cidadãos do mundo

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Cidadãos do mundo: experiências pessoais e familiares entre participantes de um Programa de Intercâmbio Cultural 1 Maria Cristina Caminha de Castilhos França 2 Resumo Este artigo trata de um programa específico: o Programa de Intercâmbio Escolar promovido pelo AFS Intercultura Brasil - que é membro do AFS Intercultural Programs 3 -, organização internacional sem fins lucrativos que opera vários programas interculturais para jovens e adultos em 54 países. Como objetivo, propõe-se a ampliação da reflexão que envolve um aspecto bastante significativo da globalização das sociedades e da mundialização da cultura (ORTIZ, s/d), que é o papel do jovem que participa de um programa de intercâmbio cultural, na conformação de “cidadãos do mundo” 4 ou “homens desenraizados”, a partir do conceito proposto por Tzvetan Todorov (1999). Palavras-chave: Intercâmbio Cultural. Mundialização cultural. Identidade globalizada. Citizens of the world: personal and family experiences of participants of a cultural exchange program Abstract This communication deals with a specific program: the School Exchange Program by the AFS Intercultura Brazil, which is a member of the Intercultural AFS Programs, an international organization without lucrative aims that operates some intercultural programs for youngsters and adults in 54 countries. As its objective, this article considers magnifying of reflection that involves aspect sufficiently significant of globalization of society and of “mundialization” of culture (ORTIZ, s/d), that it is the role of the youngsters that participate in a program of cultural exchange, in the conformation of "citizens of the world" or "destitute of country” men, from the concept considered for Tzvetan Todorov (1999). Key words: Cultural exchange. Cultural “mundialization”. Global identity. Introdução O intercâmbio cultural foi estabelecido como prática em diversos países do mundo, há aproximadamente 60 anos, por algumas instituições específicas. Algumas organizações que promovem essa prática, conforme propaga a mídia, divulgam a importância do programa de intercâmbio, recorrendo a sua abrangência em vários aspectos da trajetória individual, que passa pela ordem da ampliação de possibilidades de sucesso profissional, da aquisição de 3 Jan-Jun/2008 Identidade

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Cidadãos do mundo: experiências pessoais e familiares

entre participantes de um Programa de Intercâmbio Cultural1

Maria Cristina Caminha de Castilhos França2

Resumo Este artigo trata de um programa específico: o Programa de Intercâmbio Escolar promovido pelo AFS Intercultura Brasil - que é membro do AFS Intercultural Programs3 -, organização internacional sem fins lucrativos que opera vários programas interculturais para jovens e adultos em 54 países. Como objetivo, propõe-se a ampliação da reflexão que envolve um aspecto bastante significativo da globalização das sociedades e da mundialização da cultura (ORTIZ, s/d), que é o papel do jovem que participa de um programa de intercâmbio cultural, na conformação de “cidadãos do mundo”4 ou “homens desenraizados”, a partir do conceito proposto por Tzvetan Todorov (1999). Palavras-chave: Intercâmbio Cultural. Mundialização cultural. Identidade globalizada.

Citizens of the world: personal and family experiences

of participants of a cultural exchange program

Abstract This communication deals with a specific program: the School Exchange Program by the AFS Intercultura Brazil, which is a member of the Intercultural AFS Programs, an international organization without lucrative aims that operates some intercultural programs for youngsters and adults in 54 countries. As its objective, this article considers magnifying of reflection that involves aspect sufficiently significant of globalization of society and of “mundialization” of culture (ORTIZ, s/d), that it is the role of the youngsters that participate in a program of cultural exchange, in the conformation of "citizens of the world" or "destitute of country” men, from the concept considered for Tzvetan Todorov (1999). Key words: Cultural exchange. Cultural “mundialization”. Global identity. Introdução

O intercâmbio cultural foi estabelecido como prática em diversos países do mundo, há

aproximadamente 60 anos, por algumas instituições específicas. Algumas organizações que

promovem essa prática, conforme propaga a mídia, divulgam a importância do programa de

intercâmbio, recorrendo a sua abrangência em vários aspectos da trajetória individual, que

passa pela ordem da ampliação de possibilidades de sucesso profissional, da aquisição de

3

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habilidades para lidar com a diversidade de modo geral, do domínio de uma língua

estrangeira, do amadurecimento emocional, entre outros tantos.

O Programa de Intercâmbio Escolar

abrange grupos de adolescentes de camadas

médias, cursando o ensino regulamentado

dentro de uma perspectiva de sucesso no

processo de aprendizagem. A seleção para

validar a participação do estudante é realizada

por intermédio de uma prova de

conhecimentos gerais, dinâmicas de grupo e

entrevistas individuais e com familiares. É

divulgado por instituições, através de folders

ou material de propagada, que “o objetivo é

buscar candidatos com forte motivação

acadêmica, que sejam flexíveis, sociáveis e

que tenham como objetivo principal a

aprendizagem intercultural”. Na ficha de

inscrição o candidato indica seis países5 entre

os países participantes, na ordem de sua

preferência, sendo que não há garantia de ser

contemplado, seja pela ordem apontada ou

ainda em um dos eleitos por ele.

