente
em narrativas que articulam temporalidades por memrias que fazem uma construo
problemtica do passado, conforme Portelli (1981) assevera que recordar e contar so formas
de interpretar. Nessa operao de lembrar e interpretar, a memoria institui nexo entre o
passado e o presente, e, como expressa Javier Marcos Arvalo (2004: 928), a tradio resulta
de um processo de decantao cultural e da hibridao que deriva do passado transformado e
de sua incorporao ao presente.
Eric Hobsbawn e Terence Ranger (1984: 9) sugerem que a noo de tradio
inventada Inclui tanto as tradies realmente inventadas, construdas e formalmente
institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difcil de localizar num perodo
limitado e determinado de tempo. Assim, a falta de uma datao que demarque a origem da
dana no Cariri pode ser compreendida como uma caracterstica constitutiva de uma tradio
inventada.
Nas memrias das coquistas existe a referncia a trs atividades relacionadas
origem da dana: a tapagem dos chos das casas de taipa, o plantio de arroz e a farinhada.
Maria da Santa13 conta que: era assim, quando construa a casa de taipa que eles levantavam
com a madeira e tudo e tapava a casa, a eles convidavam as pessoas [...]: vamos aterrar a