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MODO DE VIDA CAMPONÊS NA CONTEMPORANEIDADE
Arlete Mendes da Silva LAGECULT
Universidade Federal de Uberlândia - UFU [email protected]
Jaqueline Borges Inácio
LAGECULT Universidade Federal de Uberlândia - UFU
Resumo Sabe-se que as categorias são conceitos que exprimem as diversas relações estabelecidas entre ideias ou fatos. Elas expressam aspectos fundamentais das relações dos homens entre si e com a natureza, são construídas através do desenvolvimento do conhecimento e da prática social. Neste trabalho, nosso interesse é discutir a categoria camponês enquanto conceito de trabalho, pesquisa e identificação social. Existe um modo de vida camponês? O manejo do teórico e do empírico vão mostrando os possíveis caminhos da pesquisa, do querer saber, do descobrir, da ‘leitura’ da realidade. As coisas no mundo mudam e o sentido delas também. O que faz o camponês, tal qual a junção da palavra campo + o sufixo nês = camponês ser do campo e pertencer ao campo? Palavras-Chave: Categoria. Camponês. Cultura. Modos de vida
Introdução
Como se dá a história de um conceito? Quais elementos delineiam os conceitos teóricos
e práticos? Como se apropriar de determinado conceito ou categoria numa realidade
objetiva? Qual a vida útil de um conceito? A partir dessas questões abrimos uma
discussão sobre os modos de vida e o “ser” camponês. Qual seria a estrutura de análise
que dá sustentação teórica a categoria camponês para que esta possa responder às
questões postas no movimento da realidade observada? Eis por que a categoria, o
conceito, a ideia do ser, da coisa, do ente pode nos remeter a construções históricas,
científicas, sociais, espaciais e também culturais.
De igual modo paira em nós uma insatisfação teórica (filosófica?) no que tange ao
objeto / sujeito a ser estudado. Crê-se que o manejo do teórico e do empírico vão
mostrando os possíveis caminhos da pesquisa, do querer saber, do descobrir, da ‘leitura’
da realidade sem deixar que o teórico engesse o empírico, mas, que pelo primeiro se
explique o segundo em uma investigação científica.
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Num esforço ontológico na busca do saber, seria na filosofia que encontraríamos tais
caminhos? A busca pela compreensão do ser, a insatisfação e crise que a ciência e a
própria filosofia sofreram (e ainda sofrem) pode nos auxiliar na compreensão de
questões humanas ligadas a natureza, aos mitos, a reprodução econômica e social, a
cultura, à sociedade?
Como bem lembrou Oliveira (A Filosofia na Crise da Modernidade, 1989), o homem
percebeu que não só as coisas no mundo mudam, mas o próprio mundo muda e, por
isso, a crise de ‘sentido’ e de ‘valor das coisas’. Nesse tempo de crise percebe-se que a
relatividade aumenta, as possibilidades se multiplicam, os sentidos se metamorfoseiam
e as certezas de antes não passam de impressões voláteis do presente.
Nesse distúrbio da razão e das teorias clássicas os conceitos e as categorias tentam
atordoados, colocar ‘ordem’, uma sistematização de ideias, de elementos e de
conhecimentos para tentar ordenar a desordem da modernidade na ciência, na política,
na cultura, nos modos de vida e na construção / compreensão do cotidiano. É a
contraditoriedade da vida e do fazer humano porque o mundo é contraditório como as
pessoas que o fazem também as são.
Talvez não seja demais lembrarmos a célebre frase de Marx: “Tudo o que é sólido
desmancha no ar” que não se referia a aviões se desintegrando a dez mil pés de altitude e sim
a uma feliz metáfora para definir ideologias, formas de governos e modos de produção que
nasceram, vingaram, desenvolveram e também ruíram, como num ciclo de vida e morte quase
natural e linear (começo, meio e fim). Marx imaginava que o capitalismo teria o mesmo fim,
não derrotado por outro modelo – um antagonista econômico, mas findado por ele próprio
numa existência dialética.