O Programa Escolar é destinado a alunos com idades entre 15 e 17 anos, com a duração

de um ano escolar (de 10 a 12 meses). Eles serão enviados a outros países, ficarão hospedados

em famílias voluntárias, chamadas de “famílias hospedeiras” e estudarão em escolas

secundárias – em geral, concluindo o Ensino Médio. Há outros programas de intercâmbio para

maiores de 18 anos, tais como os seguintes: o de Ação Comunitária, que propõe o trabalho

voluntário em organizações de cunho social, educacional ou ambiental; o Programa de

Estágio, em que o trabalho será realizado em uma empresa na área profissional de interesse do

candidato; e, por fim, o Programa para Professores que busca conquistar o conhecimento de

outros sistemas educacionais e a troca de experiência com professores locais.

Capa do Programa Escolar de Fernanda Vasconcellos na Nova Zelândia

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O Contexto

A instituição a partir da qual se propõe a reflexão é o AFS que, no Brasil, foi fundado

em 1956 e anuncia-se compromissado com a “construção de um mundo solidário, através do

intercâmbio cultural entre os povos”. Segundo Canclini (2003, p. 42), “a transnacionalização

enquanto um processo que se forma mediante a internacionalização da economia e da

cultura”, surge a partir da primeira metade do século XX, gerando organismos, empresas e

movimentos sem sedes situadas exclusivamente em uma nação. Por sua vez, os dois

movimentos, o de internacionalização e o de transnacionalização, promovem a globalização,

enquanto processo de “interação mais complexa e interdependente entre focos dispersos de

produção, circulação e consumo” (ibid).

Esse contexto plural de profundas transformações introduzidas pelas instituições

modernas está diretamente imbricado com a vida individual e, de forma mais profunda, com

as inúmeras identidades desenvolvidas nos atores sociais. Pode-se pensar, portanto, o

Programa Escolar de Intercâmbio Cultural como resultado desse movimento global enquanto

facilitador na produção de identidades “mais” globalizadas, como traz a mensagem do “guia

do Candidato” distribuído aos estudantes inscritos para o processo de seleção:

Qual a origem do AFS?

Durante a I Guerra Mundial, um grupo de 74 americanos vivia e trabalhava voluntariamente em Paris, atuando como motoristas de ambulância. Esse grupo ganhou o nome de American Field Service e tinha a missão de transportar soldados franceses feridos das frentes de batalha para as unidades móveis de hospitais. No fim da guerra, esse número havia crescido para 2500 voluntários. Após a II Guerra Mundial, esses voluntários estavam distribuídos por toda a Europa e continuaram unidos na determinação de promover a paz através dos contatos entre pessoas de diferentes culturas. Assim, em 1947 surgiu o AFS Intercultural Programs, a primeira maior organização de intercâmbio cultural de todo o mundo. Até hoje, mais de 270000 pessoas já participaram do intercâmbio cultural oferecido pelo AFS. O AFS tem escritórios em 54 países e é a organização líder no campo de intercâmbio de cidadãos do mundo.(Guia do Candidato AFS)

Segundo Ulrich Beck (2002), vive-se hoje um período de “modernização reflexiva” que

significa a possibilidade de uma (auto)destruição criativa para toda uma era: aquela da

sociedade industrial. O “sujeito” dessa destruição criativa é a vitória da modernização

ocidental quando, num “estágio” anterior – modernização simples – tem-se a desincorporação

seguida da reincorporação das formas sociais tradicionais pelas formas industriais. Por sua

vez, a modernização reflexiva, sob o mesmo movimento, propõe a desincorporação para, a

seguir, reincorporar as formas industriais por outra modernidade. O autor pensa essa “nova”

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modernidade a partir da sociedade de risco que atinge os modos de vida culturais específicos

que, em particular, nesse trabalho deter-se-á naqueles modos produtores ou fontes de

significado coletivas e específicas de grupo. Para ele, essas fontes estão sofrendo de exaustão,

desintegração e desencantamento e uma das conseqüências recai sobre o processo de

individualização visto anteriormente (SIMMEL, WEBER, DURKHEIM) como um processo

de direcionamento libertário das certezas feudais e religiosas e hoje, como um processo de

passagem da sociedade industrial para a turbulência da sociedade de risco global, onde as

oportunidades, ameaças, ambivalências da biografia - que os indivíduos tinham a

possibilidade de superar em um grupo familiar, na comunidade da aldeia ou recorrendo ao seu

grupo social - não existem com as mesmas intensidades. Espera-se que os indivíduos superem

as “oportunidades arriscadas” a partir de decisões em bases bem fundamentadas e

responsáveis, levando em consideração as possíveis conseqüências. No entanto, esse

indivíduo vive intensamente a fragmentação dos discursos do eu [self] que tem origem nas

alterações das categorias das situações de vida que refletem a conduta de vida da sociedade

industrial, onde uma presume a outra. Os novos tipos de condução e disposição da vida

resultam da desintegração das certezas da sociedade industrial e que, por conseguinte,

provocam a compulsão para encontrar e inventar novas certezas para si e para os outros que

não as possui. Esse movimento traz no seu interior novas interdependências, incluindo as

globais.

Sob essa perspectiva, então, passa-se a produzir a existência humana de forma

experimental e toda a falta de controle sobre as experiências do cotidiano, tendo em vista a

obrigatoriedade da escolha, envolve inúmeras mudanças e adaptações nas ações do dia a dia.

