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UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA
CAMPUS I – CAMPINA GRANDE
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA DA SAÚDE
MESTRADO EM PSICOLOGIA DA SAÚDE
PABLO LEONARDO DE MELO
“QUALQUER UM PODE FICAR PERTURBADO”: OS SENTIDOS CONSTRUÍDOS
SOBRE O SOFRIMENTO PSÍQUICO POR USUÁRIOS DE SAÚDE MENTAL
CAMPINA GRANDE - PB
DEZEMBRO/2021
PABLO LEONARDO DE MELO
“QUALQUER UM PODE FICAR PERTURBADO”: OS SENTIDOS CONSTRUÍDOS
SOBRE O SOFRIMENTO PSÍQUICO POR USUÁRIOS DE SAÚDE MENTAL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Psicologia da Saúde (UEPB),
em nível de Mestrado, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em
Psicologia da Saúde.
Linha de Pesquisa: Processos Psicossociais e
Saúde.
Orientadora: Profa. Dra. Thelma Maria Grisi Velôso
CAMPINA GRANDE - PB
DEZEMBRO/2021
PABLO LEONARDO DE MELO
“QUALQUER UM PODE FICAR PERTURBADO”: OS SENTIDOS CONSTRUÍDOS
SOBRE O SOFRIMENTO PSÍQUICO POR USUÁRIOS DE SAÚDE MENTAL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Psicologia da Saúde (UEPB),
em nível de Mestrado, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em
Psicologia da Saúde.
Linha de Pesquisa: Processos Psicossociais e
Saúde.
Aprovada em: 30/09/2021.
BANCA EXAMINADORA
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde - PPGPS/UEPB
Professora Orientadora e Presidente da Banca Examinadora
_______________________________________________________
Profª. Drª. Maristela de Melo Moraes
Programa de Doutorado Interinstitucional em Psicologia Clínica (DINTER) - USP/UFCG
Membro titular externo
Prof. Dr. Pedro de Oliveira Filho
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde - PPGPS/UEPB
Membro titular interno
Profª. Drª. Thelma Maria Grisi Velôso
Dedico este trabalho à memória de minha
mãe, Dona Mazé.
AGRADECIMENTOS
Sou grato, em primeiro lugar, aos meus pais, que se esforçaram para me incentivar para a
empreitada na educação e na escolarização, e a todos os familiares que foram essenciais;
A minha orientadora, Thelma Maria Grisi Velôso, que guiou a construção deste estudo com
muita competência e perspicácia, quando o desenvolvimento me pareceu tão complicado;
Aos Professores Pedro de Oliveira Filho e Maristela de Melo Moraes, que, gentilmente,
aceitaram o convite para compor a banca e me possibilitaram reconstruir esta dissertação de vários
ângulos muito preciosos;
A Edgley Duarte, que, na análise, sempre me acolhe em “perlaboração” de angústias, e a
Ana Ocileide Bezerra, que, em supervisão, potencializa e amadurece meu percurso clínico;
Aos calorosos amores e amigos(as) Tevez, Leandro, Maria Smith, Joanna e Farah, por quem
tenho uma intensa estima e respeito, além da compreensão racional;
Aos companheiros de trilhas, de acampamentos e de rapel, que serviram de alento e
compuseram boas memórias, em dias tão densos, por causa da rotina e das intempéries da vida;
Ao Espaço Terapêutico Mosaico e à Secretaria de Educação de Olivedos, que, por meio dos
clientes, dos colegas, dos gestores, dos professores, dos pais e dos alunos, apostam em si ao
depositar confiança em meu trabalho;
Ao SUS e à Ciência, que, apesar de uma necropolítica de retrocessos, me possibilitaram ser
vacinado com o antígeno para uma pandemia que ceifou milhares de vidas;
A todos os sujeitos envolvidos na produção e na execução dos vídeos tão valiosos, para que
eu continuasse a aprimorar a escuta dos sentidos que a fala tem;
Destarte, registro minha consideração a todos os que são especiais para mim, que deixaram
suas marcas e engrandeceram minha vida. Meu carinho e gratidão.
Evoé!
"Gosto de ser gente porque, mesmo sabendo que as
condições materiais, econômicas, sociais e políticas,
culturais e ideológicas em que nos achamos geram
sempre barreiras de difícil superação para o
cumprimento de nossa tarefa histórica de mudar o
mundo, sei também que os obstáculos não se
eternizam."
Paulo Freire
RESUMO
Na história da humanidade, a loucura foi concebida de diversas formas: com significado místico,
na Idade Média, como doença mental, com o advento da Psiquiatria asilar, e como sofrimento
psíquico/transtorno mental, com o surgimento do movimento reformista. Para compreender como
os usuários de saúde mental concebem a loucura atualmente, o objetivo deste trabalho foi de
analisar os sentidos produzidos sobre o sofrimento psíquico por essas pessoas em vídeos de
domínio público. Os objetivos específicos foram: analisar como o surgimento e a permanência do
sofrimento psíquico foram construídos nas narrativas desses sujeitos; identificar os discursos
(religioso, asilar, reformista etc.) que referenciaram o sentido que eles atribuem ao sofrimento; e
investigar o posicionamento dessas pessoas acerca do diagnóstico elaborado pelo saber médico.
Para desenvolver este estudo, adotou-se a perspectiva teórico-metodológica da proposta da
produção de sentidos a partir da análise das práticas discursivas. Trata-se de um estudo de natureza
qualitativa, com caráter exploratório, para cujo desenvolvimento foi feita uma pesquisa
documental. Foram utilizados os vídeo-documentários ‘A loucura entre nós’ e ‘Estamira’ e a
conferência ‘I am not a monster: schizophrenia’. As narrativas foram submetidas à análise de
discurso, de acordo com a proposta dos mapas dialógicos (Nascimento, Tavanti; Pereira, 2014).
Nos relatos analisados, alguns usuários referenciaram o sofrimento psíquico recorrendo ao discurso
da Psiquiatria asilar, no entanto, alguns se posicionaram de forma contrária a esse saber. O discurso
místico-religioso também foi constatado nos depoimentos, e as tramas familiares foram salientadas
quando falaram sobre as crises familiares e a violência sexual sofrida. Os usuários também
mencionaram as relações cotidianas, a insegurança e a sensação de vigilância ao circular no
território. Os resultados indicaram que, apesar da força do discurso pautado na Psiquiatria asilar,
alguns usuários exercem o protagonismo social quando se empoderam e subvertem as ideias que
esse saber defende. A relevância social desta pesquisa se justifica não só porque trouxe
contribuições acadêmicas, mas também por provocar reflexões sobre um novo lugar social para a
loucura e sobre os caminhos que devem continuar sendo percorridos pela proposta reformista.
Palavras-chave: Produção de sentidos. Pesquisa documental. Usuários. Saúde mental. Loucura.
ABSTRACT
Throughout human history, madness has been conceived in different ways: with a mystical
meaning, in the Middle Ages, as a mental illness, with the advent of asylum Psychiatry, and as a
psychic suffering/mental disorder, with the emergence of the reformist movement. In order to
understand how mental health users currently perceive madness, the aim of this study was to
analyze the meanings produced by these people about psychic suffering in public domain videos.
The specific objectives were: to analyze how the appearance and permanence of psychic suffering
were constructed in the narratives of these subjects; to identify the discourses (religious, asylum,
reformist, etc.) which indicate the meaning they attribute to this suffering; and to investigate the
position of these people about the diagnosis elaborated by medical knowledge. To develop this
study, we adopted the theoretical-methodological perspective of the production of meanings
proposal based on the analysis of discursive practices. This is a qualitative study, with an
exploratory character, with documentary research carried out for its development. The ‘A madness
between us’ and ‘Estamira’ video documentaries and the ‘I am not a monster: schizophrenia’
conference were used. The narratives were submitted to discourse analysis, according to the
concept of dialogue maps (Nascimento, Tavanti; Pereira, 2014). In the analyzed reports, some users
referred to psychic suffering using the asylum psychiatry discourse, however, some take a stand
against this knowledge. The mystical-religious discourse was also found in the testimonies, and the
family plots were highlighted when they talked about family crises and the sexual violence
suffered. Users also mentioned daily relationships, insecurity, and the feeling of vigilance when
walking around. The results indicated that, despite the strength of the discourse based on asylum
psychiatry, some users play a leading role when they are empowered and subvert the ideas defended
by this knowledge. The social relevance of this research is justified not only for its academic
contributions but also because it provoked reflections on a new social place for madness and on
the paths that must continue to be followed by the reformist proposal.
Keywords: Production of meanings. Documentary research. Users. Mental health. Craziness.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
BA Bahia
CAPS Centro de Atenção Psicossocial
CEP Comitê de Ética em Pesquisa
CID-10 Classificação Internacional das Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (10ª
edição)
CGMAD Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas
CNS Conselho Nacional de Saúde
DAPES Departamento de Ações Programáticas Estratégicas
DSM-5 Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (5ª edição)
ECT Eletroconvulsoterapia
EUA Estados Unidos da América
GAM Gestão Autônoma da Medicação
MS Ministério da Saúde
MTSM Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental
NAMI National Alliance on Mental Illness
NAPS Núcleo de Atenção Psicossocial
PB Paraíba
PPGPS Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde
PRPGP Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa
RAPS Rede de Atenção Psicossocial
RJ Rio de Janeiro
SARS-COV-2 Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2
SAS Secretaria de Atenção à Saúde
SUS Sistema Único de Saúde
TCC Trabalho de Conclusão de Curso
TEDx Tecnologia, Entretenimento e Design Independente
UEPB Universidade Estadual da Paraíba
UFCG Universidade Federal de Campina Grande
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 10
2 DA CONCEPÇÃO DE LOUCURA .................................................................................... 15
3 SITUANDO O APORTE TEÓRICO .................................................................................. 27
3.1 Produção de sentidos e práticas discursivas ................................................................. 27
4 PERCURSO METODOLÓGICO ....................................................................................... 34
4.1 Participantes e instrumentos ......................................................................................... 35
4.2 Análise dos dados .......................................................................................................... 37
4.3 Aspectos éticos ............................................................................................................... 38
5 DOS SENTIDOS PRODUZIDOS........................................................................................ 39
5.1 Análise dos relatos ......................................................................................................... 39
5.2 Discussão ........................................................................................................................ 56
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 69
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 73
APÊNDICE A: ESTRUTURA DO MAPA DIALÓGICO ....................................................... 82
ANEXO A: PARECER CONSUBSTANCIADO DO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA
(UEPB) ..................................................................................................................................... 83
10
1 INTRODUÇÃO
Para entender como surgiu a ideia de desenvolver esta pesquisa, é necessário elucidar um
pouco de minha trajetória, sobretudo no recorte concernente ao âmbito acadêmico e que baliza
parte de minha visão de mundo e prática profissional. Tomarei como marco inicial meu percurso
egresso na Graduação de Psicologia, cujo resgate começou a partir de 2011, quando tive o
privilégio de ser aluno do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual da Paraíba,
instituição pública que tem um campus em Campina Grande cidade onde nasci e onde moro.
No decorrer da graduação, tive dificuldade quanto à obrigatoriedade de eleger uma área,
porque via que o olhar multideterminado seria importante para compreender o ser humano e a
sociedade necessitava de todas as áreas da Psicologia, de tal maneira que, até o fim de 2012,
participei de pesquisas e extensões nas áreas de Psicologia Organizacional, Psicologia Social e
Psicologia Clínica. Todavia, meu desejo me levou, em 2013, para o âmbito da clínica e me deparei
com mais uma exigência – a de eleger a abordagem. Assim, com algumas dúvidas, enveredei pela
Psicanálise. A abordagem psicanalítica me abriu horizontes e, em um deles, percebi que a falta
sempre seria constitutiva da condição humana e, consequentemente, as lacunas no campo teórico
não seriam diferentes.
Avançando rumo a preencher algumas dessas lacunas, participei de extensão acadêmica,
durante dois anos, no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II – Novos Tempos); em 2014, fiz
um estágio extracurricular em um hospital psiquiátrico; e, em 2015, participei de eventos como o
Fórum Internacional dos Ouvidores de Vozes. Essas experiências me estimularam a refletir sobre
as vivências severas e persistentes de sofrimento psíquico. Contudo, como uma inquietude
epistemológica e profissional continuou atravessada, em 2016, decidi analisar, no Trabalho de
Conclusão de Curso (TCC) – não do ângulo clínico que já havia escolhido, mas na área da
Psicologia Social – a representação social da loucura elaborada pelos profissionais da Rede de
Atenção Psicossocial (RAPS) em Campina Grande-PB.
Foi a partir do TCC que me propus a submeter um projeto com a intenção de entrevistar os
familiares das pessoas em sofrimento psíquico para o Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da Saúde (PPGPS) da UEPB. Porém, entre 2017 e 2018, houve um hiato acadêmico, não por
escolher ou por não desejar, mas por não conseguir ser classificado no Programa e, ao mesmo
11
tempo, precisar prover sustento econômico para dar conta de outras dimensões pessoais de minha
vida.
Entretanto, depois de conquistar aprovação e ingressar no Mestrado do PPGPS em 2019,
negociei outras possibilidades de desenvolver o projeto com minha orientadora, e tudo foi
reformulado para um campo novo e complexo, que foi a proposta de análise dos sentidos sobre o
sofrimento psíquico produzidos em práticas discursivas de usuários do CAPS III através de suas
histórias de vida. Posteriormente, depois de qualificado, este trabalho passou, em 2020, por novas
alterações em virtude do confinamento imposto pela pandemia. Isto é, inicialmente, propus uma
pesquisa de campo, porém, em decorrência do isolamento social como medida sanitária, optei por
realizar uma pesquisa documental em fontes audiovisuais, registradas e divulgadas por terceiros.
Para alcançar tal empreitada, o objetivo que norteou este trabalho foi de analisar os sentidos
construídos sobre o sofrimento psíquico em relatos de usuários de saúde mental em vídeos de
domínio público.
Esta pesquisa foi mobilizada pelos seguintes questionamentos que aguçaram a curiosidade
para realizar a investigação: Como as pessoas constroem, através dos seus relatos, o surgimento e
a permanência de seu sofrimento psíquico? O que os sujeitos pensam sobre o próprio diagnóstico
elaborado pelo saber médico? A quais agências terapêuticas as pessoas em sofrimento psíquico
recorrem? Em que medida o discurso reformista influencia os sentidos atribuídos ao sofrimento
psíquico? Nos relatos, é construído um novo lugar social para a loucura?
Desse modo, os objetivos específicos foram delimitados da seguinte maneira: Analisar
como se constroem, nas narrativas desses sujeitos, o surgimento e a permanência do sofrimento
psíquico; Identificar os discursos (religioso, asilar, reformista etc.) que referenciam o sentido que
eles atribuem ao sofrimento; Identificar o posicionamento dessas pessoas acerca do diagnóstico
elaborado pelo saber médico.
Em 2021, ao completar uma década de percurso na Psicologia, finalizo o Mestrado com
muita satisfação, mas continuo com uma inquietude teórica, ciente de que esse trabalho tem
algumas lacunas, não de maneira deliberada, mas devido à limitação em relação ao tempo e ao
espaço e por meu trajeto acadêmico e pessoal. Por outro lado, é essa incompletude que me faz
caminhar no aprendizado da Psicologia e desejar ir além, possivelmente explorando o fenômeno
que aqui se coloca com inúmeros enfoques e desdobramentos que a complexidade da saúde mental
impõe, e o âmbito científico permite avançar.
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Ciente de tais circunstâncias, o estudo realizado se justifica por direcionar visibilidade para
as pessoas em sofrimento psíquico e quebrar o silêncio imposto pela medicina psiquiátrica. Em tal
situação, os sujeitos ganham protagonismo, pois evidenciam suas construções de sentido sobre esse
sofrimento. A investigação aqui realizada poderá contribuir para se refletir sobre as políticas
públicas voltadas para a população que utiliza a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e repensar
novas estratégias que tragam um fôlego para o movimento, escutando as pessoas que vivenciam o
sofrimento. Isso é necessário não só por potencializar o propósito de transformar a vida das pessoas
que precisam daquele serviço, mas também por causa dos entraves sócio-históricos que
determinam uma força contrária à sua realização.
Trata-se de um estudo de natureza qualitativa, com caráter exploratório, para cujo
desenvolvimento foi realizada uma pesquisa documental, como já ressaltado, levando em
consideração que as pessoas entrevistadas fossem os próprios sujeitos em sofrimento psíquico.
Nesse sentido, foram utilizados os seguintes vídeos: ‘Estamira’ (2004), ‘A loucura entre nós’
(2016) e ‘I am not a monster: schizophrenia’ (2017). As narrativas foram submetidas à análise de
discurso de acordo com a proposta dos mapas dialógicos (Nascimento, Tavanti; Pereira, 2014).
Os motivos para identificar as práticas discursivas sobre o sofrimento psíquico, por meio
de relatos de usuários de saúde mental, residem também na escassez de literatura que aborde esse
tema, constatado no levantamento feito nas bases de dados eletrônicos Google Acadêmico, SciELO
e PePSIC, que contemplou o ponto de corte a partir de 2010 e considerou estudos que abordassem
a narrativa do sofrimento psíquico emitido pelos usuários de algum dispositivo de saúde mental,
também porque interrogar sobre os sentidos do sofrimento psíquico é uma maneira de estimular os
usuários de serviços de saúde mental a se posicionarem no tempo e no espaço em que estão situados
e estimular autonomia ao proferir o discurso.
Falar em loucura é considerar um movimento que vem se desvelando ao longo dos séculos,
um exercício em que se devem considerar diversas relações de poder que interferiram na
formulação das políticas públicas de saúde mental. Evidentemente essa não é uma tarefa fácil,
porque, em muitas circunstâncias, a Reforma Psiquiátrica, preconizada por Franco Basaglia na
Itália, carrega, no Brasil, outras variáveis atreladas aos interesses de gestão política e mobilização
popular do momento atual. A luta antimanicomial precisa garantir os princípios do novo modelo
psicossocial, para além da desospitalização, como aponta Amarante (1995), e delimitar, com
clareza, práticas que deem mais notoriedade ao movimento nos diversos segmentos da sociedade.
13
Assim, abordamos o sofrimento psíquico não a partir de uma ênfase individualista, centrada
no modelo hospitalocêntrico, considerando-o como doença, mas realçando o potencial de
criatividade e o protagonismo social que estão alinhados com o novo lugar social para a loucura
defendido pela proposta reformista. Nessa perspectiva, é necessário que haja uma intervenção
sensível dos poderes estatais responsáveis pela Saúde no modelo de Sistema Único de Saúde (SUS)
vigente, embora o trabalho vivo do SUS esteja cada vez mais sucateado nas tecnologias duras e
leves1, para usar a expressão de Merhy (2007). Portanto, essa intervenção exige o conhecimento
da gravidade da situação, o que, nesse caso, é o tratamento em Saúde Mental, para que o gestor
tenha embasamento do que precisa formular ou reformular na composição de uma política pública.