Concomitantemente, num exercício didático, perguntaríamos: que são categorias e
conceitos na ciência moderna (ou pós-moderna)? De forma simples podemos afirmar
que as Categorias são formas de ser, características da existência. São elementos
constitutivos de processos sociais, como percebidos por uma teoria ou visão do mundo
(paradigma). De particular interesse são as categorias fundamentais, a partir das quais
podem se construir categorias derivadas. Em uma teoria, as categorias da existência são
cobertas / engendradas por conceitos. Lembrando que Conceitos de uma teoria que não
correspondem a categorias concretas são pseudo-conceitos, conforme a Teoria do
Conhecimento.
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Desse modo, o conceito refere-se às propriedades essenciais que caracterizam um
determinado grupo de fenômenos. Num nível de pensamento anterior ao conceito, a
percepçãoi nos permitiu distinguir fenômenos individuais. Mais tarde, a ciência (ao
descobrir a essência dos fenômenos), estabeleceu agrupamentos, os quais permitiram
formular conceitos. Conceito, então, é uma forma superior do pensamento; uma forma
abstrata e geral das características dos fenômenos da realidade, uma elaboração da
consciência.
As categorias são formas de conceito porque também refletem as propriedades
essenciais dos objetos, dos fenômenos. Mas não é a mesma coisa. Enquanto o conceito
se refere a um fenômeno ou a um grupo maior ou menor de fenômenos, a categoria é
universal, está em todos e em cada um dos objetos que abrange, não se limitando a um
fenômeno ou a um grupo destes. De fato, a passagem do pensamento do nível de
conceito para o de categoria filosófica foi demorada, representando um
desenvolvimento, uma evolução do pensamento intelectual do ser humano.
Existem categorias filosóficas e categorias científicas que são categorias próprias de
cada ciência configurando um tipo de conhecimento científico. As categorias filosóficas
refletem as propriedades essenciais, universais e comuns a todos os objetos, fenômenos,
coisas. Por exemplo: todos os objetos possuem “espaço”, “contradição”, “tempo”,
“essência”, “realidade”, etc., que são categorias filosóficas. Desse modo o
conhecimento se dá como um processo de penetração infinita na essência dos
fenômenos que tem uma perspectiva ou um movimento do inferior para o superior, do
simples ao complexo.
De fato, pensando e refazendo a longa estrada que marca a purificação das categorias
com o passar dos tempos histórico e científico, tem-se, como exemplo, a cultura uma
categoria que carrega consigo múltiplos signos, significados, significantes... num dado
espaço e tempo. Por isso, conseguimos identificar, em muito do que lemos, pensamos e
dizemos, as ‘marcas’, formas decodificadoras de imagens, memórias e realidades num
continuum decifrar e interpretar de culturas numa diversidade de conceitos que lhe dá
sustentação (HERDER apud WILLIAMS, 1992). Não obstante, a cultura enquanto
categoria científica entendida no sentido stricto sensu da academia e, também, no macro
(e não poucos modos de cultura existentes ‘lá fora’) se verifica na premissa: a cultura
sempre teve significados diferentes, mesmo sendo a mesma coisa! Dá-se, também, que a
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categoria filosófica se torna científica adquirindo múltiplos significados, portanto vários
conceitos dependendo de qual fenômeno se dá a abordagem teórica.
E mais, nos diferentes universos e sistemas simbólicos, a Cultura traduz da natureza
para a coisa o processo construtivo dos grupos humanos – sociedades – em feixes de
significados! Coisas que a humanidade produz e consome: a ‘civilização’ (categoria
universal) material juntamente com as representações coletivas (categoria filosófica)
dos grupos sociais. Num processo de invenção e acumulação do conhecimento. Daí a
sentença: o tempo muda as formas, mas, as bases são as mesmas.