Nesse contexto, os estudantes que se vinculam ao programa de intercâmbio cultural buscam

novos espaços de ação capazes de formular normas de vinculação. Anthony Giddens, por sua

vez, aponta que as condições sociais modernas são marcadas tanto pelos processos da

globalização, quanto da procura de contextos de ação mais tradicionais:

[...] A conexão [entre globalização e contextos de ação tradicionais] são as conseqüências desincorporadoras resultantes dos sistemas abstratos. Neste caso, as influências causais são complexas e estão ligadas ao caráter multidimensional da modernidade. [...] Tradição diz respeito à organização de tempo e, portanto, também de espaço: é o que ocorre também com a globalização, exceto pelo fato de que uma corre em sentido contrário à outra. Enquanto a tradição controla o espaço mediante seu controle do tempo, com a globalização o que acontece é outra coisa. A globalização é, essencialmente, a “ação à distância”; a ausência predomina sobre a presença, não na sedimentação do tempo, mas graças à reestruturação do espaço. (1997, p. 118)

O AFS Intercultura Brasil: organização e atuação

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O AFS – American Field Service atua no Brasil há quase 50 anos. É uma organização

de âmbito mundial que tem a sua Secretaria Executiva sediada na cidade do Rio de Janeiro e é

gerenciada por voluntários distribuídos entre os Comitês Locais, as Regionais e uma Direção

(composta por voluntários eleitos pelos representantes de cada Comitê em assembléias

regionais e nacionais). O grupo que compõe a Secretaria Executiva mantém vínculos

empregatícios com a instituição e exerce funções administrativo-financeiras. Ao todo são

mais de 800 voluntários organizados em cerca de 80 comitês e representações locais,

distribuídos pelas principais regiões do Brasil. São pessoas com diferentes formações, que já

participaram de intercâmbios ou hospedaram estudantes estrangeiros e que, hoje, dedicam

parte de seu tempo disponível à organização.

Os voluntários são responsáveis pela maior parte das operações do AFS Intercultura

Brasil: a articulação de parcerias com escolas e outras organizações, a elaboração de

programas especiais, a seleção de candidatos aos programas de intercâmbio e a orientação

necessária às famílias hospedeiras e aos estudantes.

A AFS mantém programas de intercâmbio em 28 países, distribuídos entre todos os

continentes, com vagas limitadas em cada um deles. Para os participantes, os preços de adesão

aos programas de intercâmbio anuais são variados6, estabelecidos conforme o país de destino.

Nos valores previstos para o pagamento estão incluídos: passagem internacional de ida e volta

ao país de destino, tendo como ponto de partida SP ou RJ, seguro médico até o valor de US$

1.000.000,00 (sem cobertura para atendimentos dentários, oftalmológicos e condições pré-

existentes). As despesas básicas como moradia, alimentação, transporte para a escola e livros

escolares são custeados pela família hospedeira.

A instituição tem como objetivo comum o de “oferecer a oportunidade de o jovem

mergulhar na cultura do país hospedeiro, viver o dia-a-dia com uma das famílias selecionadas

pelo AFS, estudar em uma escola secundária e fazer amigos na comunidade”. As famílias

hospedeiras realizam essa atividade voluntariamente, sem nenhum ressarcimento pela

hospedagem.

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Elas foram preparadas para tratar o

estudante estrangeiro como um novo membro,

tentando “estabelecer, de fato, uma relação de

filho, pais e irmãos”. O grupo candidato, já

tendo conhecimento do processo de inserção no

programa, é selecionado conforme os critérios

estabelecidos e viajará em duas ocasiões do ano:

em janeiro ou agosto, conforme o ano letivo no

país de destino. O mesmo acontece com o grupo

de estudantes estrangeiros vindos para o Brasil.

Eles são distribuídos entre as famílias

candidatas à hospedagem que são, aqui no Rio

Grande do Sul, em sua maioria, do interior do

Estado.

O Programa Escolar

Sua missão é a educação em seu sentido mais amplo: aquela que extrapola a sala de aula

para promover o aprendizado intercultural e a compreensão internacional através da troca de

idéias e experiências de vida entre os indivíduos participantes. Esses programas de

intercâmbio procuram contribuir para o desenvolvimento da cidadania, oferecendo aos jovens

oportunidades de conhecer outras culturas. Esta proposta, que tem como objetivo geral levar

aos cidadãos o aprendizado intercultural, é explicitada em seu material de divulgação:

[...] O objetivo de refletir sobre a natureza da cultura deveria ser orientado através do conhecimento e compreensão de outras culturas ao invés de se tentar descobrir para que se utiliza a cultura. Deve-se fundamentalmente levar em conta a necessidade do conhecimento de outras situações para entender a própria. Quanto mais componentes de uma cultura são identificados, mais fácil será entender as diferenças e semelhanças entre elas. Mediante esta compreensão nasce a aceitação e finalmente a admiração por outras culturas. A educação intercultural existe justamente para facilitar esse processo.

Na seqüência, o material de divulgação aponta as vantagens do aprendizado

intercultural, organizadas nestes três subtítulos: Valores e habilidades pessoais. Relações

interpessoais. Conscientização dos assuntos globais.

Folder de divulgação da AFS/Brasil

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A experiência do programa do AFS tem dois eixos fundamentais, a família hospedeira e

a escola, compreendendo-os como fatores significativos e de grande importância para o seu

sucesso. Para dar sustentabilidade ao que propõe, tem como um dos critérios de aprovação

dos candidatos aqueles que apresentam forte disposição para a convivência em família, que se

dedicam aos estudos e que se comprometem em completar sua experiência intercultural até o

final previsto.