Percorrendo as trilhas dos sujeitos em sofrimento psíquico, entendemos que é necessário,
constantemente, repensar as ações do movimento de Reforma Psiquiátrica. Uma viabilização
possível para isso é considerar não somente os profissionais, os familiares ou a sociedade como um
todo, mas também o próprio usuário.
No que diz respeito à estrutura, esta dissertação foi dividida em quatro capítulos: no
primeiro, fazemos uma retrospectiva histórica em que exploramos a concepção de loucura desde o
Século XV até a contemporaneidade. Para isso, resgatamos as contribuições, sobretudo, de Michel
Foucault, ao traçar um histórico de tal fenômeno. Assim, são ressaltados práticas e discursos que
permearam o enlouquecer, como, por exemplo: a nau dos loucos, a grande internação e um novo
modo de enxergar o louco propiciado pela Reforma Psiquiátrica. Nesse percurso, foi inspirador
perceber alguns sujeitos que ganharam notoriedade por seus feitos ou obras, como, por exemplo,
Bispo do Rosário.
No segundo capítulo, situamos a fundamentação teórica, o estudo da produção de sentidos
a partir da análise das práticas discursivas (Spink, 2010; Spink; Medrado, 2013), uma proposta
teórico-metodológica inspirada no Movimento Construcionista, contrário a correntes que
representam a mente como um espelho do mundo, sem que haja interferência dos sujeitos e suas
maneiras de posicionar suas vivências. Nesse capítulo, evocamos os estudos da precursora Mary
Jane Spink, que se propõem a analisar como as pessoas compreendem os acontecimentos do
cotidiano e lidam com eles.
1 Conceitos desenvolvidos no campo teórico da Saúde Coletiva. A tecnologia leve é relativa aos vínculos, como, por
exemplo, as relações estabelecidas ou a humanização, e a tecnologia dura, aos recursos materiais, como as máquinas
e as estruturas disponíveis para melhor suporte (Merhy, 2007).
14
No terceiro capítulo, apresentamos o desenho metodológico que foi trilhado, no que se
refere aos participantes, aos instrumentos, à análise dos dados e aos aspectos éticos, e o que se
entende por pesquisa documental, e todo o trâmite de submissão à Plataforma Brasil, bem como à
emenda necessária em decorrência de ajustar o desenho de pesquisa compatível com o momento
pandêmico.
No quarto capítulo, aprofundamos os resultados da pesquisa e fizemos uma discussão
teórica com o fim de privilegiar os objetivos propostos. Cabe sinalizar que o discurso biomédico –
saber hegemônico que tem expressões, termos e classificações muito característicos desse campo,
que já foi responsável por tantas práticas desrespeitosas com as pessoas em sofrimento psíquico,
ao lhes relegar uma posição de passividade, doença e incapacidade – foi muito recorrente nos
relatos.
Mas as pessoas também dialogam com o saber psiquiátrico asilar de maneira ativa,
rejeitando atributos pejorativos. Nesse sentido, supõe-se que, quando os usuários se posicionam
dessa forma, resistem ao saber hegemônico da Psiquiatria tradicional (Rocca, 2011).
Nos relatos, também se encontram explicações de teor místico-religioso para construir
sentidos sobre o sofrimento psíquico, usando conceitos, rituais e termos de ordem transcendental.
De acordo com estudos como o de Paiva (2018), essas referências tratam de uma dimensão com
grande chance de ser aliada para uma nova política de assistência em saúde mental.
Nos relatos, os usuários indicam ainda tensões advindas de crises familiares e até violência
sexual entre parentes e afirmam que as relações cotidianas interferem na vida deles, quando, por
exemplo, relatam sobre a impossibilidade de circular no território, de ter a impressão de estarem
sendo vigiados e o consequente isolamento social para se proteger das perseguições.
Para finalizar esta dissertação, virão as considerações finais, em que retomamos suas ideias
centrais. Esse trajeto será feito através do resgate dos objetivos geral e específicos, da exposição
breve dos principais resultados, da ênfase à relevância social, bem como de sugestões para
prosseguir com este estudo acadêmico.
15
2 DA CONCEPÇÃO DE LOUCURA
Pensar na posição ocupada hoje pela loucura nos remete às colocações de Braga e Silveira
(2005), que fazem uma retrospectiva que parte da Grécia Antiga, cujos filósofos a consideravam
como vontade divina, até ocorrer uma mudança de concepção do campo místico para o racional.
Portanto, a noção desse fenômeno varia conforme a concepção vigente em determinada sociedade.
Ressalte-se, todavia, que, nem sempre, esse fenômeno foi denominado de loucura. Antes
do Século XV, era chamado de possessão, e as pessoas que apresentavam esse comportamento
andavam pelas cidades revestidas de um caráter sagrado, conforme aponta Foucault (2008).
Portanto, o louco era visto como um sujeito excepcionalmente abençoado ou amaldiçoado pelos
deuses. Na Idade Média, com o fim das Cruzadas e o desaparecimento do surto leproso (Foucault,
2012), abriu-se um espaço para o louco como um novo representante de segregação social.
Os locais que antes eram destinados a pessoas com lepra passaram por uma transição muito
gradual e foram designados para o louco. Logo, na França, o Século XV foi marcado por lugares
como o Hospital da Paróquia de Saint-Eustache, de Saint-Nicolas, de Saint-Germain-des-Près e
novas edificações foram construídas para recolher todos os que causavam medo. Na Alemanha, em
igual período, casas foram construídas para receber os insanos, tanto em Nuremberg quanto em
Frankfurt. Na Espanha, os “irmãos da Mercê” ergueram hospitais de insanos em Valência e em
Saragoça (Foucault, 2012).
Segundo o referido autor, com a chegada do Século XVI, houve pouca alteração nesse
panorama, pois os loucos continuavam a vagar nas cidades, conduzidos em meio a mares e rios e
servindo de inspiração para contos e sátiras. Portanto, a convivência com esses sujeitos de condutas
extravagantes ainda era corriqueira.
Ressalte-se, entretanto, que as doenças venéreas se estabelecem, fato que exige
necessariamente tratamento médico, empregando um rigoroso manejo racional que destoa da
maneira como vinha sendo concebido nos séculos anteriores. Além disso, esse século foi marcado
pelo Movimento Renascentista, que, em função de uma perspectiva humanitária, amenizou o
discurso do campo místico e da tragédia sobre temas como a loucura. Então, o louco passou a
existir de forma oposta à razão, como se fosse uma antítese do pleno exercício da consciência. E
ainda que a religiosidade tivesse grande força, uma travessia começou a se processar e resultou no
que será observado no século a seguir.
16
A partir do Século XVII, o ‘insano’ começou a ser representado de maneira pejorativa. Foi
nesse período em que se iniciou a chamada ‘Grande Internação’. Conforme Frayze-Pereira (1984),
isso aconteceu porque o Estado burguês em ascensão passou a recolher as pessoas que não
contribuíam com a riqueza da burguesia, e os interesses econômicos constituíram o fundamento da
inclusão ou exclusão social. Todos os que não eram produtivos – desempregados, loucos, mendigos
ou vagabundos – isto é, que não tinham uma ocupação e eram improdutivos, deveriam ser
internados (Foucault, 2012). Assim, se as pessoas fossem consideradas preguiçosas ou ociosas,
eram encaminhadas para locais como o Hospital Geral de Paris, onde se buscava, através do
trabalho, “dignificar” o ser humano.
A internação é uma criação institucional própria ao Século XVII. Ela assumiu, desde o
início, uma amplitude que não lhe permite uma comparação com a prisão tal como essa
era praticada na Idade Média. Como medida econômica e precaução social, ela tem valor
de invenção. Mas na história do desatino, ela designa um evento decisivo: o momento em
que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho,
da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no
texto dos problemas da cidade (Foucault, 2012, p. 89).
Percebemos, então, a proporção que o internamento tomou, pois, um de cada cem habitantes
de Paris estava confinado nos hospitais locais, o que representava um agrupamento de 6000
pessoas. Esse encarceramento coletivo demonstra a repressão a que a pobreza ou a diversidade era
submetida, visando, por meio de uma consciência burguesa, esquivar-se de qualquer um que
parecesse exótico ou improdutivo (Foucault, 2012).
Com a chegada do Século XVIII, o louco passou a ser considerado como um “indivíduo
inconveniente”. O referido autor avança na análise sobre como as estruturas de controle moldaram
a justificativa para internar e, consequentemente, enclausurar os loucos, metaforizada pela
expressão “nau dos loucos”, um transporte que, na Idade Média, conduzia, pelo mar, os perturbados
e insensatos para fora do convívio social. Assim, essa nau eliminava qualquer protagonismo ou o
reconhecimento de que era possível conviver com a loucura e promovia uma espécie de higienismo
que pretendia afastar tal inconveniente da sociedade (Foucault, 2012).
Essas estruturas, inspiradas na racionalidade positivista, repercutiram na classificação da
ciência médico-psiquiátrica. Nesse período, além de investigar a lógica própria de funcionamento
17
da loucura, os médicos Philippe Pinel e Samuel Tuke propuseram “a retirada das correntes e das
camisas de força” para integrar os loucos em casas de asilo ou retiro. Assim, o isolamento ainda
perdurou, porque
esse gesto, que fazia a loucura desaparecer num mundo neutro e uniforme da exclusão,
não assinalava um compasso de espera na evolução das técnicas médicas, nem no
progresso das ideias humanitárias. Ele se revestia de seu sentido exato no fato de que, na
era clássica, a loucura deixou de ser o signo de outro mundo e se tornou a paradoxal
manifestação do não-ser (Foucault, 2012, p. 276).
Outro fato significativo, no Século XVIII, foi a crise econômica enfrentada pela França,
quando houve uma exclusão oriunda, também, da recessão econômica. Em períodos de crise, o
desemprego tende a crescer e, nesse sentido, as pessoas que estavam ociosas eram presas para
trabalhar e colaborar para a prosperidade geral da nação (Foucault, 2012). Nesse período, o
dualismo cartesiano, que separa mente e corpo, serviu para reforçar o pensamento racional (Pelbart.
1993). Apesar de não se referir explicitamente a Descartes, Sander (2010) discorre sobre a loucura
como algo que foi severamente silenciado, pois a racionalidade foi enaltecida desde o fim da
Renascença.
Ainda no Século XVIII, passou-se a utilizar algumas terapias violentas, como, por exemplo,
queimaduras com soda cáustica nos genitais e no crânio dos ‘pacientes’ para castigá-los por causa
dos pensamentos raivosos; indução ao vômito, para eliminar alucinações; afogamento seguido de
reanimação, para que retornasse com pensamentos adequados; amputação do clitóris e remoção do
útero, que dariam origem à loucura; e terapia endócrina para modificar a nutrição das células que
levariam à cura (Venturini, 2016a).
Já no Século XIX, se, de um lado, desapareceram as casas de internamento em toda a
Europa, por ser uma terapêutica transitória e ineficaz, a sociedade ainda estava longe de um
tratamento adequado para o louco. A coerção passou a ser a forma de abordar a insanidade,
perseguindo todos os que não se adequavam a um padrão das ciências naturais de “normalidade”
(Foucault, 2012).
Estabelecida tal segregação, estava selado o tratamento com práticas de coerção moral e
afastamento do convívio social e familiar para os loucos, sobretudo no Século XIX, uma época
marcada pelo surgimento do manicômio como um local voltado para a alienação mental, como
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classificado por Pinel. É considerado alienado mental o indivíduo que apresenta “distúrbio ou
aberração, distorção, erro, das faculdades mentais” (Pessoti, 1999, p. 57). Além do mais, com o
advento das ciências naturais, o entendimento que pairava nessa época encontrou nas estruturas
cerebrais a coerência para conceber a loucura como “doença mental”.
Ademais, essas práticas de coerção moral merecem especial atenção, pois, na primeira
metade do Século XIX, manifestou-se uma força punitiva tão intensa quanto as formas de força
física, e é nessa perspectiva que Foucault (2012) se refere ao “tratamento moral”. “O manicômio é
visto também como um lugar de tratamento moral, onde as pessoas são internadas porque fizeram
coisas erradas e precisam aprender o que é certo” (Grigolo, 2000, p. 102).
São inúmeras as práticas do tratamento moral ou modalidades coercitivas de contenção,
destacadas por Venturini (2016a): camisa de força (usada para imobilizar os braços), cela de
isolamento (quarto sem móveis), contenção forçada no leito (braços e pernas presos por tecidos em
leito fixado no piso), leitos-gaiola (delimitados por grades), strozzina (pressão de tecido molhado
no rosto até que o indivíduo perdesse a consciência), pouca e má alimentação para se adequar às
horas de trabalho, banhos frios, drenagem de sangue e purgantes. Todos esses atos cruéis,
degradantes e repulsivos indicavam uma vontade de punir algo considerado selvageria, pois a ideia
era de que os loucos não eram humanos, portanto, seria inviável socializá-los.
Porém, em 1882, obras como O Alienista, publicada por Machado de Assis, contestavam a
ideia manicomial. Nessa obra, as relações de poder são submetidas a uma intensa crítica, indagando
a fronteira entre o normal e o anormal de uma maneira um tanto quanto irônica, como aponta Dias
(2017). A história refere-se ao feito de o personagem Dr. Simão Bacamarte, psiquiatra que, depois
que conquistou respeito científico na Europa e no Brasil, resolveu construir o Hospital Casa Verde,
na cidade de Itaguaí. Nesse local, inicialmente ele só isolava os loucos, mas, depois, começou a
incluir qualquer pessoa que agisse de maneira estranha e desviante do padrão. Assim, grande parte
da cidade foi internada em seu manicômio, até que ele reviu suas atitudes, libertou todas as pessoas
internadas e se internou. Ele, que, durante tanto tempo, perseguiu um ideal de perfeição
psicológica.
Também foi nesse período em que alguns loucos foram reverenciados por seus feitos, ideias
ou produções em diversos contextos, rompendo com essa carceragem racional. No final do Século
XIX, Afonso Henriques de Lima Barreto, carioca nascido em 1881, destacou-se como escritor e
jornalista, embora tenha sido diagnosticado como neurastênico e alcoólatra, e internado no
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Hospício Pedro II. De acordo com Hidalgo (2007), embora marcado pela loucura, ficou
reconhecido como um dos maiores autores da literatura brasileira, e sua escrita foi caracterizada
por uma crítica aguçada ao reproduzir o tratamento asilar-manicomial que era convencional em sua
época.
Além de ter sido sua estratégia de sobrevivência, na posteridade, o diário de Lima Barreto
se configurou como um raro documento de registro do tratamento psiquiátrico no Brasil, em que
ele denunciou o tratamento que era praticado desde os séculos anteriores para controlar alguém
como ele que não se adaptasse à sociedade. De forma muito apropriada, essa obra ganhou o título
de Cemitério de Vivos, já que revela a morbidez e o terror que circulavam a história da loucura
(Hidalgo, 2007).
Já no começo do Século XX, foram documentadas mais parafernálias de coerção moral para
tratar o “distúrbio mental”, como: esterilização masculina; extração dos dentes para eliminar
bactérias escondidas que enlouqueceriam; hibernação através da envoltura em cobertores gelados
por até três dias; terapia de choque (como indução a febre, altas doses de insulina, através do
metrazol ou de meios elétricos); intervenção cirúrgica da lobotomia frontal e a ingestão excessiva
de psicofármacos (Venturini, 2016a).
Apesar de haver o uso dessas parafernálias, destacou-se a representatividade de pessoas
como Antoine Marie Joseph Artaud. Nascido em 1896 na França, popularizou-se por meio de peças
teatrais e da escrita de livros ou cartas endereçadas ao médico de um dos manicômios onde foi
internado. Ele era considerado surrealista (Lins, 1999).
Para Artaud, a manifestação das palavras na retórica, na leitura e na escrita não conseguiu
dar conta da expressividade humana. Nesse sentido, a teatralização seria uma linguagem bem mais
eficaz e de grande alcance para revelar a experiência para as pessoas. Conforme destaca Lins
(1999), ao fazer isso, Artaud defende a lógica que possibilita reinventar o sujeito perante o saber
psiquiátrico asilar quando, por exemplo, no âmbito das instituições psiquiátricas, ele próprio foi
submetido à eletroconvulsoterapia (ECT) dezenas de vezes.
Ainda no Século XX, destacou-se o sergipano Arthur Bispo do Rosário Paes, nascido em
1909: “Um dia eu simplesmente apareci no mundo”, dizia ele. Diagnosticado como esquizofrênico
paranoide, foi internado quando estava morando e trabalhando no Rio de Janeiro. Havia sumido
por dois dias, depois de ver Cristo acompanhado de sete anjos. Durante 50 anos de idas e vindas a
manicômios, sobretudo à Colônia Juliano Moreira, fazia bordados e assemblages e catalogava com
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objetos descartados pela sociedade muitas expressões que hoje são consideradas genialidades
artísticas (Lima; Johann, 2015).
Cabe salientar que é necessário cautela ao enaltecer a loucura, pois, conforme destacado em
Frayze-Pereira (1984, pp. 11-12), "[...] elogiar a loucura, deixando-se fascinar por seus poderes e,
no limite, acreditar no lucro de um saber inatingível para os que não embarcaram nessa ‘viagem’
pode desviar nossa escuta da vivência trágica dos loucos" (Grifo do autor). Assim, os loucos não
são necessariamente extraordinários por serem loucos.
Nesse período da sociedade brasileira, destacam-se práticas revolucionárias em Saúde
Mental, como o trabalho da alagoana Nise Magalhães da Silveira, que encontrou nas atividades
expressivas o método adequado para superar o tratamento qualificado como agressivo aplicado à
loucura. Intensamente influenciada pela Psicologia analítica de Carl Gustav Jung, de quem foi
aluna, ela vivenciou em primeira pessoa o confinamento, pois foi presa sob a alegação de que era
comunista.
Travando verdadeiros embates, como apontado por Castro e Lima (2007), ao questionar a
eficácia do eletrochoque, coma insulínico e lobotomia, Nise ressignificou a maneira de se
relacionar com os loucos. Para isso, fez com que as atividades perdessem o caráter monótono, cruel
e repetitivo que preservavam a lógica asilar e que a loucura ganhasse potentes contornos artísticos.