Para relacionar esse saber teórico sobre categorias e conceitos tem-se o ‘ser’ caipira e o
‘ser’ camponês... metaforicamente pensando a mesma moeda e várias faces! Não seriam
categorias diferentes com conceitos semelhantes? Pode ser. Entretanto, em tempos pós –
modernos, é pertinente falar em homem do campo de forma genuína? É possível
identificar o sujeito rural / rurícola, ou o caipira, como diria Antonio Cândido (1964)? O
que faz o camponês, tal qual a junção da palavra campo + o sufixo nês = camponês ser
do campo e pertencer ao campo?
Modo de vida camponês: práticas sociais antigas em tempos modernos
Bem se sabe que analisando as práticas sociais do sujeito pode-se compreender melhor
o espaço em que vive. O sujeito se representa no espaço com informações recebidas que
vão balizar sua consciência possível com base numa consciência real, explica Goodman
(1972) numa competente análise sobre a “importância do conceito de consciência
possível para a comunicação”. Também é pela comunicação / linguagem que se dá a
conhecer a consciência possível e real dos sujeitos, seus sentimentos, suas aflições e
seus sonhos; Da mesma forma vê-se expressa as impossibilidades, os medos, os
fracassos, as resistências e existências como sentimentos, sensações e atitudes ligadas
ao modo de vida marcados no tempo e no espaço.
No campo esses sentimentos estão postos e vividos numa contingência que não cabe
muita simulação. A vida dura que se faz ser vista e ouvida à luz do dia e nos intempéries
noturnos dão o tom da realidade experimentada por muitos que fazem da lida no campo
seu modo e meio de vida. Mesmo nessa realidade nota-se o sentimento de
pertencimento como elemento importante que identifica o camponês (ou caipira); Nesse
caso nem mesmo a pobreza, dificuldades e conflitos fazem com que o sujeito perca sua
afeição e pertença com o lugar.
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Essa situação contraditória denota também os traços da tradicionalidade e modernidade
contida nos modos de vida dos camponeses de ontem e também dos camponeses dos
nossos dias. Ademais, trata-se da lógica dialética de quem eventualmente acumulou
riqueza, modificou hábitos de consumo, tecnificou suas atividades, mas
ideologicamente continua fiel como escreveria Bourdieu (2010) aos habitus e a pertença
camponesa.
O sentimento de ‘pertencimento’, em maior ou menor escala, contribui com a
construção identitária deste homem do campo = camponês numa historicidade que
explica, semanticamente, a utilização do termo em espaços e temporalidades definidas e
identificadas culturalmente. Ademais, ser e pertencer ao campo é diferente do que estar
no campo. São modos verbais que denotam bem essa diferença! O primeiro, no sentido
de fazer parte, num continuum do cotidiano rural e o segundo numa condição pré-
determinada e/ou almejada pela sua finitude (ex.: trabalhos temporários - bóias-frias -
do campo em épocas de plantio, colheita e/ou pequenos agricultores sem recursos para
‘tocar’ sua roça, entre outros). Nesse contexto, muitas vezes, traduz-se as motivações
que, não raro, leva os camponeses (do primeiro grupo) a se manterem sendo e
pertencendo ao campo, mesmo em meio aos revezes e desafios que se descortinam na
realidade das comunidades tradicionais rurais.
Apesar do sentimento de ‘pertencimento’ estar intimamente ligado ao ‘ser ‘ e ao ‘ ‘fazer
parte de’ convém-nos aprimorar e esclarecer este sentimento que, neste ensaio, toma
forma de identificação e ação do sujeito(s) ou do(s) grupo(s) social(is) que se sente
ambientado e integrado ao lugar. Este, fazendo parte do ‘seu’ mundo, sentimentos e
afeições. É esta dimensão espacial que ampara o ser e o estar do sujeito social, também
no âmbito do lugar rural.