As famílias hospedeiras atendem a padrões locais variados quanto ao nível sócio-

econômico, etnia, credo e outras características. Podem estar definidas sob diferentes

conformações, ou seja, casais com ou sem filhos, pais casados ou separados, jovens ou idosos,

Montagem de documentos encaminhados e recebidos pela intercambista Fernanda. Inclui carta e fotografias recebidas da família hospedeira

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com um número de membros não determinado etc. Os candidatos aprovados partem de seu

país de origem já informados sobre a família hospedeira. Há casos que necessitam ficar em

famílias temporárias até confirmar a família definitiva. As mudanças eventuais de família

durante o programa podem ocorrer por alguns motivos, como relata Fernanda que participou

do Programa em 2004, em Auckland, na Nova Zelândia:

Troquei três vezes de família. A primeira família que fiquei era de indianos e minha ‘host mam’ teve câncer e descobriu após três meses que eu estava lá. A família e eu ficamos muito abalados e o AFS decidiu em trocar-me de família. Fui para uma família que morava próxima à anterior. Essa segunda família, após dois meses decidiu mudar de residência, indo morar no outro lado da cidade. Eu não queria deixar minha escola, meus amigos e ficar longe da minha primeira família, então fui para a terceira família e permaneci lá até o fim. Gostei de todas, mas minha última “host mam” foi muito especial.

A importância da família hospedeira neste processo é apontada no relato de Beth, que

participou do programa em 1973, em Mundelein, Illinois nos Estados Unidos:

Na família foi melhor do que eu esperava. A simpatia pela minha mãe, a quem eu considerei a pessoa mais importante para meu convívio em família, foi desde que a vi. Como em todo o relacionamento o ciúme aparece com algum tempo - a minha irmã de 14 teve ciúmes de mim. Era com ela que ia para a escola e ela que pediu uma intercambista. Em alguns momentos nosso relacionamento não era tão fácil até pela diferença de idade - 14 e 18. Acontecia que cada um tinha uma atividade, e sendo assim a família não se encontrava sempre em casa. Foi tão bom que até hoje mantenho contato com eles - pais, minha irmã mais velha e meu irmão mais moço.

Fotografias de Fernanda com a família hospedeira na Nova Zelândia

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A escola poderá ser pública ou particular, em regime externo, de semi-internato ou de

internato. O regime de internato não exclui a família hospedeira e, segundo a instituição,

costumam obter muito sucesso junto aos alunos por oferecerem atividades complementares ao

longo da semana. Aos finais de semana e nas férias escolares, o intercambista fica com a

família hospedeira. O Programa provê algumas das despesas escolares: materiais didáticos,

custo de matrícula, transporte e livros escolares. Em alguns casos há despesas da família de

origem, como o uniforme, quando é obrigatório. Cabe ao estudante cumprir as exigências

acadêmicas e documentais para a matrícula, bem como a legalização da documentação

proveniente de seu aproveitamento escolar no país hospedeiro no cumprimento de exigências

do sistema escolar. O Programa chama atenção para a exigência da freqüência escolar - que

estará sob seu controle -, podendo ser considerada falta grave o não cumprimento e ocasionar

o retorno antecipado do intercambista.

O vínculo que a escola proporciona é grande, segundo o relato de alguns participantes.

Em geral, é o lugar onde mais se constrói laços de amizade e mais se compreende a cultura do

país hospedeiro.

Na escola era o lugar onde mais me divertia. A escola era pública e tinha outros intercambistas de outros países. Aprender através de outro sistema escolar foi muito bom para eu entender o quanto minha escola no Brasil era democrática. (Alessandra, esteve na Suécia no ano de 2001). Na escola vivi experiências totalmente diferentes daqui. Hoje, coisas que achei ridículas não acho mais. A minha vida era muito pacata - escola e nos finais de semana shopping. Na escola tinha um pequeno grupo de amigos americanos e me entrosava bem com as outras intercambistas brasileiras [mais quatro]. Fora da escola e família não tinha muitos amigos - na verdade finais de semana ou estava em casa ou estava na casa de uma amiga, filha da amiga de minha mãe. Não era de muitos relacionamentos. Participei de passeios do intercâmbio e fiquei em outras casas de famílias. Inclusive voltei para um desses lugares tendo ficado na casa de uma que conheci - tive um bom convívio com a família dela. (Beth, esteve em Mundelein, Illinois nos Estados Unidos, no ano de 1973).

O conjunto de situações que suscitaram o tema

A área de interesse que o artigo propõe é o intercâmbio cultural como um dos aspectos

da sociedade moderno-contemporânea que privilegia a identidade globalizada do indivíduo

em uma cultura transnacional. Nesse sentido, a construção de uma identidade “partilhada” sob

novos referenciais produzidos no interior de distinções e diferenças culturais é proposta a

partir da complexidade e heterogeneidade da sociedade moderno-contemporânea. Ou seja, “a

existência e a percepção de diferentes visões de mundo e estilos de vida” (VELHO, 1994, p.

97) marca esta fragmentação - já indicada por outros autores como Georg Simmel, Alfred

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Schutz, Erving Goffman e Anthony Giddens - como característica da modernidade. Nesse

sentido, segundo Renato Ortiz (s/d), a sociedade contemporânea deve ser pensada sob um

“outro patamar” entre o passado e sua transformação, diversidade e semelhança, globalização,

desterritorialização. E, no que diz respeito ao processo de mundialização da cultura, enfatiza

novos referentes de identidade, remetendo-os à juventude que, em particular, tem na conduta

referências desterritorializadas7, cuja “unidade moral” é tecida por símbolos e signos próprios

do processo de globalização.