Seu espaço de trabalho eram verdadeiros ateliês, que revelavam uma atmosfera de cores
harmônicas por meio das quais o louco era capaz de estabelecer relações com o mundo externo que
o cercava de formas criativas e, ao mesmo tempo, terapêuticas (Castro; Lima, 2007).
Segundo as referidas autoras, figuras como Nise da Silveira confrontam a violência com
leveza e a esperança de uma nova atenção ao ser humano, redirecionando um novo olhar para o
enlouquecimento e possibilitando maximizar o cuidado em Saúde Mental através de terapia
ocupacional. O exercício da terapia ocupacional resultou na fundação do Museu de Imagens do
Inconsciente, em 1952, em que é exposto os trabalhos artísticos dos ‘pacientes’ psiquiátricos (Melo,
2009).
Na década de 60, destacaram-se fatos significativos, como a chamada “revolução dos
benzodiazepínicos”, momento em que as medicações com efeitos ansiolíticos se popularizaram.
Além disso, na conjuntura internacional, o mundo estava caracterizado por uma migração em
decorrência da II Guerra Mundial, uma eventualidade demarcada por intolerância e exclusão de
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determinadas forças políticas. Apesar desse contexto, destacou-se o posicionamento crítico de Nise
da Silveira.
Nessa sucessão de marcos, cabe ressaltar que, na década de 1970, surgiu, no Brasil, o
Movimento de Reforma Sanitária, idealizado no decorrer das Conferências Nacionais de Saúde,
que defendiam mudanças na atuação e na gestão dos meios de acesso à saúde pública. A reforma
denunciava que o manejo médico de acolher e trabalhar com os serviços básicos de saúde precisava
ser repensado para dar conta das endemias, das prevenções e dos cuidados e trazer dignidade na
promoção de saúde da condição humana (Escorel, 2012).
É sobremaneira relevante discutir sobre esse Movimento, visto que, no ano de 1978, a Saúde
Pública foi marcada pela luta em prol dos direitos dos usuários psiquiátricos no Brasil. Tal
Movimento surgiu com a união de profissionais da área, de pessoas que sofreram várias internações
– ao longo do tempo e não obtiveram sucesso no tratamento – de seus familiares e sindicalistas, e
contribuiu para se elaborar uma nova concepção de loucura. Assim, no contexto brasileiro, o
movimento da antipsiquiatria criticava o tratamento moral empregado no âmbito da Saúde Mental,
com uma proposta para superar o modelo asilar manicomial que causava maus-tratos e que, muitas
vezes, levavam as pessoas a óbito sem que a sociedade se importasse com seu destino. Com essa
crítica, no Brasil, pretendiam-se obter transformações inspiradas pelo paradigma da Psiquiatria
Democrática Italiana (Delgado et al., 2007).
O novo modelo de Atenção em Saúde Pública atingiu as Instituições e suas práticas e
inscreveu outro parâmetro que não mais praticasse a segregação, como era factível para
determinados segmentos: psicóticos, negros, gays, bêbados, prostitutas e drogados (Pereira; Costa-
Rosa, 2012).
Assim, pela primeira vez, surgiu, na cidade de São Paulo-SP, o CAPS, no ano de 1986, que
trouxe um modelo de intervenção psicossocial como proposta para substituir o modelo manicomial.
Em 1989, na cidade de Santos-SP, foram criados os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), que
funcionavam durante 24 horas. Esses espaços reforçaram a eficiência e a viabilidade do novo
modelo proposto no trato ao vulgo ‘louco’. Nesse período, somente um ano depois de se estabelecer
o SUS, foram apresentadas ao Poder Legislativo duas propostas: uma para regulamentar os direitos
das pessoas acometidas de transtornos mentais, e outra, para extinguir os hospitais psiquiátricos.
Além disso, com a Portaria nº 106/2000 do Ministério da Saúde, foram regulamentadas as
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residências terapêuticas para atender aos que saíam dos hospitais psiquiátricos e não tinham
vínculos familiares ou eles eram fragilizados (Tenório, 2002).
Ressalte-se, entretanto, que, só com a chegada do Século XXI, no ano de 2001, é que foi
sancionada a Lei nº 10.216/2001, criada pelo deputado Paulo Delgado e apresentada ao Congresso
Nacional doze anos antes, que regulamentou, finalmente, a modalidade de assistência em Saúde
Mental, propiciando tratamentos dentro da própria comunidade e estabelecendo direitos às pessoas
acometidas de transtorno mental, embora a proposta para extinguir os hospitais psiquiátricos não
tenha sido aprovada. Foi lançado, ainda, o ‘Programa de Volta para Casa’, com uma série de
medidas que visavam estabelecer um modelo de assistência comunitária aos usuários. Ao mesmo
tempo em que se instalavam as novas unidades substitutivas, reduziam-se e fiscalizavam-se os
hospitais psiquiátricos existentes (Brasil, 2004).
Nesse processo, foi necessário ressignificar as noções construídas sobre o modo como se
concebe o sofrimento psíquico. Apesar de ser tênue a linha entre a desrazão e a loucura, há uma
potência no que não compreendemos: “(...) uma parte dela que é desmoronamento e dor; há outra
parte que é potência e invenção. (...) Talvez mesmo a própria noção de desrazão não seja suficiente
para que possamos acessar algumas potências vitais estranhas e mal compreendidas” (Sander,
2010, p. 385).
Assim sendo, Ernesto Venturini expõe, na obra A linha e a curva: o espaço e o tempo da
desinstitucionalização (2016b), uma experiência na cidade de Ímola, na Itália, na qual um dos
apontamentos presentes é voltado para a necessidade de um projeto terapêutico singular, uma
prática que convoca para além do ato de retirar do hospital os sujeitos, empoderá-los para
transformar aquele sistema.
Nessa perspectiva, sugeriu-se a desinstitucionalização, além da desospitalização, conforme
proposta pelo Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) na década de 70
(Amarante; Nunes, 2018). Essa ideia baseia-se numa desconstrução do saber tradicional e do
modelo centrado no profissional de Psiquiatria. Por outro lado, a desinstitucionalização não é uma
desassistência, como setores conservadores ligados à indústria médico-farmacêutica ou
proprietários da rede de hospitais querem fazer parecer, mas uma assistência alternativa.
O Século XXI é marcado pela busca de outro lugar social da loucura, como Amarante e
Nunes (2018) se referem. Trata-se de uma complexa reformulação de um modelo que era pautado
na hegemonia da clínica, e considera agora aspectos políticos, sociais e culturais. Na atualidade,
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procura-se percorrer um caminho diferente da prática asilar, ainda que haja uma terapêutica comum
para grande parte da categoria médica psiquiátrica, que é entender os fenômenos embasados na
Psicopatologia e, consequentemente, atuar pela via medicamentosa.
Segundo Rotelli (n.d.), no ato de desinstitucionalizar, a loucura deve ser desconstruída em
seus aspectos científico, legal, administrativo e cultural, que atribuam significados para ela como
doença. Para isso, sugere-se uma visão radicalmente diferente em vários fatores:
Mas, se o objeto muda, se as antigas instituições são demolidas, as novas instituições
devem estar à altura do objeto, que não é mais um objeto em equilíbrio, mas está, por
definição (a existência-sofrimento de um corpo em relação com o corpo social), em estado
de não equilíbrio: essa é a base da instituição inventada (e nunca dada) (Rotelli, n.d., p.
02).
Mas que loucura é essa que se objetiva desinstitucionalizar? É necessária uma perspectiva
que vá além da humanização; um processo que enfrente constantes tensões para reconhecer o
sujeito, inclusive, utilizando propositalmente a terminologia sujeito para designar as pessoas que
vivenciam, entre outras coisas, a loucura. Não é um ato piedoso ou de tolerância, mas um
movimento social complexo, com dimensões teórico-conceitual, técnico-assistencial, jurídico-
política e sociocultural, que visam respeitar a cidadania das pessoas em sofrimento psíquico
(Amarante, 2007).
É preciso se desprender de correntes ideológicas que difundem a ideia de que as pessoas
em sofrimento psíquico são incapazes de estabelecer trocas sociais e simbólicas (Zanchet,
Palombini; Resende, 2017). Para esses pesquisadores, a loucura passa por transformações culturais,
as quais são necessárias como, por exemplo, respeitar a diversidade de comportamentos como algo
típico do ser humano.
Portanto não apenas acolher ou relativizar a loucura, mas, efetivamente, questionar a
dualidade razão-desrazão, demonstrando que a imprecisão quando nos referimos a manifestações
de pensar, sentir, agir é o que existe de mais humano possível. Por meio dessa ambição teórica e
ideológica, Pelbart (1990) analisa a perpetuação do manicômio mental criticando o caráter
adoecedor do modelo asilar-manicomial, que, muitas vezes, é revestido de uma “doce piedade” no
discurso da inclusão dos loucos, assim como se deu no período do movimento renascentista com
suas ideias humanitárias.
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E seria preciso acrescentar imediatamente: um direito à desrazão, sim, mas sem confiná-
la àquele cantinho privado e secreto de nosso psiquismo chamado "nossas fantasias", onde
ela costuma dormitar inofensiva. O direito à desrazão significa poder pensar loucamente,
significa fazer do acaso um campo de invenção efetiva, significa liberar a subjetividade
das amarras da verdade, chame-se ela identidade ou estrutura; significa devolver um
direito de cidadania pública ao invisível, ao indivisível e até mesmo, por que não, ao
impensável. Libertar-se do manicômio mental é isso tudo e muito mais (Pelbart, 1990, p.
137, grifo do autor).
Assim, podemos extrair de Pelbart (1990) a relevância do engajamento da sociedade na luta
antimanicomial, posto que o rompimento com a lógica de enclausuramento é importante para
superar uma tradição que violenta o sujeito desde a Idade Média.
Evidentemente, um modelo de Saúde Mental que havia se firmado há séculos não se
desconstrói imediatamente, e o funcionamento da conduta profissional, muitas vezes, engendra
práticas antigas e conservadoras. Isso significa que, apesar dos avanços alcançados até o Século
XXI para compreender o enlouquecimento, muitos profissionais ainda carregam uma ideia pautada
na concepção do louco como um ser despersonalizado, sem razão ou direitos, incapaz. De fato, é
notória a relevância da conquista da Lei Paulo Delgado, mas a ideia-proposta-projeto-movimento-
processo reformista é contínua, como afirmam Amarante e Nunes (2018).
Nos dias atuais, tem se perdido o espírito contestador inerente à época em que se propagou
a proposta da Reforma Psiquiátrica e as novas formas de conceber a loucura, porque, nas décadas
de 1980 e 1990, o Brasil atravessou um processo de redemocratização, inclusive com a
promulgação da Carta Magna que rege a República, também conhecida como Constituição Cidadã.
Especialmente a partir de 2015, a garantia da Saúde Pública, por meio do SUS, foi
conturbada, pois, desde o impeachment de Dilma Rousseff, o Ministério da Saúde foi assumido
por conservadores – para a Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, por exemplo,
foi empossado o ex-diretor de um hospital psiquiátrico, que foi fechado por ação do Ministério
Público, ou seja, um notório defensor do modelo manicomial – caminhando para o desmonte do
que foi paulatinamente conquistado há décadas. Isso gera bastante apreensão, porque o Ministério
da Saúde tornou-se objeto de negociação política e, com ele, os princípios do SUS, que passaram
a ser alvo de mudanças radicais e drásticos retrocessos (Amarante; Nunes, 2018).
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Essa política representa uma ameaça para a nova concepção de loucura defendida pela
proposta reformista, pois desconstrói algo que havia sido conquistado. Ademais, em 2019, primeiro
ano de mandato de Jair Messias Bolsonaro, foi estabelecida a Nota Técnica nº 11/2019-
CGMAD/DAPES/SAS/MS, com a autorização federal para financiar a ECT. Além disso, a lei
eliminou o termo substitutivo e investiu em hospitais psiquiátricos, que passaram a ocupar um lugar
de prioridade, já que devem ser preenchidos, pelo menos, 80% e figuram como instituições que
precisam ser ocupadas a priori para que, em caráter secundário, acolham as pessoas em instituições
como o CAPS. No ano seguinte, em 2020, o então presidente sinalizou a pretensão de revogar esses
equipamentos, dentre os quais, o Programa De Volta para Casa, as equipes do Consultório na Rua
e os CAPS voltados para usuários de álcool e outras drogas.
Zanchet, Palombini e Resende (2017) refletem sobre a limitação das políticas públicas para
assegurar a viabilidade do que se propõe em lei. Para tais autoras, a inclusão da loucura não se
restringe à dimensão jurídica, pois há algo na cultura que precisa ser questionado. Elas acrescentam
que, na escuta realizada com vizinhos de serviços residenciais terapêuticos, sobressai-se “o
discurso em defesa do reconhecimento da diferença como forma de ser social – uma fala pela
redução dos preconceitos” (Zanchet, Palombini; Resende, 2017, p. 236).
Assim como a dimensão jurídica e a cultural, mencionadas anteriormente, a dimensão
científica também merece ser considerada. Silveira e Palombini (2016) alegam que a realização de
estudos sobre o relato das pessoas que compõem RAPS é importante, pois recria uma experiência
própria que desafia classificações biomédicas que caracterizaram o sujeito como incomunicável.
O método denominado de PesquisarCOM pelas referidas autoras promove a horizontalidade e o
envolvimento nas relações que transformam a práxis científica.
Ainda sobre essa aproximação com o sujeito em sofrimento psíquico como imprescindível
para o Século XXI, Miranda e Cabral (2016) desenvolveram um estudo sobre o que é enlouquecer,
através das vozes desses sujeitos, e afirmam: “Em seu processo histórico de patologização, a
loucura tem sido alvo de cuidados que se instituíram com pouca ênfase à experiência do
‘enlouquecer’ tal como vivida.” (Miranda; Cabral, 2016, p. 42, grifo das autoras).
Por fim, essa digressão vai de encontro ao fato de que inúmeras expressões são utilizadas
nos mais diversos âmbitos para designar as pessoas em estado de sofrimento psíquico, como: louco,
maníaco, doente mental, portador de transtorno mental, dentre outras terminologias técnicas
inerentes a manuais como a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
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Relacionados com a Saúde (CID-10) ou o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
(DSM-5). Essas denominações são exploradas com afinco por Pessoti (1999), na obra ‘Os nomes
da loucura’. Elas são práticas discursivas que carregam ideologias associadas a certos sentidos
esboçados ao longo do tempo e da sociedade.
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3 SITUANDO O APORTE TEÓRICO
3.1 Produção de sentidos e práticas discursivas
O marco teórico que norteia esta pesquisa é a proposta de estudos da produção de sentidos,
que é um modo de produzir ciência fundamentado na perspectiva do movimento construcionista.
O Construcionismo é um movimento que defende que as descrições ou posicionamentos sobre as
coisas sejam repensados e reformulados por meio de críticas (Rasera; Japur, 2005). Tal movimento
adota uma postura crítica aos modelos de Psicologia, por meio dos quais a subjetividade das
pessoas é tão somente fruto de habilidades cognitivas, algo mecânico ou automático, governado
por processos mentais. Ou seja, parte-se do entendimento de que a linguagem é uma prática social,
viva, em transformação, em determinada sociedade e numa cultura. A esse respeito, partimos de
um exemplo inicial.
Descrevendo as noções de etnocentrismo, Rocha (1988) traz uma história em que narra a
missão de um pastor de catequizar índios no Xingu e, depois de insistentes pedidos, deu seu relógio
a um jovem índio. Entretanto, o índio utilizou aquele artefato como ornamento, adornando
alegremente as cercanias de sua aldeia. Posteriormente, buscando inspiração para entregar aos
superiores seus relatórios, ele examinou as paredes do seu escritório: arcos, flechas, tacapes,
bordunas, cocares e até uma flauta formavam a decoração. Rústica, trazia-lhe estranhas
lembranças: “engraçado o que aquele índio foi fazer com o meu relógio”. Esses artefatos ilustram
a função relativa da interpretação e do sentido atribuído ao mundo, um exemplo de prática
discursiva.
Convém enfatizar que o Construcionismo é uma perspectiva avessa a correntes
representacionistas, isto é, abdica de visões por meio das quais a mente é um espelho do mundo,
sem que haja o atravessamento das pessoas e suas formas de descrever os processos que vivem:
A perspectiva nos coloca em uma dúvida metodológica permanente, ao desnaturalizar
processos que nada mais são do que construções históricas e culturais. Desse modo, o
conhecimento psicossocial é, na perspectiva construcionista, algo provisório que deve ser
permanentemente descontruído (Álvaro; Garrido, 2007, p. 324).
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Quando nos referimos ao Construcionismo, adotamos perspectivas como a de Ibañez
(2003), que afirma que o surgimento do Movimento é contextualizado em um clima de contestação
inerente a sua época. Nesse contexto, a epistemologia carrega um teor crítico por meio de seus
protagonistas. Porém só em meados da década de 80 foi que esse teor foi aguçado. O autor atribui
a Kenneth Gergen a definição de Construcionismo social considerada mais consagrada, que o
concebe como um movimento que condensa elementos teóricos em permanente reconstrução,
como referido no parágrafo anterior.
Outra perspectiva que transformou os métodos de estudo, especificamente no segmento das
Ciências Sociais, foi o “giro linguístico”. Essa denominação, segundo Méllo (2007), é a adoção de
posturas científicas como a de Ferdinand de Saussure, na tradição filosófica, e da hegemonia da
Filosofia da Consciência, de Gottlob Frege e Bertrand Russell, nas quais se desloca a análise das
ideias do interior das mentes para a exterioridade dos enunciados linguísticos. Tal abordagem foi
influenciada por correntes pós-estruturalistas e pós-modernistas e, segundo o referido autor, há
quem associe essa vertente a uma aplicação do Construcionismo no domínio da Psicologia.
Ribeiro (2011) corrobora tal apontamento, considerando que a realidade não se opera na
individualidade da mente, mas na relação com os outros. Também é combatida a "retórica da
verdade", termo que remonta ao método científico que tem como atributo a verdade transcendental.
A autora reconhece a linguagem como algo volátil e relacional, visto que
é nos momentos interativos entre as pessoas, nos quais elas têm que continuamente reagir
umas às outras por meio de uma postura ativa e responsiva, que se poderá compreender
como as pessoas produzem sentidos por meio de suas práticas discursivas (Ribeiro, 2011,
p. 561).
Assim, partindo das premissas construcionistas, como a do giro linguístico, a proposta de
produzir sentidos é uma perspectiva que visa analisar como as pessoas compreendem os
acontecimentos e lidam com eles, como abordado por M. J. P. Spink e Medrado (2013). O sentido
é apropriado por meio das práticas discursivas e de seus repertórios que permeiam o cotidiano,
esboçando coerência em relação a um contexto singular, também denominado de speech genres ou
gêneros de fala. Isso significa que a linguagem é produzida conforme as instituições e os momentos
históricos, o que não elimina a polissemia no entendimento de um mesmo fato.