De forma análoga, não estaria o caipira também privilegiado por essa categoria de
análise – pertencimento – como alguém que é do campo e está no campo com todas as
características conferidas ao camponês? Lembrando que o termo caipira, empregado por
Antonio Cândido, se refere ao sujeito e/ou homem do campo que tem, em sua lida
diária, o trabalho produtivo com a terra e na criação de animais que em seu contexto
socioespacial o autor chama de vida caipira. Esta representa o conjunto de práticas e/ou
estilo de vida que possui valores e elementos que a identificam, como: a solidariedade e
as relações de vizinhança – meio termo entre as relações familiares e o povoado – esse
como o universo imediato do sujeito e da vida caipira. O termo caipira adquiriu – com
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a incorporação dos padrões modernos de produção, consumo e vivência social – uma
conotação pejorativa e desinformada que não altera seu status como categoria de análise
para estudos sobre a vida no meio rural ou camponesa.
Isto posto, importa-nos ‘amarrar’ a ideia de pertencimento às características identitárias
que são manifestas no ser/estar do homem do campo, no sujeito rural e rurícola,
camponeses ou caipiras. Os camponeses como também os caipiras possuem uma relação
estreita com a terra e com os elementos naturais. O campo e o camponês (caipira) se
concretizam pela ligação íntima do homem com a terra formando o ‘modo de vida’ do
camponês dentro do espaço geográfico, numa socialização espacial real para o homem
do campo (BRANDÃO, 1995).
Nesse contexto, a linguagem torna-se importante elemento cultural mesclada numa
‘fala’ que absorve vários signos (sinais diacríticos) que não fazem parte da linguagem
culta oficial. Entretanto, não deixa de alcançar o objetivo da comunicação que é o
entendimento e promoção do diálogo. Nosso propósito, com este exemplo, é destacar a
importância que a linguagem tem na formação cultural e identitária de pessoas e grupos
sociais haja vista ser a comunicação um pilar da gênese humana e sociocultural.
Conhecida e identificada como uma linguagem caipira (rural e do campo = interior) não
deixa de ser uma manifestação cultural que tem ficado de fora do ensino da língua
portuguesa nos currículos regulares. Ao invés de marcá-la como elemento importante da
identidade cultural rural e valioso patrimônio da cultura regional, ela tem sido colocada
em um plano de subjugação lingüística preterida pelo uso corrente e oficial da língua
culta. Ou, ainda, até mesmo tida como uma forma de comunicação arcaica, depreciada e
rejeitada em prol da absorção de uma linguagem urbana, televisiva, cibernética.
E ainda, em detrimento desse linguajar ‘de raiz’, o que se vê é a promoção de línguas
estrangeiras distante dos nossos costumes e cultura, externa às nossas raízes,
principalmente pelos jovens dos médios e grandes centros urbanos. Ademais, longe de
ser uma forma ‘errada’ do camponês (ou caipira) fazer uso das palavras, é uma
linguagem – dialeto. O filólogo Amadeu Amaral (1976) muito se dedicou aos estudos
da cultura caipira (camponesa) e afirma que é um ‘dialeto’ formado a partir de heranças
indígenas, das línguas colonizadoras, das criações sociais e do português do séc. XV e
XVI que marcam a história e a forma de comunicação de um povo.
Em outra dimensão, é de largo sabido que a economia de mercado criou novas
necessidades também para o homem do campo. Algumas delas foram facultativas,
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podendo o camponês adaptar-se ou não; outras foram imperativas, não deixando
possibilidades para escolha, o que alterou fortemente sua cultura e seu modo de vida.
Este numa singularidade manifesta pela experiência da reprodução com controle sobre o
trabalho, o tempo e os meios de produção numa suposta autonomia da lógica capitalista
dominante (PAULINO, 2006).
Na configuração da existência do camponês a terra torna-se fundamental, haja vista ser
ela a fonte de reprodução da própria condição camponesa. O que se tem visto é que
tanto a linguagem (ou dialeto) caipiraii e o modo de vida camponês resistem e
sobrevivem em muitos contextos espaciais rurais estendendo-se até seus descendentes
nas cidades. É um tipo de linguagem e de modo de vida considerado como sendo de
“resistência” das populações e comunidades rurais ante o avanço demolidor da “cultura”
homogeinizadora trazida pela globalização.