A reflexão proposta neste artigo foi construída a partir de uma situação pessoal

vivenciada: a aprovação de um familiar no Programa Escolar do AFS Intercultura Brasil, no

mês de abril de 2003. Tendo a aprovação de uma filha neste programa, foi observado que os

critérios de seleção, bem como o material explicativo sobre o programa, detinham-se na

preocupação com a adaptabilidade do candidato a aspectos diferenciais possíveis no país

hospedeiro. Esse fato suscitou o questionamento numa direção que se reconhece como

conflitiva, quando se pensa em um indivíduo “desterritorializado” que necessita adaptar-se a

um contexto local, uma vez que compõe um grupo etário jovem e que vive sob a ordem da

globalização e da mundialização da cultura. Ou seja, compartilha um universo simbólico com

seus pares que advém de diferentes partes do território mundial.

No papel de familiar de uma candidata, ao participar de duas entrevistas que

compunham o processo de seleção, foi possível observar que os questionamentos da

entrevistadora tinham a intenção de mapear o cotidiano, os hábitos de sociabilidade, o

desempenho escolar, o relacionamento familiar e as perspectivas futuras da adolescente.

Foram evidentes os sinais de aprovação, quando as respostas remetiam ao acesso e ao uso

sistemático da internet, a referência naturalizada de produtos globalizados e uma comunicação

eficaz através de uma língua estrangeira, no caso o inglês. Sob esse aspecto, abrir-se (ainda

que superficialmente) às referências do mundo globalizado, inseria a jovem dentro dos

critérios avaliados.

A participação8 das camadas médias em intercâmbios culturais é uma prática que vem,

contemporaneamente, sendo aderida por um número crescente de jovens. Encontramos no

mercado, por exemplo, revistas especializadas em intercâmbios culturais.

A revista Veja veiculou uma edição especial – Jovens – na qual dedicou uma

reportagem para tratar sobre estes intercâmbios.

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Consultas realizadas na internet, a partir da expressão “intercâmbio cultural”,

resultaram em dezenas de sites disponíveis que tratam do assunto, apontando a força que tem

essa prática na contemporaneidade.

As trajetórias dos intercambistas

Para a elaboração deste trabalho foram realizadas três entrevistas semi-estruturadas com

intercambistas que participaram do Programa AFS. Duas entrevistas (Fernanda e Alessandra)

foram com estudantes que viajaram em períodos recentes e a outra (Beth) com uma

participante do intercâmbio há 32 anos. Entre elas, Elisabeth e Fernanda atuam como

voluntárias do Comitê AFS/Porto Alegre.

Elizabeth Dornelles Torres Machado, 50 anos, possui curso superior (biblioteconomia) é

residente em Porto Alegre, no bairro Rio Branco. É funcionária da Caixa Econômica Federal,

casada com um professor universitário e tem uma filha, Fabíola, que participou do Programa

em 2003. Elisabeth que atua como voluntária desde 2002 - momento em que a conheci através

desta sua atividade – relata as motivações familiares e pessoais que a levaram a participar

deste programa de intercâmbio:

Meus pais eram funcionários públicos estaduais - meu pai fiscal do ICMS e minha mãe técnica de finanças - os dois da Secretaria da Fazenda. Nasci e sempre morei em Porto Alegre. A idéia do intercâmbio surgiu da minha mãe em conversa com a vizinha , contando que o filho iria fazer. Minha mãe gostou da idéia e conversou comigo ... deve ter conversado antes com meu pai. No início não me interessei, mas aos poucos fui pensando nas vantagens - viajar, como queria sair do Anchieta não teria problema de colégio na volta, e um motivo um tanto infantil e de uma pessoa de baixa auto-estima como eu era naquela época - muito acentuada - eu faria uma coisa que minhas primas não fariam ou eu teria feito antes. Vou explicar para ti - eu era considerada a que não namorava, não ia a festas, era considerada gorda... Não pensei tudo em função de minhas primas, me dava super bem com elas, mas em função das tias que viviam me desvalorizando. Não que este motivo tenha sido o principal, mas levei em conta ... nunca contei isto para ninguém. és a primeira a quem revelo! ... praticar o inglês; ver de perto o que via no cinema; conhecer novas pessoas ... e o the way of life nos Estados Unidos. Meus pais me incentivaram muito. Para eles era uma viagem de estudos e para praticar o inglês, pois estudava no Cultural. Meus pais eram de classe média. Para eles o estudo era muito importante e nunca pouparam para nos dar bons colégios e condições de aprendizado, por exemplo o intercâmbio. Dos três filhos só eu fui intercambista. Os outros dois não estudaram inglês o suficiente para viajarem - condição essencial para meus pais.

Outra entrevistada, Alessandra Yuli Terazaki, 21 anos, é estudante de graduação no

curso de Relações Internacionais (Unilasalle). Mora em Flores da Cunha, mas passa a semana

em Canoas para cursar a faculdade, participou do Programa em 2002 na Suécia:

O Comitê da região da serra é muito forte, há uma divulgação grande do AFS. Minha história pessoal contribuiu para participar do Programa: meu pai é japonês, mora no Japão e é pedreiro. Vem ao Brasil nas festas de fim de ano. Minha mãe é descendente de italianos, nasceu em Flores da Cunha e passa seis meses no Japão,

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trabalhando com meu pai ... ela anota as obras que ele faz, materiais utilizados e o tempo trabalhado. Sou filha única, mas moramos junto com a família da mãe, num mesmo terreno. Então tenho os meus primos que considero meus irmãos. O intercâmbio foi a melhor coisa que fiz na minha vida e pretendo retornar para rever minha família e os amigos que deixei. A escolha do curso que faço [na faculdade] é resultado dessa viagem. Quero viver no mundo e voltar para matar a saudade.