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Os repertórios interpretativos são enunciados que as pessoas resgatam e organizam, que
formam unidades de argumentação e constroem formas de compreender e explicar situações, ações
e todo o mundo que as cerca. M. J. P. Spink (2010) discorre que essas unidades, denominadas de
unidades básicas de linguagem são compostas de sentença e palavra. A sentença é um pensamento
relativamente completo, que varia desde uma frase até um parágrafo, e a palavra pode se ramificar
em palavra neutra (terminologia dicionarizada), palavra do outro (como os outros utilizam) e
minha palavra (como eu a utilizo).
Além do speech genres, o conceito de enunciado e de voz é importante para compreender
a constituição da produção de sentidos (M. J. P. Spink; Medrado, 2013). Para entender bem mais
essa importância, ressaltamos que, enquanto as pessoas interagem, é construída uma teia de
argumentos que estruturam a comunicação. Esses enunciados, quando decompostos em menores
fragmentos, são constituídos de vozes, que são núcleos falantes que orientam a ação discursiva, em
que a fala não é algo estanque, mas em constante movimento.
Quando pensamos em ação discursiva, no esforço para compreender os sentidos
produzidos, precisamos considerar todas as vozes que se fazem presentes na fala proferida, como
as provenientes do pai, da mãe, da professora, dos amigos, da religião, entre outras importantes
para a posição identitária. O discurso produzido na interação entre as pessoas, fornece pistas para
perceber como se manifesta determinada posição ou o porquê dela: “Nosso trabalho, como
cientistas sociais que analisam práticas discursivas, é exatamente estudar a dimensão performática
do uso da linguagem, trabalhando com consequências amplas e, nem sempre, intencionais” (M. J.
P. Spink; Medrado, 2013, p. 27).
Isso ocorre porque, embora o fato seja único, as interpretações são várias, e é fundamental,
no enfoque da produção de sentidos, compreender a linguagem como forma de mediar as práticas
sociais. Isso significa que os discursos podem se deparar com uma diversidade de possibilidades,
concebendo a ruptura de consensos ou regularidades como algo muito positivo. Essas rupturas
ocorrem em determinada temporalidade histórica e favorecem algo muito singular e original em
cada narrativa (Leite et al, 2016). Logo, cada pessoa acessa a realidade de maneira única
produzindo e interferindo com um posicionamento em particular nas práticas sociais.
A temporalidade histórica, nessa perspectiva, divide-se em tempo longo, tempo vivido e
tempo curto. O tempo longo envolve os conteúdos culturais, algo amplo, que faz referência a uma
época em que instituições, modelos, normas e convenções moldavam o posicionamento das pessoas
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na construção dos discursos. Já o tempo vivido é marcado pela trajetória de socialização entre as
pessoas, uma vivência que ressignifica as práticas discursivas como fonte de saber. O tempo curto
é o período dialógico propriamente dito, quando ocorre a experiência de interação em que as
pessoas são convocadas para dar sentido às situações (M. J. P. Spink, 2010; M. J. P. Spink;
Medrado, 2013; Brigagão, Nascimento, Tavanti, Piani; Figueiredo, 2014).
O fato é que as concepções oriundas de tempos remotos e atuais são muito imbricadas
quando narramos algo. Alguns autores, como Fernand Braudel ou Mikhail Bakhtin, exploram essa
cronologia da fala (M. J. P. Spink; Medrado, 2013). Assim, para a proposta de estudo da produção
de sentidos a partir das práticas discursivas, embora se estabeleça uma distinção dos tempos em
nível teórico, como exposto no parágrafo anterior, na prática, o diálogo carrega uma
heterogeneidade muito marcante, que compõe a performance da comunicação, o que significa que
haverá convergências e divergências no constante uso da linguagem.
Então, a produção de sentidos exprime, continuamente, o investimento desses três tempos,
seja quando as pessoas trazem práticas discursivas de fontes como o saber religioso e o cientifico
ou de conhecimentos e tradições do senso comum, investidas pelo tempo longo; seja quando
traduzem suas memórias em forma de projeções e de laços afetivos, ao se socializar, simbolizado
pelo tempo vívido; seja quando interagem, construindo uma dinâmica que vivencia as vozes
acionadas pela memória cultural ou memória afetiva, revelando o tempo curto (M. J. P. Spink; P.
K. Spink, 2017). Desse modo, há um caráter bem mais subjetivo do que cronológico na noção de
tempo, algo que ocorre na prática discursiva resultante das trocas cotidianas.
No decorrer desses tempos, o funcionamento da linguagem é compreendido como o oposto
da neutralidade, avesso à tradição positivista, porque, no modelo positivista, a ciência é a verdade,
e na perspectiva discursiva, na compreensão e na explicação dos fenômenos, é valorizado um saber
que existe na linguagem prática, ideológica, moral e cultural das pessoas. Logo, se as pessoas são
produtoras de uma relativa “verdade”, esses repertórios interpretativos destacam o caráter prático
e central da linguagem e exercem uma função contextual na construção de uma retórica (Oliveira
Filho, 2013).
A expressão "verdade" merece realce em função de toda a controvérsia que lhe é inerente,
pois o que é fato, para um, é apenas uma interpretação possível para outro, assim como discursos
sobre a beleza de certos ornamentos (o relógio, arcos, flechas, tacapes, bordunas, cocares e flauta)
exemplificada na história do pastor com os índios do Xingu, relatada no início deste capítulo. Silva
31
(2016) discorre sobre essa relatividade e propõe um contínuo estranhamento e indagação desses
modelos de “verdades”. Para o autor, isso se alinha a concepções pós-modernas, tendo em vista
que é combatida a representação do conhecimento científico como sendo absoluto e neutro, ou seja,
como uma única via de alcançar a “verdade”, sem que haja interferência das relações sócio-
históricas.
Segundo o autor citado, para a proposta da produção de sentidos, importa saber o lugar de
onde o sujeito fala, para quem se dirige, como fala e o que deseja produzir com esse ou aquele
discurso, localizando de maneira muito específica os enredos que a linguagem incorpora. Então,
os discursos produzidos não se expressam em moldes naturalizantes, mas na interação entre as
pessoas que, ao falar ou calar sobre determinado tema, estão se posicionando continuamente. Essa
performance se opõe a certa atitude passiva, quando as correntes representacionistas tendem a ver
o ser humano como reprodutor de uma realidade.
Destarte, é relevante destacar o caráter mutável da linguagem, que se remodela em cada
situação em que se aplica e extrapola seu valor meramente semântico, conforme referem M. J. P.
Spink e Menegon (2013). No âmbito da pesquisa acadêmica, uma linguagem tem seu esboço
singular para atribuir um sentido ao mundo, construindo os repertórios de acordo com a natureza,
o poder, a alienação, a consciência, o inconsciente, o gênero, entre outros marcadores.
Contudo, vivemos num mundo social que tem uma história. Os repertórios interpretativos
que nos servem de referência foram histórica e culturalmente constituídos. Trabalhar no
nível da produção de sentido implica retomar também a linha da história, de modo a
entender a construção social dos conceitos que utilizamos no métier cotidiano de dar
sentido ao mundo. (M. J. P. Spink; Menegon, 2013, p. 29).
Portanto, se tudo é mutável, convém entender o que propícia essa mudança e é nesse sentido
que M. J. P. Spink e P. K. Spink (2017) refletem sobre a noção de lugar. Esse termo que, a princípio,
pode remontar a um referencial geográfico, é apropriado pela Psicologia Social como um espaço
que faz acontecer o cotidiano, a vida e a ação. Oriundo do latim quot dies, a palavra cotidiano
ganha uma conotação simbólica, isto é, passa a ser, ao mesmo tempo, um dia e todos os dias.
Consequentemente, é contemplado na temporalidade histórica sobre tempo curto, tempo longo e
tempo vivido. Embora seja parte das possibilidades, o cotidiano não precisa ser associado a rotina,
pois o lugar pode propiciar um fluxo instantâneo, duradouro, transformador ou repetitivo.
32
A perspectiva de fazer pesquisa apresentada por Mary Jane baseia-se no estudo do saber
cotidiano, focalizando as maneiras pelas quais as pessoas produzem sentidos e
posicionam-se nas relações sociais, no lócus onde se produzem e se significam
determinadas práticas e com a preocupação de desnaturalizar as construções do cotidiano.
Ao não considerá-las como objetos naturais e permanentes – e sim como objetos
construídos e transitivos – posiciona-se de forma precisa e específica para desenvolver
métodos próprios de investigação da ação do pesquisador na sua relação com o chamado
campo de pesquisa. (Guareschi, 2010, p. V).
O lugar pode ser designado em termos de materialidades ou sociabilidades, espécie de
virada para o mundo vivido influenciada por diversos personagens.
Tal como a virada para o cotidiano, a virada para o lugar veio por meio de autores diversos
– muitos provenientes da geografia – e de posições várias: marxista, estruturalista,
quantitativa, qualitativa, humanista ou objetivista (M. J. P. Spink; P. K. Spink, 2017, p.
195).
É fundamental essa explicação, porque alguns autores do campo da Assistência Social
distinguem lugar de território, especialmente Dirce Koga, citada por M. J. P. Spink e P. K. Spink
(2017), que se refere a "território vivido" como um elemento fortemente relacional na dinâmica
cotidiana de populações.
Como afirma Ribeiro (2011), as práticas discursivas são possibilidades de uma retórica
dedicada a tecer sentidos no cotidiano, o que implica rejeitar a linguagem como um mero reflexo
ou descrição das situações. Posto isso, a análise pode captar inúmeras intenções presentes nas falas,
desde um discurso ofensivo, que se refuta com descrições alternativas e/ou opostas, ou um discurso
defensivo, quando se resiste a refutações.
Neste momento, cabe elucidar uma distinção importante no que se refere a discurso e a
práticas discursivas: enquanto o discurso imprime certa regularidade institucionalizada, as práticas
discursivas se referem à linguagem em uso (M. J. P. Spink; Medrado, 2013). Assim sendo, o
discurso sobre a loucura, por exemplo, com o passar dos séculos, seguiu uma tendência biomédica.
Méllo (2007) concorda com o raciocínio desenvolvido, ao postular que a fala não deve ser
considerada como um dispositivo apenas em seu aspecto formal, mas também como um modo de
instrumentalizar o ser no mundo, de engendrar ações, instituições e afetos e articular relações de
poder e de transformação social, assim como na perspectiva foucaultiana, em que a funcionalidade
33
dos enunciados se problematiza a partir do local subjetivo que o seu pronunciante ocupa, das regras
e dos interesses para quem é direcionado no cerne da Biopolítica.
Então, não há uma completa ingenuidade nas palavras, mas, quando produzimos sentidos,
construímos versões do tema ao qual estamos nos referindo, que terão mais coerência a partir do
lugar de fala no qual está inserido.
Vivemos num mundo de sentidos conflitantes e contraditórios. Lidamos não com o sentido
dado pelo significado de uma palavra ou conceito que espelham o mundo real, mas com
sentidos múltiplos, o que nos leva à escolha de versões entre as múltiplas existentes.
Lidamos com uma realidade polissêmica e discursiva, inseparável da pessoa que a
conhece. (Pinheiro, 2013, p. 166).
Nesse contexto, as pessoas elegem uma versão com mais ou menos coerência e se
posicionam e aos outros no mundo. Concordando com isso, M. J. P. Spink (2010) assevera que a
noção de posicionamento é muito importante para a proposta da produção de sentidos, pois, com
frequência, as pessoas emitem suas práticas discursivas diante dos outros. Os posicionamentos não
se confundem com a identidade, já que ela é mais fixa/estrutural, e as posições são flexíveis. Isso
significa que posicionar-se é dar uma resposta compatível com as narrativas que nos confrontam
no dia a dia. “O posicionamento, como é por nós utilizado, é o processo discursivo no qual os selves
são situados nas conversações como participantes observáveis e subjetivamente coerentes em
termos das linhas de história conjuntamente produzidas” (M. J. P. Spink, 2010, pp. 36-37).
Discorrendo sobre a complexidade de se comunicar, Langenhove e Harré (1999) apontam
três níveis de fenômenos sociais que precisam ser considerados ao se posicionar: pessoas,
instituições e sociedade. Isso implica o fato que o enredo traçado em um discurso extrapola o valor
semântico de vocabulários, pois expressa poder, carisma, papéis, moral, performance e
intencionalidade.
34
4 PERCURSO METODOLÓGICO
A metodologia proposta inicialmente no projeto de pesquisa, como já ressaltado na
Introdução, consistia em realizar entrevistas de história de vida com usuários do CAPS III de
Campina Grande-PB, ou seja, foi esboçado um desenho de pesquisa de campo em que,
presencialmente, as entrevistas seriam realizadas com os usuários individualmente e seriam
somadas com os registros feitos em diários de campo que consolidariam uma imersão investigativa
e pessoal com as pessoas daquele serviço substitutivo.
A vida tem suas contingências que nos surpreendem, provocam angústias e nos mobilizam
a reinventar as experiências singulares e coletivas. Sendo assim, o coronavírus (Sars-Cov-2)
começou a se propagar no início de 2020, alcançou uma proporção pandêmica e ceifou milhões de
vidas, o que nos obrigou a adotar novas posturas para conviver com a ameaça de contágio do vírus,
e resultou na suspensão de atividades coletivas no CAPS III. De toda forma, o projeto de pesquisa
proposto foi qualificado em junho de 2020, em formato virtual, ainda considerando a metodologia
proposta inicialmente. A esperança era de que, em curto prazo, fosse descoberta uma vacina como
antídoto para o vírus e, com a consequente imunização da população, a pesquisa de campo no
CAPS III seria realizada, observando todas as medidas de cuidado cabíveis.
A descoberta e a aplicação da vacinação aconteceram tardiamente e em um ritmo lento. Tal
momento delicado nos forçou a repensar e deliberar a necessidade de readequar para uma pesquisa
documental, através da análise de vídeos. A escolha por essas produções se baseou no seguinte
critério: os vídeos deveriam conter relatos de usuários de saúde mental, independentemente do
contexto sociocultural em que vivem. Portanto, participaram da pesquisa pessoas entrevistadas por
terceiros que relataram, em três vídeos (“Estamira”, “I am not a monster: schizophrenia” e “A
loucura entre nós”), de domínio público sua experiência com o sofrimento psíquico.
No que se refere à pesquisa documental, sabe-se que ela explora os conceitos e os
desdobramentos de um documento, qualquer que seja seu gênero. Em se tratando da terminologia
mais apropriada, carrega várias expressões que podem ser utilizadas: técnica, pesquisa, método ou
análise. Por outro lado, há uma concordância de que sempre se estarão extraindo e examinando
informações de um documento para que, posteriormente, sejam feitas inferências sobre ele (Fávero;
Centenaro, 2019).
35
Outra compreensão comum nos estudos qualitativos que se detém na pesquisa documental
consiste em se referir a ela como algo que irá agregar conhecimentos provenientes de uma fonte
que não recebeu tratamento analítico, criando novas formas ou reexames de compreensão de um
documento (Kripka, Scheller; Bonotto, 2015).
Mas, o que são documentos? De acordo com Fávero e Centenaro (2019), são registros
fundamentais dos processos sociais que servirão na posteridade para uma reconstrução histórica.
Alguns exemplos são papéis oficiais, textos escritos, documentos iconográficos, cinematográficos,
objetos do cotidiano, elementos folclóricos, músicas etc. Também podem ser classificados como
públicos e privados. Como esses registros foram feitos por uma pessoa, pode ser interessante que
o pesquisador saiba para quem ou para que foi documentado.
Os vídeo-documentários são um exemplo de arquivos privados, porque trazem uma
narrativa contida em um documento pessoal. Kripka, Scheller e Bonotto (2015) referem que algo
interessante de se perceber é que os documentos são meios de comunicação, pois foram elaborados
por uma pessoa, em um tempo e espaço, com determinada intencionalidade, por isso é necessário
contextualizar a informação. Ao considerar o contexto, a utilização e a função do documento, uma
pesquisa pode selecionar os mais autênticos e representativos para responder a determinada
problemática, contemplar os objetivos e ter como subsídio o apoio teórico.
Por outro lado, algumas limitações quanto à realização de pesquisas documentais podem
existir, como o fato de algum fragmento do documento estar danificado, a falta de um formato
padrão dos documentos ou o documento não ter sido formulado com o propósito de fornecer dados
para determinada investigação (Kripka, Scheller; Bonotto, 2015). Os documentos aqui propostos
têm como limitação a falta de um padrão na entrevista, determinadas falas são pronunciadas de
maneira ininteligível e, em alguns momentos, o áudio do documentário Estamira fica mudo.
4.1 Participantes e instrumentos
Os protagonistas dos vídeos são pessoas que já foram entrevistadas por terceiros e
relataram, em vídeos no formato audiovisual, sua experiência com o sofrimento psíquico, como já
salientado. Foram consideradas participantes da pesquisa todas as pessoas presentes nos vídeos que
expressaram, em primeira pessoa, um relato sobre o sofrimento psíquico. Abaixo, seguem
36
informações obtidas das impressões causadas quando assistimos aos vídeos e os dados contidos
neles.
O vídeo ‘Estamira’, um documentário de 2005 (duração de 1 hora, 54 minutos e 11
segundos) dirigido por Marcos Prado, é protagonizado por Estamira Gomes de Souza, senhora
negra, que vivia como catadora de material reciclável no maior aterro sanitário da América Latina,
o Jardim Gramacho, em Duque de Caxias-RJ, aparenta ter 60 anos e aparece no vídeo com os
cabelos desarrumados, roupas velhas e sujas. Estamira é mãe de três filhos e mora sozinha.
A conferência ‘I am not a monster: schizophrenia’, proferida em 2017 por Cecília
McGough, foi produzida no TEDx talk (duração de 14 minutos e 40 segundos), em um evento
sediado na Pensilvânia-EUA. Trata-se de uma conferência legendada em língua portuguesa,
traduzida por Carl Lenny Homer e revisada por Maricene Crus. Cecília é uma mulher americana,
fundadora da Organização Students With Psychosis, conferencista no auditório da University Park
(Pensilvânia-EUA), branca, com cabelo acima da orelha, com, aproximadamente, 30 anos, usa
brincos pequenos, vestido cinza, blazer preto, salto alto preto, microfone tipo headset discreto e
segura, com a mão direita, o controle de slides.