“Ser camponês”: resistência, existência ou a história de uma construção social no
campo?
A vida campesina, o ser camponês, o campesinato são temas polêmicos que se
frutificam na academia entre pesquisadores com o objetivo de melhor compreender e
interpretar essa realidade vivenciada em tempos de forte industrialização no campo e
globalização dos mercados.
Vale lembrar que o termo camponês é complexo e escorregadio haja vista sua história
de existência e resistência para uns e de negação para outros. Shanin (1979) refere-se
ao campesinato como uma estranha classe que vai além do social, do econômico, da
organização produtiva ou de modo de vida. Marques (2008) reforça essa ideia
enfatizando que enquanto o campo brasileiro tiver a marca da extrema desigualdade
social e a figura do latifúndio se mantiver no centro do poder político e econômico –
esteja ele associado ou não ao capital industrial e financeiro -, o campesinato permanece
como conceito – chave para decifrar os processos sociais que ocorrem no campo e suas
contradições. Tais contradições se dão pela forma com que o modo de vida camponês,
simultaneamente, estabelece uma relação de subordinação e estranhamento com o
capital que o domina, mas não o organiza (TAUSSIG, 1980 citado por MARQUES,
2008).
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Pode-se dizer que existem características históricas específicas do ser camponês ou da
campesinidade, além do que já fora dito, soma-se:
o Importância dada a valores éticos que apresenta a terra, o trabalho e a família
como valores morais e categorias nucleantes intimamente relacionadas entre si
tendo como princípios organizacionais a honra, a hierarquia e a reciprocidade
(WOORTMANN, 1990);
o No Brasil, o camponês tem sua história marcada pela mobilidade espacial
(forçada ou não). Isto porque a busca de novas terras é uma importante
alternativa de reprodução social. Em seu modo de vida, o camponês busca obter
o acesso a terra, seu principal patrimônio;
o O ser camponês é uma classe de trabalhador com identidade política (como
exemplo tem-se as Ligas Camponesas) que luta contra a concentração de terras e
a extrema desigualdade social que marca a questão agrária brasileira;
o O campesinato pode abrigar diversas formas sociais baseadas em diferentes
relações de trabalho e de acesso a terra como o posseiro, o parceiro, o foreiro, o
arrendatário, o pequeno proprietário e etc.
o A partir de políticas modernizantes, o termo camponês foi (em parte) substituído
por pequeno produtor por seu caráter operacional e como desarticulador dos
movimentos sociais no campo. Na década de 1990 o termo camponês sofre a
tentativa de ser substituído por ‘agricultor familiar’ numa tentativa (segunda) de
despolitização em torno da discussão da questão agrária no Brasil (MARQUES,
2008).
Nesse processo histórico de acertos, perdas, pequenas e grandes vitórias o camponês
ainda está ‘dividido’ entre teorias e tendências políticas que marcam “três situações” da
mesma realidade que chamaremos de possibilidades:
Possibilidade I = Trata-se daqueles que, como Lênin, via o fim do campesinato dando
lugar a trabalhadores assalariados e a capitalistas no campo; O camponês sucumbiria a
sua incapacidade de resistir à concorrência das grandes empresas agrícolas, posição
também defendida por Kautskyiii.
Com certo desapontamento, Paulino (2006, p. 21) adverte que “é esse debate que
alimenta a visão reducionista da história, a qual reduz os conflitos essenciais da
sociedade capitalista ao embate de apenas duas classes: proletários e burgueses, como se
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os primeiros estivessem imbuídos da tarefa histórica de conduzir o processo de
transformação da sociedade”, opinião também acolhida por Oliveira (2004).