A terceira entrevistada que contribui para a reflexão apresentada neste trabalho é

Fernanda Vasconcellos, 17 anos, estudante. Prepara-se para o vestibular, mora com os pais9

em Porto Alegre, e atua como voluntária desde o seu regresso do Intercâmbio, em janeiro de

2005.

A decisão de fazer o intercâmbio foi minha, estimulada por minha família e um tio que fez o Programa em 1975. Essa foi a condição dos meus pais – eu teria que viajar pelo AFS. Fiz o Intercâmbio em 2004/2005. Fui para Auckland, na Nova Zelândia. Minha mãe é professora e meu pai é administrador de empresa. Tenho uma irmã casada, farmacêutica, que mora perto de minha casa. Estudei nos Colégios Rosário e Leonardo da Vinci e de lá é a maioria dos meus amigos. Pretendo cursar a faculdade de jornalismo, especializar-me em jornalismo internacional ou no Instituto Rio Branco e seguir a diplomacia. Quero para o meu futuro isso: viajar o mundo.

Os relatos dos participantes entrevistados revelam essencialmente algumas questões: o

projeto do intercâmbio é uma escolha pessoal, mas está inserido em um projeto mais amplo

que é familiar ou do grupo social que está inserido. Um dos aspectos importantes é a

recomposição da trajetória desses sujeitos que está diretamente relacionada à construção de

identidade (VELHO, 1997:68) que envolve, além das diferentes gerações, a interação com

outros parentes das suas redes e, na continuidade, outras tradições. Ou seja, a família, nesse

universo determinado de classes médias, comporta muitos significados que constituem um

todo mais ou menos sistemático, harmonioso ou não.

O depoimento de Elisabeth contrasta com as outras intercambistas em relação aos

desejos sobre o futuro. Essa questão pode ser importante para refletir esse projeto amplo

associado a um momento histórico e social:

Ao retornar continuei a estudar inglês, dei aula de inglês para crianças. Somente no outro ano voltei a estudar. Voltei mais amadurecida. Foi uma experiência de dimensão altamente positiva para minha vida. Tudo até hoje tem reflexos daquela época. Não sei descrever a importância que teve - só que foi muito grande.

Ao trazer aspectos significativos da trajetória desses diferentes atores sociais, encontro

um projeto comum de viver experiências diversas em outra cultura e que estão inseridos num

projeto maior de capacitação e desenvolvimento de habilidades que coloquem esses sujeitos

em um mundo que é “transnacional”. “Cabe, portanto, pensar que as motivações desses

sujeitos estão inseridas em um projeto mais amplo: constrói-se através de uma idéia mais ou

menos elaborada de biografia, de uma história de vida” (VELHO, 1997, p.69).

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Elisabeth aponta algumas preocupações que teve com a distância da filha quando esta

participou do intercâmbio cultural. Mesmo tendo vivido essa experiência e transmitido para a

filha Fabíola, ela teve muita dificuldade de adaptar-se, pois sua família hospedeira morava em

uma propriedade rural distante da cidade e ela dependia de carona para ir até lá.

Após a ida de Fabíola mantínhamos uma correspondência (via e-mail) diária que, aos poucos, passou a ser menos freqüente. A sensação que sentíamos é que isso era fruto da adaptação ao novo lugar, à nova vida. Após três ou quatro meses ela nos contou, eufórica, que havia sonhado “em inglês”. A adaptação parecia ter sido finalmente, conquistada. Senti-me aliviada. Ela estaria dali para frente feliz.

A transculturação corresponde à aquisição de novos códigos culturais sem que se perca

os códigos culturais antigos, é viver em um espaço singular, como aponta, a partir de sua

experiência pessoal, Todorov:

[...] por fora e por dentro: estrangeiro “na minha casa” (em Sófia), em casa “no estrangeiro” (em Paris) [...] Para alcançar a transculturação antes é preciso passar pela aculturação; para poder se desligar com sucesso de uma cultura, é preciso começar pelo autodomínio, pelo “falar” (1999, p. 26).

Outra questão importante a ser analisada é em relação ao desenraizamento que o

Programa provoca. Nas palavras pontuais de Alessandra pode-se observar:

Ao chegar lá (Suécia), custei a me adaptar: era a língua, costumes muito diferentes, alimentação, tarefas diárias, escola. Sentia muita saudade de casa... Mas, em 2 ou 3 meses, já me senti bem e feliz. Assim segui o restante do ano. Quando estava super adaptada era hora de retornar e, o pior, sem saber quando poderia voltar à Suécia e rever os amigos, a família. Quando voltei para o Brasil sabia o que encontraria, mas foi diferente: eu tinha mudado, as pessoas nesse um ano tinham mudado... Eu fiquei perdida, não sabia onde era o meu lugar.

As transformações provocadas pela aquisição de novos códigos traduz a noção de

desenraizamento não limitada a espaços geográficos. O desenraizamento vai além, ele remete

a aquisição de “visões desenraizadas”, como descreve Todorov:

[...] Minha dupla vinculação produzia apenas um resultado: aos meus próprios olhos, ela surpreendia por inautenticidade de cada um de meus dois discursos, já que cada um podia apenas corresponder à metade de meu ser, ou então eu era um duplo. Fechei-me novamente no silêncio opressor. (1999, p. 19).