O vídeo ‘A loucura entre nós’, documentário de 2016 (duração de 1 hora, 16 minutos e 05
segundos) dirigido por Fernanda Fontes Vareille, é protagonizado por usuários, seus familiares e
profissionais do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, em Salvador-BA. Nesse vídeo-
documentário, destacamos os seguintes participantes:
Djavan (pseudônimo)2, um homem de, aproximadamente, 35 anos de idade, negro, com
semblante leve e fala tranquila, tem sotaque soteropolitano e aparece sentado fazendo artesanato,
no interior do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira; veste uma camisa em que está escrito “Projeto
Cria Mundo”.
Nadir é uma mulher branca, que aparenta ter, aproximadamente, 50 anos, sempre muito
inquieta e querendo tomar a frente das filmagens; fala em tom emocionado e aparece andando
sempre nos corredores do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira.
Elisângela é mulher de aproximadamente 40 anos, parda, soteropolitana, pobre, favelada,
fumante, aparece em algumas imagens esmorecida pela medicação, mora na casa da mãe e suas
cenas transitam entre momentos no hospital psiquiátrico ou na sua residência, eventualmente ela
usa uma camisa em que está escrito Projeto Cria Mundo.
2 Pseudônimo atribuído, assim como “Cartola” adiante, pois não conseguimos identificar o nome dessas pessoas.
37
Leonor aparenta ter aproximadamente 50 anos e ser favorecida economicamente, ela é
branca, soteropolitana, usa sempre roupas novas no tom preto, ou vestido na cor caqui com cinto,
ou vestido azul com lenço, relógios, pulseiras, brincos, anéis, colares, aparenta se identificar muito
com a prática de artesanato e de pintura em telas. Fumante, sua fala é apressada e com um tom
rouco, mas sempre com um ar de riso sutil que aparenta contentamento. Aparece no vídeo
transitando no hospital, e na sua residência. Pouco antes de encerrar o documentário surge uma
imagem dela passeando pela beira mar e um texto indicando o seu suicídio: “Em uma noite de abril
de 2014, um mês após o término dessa filmagem, Leonor decidiu saltar para a morte”.
Cartola (pseudônimo) é um homem de, aproximadamente, 35 anos, pardo, sorridente, que
está sentado em uma sala no interior do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, onde aparece
segurando um pincel, pois estava realizando atividade de pintura em papel, assim como outras
pessoas no mesmo local.
4.2 Análise dos dados
O conteúdo dos vídeos foi submetido à análise, de acordo com a proposta dos mapas
dialógicos (inicialmente chamados de mapas de associações de ideias) (M. J. P. Spink, 2010; M. J.
P. Spink; Lima, 2013; Nascimento, Tavanti; Pereira, 2014). Nesses mapas, são explorados
enunciados que compõem categorias semânticas que se distinguem das demais. Conforme aponta
os referidos autores, esse recurso organiza o conteúdo, inicialmente, de acordo com os objetivos
da pesquisa, porém, depois de constatar os sentidos construídos pelas pessoas, essas categorias vão
se redefinindo e se aproximando do que é relatado.
Na prática, isso é feito por meio da transcrição sequencial, que é o primeiro passo para
identificar quem fala e sobre o que versa, e da transcrição integral, que preserva, literalmente, todas
as falas e expressões reveladas. Desse modo, o conteúdo de todos os vídeos foi transcrito na íntegra.
Essas ferramentas fornecem subsídios para se construir uma tabela inserida pelo
processador de texto “Microsoft Word”, na qual se pode visualizar o cruzamento de linhas que
identificam os participantes com as colunas que apresentam as categorias/temas (M. J. P. Spink,
2010; Nascimento, Tavanti; Pereira, 2014). (Estrutura no Apêndice A).
38
4.3 Aspectos éticos
Gergen (2006) explora a dissolução de limites da Ética no Pós-Modernismo exemplificando
que noções de arquitetura, gêneros musicais, tradições culinárias, escolas artísticas, dentre outras
nuances situadas na contemporaneidade, não são tão puras. Para o autor, a premissa fundamental,
na atualidade, é de que os fatos carregam um caráter híbrido, com fronteiras imprecisas e
propositalmente confundíveis, que se opõem a um tempo moderno, em que se conformava estudar
o ser humano admitindo uma compreensão fragmentária de caráter unilateral.
M. J. P. Spink (2000) argumenta, ainda, que, para compreender a noção de Ética,
precisamos nos informar sobre o que era reconhecido em uma época e sociedade. Isto é, apenas em
meio a determinado tecido social é que temos o parâmetro intersubjetivo das prescrições dialogadas
sobre o que é certo ou errado. Logo, conforme varia a localização de um fato, também poderá variar
a percepção do que seja ético. Entretanto, em outra obra, a autora traz uma objeção comum a esse
relativismo: “Um dos medos é que o relativismo passe a ser licença para toda e qualquer coisa. Já
que tudo é construído, tudo vale. Há também o medo do revisionismo histórico” (M. J. P. Spink,
2010, p. 17).
No primeiro desenho da pesquisa, quando nossa proposta era de analisar as histórias de vida
dos usuários do CAPS III, o projeto foi submetido ao Comitê de Ética da Universidade Estadual
da Paraíba (UEPB), conforme a Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), e
foi avaliado e aprovado por meio de parecer consubstanciado.
Posteriormente, em decorrência dos motivos já explicitados no início deste capítulo, foi
submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP-UEPB), através da Plataforma Brasil, uma
emenda que propunha readequação metodológica compatível com o momento pandêmico,
sobretudo no que se refere aos participantes, instrumentos e distensão do cronograma. Tais
modificações foram aprovadas através do parecer consubstanciado que segue no anexo A.
39
5 DOS SENTIDOS PRODUZIDOS
Este capítulo se propõe a analisar e discutir sobre os sentidos produzidos pelas pessoas em
sofrimento psíquico, nos vídeos “Estamira”, “I am not a monster: schizophrenia” e “A loucura
entre nós”, tendo como referencial os objetivos da pesquisa – analisar os sentidos produzidos sobre
o sofrimento psíquico em relatos de usuários de Saúde Mental; analisar como se constroem, nas
narrativas desses sujeitos, o surgimento e a permanência do sofrimento psíquico; identificar os
discursos (religioso, asilar, reformista etc.) que referenciam o sentido que eles atribuem ao
sofrimento; e identificar o posicionamento dessas pessoas acerca do diagnóstico elaborado pelo
saber médico. Cabe destacar que prevalece nos vídeos o formato não estruturado das entrevistas,
pois, em nenhum momento, escutam-se indagações de entrevistador.
5.1 Análise dos relatos
Na maioria dos relatos, o sofrimento psíquico é nomeado com expressões que remetem ao
saber médico-psiquiátrico, isto é, nomenclaturas técnicas, taxonomias de manuais, como a
Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) ou descrição de
sintomas em contrapartida a outros saberes.
Cecilia: Mas o que é esquizofrenia? É importante pensar na esquizofrenia como um guarda-
chuva de diagnósticos. A NAMI [National Alliance on Mental Illness] mostra diferentes
sintomas como forma de diagnosticar a esquizofrenia, tais como delírios e alucinações, que
são as características principais da doença. É muito importante saber que uma pessoa pode
ter esquizofrenia e não ter delírios e nem alucinações. A história de cada pessoa com
esquizofrenia é única.
[...]
há um desequilíbrio químico dentro da minha cabeça (Conferência: I am not a monster:
schizophrenia).
Djavan: Eu tenho esquizofrenia. É... [pausa] Acho que é F G vinte ponto zero.
(Documentário: A loucura entre nós).
Elisângela: A senhora sabe que eu só tenho distúrbio bipolar. Eu só tenho distúrbio bipolar
eu sou uma pessoa que pode viver na sociedade como qualquer um outro, como qualquer
um outro, eu não necessitava tá aqui nesse módulo C não, aqui é o módulo das mais
perigosas [Fala se dirigindo a sua mãe que lhe visita por trás de alambrado do hospital]
[...]
dessa vez agora eu tive um transtorno que foi um transtorno não foi nem de humor, num foi
nem transtorno bipolar, eu tive uma crise nervosa
40
[...]
É eu queria no lugar de, de, eu sinto falta do fluoxetina porque o trabalho me estressa demais
as vezes eu fico com medo de entrar em depressão. (Documentário: A loucura entre nós).
Leonor: Eu num fiquei em pânico, não fiquei desesperada, num sei tá acontecendo algum
fenômeno em mim, sabe? Que eu tô muito assim muito mais tranquila que na verdade eu
sou uma pessoa tranquila, eu detesto ser estressada, entendeu!? Embora seja uma pessoa às
vezes nervosa impaciente as vezes estressada, mas eu não gosto de ser assim, entende?
Minha natureza é de tranquilidade savo...sabe? De paz, eu gosto de paz, de tranquilidade,
eu gosto de calma, não gosto de gente agitada, sabe? Do meu lado eu num gosto. [fala
enquanto firma bem e com cuidado sua pequena planta no solo]
[...]
Eu não me considero louca, mas la sociedad me tacho loca, e como lo te disse jo soy un
subproduto lixo de la sociedad, jo soy loca, para la sociedad jo soy loca. Jo soy bipolar,
endendes bipolar? Hora está em rima hora essa en baho, nem siempre essa en meio, jo tomo
medicacion e faço question de tomar medicacion para manter meio, la media, la media, nem
a rima nem abarro, en media en meio, compreendes Fernanda [diretora do documentário]?
Claro que jo não voy sair a las ruas de máscara porque vão me aprisionar naturalmente,
então jo tenho cuidado com mi vida, sabe!?
[...]
Dois mil e treze eu exercitei algumas coisas, mas mais assim associadas ao meu momento
de crise depressiva, entende?
[...]
acho que é coisa de minha paranoia mesmo, sei não
[...]
eu acho que se eu não andar muito na linha, se eu vacilar, é como se as pessoas soubessem
dessa minha fragilidade psicológica [...] (Documentário: A loucura entre nós).
Para explicar a esquizofrenia, a fala de Cecília se baseia na NAMI, sigla da National
Alliance on Mental Illness, uma organização não governamental dos Estados Unidos composta de
familiares, psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, enfermeiros, farmacêuticos e voluntários
dedicados a proporcionar bem-estar às pessoas com sofrimento psíquico3. Diante da terminologia
esquizofrenia e da própria citação do termo diagnóstico, quando Cecília diz que “É importante
pensar na esquizofrenia como um guarda-chuva de diagnósticos”, vão sendo apresentadas pistas
de um discurso médico como fonte de saber, demonstrando a familiaridade dela com esse
vocabulário.
Em seguida, Cecília disse: “É muito importante saber que uma pessoa pode ter
esquizofrenia e não ter delírios e nem alucinações. A história de cada pessoa com esquizofrenia é
única”. Essa é uma argumentação que sugere uma concepção da esquizofrenia diferenciada da
3 Disponível em https://nami.org/About-NAMI/, recuperado em 15 de novembro, 2021.
41
Biomédica, uma vez que, no Compêndio Médico CID10 (Código F20), a esquizofrenia é
caracterizada essencialmente por manifestações delirantes ou vozes alucinatórias:
Os fenômenos psicopatológicos mais importantes incluem o eco do pensamento, a
imposição ou o roubo do pensamento, a divulgação do pensamento, a percepção delirante,
ideias delirantes de controle, de influência ou de passividade, vozes alucinatórias que
comentam ou discutem com o paciente na terceira pessoa, transtornos do pensamento e
sintomas negativos. (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2014, p. 317).
Entretanto, para Cecília, não haveria uma padronização, pois “uma pessoa pode ter
esquizofrenia e não ter delírios nem alucinações”. Para ela, cada pessoa vivencia o sofrimento de
forma particular. Entretanto, finaliza afirmando que tem um “desequilíbrio químico”. Esse
desequilíbrio não ocorre em qualquer lugar, mas “dentro de sua cabeça”, ou seja, em seu cérebro,
aparato de visão organicista responsável por comportamentos, o que reforça, mais uma vez, o apoio
em um saber biomédico.
Djavan também encontra no saber médico a referência para sua fala. Ele é direto, ao indicar
que tem esquizofrenia e localiza, com precisão, a classificação FG20.0, mas sem descrevê-la.
Todavia, esse é um dos códigos distribuídos no Manual de Classificação Internacional de Doenças
e Problemas Relacionados à Saúde. O compêndio, geralmente utilizado pela categoria médica, tem
12 capítulos, sendo que o capítulo V é referente a transtornos mentais e a comportamentais e
subdividido em psicopatologias que variam do F00 ao F99 (Organização Mundial da Saúde, 1997).
Já Elisângela, em três momentos distintos, fala sempre em termos de diagnóstico médico
sobre sua maneira de vivenciar o sofrimento psíquico. No entanto, inicia sua fala afirmando:
Eu só tenho distúrbio bipolar. Eu só tenho distúrbio bipolar, eu sou uma pessoa que pode
viver na sociedade como qualquer um outro, como qualquer um outro, eu não necessitava
tá aqui nesse módulo C não, aqui é o módulo das mais perigosas.
Desse modo, ela nega a necessidade de estar naquele módulo do hospital e afasta qualquer
possibilidade de ser considerada incapaz de viver em sociedade, afinal, ela “só” tem distúrbio
bipolar. A alusão à crise nervosa, quando afirma: “eu tive um transtorno que foi um transtorno não
foi nem de humor, num foi nem transtorno bipolar, eu tive uma crise nervosa”, ganha um realce de
42
algo ocasional, uma eventualidade que é passageira e, consequentemente, produz efeitos de uma
descrição mais branda acerca do sofrimento psíquico.
Em sua fala, Leonor, inicialmente, repete quatro vezes que é tranquila, porém, algumas
circunstâncias que ela não especifica podem surpreendê-la e ela diz que fica “às vezes nervosa
impaciente, às vezes estressada”. Então, a partir do argumento construído, o sofrimento psíquico
vai sendo descrito sem início específico. Cabe observar que, nesse trecho, Leonor se afasta de
qualquer hipótese diagnóstica, pois sequer menciona alguma classificação, admitindo tão somente
que “fenômenos” ocorrem com ela.
Já no segundo trecho, a fala de Leonor traz um enunciado bastante paradoxal, pois, ao
mesmo tempo em que se afasta da loucura, diz que tem algum transtorno, termo utilizado pelo
discurso médico. Ao combinar o idioma espanhol com o português, assim como seus trajes
carnavalescos no momento em que fala, indica alegria e entendimento, como alguém que se
considera sã, mas reconhece que, para a sociedade, é considerada louca, portadora de transtorno
bipolar: “Jo soy loca, para la sociedad jo soy loca. Jo soy bipolar”. Para ela, o uso da medicação
regula a oscilação entre os dois polos de humor, e esse uso é fundamental para que não seja excluída
ao vivenciar seu modo de ser que, às vezes, é peculiar. O uso do termo ‘bipolaridade’,
provavelmente por ser uma terminologia de cunho psiquiátrico, suaviza o estigma de loucura.
Leonor também utiliza três diagnósticos para indicar o tipo de sofrimento que vivencia,
uma linguagem de origem médica, por recorrer a nomenclaturas técnicas de manuais. Ela se
apropria, de forma imperativa, de sua condição, dizendo na primeira pessoa: “jo soy bipolar”, “meu
momento de crise depressiva”, “minha paranoia”, “minha fragilidade psicológica”, corroborando
o sentido psiquiátrico ao mesmo tempo em que se posiciona com astúcia ao discernir julgamentos
e punições que sofreria caso saísse com adereços inoportunos: “Claro que jo não voy sair a las ruas
de máscara porque vão me aprisionar naturalmente, então jo tenho cuidado com mi vida, sabe!?”.
Essa fala também sugere seu zelo pela vida e que ela cuida de sua existência e da forma como é
vista.
É importante ressaltar que alguns entrevistados dialogam com o discurso médico
psiquiátrico, mas, ao mesmo tempo, posicionam-se de maneira ativa, construindo outros discursos
sobre a loucura, como se observa nos relatos a seguir:
Estamira: Bem, eu sou perturbada mais lucido e sei distinguir a perturbação entendeu como
é que é? E a coitada da minha mãe não conseguia, mas também pudera eu sou Estamira,
43
num é? Se eu não der conta de distinguir a perturbação eu não sou Estamira eu num era,
num seria, e ainda teve [tosse]
[...]
A doutora me perguntou se eu ainda tava escutando as voz que eu escutava, e eu escuto os
astros, é, as coisas os pressentimento das coisas e eu tem hora que eu fico pensando como
é que eu sou lúcida. Estamira sem carne, Estamira invisível vê, vê e sente as coisas tudinho,
por isso que eu sou Estamira mesmo, né? Tem vez que eu fico pensando, mas eu não sou
um robô sanguino, eu não sou um robô
[...]
Sou louca, sou doida, sou maluca, sou azougada, sou essas quatro coisas, mas, porém
consciente, lúcido e ciente, sentimentalmente, só comecei revelar em oitenta e seis
[...]
Atesto que Estamira Gomes de Sousa portadora de quadro é, psicótica de evolução é...é
crônica alucinações auditiva, ideias de influen-influencias discurso místico, deverá
permanecer em tratamento psiquiátrico continuando-continuando. [Estamira lê o que está
escrito em um laudo]. Bem, a deficiência mental eu acho que tem é quem é imprestável
né!? Ora, quem tem problema mental [...] Bem, perturbação também é né, perturbação inda
que tive pensando, perturbação também é, mas não é deficiência, perturbação é perturbação,
qualquer um pode ficar perturbado. (Documentário: Estamira).
Cecília: Parece que tive esquizofrenia toda a minha vida. Mas ela se tornou evidente no
meu primeiro ano do ensino médio e, então, foi aumentando [ênfase] na faculdade. Em
fevereiro de 2014, meu primeiro ano de faculdade, minha vida mudou, quando tentei me
suicidar. Por quê? Minha vida se tornou um pesadelo enquanto estava acordada.
[...]
Comecei a ver, ouvir, e sentir coisas que não existiam [...] Estou muito bem, fingindo que
não estou vendo o que vejo, ou simplesmente ignoro. Mas tenho gatilhos, como a cor
vermelha que desperta isso em mim.
[...]
Agora, tornei-me defensora da saúde mental. Não vou me deixar levar pela autopiedade por
causa do meu diagnóstico. Ao contrário, quero usá-lo como um denominador comum, para
ajudar outras pessoas que têm esquizofrenia. E não vou descansar até que todas as pessoas
com esquizofrenia no mundo deixem de ter medo de dizer: “Eu tenho esquizofrenia”
[...]