E, ainda, não se pode esquecer as contradições essenciais do modo capitalista de
produção que, para Marx, tem como base a tríade: terra, trabalho e capital (PAULINO,
2006). Nessa vertente o camponês seria uma espécie de ’resíduo’ social que o progresso
capitalista trataria de extinguir ou tornariam proletários (alienados ao trabalho na terra)
como pensa Léo Huberman, Caio Prado Jr, Maria I. P. Queiróz, J. E. da Veiga, José G.
da Silva entre outros. Para esses teóricos o camponês é “alguém que não vende sua
força de trabalho e que não vive da exploração do trabalho alheio, seria no mundo
capitalista apenas um resquício, cuja integração à economia de mercado significará
fatalmente sua extinção” (ABRAMOVAY, 1998, p. 52).
Nesse cenário de possibilidades, ações e estratégias do capitalismo no campo,
Abramovay identifica o agricultor familiar moderno que corresponderia a uma
profissão, diferentemente do campesinato, que constitui um modo de vida. Enquanto
este último apresenta como traço básico a integração parcial a mercados incompletos, o
primeiro representa um tipo de produção familiar totalmente integrada ao mercado e ao
desenvolvimento capitalista. Sem se deter no caráter excludente desse modelo, esse
autor se abstém de falar sobre muitos agricultores que são eliminados por não
conseguirem acompanhar as exigências de uma busca incessante de modernização, e a
crise de superprodução que o ameaça constantemente e que evidencia os seus limites de
produção e de vida (MARQUES, 2008).
Possibilidade II = Mesmo numa agricultura capitalista haveria a permanência do
campesinato. Para Oliveira (2004), “os camponeses, em vez de se proletarizarem,
passaram a lutar para continuar sendo camponeses” (p.35) e ainda “ao mesmo tempo em
que esse desenvolvimento avança reproduzindo relações especificamente capitalistas, o
capitalismo produz também, igual e contraditoriamente, relações camponesas de
produção” (p.36). Como Oliveira, partilha dessa opinião estudiosos do tema como Rosa
Luxemburgo, Teodor Shanin lá fora e aqui no Brasil José S. Martins, Margarida M.
Moura, José V. T. da Silva, Carlos R. Brandão, Alfredo Wagner, Ellen Woortmann,
Regina Sader só para citar alguns. São pesquisadores que buscam compreender, na
lógica contraditória, as transformações que ocorrem no campo brasileiro e alhures.
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Vale ressaltar que uma característica peculiar do camponês brasileiro é ser um migrante,
itinerante e um desenraizado (MARTINS, 1981). Ainda é na posse da terra que este
camponês concretiza seu modo de vida e reprodução social, por isso sua mobilidade
‘errante’ em busca de terra para uso e trabalho. E, ainda, conforme Bernardo Mançano
(2004, p. 51),
O processo de criação e recriação do campesinato tem contato com participação dos trabalhadores desempregados de origem urbana. As ocupações, o avanço e o refluxo o MST, as conquistas e as derrotas dos movimentos camponeses, o crescimento da participação das famílias de origem urbana na luta pela terra, todas essas realidades são indicadores da resistência, gerando conflitualidades à procura de solução, de negociação, de terra, trabalho e dignidade.
O processo de “recampenização” que se verifica possui características de conflitos,
ambigüidades e contradições pelo fato do camponês estar subordinado à lógica
capitalista ainda. Nesse sentido, importa-nos esclarecer que
estamos diante do processo de recriação do campesinato, é necessário advertir que esse entendimento não implica em ignorar as condições mais amplas, próprias de um tempo marcado pela hegemonia do capital. Antes, essa compreensão deriva da premissa de que esse modo de produção é essencialmente contraditório, e é no bojo dessas contradições que se verifica a recriação dessa classe (PAULINO, 2006, p. 23 – grifo nosso).
A recriação do campesinato se dá, além da territorialização promovida pela reforma
agrária, pelas novas configurações de uso e trabalho na terra como o arrendamento, a
parceria, a compra e outras formas de ocupação. É certo que tais processos não se dão
de forma pacífica numa brevidade em seu início, condução e conclusão. É bem verdade
que a conflitualidade faz parte da formação tanto do capitalismo quanto do campesinato.