Em outro trecho Todorov dá profundidade a essa questão quando afirma:

O homem desenraizado, arrancado de seu meio, de seu país, sofre em um primeiro momento: é muito mais agradável viver entre os seus. No entanto, ele pode tirar proveito de sua experiência. Aprende a não mais confundir o real com o ideal, nem a cultura com a natureza: não é porque os indivíduos se conduzem de forma diferente que deixam de ser humanos. Às vezes ele fecha-se em um ressentimento, nascido do desprezo ou da hostilidade dos anfitriões. Mas se consegue superá-lo, descobre a curiosidade e aprende a tolerância. Sua presença entre os “autóctones” exerce por sua vez um efeito desenraizador: confundindo com seus hábitos, desconcertando com seu comportamento e seus julgamentos, pode ajudar alguns a engajar-se nesta mesma visão de desligamento com relação ao que vem naturalmente através da interrogação e do espanto. (p. 27)

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Nessa mesma direção, a Folha de São Paulo, no caderno de empregos, em 31 de julho

de 2005, traz uma reportagem cuja manchete é “Exílio” que trata dos diferentes tipos de

profissionais, em geral jovens, que deixam o Brasil para trabalhar em subempregos em países

da Europa ou nos Estados Unidos. Essa reportagem traz uma avaliação de uma professora do

Instituto de Psiquiatria da USP que revela que “o ingresso e retorno são movimentos

migratórios e apresentam dificuldades comuns. [...] O contato com outra cultura faz com que

o estrangeiro sinta estranhamento ao que fazia parte de seu sistema de valores”. Ainda, há o

depoimento de uma nutricionista de 24 anos que viveu na Inglaterra por 2 anos com uma

jornada de trabalho de quase 20 horas diárias que retornou recentemente e afirma: “estou

perdida desde que cheguei ao Brasil”.

O retorno ao Brasil foi relatado nas três entrevistas como um momento de profunda

desarmonia interior. Havia o desejo de voltar e rever todos os seus, mas a saída do país

hospedeiro podia significar nunca mais rever aquele “espaço” em que construíram novas

amizades e interações sociais, compartilharam novos significados sobre o vivido e onde

construíram outras concepções sobre o mundo.

Quando faltava mais ou menos um mês para retornar havia aquela sensação de querer ficar mais e ao mesmo tempo querer voltar. Ficar para aproveitar mais, pois levei uns três meses para me adaptar completamente. Três meses comecei a ficar bem, fazer algumas visitas a outras pessoas (raro, mas fiz). Queria mais tempo para tirar mais proveito de tudo. Ao mesmo tempo queria voltar para minha família, meus amigos, minha língua (mesmo que falasse português diariamente), meu quarto,

Fotografias de Fernanda com os amigos e em um show de dança Maori na Nova Zelândia

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minhas coisas. Não me lembro sobre minha readaptação. Ela não me marcou. (Elisabeth)

Eu senti medo de voltar. Eu não me sentia a mesma pessoa que tinha saído de lá, mas achava que as pessoas estariam iguais de quando eu as deixei. Pensava que eu não queria mais para a minha vida as mesmas coisas que os meus amigos queriam. Eu achei que ia me sentir sozinha... Quando eu cheguei vi que todos tinham mudado um pouco, mas eu tinha mudado muito. (Fernanda)

Eu não queria voltar já, eu queria ficar mais um pouco. Estava com saudade dos meus primos, minha família, meus amigos, mas ia deixar muitos amigos e outra família que não me acolheu porque tínhamos o mesmo sangue.” (Alessandra)

O discurso passa pela questão conflitiva - em discussão nos dias atuais -: a globalidade e

a localidade. O sentido atribuído à volta é o de retorno ao confinamento do local, onde o

passado de cada uma das intercambistas estava junto aos amigos e à família. A experiência do

Programa possibilita conhecer a liberdade da opção que, em contrapartida, transformou-a em

uma dimensão espacial.

[...] As identidades culturais não são apenas nacionais, existem outras, ligadas aos grupos pela idade, sexo, profissão, meio social; em nossos dias todos já vivemos, ainda que em níveis diferentes, esse reencontro de culturas no interior de nós mesmos: somos todos híbridos. A origem cultural nacional é simplesmente a mais forte de todas, porque nela se combinam os traços deixados – no corpo e no espírito – pela família e pela comunidade, pela língua e pela a religião. (TODOROV, 1999, p. 26)

Fotografia de Fernanda e o grupo de intercambistas latino-americanos AFS em viagem a Nova Zelândia

Fotografias de Fernanda e o grupo de intercambistas brasileiros AFS em deslocamento para a Nova Zelândia

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Conclusão

As experiências familiares e pessoais promovidas pelo Intercâmbio Cultural e o

Programa Escolar que busquei analisar nesse artigo tem no seu fundamento desenvolver “o

aprendizado intercultural”. Pela expressão, compreende-se conquistar uma visão ampla sobre

a diversidade cultural em meio aos problemas de ordem mundial, aprimorar as relações

interpessoais, estimulando a capacidade adaptativa a circunstâncias sociais em constante

alteração, como também desenvolver valores e habilidades pessoais para inserir-se em

diferentes contextos e expectativas sociais.