Precisamos mudar a cara da esquizofrenia, porque sua imagem atual está errada. Nunca
permita que alguém diga que você não pode ter uma doença mental e que também não pode
ser mentalmente forte. Você é forte, corajoso, é um guerreiro
[...]
eu tenho esquizofrenia e não sou um monstro (Conferência: I am not a monster:
schizophrenia).
Djavan: Ser louco, para mim, é não ter domínio psicológico. Não ter capacidade
psicológica de se manter, de se ajudar e de ajudar os outros. [pausa] Eu não me acho doente
mental. Se parar um pouquinho para analisar eu tenho até medo de doente mental, sabia?
Tenho até medo. Mas como eu tenho medo, alguns também podem ter medo de mim, né!?
[fala enquanto prossegue fazendo artesanato].
[...]
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Eu sei das minhas limitações, mas eu sei também onde eu posso chegar. Muitos num
acreditam [quase ininteligível] no meu poten...no meu potencial. Eu não posso trabalhar
sob pressão. Também não me faz bem trabalhar sob pressão. Eu gosto mesmo é de ficar à
vontade. Meu pai é a mesma coisa, meu pai também falou fale-falo-falou que ele não pode
trabalhar sob pressão. Faz mal. E é uma coisa desagradável trabalhar sob pressão. “Faça
isso! Chega assim, num sei o quê, num sei o quê” [fala gesticulando com a mão esquerda
como se interpretasse os ditos]. Um patrão cobrando muito a pessoa, eu num faço nada.
Assim tem que me deixar a vontade. Dizem que eu, que eu sou, sou lento, mas eu não sou
lento. Eu tenho o meu tempo, sabe? Eu tenho o meu tempo pra fazer aquilo que me agrada
(Documentário: A loucura entre nós).
Apesar de ser "perturbada", como se autodeclara, Estamira também se declara lúcida e tem
capacidade de discernir: “Se eu não der conta de distinguir a perturbação, eu não sou Estamira, eu
num era, num seria”. Destarte o efeito do sentido desse relato é ocupar um patamar diferente,
ressignificando o que é negligenciado pelo enfoque asilar-manicomial.
Estamira também pondera sobre as vozes que ela escuta e, nesse instante, as relações de
poder são invertidas, e seu posicionamento ganha protagonismo, pois, diante da pergunta da
doutora, ela considera ouvir as vozes como constitutiva de sua pessoa e questiona sua lucidez: “eu
escuto os astros, é, as coisas os pressentimento das coisas e eu tem hora que eu fico pensando como
é que eu sou lúcida”.
Inclusive diz que não é um “robô sanguino”, como se reafirmasse sua singularidade em
oposição a comportamentos padronizados, automáticos. Ou seja, no corpo em que habita, ela é um
sujeito que descreve sua experiência e vai além de um mero reflexo ou descrição das situações,
com identidade singular e sua respectiva forma de se conectar com um sagrado que, em seu
entendimento, são os astros.
No decorrer de sua fala, embora Estamira aceite ser chamada de “louca, doida, maluca,
azougada”, acrescenta: “mas, porém consciente, lúcida, ciente e sentimentalmente”. Esse
antagonismo remete à ideia de que a loucura não é apenas “desrazão”, ideia reforçada por duas
conjunções adversativas – “mas”, “porém”. Além disso, mais adiante, Estamira continua refutando
esses atributos com descrições alternativas que são sempre positivas e inerentes ao ser humano, ou
seja, “louca”, porém “consciente”, “doida”, porém “lúcida”, “maluca”, porém “ciente”,
“azougada”, porém “sentimentalmente”.
No último fragmento, quando lê seu laudo médico, Estamira reflete sobre julgamentos que
não estão contidos naquele documento, mas que são importantes de se trazer em pauta. O primeiro
deles é a “deficiência mental”. Ela recusa o uso dessa terminologia por aludir a algo que seja
45
inválido: “eu acho que tem é quem é imprestável né!?”, indicando não se enquadrar nesse grupo e,
portanto, reafirmando ser alguém útil, capaz. Já a perturbação, para ela, teria caráter corriqueiro, o
que preservaria sua posição de alguém útil.
Cecília, nos trechos da Conferência I am not a monster: schizophrenia, apesar de carregar
incerteza quando recorre ao verbo “parece”, prossegue dizendo “tive esquizofrenia toda a minha
vida”. Assim, o relato é, antes de qualquer coisa, sobre a própria experiência do tempo vívido, pois
denota o sofrimento psíquico como evidente desde o início de sua trajetória de socialização.
Todavia, o agravo disso vem junto com sua carreira nos estudos, momento em que ela chega a
tentar pôr fim na própria vida para se proteger do que lhe trazia sensações aflitivas: “Minha vida
se tornou um pesadelo enquanto estava acordada”.
Cecília enfatiza que vai “aumentando”, portanto ela não teve os sintomas da esquizofrenia
repentinamente, mas indica o processo gradativo no qual se intensificaram os delírios ou
alucinações. Um apontamento pertinente para compreender como as pessoas podem vivenciar, de
maneira crescente, o sofrimento e continuar a se reafirmar na perspectiva de que é alguém capaz
apesar de tais vivências.
Negando os gatilhos para si, Cecília consegue viver bem, porém, mesmo se apoiando nessa
negação, ela sabe que existe uma sensibilidade peculiar para algo, mas que esse algo precisa ser
cada vez mais evitado para se proteger. O sofrimento psíquico é explicado como um fenômeno
necessário de ser driblado, uma estratégia que se constata na expressão “fingindo” que ela utiliza:
“Estou muito bem, fingindo que não estou vendo o que vejo, ou simplesmente ignoro.” Tal
estratégia é uma forma de enfrentamento diante da experiência de ouvir vozes, como propõe o
Movimento Internacional de Ouvidores de Vozes, que será explicitado mais adiante na discussão.
Cecília também produz posicionamentos em que reage ao seu diagnóstico, quando se dispõe
a sair de um lugar onde teriam pena dela mesma: “Não vou me deixar levar pela autopiedade por
causa do meu diagnóstico”. Seu relato dá margem para se compreender a esquizofrenia como um
fenômeno que é imprescindível ser reconsiderado, se necessário, por meio de frequentes tensões
com sentidos depreciativos ou que se refira aos sujeitos como perigosos e inconvenientes. Essa
revisão no conceito de loucura não apela por piedade, mas, pelo reconhecimento da dignidade, da
humanização e da potência dessas pessoas.
Ela não questiona o que nomeia de “doença mental”, mas que, ainda que haja esse
julgamento, os sujeitos precisam ser encorajados e assumir uma identidade de resistência, conforme
46
sugere ao usar os adjetivos “forte, corajoso, guerreiro” para demonstrar que é possível ir além de
uma ideia de loucura que, ao longo dos séculos, foi posta em um lugar de passividade e
silenciamento. Cecília, assim como Estamira, adota uma postura de legitimar seu diagnóstico, mas
associado a uma constatação: “eu tenho esquizofrenia e não sou um monstro”.
Djavan também questiona e afasta de si o rótulo de louco, pois, embora conceda a entrevista
no interior de um hospital psiquiátrico, ele não se acha aquele sujeito ausente de domínio
psicológico ou, como diz “Eu não me acho doente mental”. Entretanto a contradição em seu
discurso surge quando ele fala sobre certa periculosidade da loucura, pois afirma: “Se parar um
pouquinho para analisar, eu tenho até medo de doente mental, sabia? Tenho até medo. Mas, como
eu tenho medo, alguns também podem ter medo de mim, né!?”.
Em seguida, no relato de Djavan, o sofrimento psíquico também não o impede de enfatizar
seu potencial, embora ele diga, de maneira quase ininteligível, e gaguejando: “Muitos num
acreditam no meu poten...no meu potencial”, revelando certa insegurança de se colocar de maneira
ativa. Apesar disso, ele procura legitimar a maneira de trabalhar e afirma que não pode trabalhar
sob pressão, pois se torna mais produtivo quando fica à vontade: “Dizem que eu, que eu sou, sou
lento, mas eu não sou lento. Eu tenho o meu tempo, sabe? Eu tenho o meu tempo pra fazer aquilo
que me agrada”. Então, Djavan critica um tipo de funcionalidade que desrespeita seu ritmo e impõe
aceleração.
Por outro lado, em alguns vídeos, há relatos que reforçam os sentidos comumente
associados ao sofrimento psíquico pelo discurso médico asilar:
Nadir: O sofrimento dói, meu pai é doente mental morreu por nós, entregou a meu tio pra
meu tio me criar e meu tio morreu de acidente, foi acabou com minha família e acabou com
minha vida, eu sou estudante do segundo grau, professora e contadora. (Documentário: A
loucura entre nós).
Elisângela: Cheirei muita cocaína, fumei maconha, misturei redbull com vodka, capeta, e
aquele, aquela bebida coquetel, por isso tô assim [pausa].
[...]
Comecei a destruir tudo que tinha no meu quarto ai minha mãe pegou e me trouxe e me
internou aqui onde estou agora nooo, no módulo C, tô la já tem mais de 12 dias, já tem mais
de 12 dias e tô querendo ir embora, porque aqui não é lugar da gente ficar, é lugar pra gente
se tratar.
[...]
A doença tem vários momentos críticos né!? Que num dá nem pra distinguir assim o porquê
como e como ela começa, porque quando dou por mim eu já já fiz mil e uma loucuras, mas
agora vou chamar por Deus vou ter força vou lutar pra não adoecer mais, tomar os meus
remédios certinho, porquê num é brinquedo não viu, uma vida dessa num é brinquedo não,
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a pessoa destrói tudo que tem, até as roupa, até as roupa toco fogo nas roupas. (pausa). Se
tiver agressiva deixa amarrada, graças a Deus eu num fiquei um dia amarrada naquele
módulo, fiz poucas amizades, mas fiz amizades, porque as outras, tava meio descontrolada
num dava pra fazer amizade não, muito mais descontrolada do que eu [...] (Documentário:
A loucura entre nós).
Na fala de Nadir, são elencadas algumas tragédias em tom de consternação. A primeira
delas foi com seu pai, que, além de ser “doente mental, morreu por nós” e, posteriormente, seu tio,
que havia ficado encarregado de sua criação, que morre vítima de acidente. O sofrimento psíquico
é nomeado como doença. Essa forma de se expressar se refere ao entendimento biomédico
tradicional e indica uma consideração negativa, porque aquele estado é patológico. Em seguida, é
necessário considerar seu sentimento de desamparo pelos sucessivos óbitos: “acabou com minha
família e acabou com minha vida”. Então, ela se posiciona como alguém com conhecimento e em
constante estado de luto.
Já Elisângela, no primeiro trecho, diz que o sofrimento psíquico foi decorrente do abuso de
diversas substâncias. Para ela, o motivo de sua atual condição foi por causa do uso intenso de cada
uma das drogas elencadas (incluindo algumas de natureza ilícita), que repercutiram gravemente em
sua saúde mental. É pertinente notar que, em outros trechos do relato, ela indica um fluxo no qual
repensa diversos sentidos daquele fenômeno, ora nomeado de “transtorno”, ora de “doença”. De
toda maneira, estão sempre revelando uma experiência negativa.
No segundo trecho, ela admite que precisa se tratar no hospital, ainda que de modo
provisório: “aqui não é lugar da gente ficar, é lugar prá gente se tratar”, e corrobora a perspectiva
de que o tratamento em ambiente hospitalocêntrico pode ser conveniente, mas de forma temporária,
pois pertence a outro lugar.
Nesses fragmentos, Elisângela revela que existem vários momentos críticos. A confusão
gerada pelo que chama de doença é tamanha que sente dificuldade de identificar a origem, pois
“não dá pra distinguir assim o porquê como e como ela começa”, assim como são utilizadas várias
possibilidades de lidar com a loucura, desde um enfrentamento investido pelo sagrado a um
enfrentamento materializado na contenção medicamentosa: “vou chamar por Deus, vou ter força,
vou lutar prá não adoecer mais, tomar os meus remédios certinho”.
Porém, ‘o certinho’ a que se refere Elisângela é muito relativo, porque, no tocante à
utilização do medicamento, há discursos que atacam diretamente a possibilidade de se usarem os
remédios, como mostram estes relatos:
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Estamira: A doutora passou remédio prá raiva [gargalha]. Eu fiquei muito decepcionada
muito triste muito, muito profundamente com raiva dela falar uma coisa daquelas, é, e ela
ainda disse sabe o quê? Que Deus que livrasse ela que isso é magia, telepatia, a mídia e o
carai, porra porra pra que pô? Ela me ofendeu demais da quantia. Aqui ó, o retorno quarenta
dias, presta atenção nisso. Ora, e ainda mais eu conheço médico médico médico médico
médico médico direito, entendeu? Ela é a copiadora eu sou amigo dela eu gosto dela, quero
bem a ela, quero bem a todos, mas ela é a copiadora, eles estão sabe fazendo o quê?
Dopando quem quer que seja com um só remédio, num pode! O remédio? Quer saber mais
do que Estamira, presta atenção: o remédio é o seguinte se fez bem para, dá um tempo, se
fez mal vai lá reclama como eu fui três vez, na quarta vez que eu fui atendida, entendeu?
Mas eu não quero mal deles não, eles tão copiando o tal de diazepan entendeu?
[...]
tudo dopante esses remédio, eu acho que é por isso que eu tô com a língua assim. [pausa,
abre e fecha a boca como se estivesse sem saliva]. Desgovernada, eu tô desgovernada, sabe
o que é uma pessoa desgovernada? Uma pessoa nervosa assim, querendo falar sem poder,
é agoniada, e eu num sei o que é que eu faça [...] (Documentário: Estamira).
Djavan: Eu tomo três tipos de remédios, sendo que eu tomo: três de manhã e 5 a noite. Eu
tomo dois haldol de manhã com fenergan, e tomo a noite dois amplictil, dois fenergan e um
haldol, peraí... de noite dois amplictil, dois haldol e um fenergan, melhorou agora, falei
certinho! Eu me sinto bem, sei que esses remédios são potentes, mas eu me sinto bem. Mas
esses remédio... Vou abrir o verbo, posso abrir o verbo? Posso? [sorri], o remédio me
resseca, eu acho que é o amplictil, porque todo remédio tem seu lado bom né, mas também,
também tem seu lado negativo: os efeitos colaterais. Esses remédios eu aprendi que eles às
vezes eles viciam (Documentário: A loucura entre nós).
As colocações de Estamira sugerem uma postura crítica no que diz respeito à Psiquiatria
asilar medicamentosa. Ela inicia sua fala com certa ironia: “A doutora passou remédio prá raiva
[gargalha]”. Em seguida, questiona as colocações da médica, diz que se sentiu ofendida e utiliza a
palavra “copiadora” para se referir a ela. Portanto, Estamira elabora uma análise contundente sobre
a medicação, pois denuncia a forma mecânica como os remédios são receitados sem convocar a
opinião dos sujeitos e considerar seus projetos terapêuticos singulares, como fica evidente nesta
fala: “devolvi na farmácia, falei com o médico e devolvi porque eu não estava precisando desse
remédio, porra, quem sabe sou eu, quem sabe é o cliente”. Para ela, só é coerente usar os remédios
se fizerem bem, de modo contrário, é necessário reclamar, e os profissionais de Saúde Mental
precisam ouvi-la.
No segundo trecho, ela usa a palavra “dopante” para se referir à letargia causada pela
medicação e diz que fica “querendo falar sem poder, é agoniada”, considerando o medicamento
como uma modalidade coercitiva de contenção que bloqueia as distintas formas de se expressar ou
agir. Estamira ainda associa, por meio de uma linguagem não verbal, um possível efeito colateral
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dessas medicações, ao fazer um gesto de abrir e fechar a boca como se estivesse sem saliva, para
advertir sobre sua boca ressecada, e, consequentemente, enfatizar os prejuízos de obedecer ao saber
médico psiquiátrico asilar e medicamentoso.
Depois de indicar as medicações e a posologia, Djavan descreve uma sensação de bem-
estar, mesmo que os remédios sejam potentes. A retórica de que se sente bem é perceptível por seu
relato tranquilo e até sorridente e pela liberdade de falar sobre os aspectos negativos, que, para ele,
dá-se através do ‘ressecamento’. Assim, inicialmente, a relação dele com os medicamentos parece
ser bastante ponderada, entretanto, em seguida, questiona sobre se pode tecer críticas, quando
enuncia: “Mas esses remédio... Vou abrir o verbo, posso abrir o verbo? Posso?”. Seu relato revela,
por meio da conjunção adversativa “mas”, um elemento que considera produzir seu discurso da
forma mais sincera do que os enunciados construídos na circunstância do hospital psiquiátrico
poderiam ocultar, pois ele se autoriza a “abrir o verbo”, ao retratar os prejuízos do medicamento.
No que concerne à vivência em determinadas agências terapêuticas, como os hospitais
psiquiátricos, destacam-se os seguintes relatos:
Cartola: Prá mim sair daqui é como, é um pedaço de mim vai ficar, é...é, aí faz falta né,
você num perde um braço num faz falta!? Se eu sair um pedaço de mim vai ficar, que aí eu
vou ficar sentindo falta, da outra falta-do outro pedaço, num é fácil não gente isso aqui não.
Eu fiz amizade com quase-quase todos os que não tão aqui, todos que ficam presos lá na
nas alas, eu vou sentir falta deles também, né só uma escolha não é o hospital todo, eu sinto
falta deles todo, eu conheço quase todo mundo. (Documentário: A loucura entre nós).
Elisângela: Quando eu tô no Cria Mundo e vejo os interno, eu num me diferencio muito
deles não, porque eu já fui interna várias vezes. Eu já fui interna oito vezes. Então eu vejo
eles com o mesmos olhos que as outras pessoas me veem eu vejo eles, como pessoas
normais. [fala enquanto faz um artesanato com a camisa do “Projeto Cria Mundo]
[...]
O hospital psiquiátrico é loucura, somos todos loucos uns pelos outros, e nós ficamos assim,
nessa tribulação tentando achar uma saída né, que é nossa vida lá fora, nosso convívio
social, nosso convívio social que é o mais importante. [fala sorrindo enquanto está abraçada
e cercada por aproximadamente dez usuários que cantam o hino nacional em coro]
(Documentário: A loucura entre nós).
Cecília: Obter ajuda médica foi a melhor decisão que já tomei. E tenho certeza que não
estaria aqui hoje, se não buscasse uma ajuda médica especializada. Isso tudo resultou na
minha primeira hospitalização. Estive na ala psiquiátrica quatro vezes nos últimos dois
anos. Mas eu não aceitava que tinha esquizofrenia até a minha segunda hospitalização,
porque a polícia foi envolvida (Conferência: I am not a monster: schizophrenia).