Bernardo Mançano Fernandes (2004, p. 6) esclarece: “ a conflitualidade e o
desenvolvimento acontecem simultâneos e consequentemente, promovendo a
transformação de territórios, modificando paisagens, criando comunidades, empresas,
municípios, mudando sistemas agrários e bases técnicas... refazendo costumes e
culturas, reinventando modos de vida”.
Possibilidade III = O campesinado se mesclaria a outros movimentos sociais que lutam
por direito a terra e trabalho como os atingidos por barragens – MAB, os seringueiros,
os trabalhadores rurais sem – terra entre outros mantendo sua situação de existência e
resistência. Nessa discussão sobre o camponês atrelado a outros movimentos sociais,
Alfredo Wagner B. Almeida argumenta que a nova estratégia do discurso dos
movimentos sociais no campo, ao designar os sujeitos da ação, não aparece atrelada à
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conotação política que em décadas passadas estava associada principalmente ao termo
camponês (ALMEIDA, 2004).
Dessa forma tem-se a união e formação de associações, conselhos, sindicatos e
movimentos que, juntos, lutam pelo acesso e posse da terra como forma de uso, trabalho
e vida com ênfase nos direitos sociais e de cidadania mais que políticos partidários. Esta
multiplicidade de categorias (grupos) cinde com o monopólio político do significado
dos termos camponês e trabalhador rural politizando não apenas as nomeações de vida
cotidiana e sim as forças sociais que se unem contra uma atitude colonialista
homogeneizante, caracterizando a multiplicidade étnica existente no campo brasileiro.
Daí o reconhecimento das “populações ou comunidades tradicionais”iv em seus saberes
e viveres junto a natureza adquirirem legitimidade política e racionalidade econômica.
Há que se lembrar de que as comunidades rurais tradicionais, os camponeses, têm seu
próprio ritmo produtivo bastante influenciado pela natureza, por suas vivências, pelos
seus saberes e práticas. Nesse aspecto, Santos corrobora com o seguinte depoimento:
Estabelecendo vivências com o cotidiano das comunidades rurais do cerrado mineiro, procurei ouvir os produtores e através dos seus falares fui descobrindo técnicas, saberes e relações “complexas” baseadas em valores e tradições camponesas, mediante as quais os produtores procuram assegurar a sua reprodução social, bem como suas relações com a natureza e com a comunidade. Esses valores envolvem a cultura camponesa e, principalmente, os seus acordos comunitários (2008, p. 136).
Próximo aos modos de vida das comunidades rurais tradicionais de Iraí de Minas
(Triângulo Mineiro), onde o autor estudou “a dimensão cultural das paisagens rurais do
cerrado mineiro” percebe-se que situação semelhante ocorre em outros espaços rurais
mineiros, goianos como também em outros contextos regionais. Muitos desses espaços
rurais estão sendo ‘invadidos’ pelo contínuo avanço da agroindústria (antigos
complexos agroindustriais).
O equilíbrio biossocial há muito existente no meio rural sofre bruscas transformações
com o advento da expansão da indústria no campo para atender as demandas de
produção internas e externas. Do lado do pequeno produtor, do camponês, tal processo
implica em perda da terra e na necessidade de migrar somente com a força de trabalho
que possui. Isto porque “na relação entre as transformações da paisagem e a
metamorfose do camponês, descobriu-se, no elemento humano que vai viver essa
homogeneização das lavouras no cerrado como também em outros espaços, as origens
de sua tradição camponesa, em que produzir os meios de vida implicava o acesso a
terra” (SANTOS, 2008, p.136).
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É bem verdade que a terra é o que liga os meios e os modos de vida do camponês ao seu
lugar – terra – territorium. A terra, seu espaço de produção, trabalho e de vida, não
obstante as ‘forças’ que regem o mundo rural, tem no ser camponês – na
campesinidadev - no seu modus vivendi não apenas a ética e a identidade camponesa,
mas também a cumplicidade e afetividade entre as famílias de uma comunidade rural
tradicional com a terra e a coletividade.