Os processos de adaptação dos adolescentes, participantes do Programa Escolar, estão

vinculados a essa faixa etária (pode-se pensar como um estágio da vida em que os nexos

sociais ainda estão em fase de consolidação) e estão centrados em dois eixos bem definidos: a

escola e a família. Por um lado, é colocada a possibilidade de uma vivência de situações em

uma ordem global e, por outro lado, estabelece-se essa vivência dentro de contextos de ação

mais tradicionais. É uma das muitas facetas da dinâmica cultural, onde a tradição (família e

escola) se moderniza ao abrir “fronteiras” e a modernização que aciona a tradição no seu

interior. Essa situação traz a problematização de sujeitos que vivem as tensões entre o global e

o local, o Si e o Outro, as múltiplas identidades contemporâneas.

A conquista de um novo sistema simbólico está contida em um projeto maior,

“formulado dentro de um campo de possibilidades, circunscrito histórica e culturalmente,

tanto em termos da própria noção de indivíduo como dos temas, prioridades e paradigmas

culturais existentes” (VELHO, 1997, p. 69).

Observou-se que as trajetórias vivenciadas pelos intercambistas favoreceram a

flexibilidade para a apreensão de novos significados e também apontam a forma como os

códigos culturais foram por eles negociados e articulados, frente à diversidade de um conjunto

de representações mais prosaica, como as que remetem ao espaço da família e da afetividade.

As zonas de contraste - que são reveladoras das novas dimensões simbólicas absorvidas - têm

os eixos família e escola enquanto espaços que operam nos aspectos mais íntimos da vida dos

sujeitos, o estímulo para os contatos sociais e interpessoais.

Os relatos denotam aspectos importantes no quais se percebe uma diferença

“geracional” significativa sob a apreensão dos novos códigos e a sensação de

desenraizamento. As jovens que retornaram recentemente mostraram-se apreensivas com a

readaptação e estabeleceram objetivos de construir o futuro voltado para a mobilidade entre os

espaços culturais, diferente de Elisabeth que fez o intercâmbio há 32 anos atrás. O que leva a

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refletir sobre uma alteração nas estruturas temporais e espaciais que caracteriza um mundo

cultural transnacional.

O Intercâmbio Cultural - e o Programa Escolar em específico - traz no seu interior os

propósitos da sociedade complexa e o processo de mundialização numa contemporaneidade

marcada pela alteração dos conceitos de espaço e tempo, por novas concepções sobre

identidade e pelas formas de negociação frente a diversidades e diferenças culturais. Nesse

sentido, as experiências vivenciadas por adolescentes nos Programas de Intercâmbio Cultural

favorecem os processos de construção de uma identidade transnacional.

Referências Bibliográficas

BECK, Ulrich. “The Cosmopolitan Society and its enemies”. In: Theory, Culture and Society. London: Sage, 2002. CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e Cidadãos. RJ: UFRJ, 1999. GIDDENS, A. Modernidade e Identidade. RJ: Jorge Zahar, 2002. GIDDENS, A., BECK, U., LASH, S. Modernização Reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. SP: UNESP, 1997. ORTIZ, Renato. Modernidade-mundo e identidades. In: Um outro território. Ensaios sobre a mundialização. São Paulo. Olho d’Água, s/d, p. 67-89. TODOROV, Tzetan. O homem desenraizado. RJ: Record, 1999. TURNER, Terence. Anthropology and Multiculturalism: What is Anthrop ology that Multiculturalists Should Be Mindful of It? London: Cultural Anthropology, 1993. VELHO, G. Individualismo e Cultura: Notas para uma Antropologia da Sociedade Contemporânea. RJ: Jorge Zahar, 1997. VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose. Antropologia das sociedades complexas. RJ: Jorge Zahar, 1994. Imagens As imagens fazem parte de acervo fotográfico da autora do artigo. 1 O presente artigo é fruto de aspectos que permeiam o estudo que está sendo desenvolvido para a defesa de tese de doutoramento em Antropologia Social (PPGAS/UFRGS) sob orientação da Profa. Dra. Cornelia Eckert. A reflexão teve origem na monografia elaborada para a disciplina “Seminário de Doutorado”, ministrada pelo Prof. Dr. Ruben Oliven. 2 Doutoranda em Antropologia Social pelo PPGAS/UFRGS sob orientação da Profa. Dra. Cornélia Eckert.. Professora e pesquisadora do Centro Universitário La Salle (Unilasalle/Canoas-RS) 3 American Field Service Intercultural Programs 4 O uso dessa expressão foi observado em matérias de divulgação de alguns programas de intercâmbio, bem

como por um curso de línguas distribuído em grande parte do território nacional. 5 Os países que participam do Programa Escolar anual são: África do Sul, Alemanha, Áustria, Austrália, Bélgica,

Canadá, Costa Rica, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Finândia, França, Holanda, Hong Kong, Hungria, Islândia, Itália, Japão, Letônia, Noruega, Nova Zelândia, República Tcheca, Rússia, Suécia, Suíça, Tailândia e Turquia.

6 Os valores variam entre US$5.500,00 a US$7.500,00.

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7 Música pop, programas da MTV, t-shirt, surf, fast food 8 De forma significativa, paralelamente a este momento, ingressei como professora no Centro Universitário La Salle (Unilasalle – Canoas/RS), e em minha primeira turma, ministrando a disciplina de Sociologia, dos seis alunos do curso de Relações Internacionais que freqüentavam essa disciplina, quatro já haviam participado de intercâmbios culturais e afirmavam categoricamente terem escolhido esse curso de graduação para, no futuro, trabalhar em outros países. 9 Fernanda é minha filha.