Estamira: A desgraçado da família Itália [ela foi casada com um italiano] juntamente com
aquele meu filho me pegaram aqui dentro como se eu fosse uma fera, um monstro
50
algemado, e aquele meu filho ficou contaminado pela terra suja, pelo braço livre, pelo
insignificante parecendo um palhaço lá, lá dentro do hospital, a coisa mais ridícula! [diz
essas palavras em grito de indignação] (Documentário: Estamira).
Nas falas de Cartola e de Elisângela, constata-se um posicionamento favorável ao hospital,
o que sugere que o sentido construído a respeito do sofrimento psíquico concorda com a terapêutica
psiquiátrica recebida, seja pelos motivos apresentados de vínculos de amizade estabelecidos ou por
se tratar de uma ajuda do saber médico-psiquiátrico apropriada para o que se nomeia de
‘esquizofrenia’.
No discurso de Cartola, por exemplo, a identificação com o hospital em que esteve
internado é tão intensa que ele se sente incompleto por se ausentar daquele lugar, um fato tão difícil
que ele repete seis vezes a palavra “falta”. Essa emoção experimentada reflete tamanha angústia a
ponto de comparar com a amputação de um braço, revelando um sentimento de pertença que faz
aquele hospital ser imprescindível para ele. Nesse fragmento, o sofrimento psíquico encontra apoio
em toda a rede que compõe a instituição psiquiátrica: “eu vou sentir falta deles também, né só uma
escolha não, é o hospital todo”. Assim, Cartola se posiciona concordando com a existência e a
imprescindibilidade do hospital, pois, naquele lugar, mantém estimados vínculos com todas as
outras pessoas.
Elisângela também demonstra, em sua fala, um sentimento de pertença à instituição
psiquiátrica, ao declarar que não se diferencia dos internos do Projeto Cria Mundo e que, diversas
vezes, já esteve em condição similar. Assim, ela tenta desconstruir a ideia do hospital como um
ambiente excludente e negativo, porque relativiza o conceito de loucura ao afirmar: “O hospital
psiquiátrico é loucura, somos todos loucos uns pelos outros”. Desse modo, procura minimizar a
visão da loucura como uma ameaça ao convívio social.
Já Cecília começa dizendo: “Obter ajuda médica foi a melhor decisão que já tomei”. Ela
demonstra ter resistido ao diagnóstico de esquizofrenia, pois, somente na segunda hospitalização,
ela concorda com essa classificação: "Mas eu não aceitava que tinha esquizofrenia até a minha
segunda hospitalização, porque a polícia foi envolvida". No entanto, há certa divergência em
relação a Cartola e a Elisângela, uma vez que ela concorda com a instituição psiquiátrica ao se
deparar com a ajuda especializada, mas reafirma seu lugar crítico ao ponderar sobre aquela
internação. Não menos simbólicos são os agentes policialescos que foram envolvidos nesse
convencimento, tendo em vista que não são profissionais da assistência em saúde mental, mas da
segurança pública.
51
Mas, nem sempre, as pessoas entrevistadas concordam com a prática das agências
terapêuticas. Estamira, por exemplo, como vimos, lida com a hospitalização de maneira bem mais
avessa e fundamentada por críticas. Ela recorda uma internação em que foi algemada para ser
contida, uma afronta sem precedentes à liberdade de expressão, como se os outros estivessem se
defendendo de algo ameaçador, apoiado por alguém tão significativo como seu filho, como pode
se constatar neste trecho: “A desgraçado da família Itália [ela foi casada com um italiano]
juntamente com aquele meu filho me pegaram aqui dentro como se eu fosse uma fera, um monstro
algemado”.
Há outras falas que referendam o sofrimento psíquico utilizando um discurso religioso ou
místico:
Elisângela: Eu tomei diazepan, amplictil eeeee, fluoxetina, e carbolitium. Eu sou inocente,
eu sou como uma criança porque eu tenho Jesus no meu coração, todo aquele que tem Jesus
no coração é como uma criança, é como uma criança (Documentário: A loucura entre
nós).
Estamira: Ó, tem o controle remoto superior remoto superior natural e tem o controle
remoto artificial, o controle remoto é uma força quase igual assim mais ou menos igual à
luz, a força elétrica, a eletricidade sabe!? Agora é o seguinte no homem na carne no sangue
tem os nervos, os nervos da, do, da carne sanguina vem a seeer [pausa] os fios, elétrico,
agora os deuses são cientistas técnico, eles controla ele-eles vê aonde ele conseguiu
[...]
É controle remoto na minha força, é olha a câmara artificia-éé, natural num me faz mal, a
que faz mal é a artificial que faz mal o cara. É na costela em tudo quanto é lugar. Aí! [tosse]
[...]
Controle remoto atacou desde manhã a noite inteira perturbando os astros negativos,
ofensivos, ele está pelejando pra ver se atinge uma coisa que se chama de coração meu ou
então a cabeça, eles tão fudido! Tão poderoso ao contrário o hipócrita safado traidor
mentiroso manjado desmascarado que se mete com a minha carne visível com a minha
camisa sanguina, carniça Estamira está fudido, tá fudido comigo até pra lá dos quinto dos
inferno [ênfase]. [Começa falando sentada com a cabeça apoiada no joelho, depois se
levanta e fuma um cigarro].
[...]
O cometa é graande, é por isso que eu passo mal a carcaça, a car, porque ele é muuito
grande, ele num é do tamanho que vocês vê, daqui ele num é lá no alto espaço não, lá no
alto espaço é o reflecos, ele é aqui embaixo, ele num é lá em cima não é aqui embaixo, é
láá onde vocês vê é reflexo, a lua é lá no morro acolá ó, num é lá não assim não, é o reflexos
é o contorno. Aaaaí, manter o controle [ininteligível], manter o controle [ininteligível], aaaí,
aaaí.
[...]
O fogo ele está comigo agora, ele está me queimando, ele tá me, me testando. Sentimento
todos astros tem sentimento, esse astro aqui Estamira não vai mudar o ser, não vou ceder o
52
meu ser a nada, eu sou Estamira e tá acabado, é Estamira mesmo! [ênfase]
(Documentário: Estamira).
Elisângela inicia sua fala discorrendo sobre os diversos medicamentos psiquiátricos que já
tomou e destaca-se quatro variedades diferentes. O enunciado “tomei”, conjugado no pretérito, leva
a entender que não continuava usando no momento em que o vídeo foi gravado. Os efeitos desse
discurso indicam que o sofrimento psíquico já foi tratado e que ela tem uma grande experiência
com os medicamentos. Essa experiência contrasta com a representação de algo infantil, visto que
Elisângela repete três vezes: “ser como uma criança” pelo fato de professar uma fé: “eu sou como
uma criança porque eu tenho Jesus no meu coração”.
Em Estamira se revela um sentido místico, quando ela repete que é o “controle remoto” que
influencia seu corpo, especificamente através de seus “nervos”. O controle remoto a que se refere
é a atuação de uma energia vinda de cientistas e divindades para atacar seus sentimentos e
pensamentos: “os astros negativos, ofensivos, ele está pelejando pra ver se atinge uma coisa que se
chama de coração meu ou então a cabeça”. Além disso, Estamira confronta os astros negativos,
pois ela também se nomeia como astro que não cede a nada. O sentido místico também aparece
aliado a termos da Astronomia – “cometa”, “astros”, “alto espaço” – rituais como o teste do fogo,
a luta de forças ou uma espécie de oração em que pede para manter o controle transcendental:
“Aaaaí, manter o controle [ininteligível], manter o controle [ininteligível], aaaí, aaaí.”.
Outra categoria que se sobressai nos relatos dos vídeos analisados é referente ao
desenvolvimento das tramas familiares, isto é, a mesma família que serve de rede de apoio para
alguns pode ser fonte de sofrimento e desestabilização para outros, como se nota nos trechos a
seguir.
Estamira: Eu Estamira visível e invisível, eu tenho muitos sobrenomes, e esses sobrenomes
vem de todo lugar. Lamentavelmente o pai da minha mãe é famílias de Ribeiro, tudo polícia,
tudo general, tudo num sei o que, né? [...] Ele é estrupador, ele estrupou minha mãe, e fez
coisa comigo. A minha depressão é imensa, a minha depressão não tem cura. [pausa]. É e
quando eu tinha nove anos e eu pedi ele pra comprar uma sandália pra mim, pra mim ir na
festa comprar uma sandália, ele falou que só comprava se eu deitasse com ele. É, eu num
gosto do pai da minha mãe porque ele me pegou com doze anos e me trouxe pra Goiás
Velho eee lá era um, era um bordel. É era um bordel sabe e eu prostitui lá, era da filha dele,
aí o pai do Mernani ele me conheceu lá onde meu avô me deixou lá no bordel, aí eu já tinha
dezessete anos, e gostou demais de mim e deu no meu pé, arrumou uma casa e pôs eu dentro
da casa. Mas o pai do Mernani [filho dela] ele era muito cheio de mulher e eu peguei num
aguentei, larguei tudo dentro da casa, só panhei o menino, panhei o menino e vim embora
pra Brasília. Eu tava lá na casa da, da tia lá em Brasília, apareceu o pai daquela menina lá
53
o italiano e levou eu na casa dele, e deu certo, depois nós fomos morar junto, e ele também
é cheio de mulher, convivi com ele doze anos, tive a Carolina e tive esse que fez o cesáreo,
esse que fez o cesáreo nasceu invisível e eu acho que é o que mais me ajuda é esse que
nasceu invisível.
[...]
A minha cabeça trabalha muito, mas o trocadilo fez com que me separasse até dos meus
parentes, eles num tão vendo também não, eles estão igual Pilatras fez com Jesus. Já me
bateram com pau pra mim aceitar Deus, mas esse Deus desse jeito, esse Deus deles, esse
Deus sujo! Esse Deus estrupador! Esse Deus assaltante de qualquer lugar! De tudo quanto
é lugar! Esse Deus arrombador de casa! Com esse Deus eu num aceito nem picadinha a
carne, nem a minha carne picadinha de faca de facão de qualquer coisa eu num aceito! [fala
indignada, com olhos arregalados] (Documentário: Estamira).
Elisângela: Eu passei três dias porque eu tive uma crise familiar em casa e sai de casa
transtornada, cheguei na rodoviária próximo ao Iguatemi, próximo ao Iguatemi aí eu me
descontrolei, me descontrolei, os seguranças me pegaram e me jogaram no chão aiii eu
peguei consegui sair deles, peguei uma garrafa, feri um policial militar, não foi pela minha
vontade de feri-lo, eu queria ferir o segurança acabei ferindo um policial militar, ai acabei
sendo levada pela SAMU [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência] para o Mario Leal,
mas no Mario Leal num interna mulher, ai num me internaram, lá, o médico aplicou a
injeção e me levou pra casa, ai então fui pra casa depois minha mãe me levou pra aqui, eu
passei três dias aqui no PA [Pronto Atendimento], passei três dias aqui e ai fui embora pra
casa (Documentário: A loucura entre nós).
A família – como um sistema de base, porque, primordialmente, somos influenciados pelas
relações de afeto, cuidado e valores de uma figura paterna e materna ou a elas associadas – serve
de molde para alguns posicionamentos identitários. Estamira produz um discurso crítico a respeito
disso, ao dizer que seu avô, a quem ela se refere tão somente como o pai de sua mãe, estuprou sua
mãe e “fez coisa” com ela. Assim, ela menciona um ato de violência sexual como determinante do
que considera depressão. Além do grotesco atentado à sexualidade, o avô a levou para um bordel
e fez com que ela comercializasse seu corpo. Aqui fica implícito o sentido “desse trabalho”
executado contra sua vontade, conduzido por um parente com mais autoridade do que ela. Ainda
assim, com tamanhas adversidades, sua fala produz, mais uma vez, uma potência de ação muito
significativa, pois ela se empodera como mulher e não concorda com algumas situações em que os
homens a colocavam: “Mas o pai do Mernani [filho dela] ele era muito cheio de mulher e eu peguei
num aguentei, larguei tudo dentro da casa, só panhei o menino, panhei o menino e vim embora pra
Brasília”.
Além disso, Estamira reclama que seus parentes já tentaram converter sua fé contra sua
vontade e deixa explícita sua aversão ao “Deus desse jeito, esse Deus deles, esse Deus sujo! Esse
54
Deus estrupador! Esse Deus assaltante de qualquer lugar! De tudo quanto é lugar! Esse Deus
arrombador de casa!”. Então, no discurso de Estamira, essa religiosidade ocupa um lugar de embate
que não é sem consequências, já que gera distanciamento e indignação como efeito de algo
indesejável e revela o conflito familiar.
Sem entrar em mais detalhes, Elisângela fala de uma crise familiar que a motivou a sair de
casa e desencadeou o que ela nomeia de o transtorno. Ela deixou muito clara a vivência com o
sofrimento psíquico pela via do descontrole e repete duas vezes que, perante os profissionais de
segurança, descontrolou-se e chegou a feri-los. Em seu relato, ela indica ir além da utilização de
recursos subjetivos para lidar com aquele momento crítico, pois utilizou seu porte físico para se
defender daquela contenção dos agentes de segurança. Na circunstância narrada, sua atitude
produziu uma posição crítica em relação àquela abordagem violenta, advinda da situação de
controle.
Outro ponto que se sobressai ao descrever aquele momento é referente à falta de uma
decisão sobre onde ir, pois sempre ficou à margem da decisão de outros, por exemplo, quando
precisa sair de casa, quando é conduzida ao hospital especializado Mário Leal, quando é devolvida
para sua casa e quando é encaminhada ao Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira. Assim, ela traz à
tona o trajeto que pessoas em sofrimento psíquico precisam fazer ao percorrer vários lugares que
se propõem a lidar com a saúde mental.
As relações cotidianas também surgem nos relatos como algo marcante que interfere na
vida dessas pessoas:
Estamira: Me trata como eu trato que eu te trato, me trata como o teu trato que eu te devoro
no teu trato, e faço questão de te devolver em triplo. Onde já se viu uma coisa dessa!? A
pessoa num pode andar nem na rua que mora, nem trabalhar dentro de casa, e nem no
trabalho em lugar nenhum! Aonde o senhor já se viu? Que Deus é esse? Que Jesus é esse?
Que só fala em guerra e num sei o que, num é ele que é o próprio trocadilho, só pa otário,
pa esperto ao contrário, bobado, bestalhado, quem já teve medo de dizer a verdade largou
de morrer!? Largou? Quem anda com Deus dia e noite, noite e dia na boca ainda mais com
deboche largou de morrer? Quem fez o que ele mandou, o que o, o da quadrilha dele manda
largou de morrer? Largou de passar fome? Largou de miséria? Aíí num dá! [tosse e bate a
vassoura que segura no chão como protesto]. Não adianta, ninguém nada vai mudar meu
ser! Eu sou Estamira aqui, ali e lá, no inferno, nos inferno, no céu, no caralho de tudo quanto
é lugar, não adianta, quanto mais essa desgraça, esses piolho de terra suja maldiçoada
excomungada que renegou os homem como único condicional mais ruim eu fico, mais pior
eu sou! Perversa eu num sou não, mas ruim eu sou! E não adianta! (Documentário:
Estamira).
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Leonor: Eu já imagino às vezes que tem câmeras na minha casa, assim no banheiro, na
cozinha no quarto. [pausa] sabe aquela coisa de ser vigiado, de estar sendo vigiado? Então
isso aí pra entrar numa paranoia é daqui pra ali [risos]. Tenho uma sensação em mim que
as pessoas, a sociedade, o mundo, a minha missão aqui na terra é me trancafiar, ficar presa,
entende? me impedir de ser, de viver, de realizar, acho que é coisa de minha paranoia
mesmo sei não [...] eu acho que se eu não andar muito na linha, se eu vacilar, é como se as
pessoas soubessem dessa minha fragilidade psicológica, então às vezes eu tô aqui num canto
e eu vejo duas ou três pessoas ali falando e as vezes olhando pra mim assim eu já tenho
impressão que estão falando de mim, entendeu? E falando negativamente, eu já eu já entro
em pânico, entendeu? Então essas coisas detonam (Documentário: A loucura entre nós).
Em seus argumentos, Estamira protesta sobre a insegurança do seu território quando fala na
impossibilidade de andar em qualquer lugar, mas, especialmente, nas ruas próximas à sua casa, ou
de trabalhar em seu lar: “A pessoa num pode andar nem na rua que mora, nem trabalhar dentro de
casa e nem no trabalho em lugar nenhum!”. Portanto, o cotidiano representa ameaça para algumas
pessoas no que se refere ao seu direito de ir e vir. Para se defender desse cenário hostil, ela produz
um discurso com indignação atacando Deus e a quem nele acredita ao nomeá-los de “quadrilha”.
Estamira usa um tom ofensivo para caracterizar a divindade maior que deveria garantir segurança
e eliminar as guerras, a fome e a miséria, usando xingamentos para extravasar e se manter ativa
perante seu mal-estar.
Dessa maneira, o dia a dia é algo complexo, em que Estamira fala da insegurança e das
dificuldades, apesar de o agravante para essa situação ser a falta de uma proteção divina: “Quem
anda com Deus dia e noite, noite e dia na boca ainda mais com deboche largou de morrer? Quem
fez o que ele mandou, o que o da quadrilha dele manda largou de morrer? Largou de passar fome?
Largou de miséria? Aíí num dá!”. Ademais, para ocupar um lugar mais ativo, ela enaltece a si
própria, emancipando sua singularidade e soberania que, nem sempre, são assim compreendidas:
“Não adianta, ninguém nada vai mudar meu ser! Eu sou Estamira aqui, ali e lá, no inferno, nos
inferno, no céu, no caralho de tudo quanto é lugar, não adianta...”.
No relato de Leonor, por sua vez, ainda que ela sinalize para a manifestação de um delírio,
isso não anula a posição de resistência perante o discurso asilar de segregação, porque, de uma
forma muito sútil, desconfia da regulação que passa na análise dos outros: “Tenho uma sensação
em mim que as pessoas, a sociedade, o mundo, a minha missão aqui na terra é me trancafiar, ficar
presa, entende? me impedir de ser, de viver, de realizar”. A consequência disso é a necessidade de
repensar como deve agir para se preservar: “eu acho que, se eu não andar muito na linha, se eu
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vacilar, é como se as pessoas soubessem dessa minha fragilidade psicológica”. Ou seja, a narrativa
revela um receio de ser vista como vulnerável e aponta para uma consciência de suas ‘fragilidades’.