Nesse texto, usamos a metáfora da moeda por acreditarmos que são processos que
envolvem a mesma categoria de sujeitos – camponeses / caipiras / pequeno agricultor -
num mesmo tipo de substrato físico – solo / terra – que buscam alcançar objetivos
semelhantes – posse e uso da terra – que confluem-se no direito de trabalho e
reprodução da vida no campo.
Concluindo: o que eles dizem que são?
Em tempo, retomemos o que dissera Goldmann (1972, p. 8) sobre a consciência,
importante categoria de análise social ser, no que estamos propondo neste estudo, a
consciência de si e para si do camponês importante base para estudo das situações, dos
comportamentos e dos processos de luta pela terra.
Mesmo quando o caminho é muito longo e passa pelo meandro de um encadeamento de aparelhos e de máquinas, no fim das contas, no extremo da cadeia, há um ser humano, e nós sabemos que a sua consciência não pode “deixar passar” seja o que for e como.
Acredita-se que, muito mais que categorizar e conceituar o camponês o fundamental é
saber ouvir o que ele tem a dizer sobre seus anseios, frustrações, desejos, motivações,
inquietações, práticas e modus vivendi. Modos de vida que ele busca manter apesar das
metamorfoses vivenciadas no campo (e também na cidade) e pelas rápidas
transformações impostas pelo capital, pela técnica, pela informação e pelo mercado
globalizado e globalizante.
Ademais, falar sobre camponês, caipira ou pequeno produtor é dizer sobre cultura,
costumes, tradição, meio e modo de vida que vão além do que seu trabalho e sua terra
podem auferir em termos de ‘lucros capitalistas’. Aí o desfio é outro: entender a
dimensão cultural do significado do movimento de luta pela terra, pelo lugar, pelo
espaço de vivência e pela re-produção da vida camponesa.
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Finalizando, fazemos nossas as palavras de Simonetti que exprime bem a relação entre
camponês, terra e construção sociocultural:
(...) e a vida, para esses camponeses, como se verifica em seus relatos, não é somente ter comida, ter casa, mas uma vida plena, uma vida cheia de significados, na qual aquilo que eles crêem tem possibilidade de continuar sendo respeitado e existindo: sua cultura, sua autonomia, sua visão de mundo, sua capacidade de crescer a partir de suas próprias potencialidades, enfim seu universo simbólico (1999, p. 70 – 71).
Notas
i Diz-se de Percepção a capacidade humana que descobre os fenômenos materiais, sem chegar à essência fazendo uso dos mecanismos sensoriais. ii Sobre o dialeto caipira ver carta do professor José de Souza Martins, estudioso de cultura popular e sociólogo, respondendo a um leitor em: http://www.sosaci.rog/balaio2.htm. iii Paulino (2006, p. 39) esclarece que “ quando Kautsky e Lênin, interpretando Marx, sentenciaram o desaparecimento dessa classe (o campesinato), o fizeram num momento crucial do desenvolvimento capitalista, em que a interpretação dos fenômenos sociais estava fundamentada em teses oriundas a análise das profundas transformações urbano-industriais. iv Diz-se das populações, povos e/ou comunidades tradicionais serem grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, possuem formas próprias de organização social, ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando para isso conhecimentos adquiridos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição e pela cultura (OLIVEIRA, 2009). v A categoria campesinidade é tratada a partir da perspectiva adotada por Bourdieu (1962), mais tarde trabalhada por Woortmann (1988) que, em síntese, entendem que a condição camponesa, os valores camponeses, os esquemas de percepção e as metáforas práticas da vida são elementos que caracterizam o ‘jeito de ser’ camponês. Trata-se de um valor, de uma cultura internalizada e que acompanha os indivíduos em sua trajetória, além do espaço rural. Se expressa nas noções de habitus e na hexis corporal, ou seja, na dimensão da história internalizada, na história feita pelos indivíduos.
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