No discurso de Leonor, chama-nos a atenção o fato de ela usar elementos não verbais, como
pausa e riso, para tentar suavizar o relato de um tema tão delicado, que é expor a maneira como
vive seu sofrimento. Ela vai até mais adiante, ao se justificar, relativizando o que havia dito: “é
coisa de minha paranoia mesmo”. Assim, usa um pronome possessivo para assumir o diagnóstico
e todas as sensações que experimenta.
5.2 Discussão
Os relatos presentes nos vídeos remetem a sentidos vinculados ao discurso biomédico
quando, por exemplo, o sofrimento psíquico é nomeado por Cecília e Djavan como
“esquizofrenia”, ou quando Cecília menciona os termos “diagnóstico” ou “desequilíbrio químico”,
e Djavan se refere à classificação “FG20.0” presente no manual que norteia as classificações
médicas, conhecido como CID10.
Como visto no primeiro capítulo, a loucura foi concebida de várias formas, desde a mudança
na Grécia Antiga do campo místico para o racional, até se tornar alvo da Psiquiatria asilar no Século
XIX. Nesse momento histórico, destaca-se o tratamento moral, que visava corrigir a alienação
mental, dentre outros, por meio do isolamento social. Esses sujeitos eram desqualificados não só
nas práticas a que eram submetidos, mas também quando eram chamados de doentes mentais
(Pessoti, 1999).
Cabe salientar que o apoio no saber médico asilar, observado nos relatos dos vídeos
analisados, também foi encontrado na pesquisa realizada por Silveira e Nunes (2013). Para as
autoras, determinadas terminologias aparecem com mais aceitação social, fruto da influência
exercida pelo discurso biomédico que continua sendo privilegiado, pois se emudece a loucura ao
passo que se utiliza “doença psiquiátrica”, “transtorno mental” e “depressão” para se referir ao
sofrimento psíquico, ao mesmo tempo em que ocorrem uma psicopatologização da vida e a
perpetuação de modos manicomiais de subjetivar.
Rodrigues (2011), em seu estudo sobre os sentidos construídos por usuários de um CAPS
acerca da saúde-doença mental e suas implicações na desinstitucionalização da loucura, indica o
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uso do termo “desequilíbrio” como vocábulo ainda bastante relacionado ao significado de doença
mental no discurso dos usuários.
Apesar do panorama de acentuada indefinição que foi constatado, eles puderam definir
saúde e doença mental ao seu modo e produziram sentidos que circularam em torno das
seguintes ideias: Saúde mental como equilíbrio das sensações e emoções; alegria;
capacidade de estar bem para fazer o bem aos outros; capacidade de resolver problemas
sem acumulá-los; ficar bom; poder circular na sociedade. Doença mental como
desequilíbrio; acúmulo de problemas; preocupar-se demais com a opinião de terceiros;
desadaptação; descontrole; depressão; algo errado; alteração; peça quebrada no
organismo. (Rodrigues, 2011, pp. 90-91).
Para a autora, eles entendem o sofrimento como uma patologia do psiquismo que precisa
ser curada, e o profissional especializado seria um médico, haja vista que, nas relações de poder
que atravessam a sociedade, ele é quem detém conhecimento e está habilitado para diagnosticar e
tratar esse sofrimento (Rodrigues, 2011). Essa reflexão questiona o papel da prática psiquiátrica
quando reforça a ideia do lugar social da loucura atrelado ao conceito manicomial de anormalidade.
Esse conceito foi explorado em estudos como o de Figueirêdo (2013, p. 33):
Ele vai abarcar não só a doença mental propriamente dita, mas qualquer desvio de
comportamento normal. Nesse sentido, a prática psiquiátrica vai adentrar naqueles que
apresentem desvios mentais, como os loucos, ou potencialmente loucos, ou ainda nos
desviantes morais, como os degenerados e os criminosos; penetrando em várias
instituições, como a família, a escola, as forças armadas, a prisão, objetivando a prevenção
contra a criminalidade e o adoecimento.
Figueirêdo (2013) e Figueirêdo e Cordeiro (2016), ao analisar a construção de categorias
para a loucura de usuários de CAPS e o efeito que elas continuam produzindo, demonstraram que
esses sujeitos vinculam a posição de loucura à de quem ocupa o manicômio. Por esse motivo, é
necessário afastar tal designo, que desqualifica a si ou ao seu grupo de pertença que é "normal".
Assim, é percebido um esforço para evitar, silenciar e projetar nos outros o que é considerado
estranho, possivelmente por não se adequar a um discurso alinhado com o normal sob o ponto de
vista da Psiquiatria, da Psicologia e da Psicanálise.
58
De acordo com Pessoti (1999), as terminologias atribuídas ao que seja sofrimento psíquico,
no discurso contemporâneo, não são casuais, mas determinadas pelas circunstâncias sócio-
históricas que estão em permanente transformação. Assim, expressões como louco, doente mental,
transtorno mental e taxonomias, extraídas de manuais como o CID-10 ou o DSM-5, são convenções
de determinada época e sociedade em que o saber psiquiátrico exerce impacto.
Salles e Barros (2007), além de encontrar esse discurso ligado ao saber biomédico em seu
estudo acerca das representações sociais de usuários de um CAPS e sua rede de pessoas sobre
doença mental e inclusão social, apontaram a identificação muito acirrada de tais discursos com as
instituições psiquiátricas, assim como encontramos nos relatos de Cartola e Elisângela, assinalados
anteriormente. Portanto, a nova estratégia em saúde mental não garante, por si só, que o
posicionamento favorável ao hospital e o entendimento das pessoas como "pacientes" irão
desaparecer.
Nos vídeos apresentados, também se sobressai um posicionamento favorável à
medicamentalização. Para Caron e Feuerwerker (2019), o uso de medicação é impulsionado pela
centralidade da Psiquiatria, bem como a influência do conhecimento neurocientífico e da
psicofarmacologia ao tratar do aparato organicista que é nosso corpo. Toda essa força bioquímica
é alicerçada na indústria médico-farmacêutica, nos meios de comunicação em massa, nos
periódicos científicos e nos órgãos de saúde mental e está presente no discurso das pessoas, como
Leonor, que diz que usa medicação para regular sua bipolaridade.
Favero et al (2019) indicam que é imprescindível superar a percepção de que o
medicamento é o recurso principal no processo saúde-doença e ampliar o olhar para toda uma
complexidade que há, especialmente no tocante à subjetividade e à ética do cuidado envolvida no
atravessamento de momentos angustiantes. Para essa gradual transição de postura, os grupos de
Gestão Autônoma da Medicação (GAM) são um contraponto encontrado na literatura, pois
propõem retirar os usuários de um lugar alheio ou de invisibilidade para que se posicionem no que
julgam ser mais apropriado para eles, que são a parte mais interessada.
Embora o discurso que adota a perspectiva médico-psiquiátrica como fonte de saber seja
frequente, como vimos, há relatos nos vídeos analisados que constroem outros posicionamentos.
Um novo lugar para a loucura é afirmado, por exemplo, nas falas de Estamira, que diz ser “lúcida”,
apesar de “perturbada”, além do momento que posiciona sua singularidade já que não é um “robô
59
sanguino” e critica a medicalização, e Djavan, que recusa a classificação de “doente mental” e fala
que as pessoas desacreditam em seu potencial, mas que tem seu próprio ritmo.
Soares (2020) tece contribuições a esse respeito, ao contestar o lugar de passividade em que
os usuários de saúde mental foram colocados, e afirma que se apresenta uma posição de resistência
ao poder psiquiátrico quando Estamira, por exemplo, diz-se lúcida, ao mesmo tempo em que se
reconhece perturbada, como ele argumenta no trecho: "não querer e não aceitar ser governado de
determinada forma, ao não aceitar como um discurso verdadeiro somente por que algo foi proferido
por uma autoridade, ao praticar uma espécie de inservidão voluntária" (Soares, 2020, p. 278).
Então, esses relatos sugerem um movimento de construção de um novo lugar social para a
loucura, no qual pessoas em sofrimento psíquico, como Estamira, procuram se empoderar diante
do saber hegemônico da Psiquiatria, sobretudo a de cunho asilar. Estudos como o de Figuerêdo,
Cordeiro, Oliveira Filho e Velôso (2021) sobre a construção de categorias/lugares para a loucura
por usuários de saúde mental de um CAPS também apontam que, em seus relatos, eles combatem
a estigmatização que sofrem.
Amarante (2007) afirma que, na prática, a construção de um novo lugar social para a loucura
ganhou força com a Reforma Psiquiátrica, que contempla, em sua proposta, o aspecto sociocultural.
A importância disso reside no fato de que, na dimensão sociocultural, está o saber psiquiátrico,
responsável por difundir uma imagem do louco como incapaz. O saber reformista, por sua vez, está
em processo de construção e requer tempo para provocar transformações mais profundas que
propiciem o protagonismo social e desconstruam a lógica de doença.
Pereira e Costa-Rosa (2012) avançam na crítica acerca do lugar que a loucura vem
ocupando e propõem experiências como a "Marcha pela Reforma Psiquiátrica Antimanicomial",
ocorrida em 2009, com o objetivo de repactuar as políticas que lidam com o enlouquecer e criar
um novo lugar social para a loucura.
Nessa direção, Soares (2020) se refere à contestação do lugar de passividade do sujeito em
sofrimento psíquico como uma “heterotopia”: “Foucault concebe as heterotopias como
contraespaços: os espaços sociais da diferença, do desvio e da multiplicidade. As heterotopias são
os lugares nos quais as incompatibilidades se justapõem” (Soares, 2020, p. 272). Assim, o autor
remete a Foucault para afirmar que, enquanto as investidas biopolíticas oriundas da Psiquiatria
asilar forem permanentes naqueles que destoam da padronização, novos lugares para a loucura vão
60
sendo reconsiderados, com o intuito de sustentar a alteridade para demonstrar que as diferenças
não são problemas.
Os grupos oficiais do Movimento Internacional de Ouvidores de Vozes são um exemplo
disso, uma vez que procuram reafirmar o protagonismo dessas pessoas ao lidar com o sofrimento
psíquico através da construção de redes de apoio, de reflexão e de novas estratégias, como, por
exemplo, a estratégia de Cecília, do vídeo I am not a monster: Schizophrenia, que diz que finge
que não escuta vozes. Nessa proposta apoiada em estudos de teor reformista, Andrade e Maluf
(2017) indicam que as pessoas são ativas e não validam o discurso patologizante imposto pela
Psiquiatria tradicional na experiência de ouvir vozes. Para Cardano (2018), como se retira a
esquizofrenia – especialmente no que se refere à propriedade de ouvir vozes – do campo de uma
patologia por desordens bioquímicas no cérebro, o sentido de ouvir vozes passa a ser composto de
narrativas com teor biográfico das pessoas.
Esse movimento é constituído de pares que partilham sua experiência e, juntos, fornecem
as possibilidades de recorrer a outras estratégias ou sentidos para conviver com as vozes (Corradi-
Webster, Leão; Rufato, 2018). Ainda que a superação pessoal passe por algumas fases, como
surpresa e reorganização pela presença do que antes foi considerado pela Psiquiatria tradicional
como alucinação, a tendência é de chegar a uma habituação, por meio da qual o sujeito integra as
vozes em seu cotidiano sem que represente uma ameaça.
Ainda sobre a nova atenção em saúde mental, Andrade e Maluf (2017) fazem uma reflexão
sobre a amplitude do termo ‘usuário’, pois movimentos sociais, trabalhadores, familiares e artistas
também recorrem à RAPS, e sugere o termo ‘experientes’, com a intenção de trazer ainda mais
protagonismo para o lugar ocupado pela loucura. “O objetivo dessa opção foi destacar a
importância que as experiências singulares e institucionais mostravam ter na constituição de
práticas e relações nos serviços de saúde mental e também fora deles, bem como no processo da
Reforma Psiquiátrica de modo mais amplo” (Andrade; Maluf, 2017, p. 276).
Isso diz respeito à valorização das pessoas em sofrimento psíquico que, historicamente,
foram excluídas pelo saber psiquiátrico.
Entretanto, não se trata de uma mera substituição de uma expressão por outra que pareça
mais correta, mas de uma incorporação do saber produzido pelos sujeitos em suas
experiências nos serviços de saúde mental. Entende-se que é necessário instituir, no
âmbito da política pública de saúde mental, um modo de relação capaz de considerar com
61
seriedade as experiências dessas pessoas e, assim, atribuir um estatuto epistemológico ao
conhecimento produzido por elas (Andrade; Maluf, 2017, p. 282).
Assim, reconhecer a experiência de cada pessoa ao se referir como “experientes” traz outra
visão sobre o sofrimento psíquico que vai além do termo ‘usuário’, pois, segundo Andrade e Maluf
(2017), esse termo reduz as pessoas a um uso e não demonstra a relevância das narrativas pessoais.
Cabe ressaltar que, apesar da relevância de tais considerações, nesta dissertação, utilizamos
majoritariamente o termo ‘usuário’, por ser amplamente mencionado pela reforma psiquiátrica e,
de uma forma mais geral, pelos que usufruem do SUS como um direito do cidadão.
Outro aspecto que merece ser destacado diz respeito ao fato de os relatos presentes nos
vídeos dialogarem com o saber psiquiátrico, mas, ao mesmo tempo, se empenharem em questionar
as experiências relatadas sobre a medicamentalização, quando, por exemplo, Djavan relata que os
medicamentos causam efeitos colaterais indesejados, e Estamira indaga sobre a utilização das
medicações e não hesita, por exemplo, em se referir à médica como uma copiadora. Para Soares
(2020), alguns sujeitos criticam os medicamentos, pois, muitas vezes, a medicação é prescrita sem
a opinião do usuário sobre o fenômeno que o médico quer tratar ou de maneira indiscriminada, sem
considerar cada história em particular, com a pretensão de docilizar os corpos dos sujeitos.
O ato de prescrever em massa é, inclusive, reconhecido no artigo de Caron e Feuerwerker
(2019), pois, numa pesquisa de campo realizada por esses autores, constatou-se a prática de apenas
renovar as datas das receitas, sem se fazer uma nova consulta ou reavaliar as necessidades. Quando
consentem isso, os usuários reproduzem o silenciamento imposto pela Psiquiatria, pois não há
expressividade ou protagonismo do sujeito em relação a essa contenção química que se dá pela via
medicamentosa. Evidentemente esse não é o caso de Estamira, que contesta a indicação
indiscriminada da médica que prescreveu sua medicação.
‘Estamira’, documentário amplamente explorado na literatura científica, revela o sujeito
que se mantém insubordinado à docilização que as medicações lhe causariam, uma vez que anularia
sua forma própria de existir. Isso diz sobre uma vivência que tem sentido de resistência perante a
Psiquiatria asilar, contornando o padrão de subjetividade desejável pela sociedade.
Nesse sentido, Estamira parece compreender a utilização de medicamentos psiquiátricos
como forma de assegurar um assujeitamento dócil às intervenções de governo – seja
religioso, seja familiar, por exemplo – associado a uma perda substancial de autogoverno,
como quando reclama de um dos efeitos do uso de medicações: “Desgovernada. Eu tô
62
desgovernada. Sabe o que é uma pessoa desgovernada? Uma pessoa nervosa assim,
querendo falar sem poder... agoniada. E eu não sei o que eu faço” (Soares, 2020, p. 278).
Soto (2012) recusa compreender as alterações de comportamento como um fato doentio e
toda a prescrição em massa de medicações visando curar as enfermidades. Desconstruir o
sofrimento psíquico como um problema de saúde ajuda a contestar a hegemonia do saber
psiquiátrico, assim como o discurso do que seria patológico. Talvez, mesmo sem saber, em suas
críticas, os usuários dos vídeos analisados também atingem a indústria farmacêutica, que, através
do modelo neoliberal, reconfigura uma postura manicomial no ato da prescrição medicamentosa
dos sujeitos rotulados como doentes mentais, afinal, a mercantilização da cura para o sofrimento
psíquico é bastante vantajosa para o sistema econômico (Madrid; Parada, 2018).
Rodrigues (2011) constata que as pessoas reconsideram várias maneiras de existir no
mundo, o que é positivo por indicar o respeito ao que é diferente, entendendo o sofrimento psíquico
como a radicalização dessa diferença. Dessa maneira, podemos inferir que os sujeitos têm
potenciais, todos desenvolvidos em ritmo e expressão próprios. Isso remete ao posicionamento de
Djavan, quando recusa a classificação de doente mental e, por outro lado, diz sobre um ritmo
particular para fazer o que lhe agrada.
Rocca (2011) vai adiante nessa reflexão e enuncia que até o uso do discurso sobre "saúde
mental" pressupõe o uso do inverso, que seria "doença mental". Nesse sentido, a ciência tradicional
ataca a heterogeneidade e patologiza a antinomia e a singularidade das vivências do sofrimento
psíquico. A ética dessas classificações, que objetiva silenciar a loucura, precisa ser revisitada pela
clínica alinhada aos propósitos antimanicomiais. O referido autor acrescenta que a psiquiatrização
dos discursos é tão abrangente que alcança o saber do direito quando torna um sujeito inimputável,
qualifica-o como perigoso ou usa a loucura como atenuante para uma punição, mesmo que não
tenha nenhuma evidência que os usuários da internação compulsória sejam mais perigosos do que
as pessoas "normais".
Outra categoria presente nos relatos é o discurso místico e religioso, pois, ao dar explicações
sobre o que seria o sofrimento psíquico, os sujeitos recorrem a termos e conceitos transcendentais.
Esse é o caso de Elisângela, quando diz “eu sou como uma criança porque eu tenho Jesus no meu
coração”, assim como Estamira, que se refere ao “controle remoto”, e utiliza uma oração pedindo
para manter o controle.
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Na revisão feita por Dalgalarrondo (2007), os estudos que tratam da relação entre saúde
mental e religiosidade têm se multiplicado cada vez mais, entretanto, ainda se projeta de forma
minoritária na Psicologia e na Saúde, em contrapartida a áreas como Antropologia, Sociologia e
Teologia. Apesar disso, esse panorama crescente da literatura, também encontrado em Koenig
(2007), contribui para romper com a lógica de que essa seria uma visão arcaica. Isso ilustra que a
religião é tomada como algo importante para a sobrevivência, para atenuar o sofrimento psíquico
e como fonte de resistir à realidade econômica, cultural e política, além de ser um debate possível
de se articular com a epistemologia acadêmica.
Araújo e Barros (2019) apontam que existe uma quantidade significativa da população que
recorre ao discurso religioso para dar explicações ao sofrimento psíquico. Nesse estudo, as autoras
chegam a se referir à igreja como uma espécie de "pronto-socorro", no qual as pessoas com
transtornos mentais recebem acolhimento e, consequentemente, sentem-se aliviadas, sem que
necessariamente precise de um apelo medicamentoso. Essa terapêutica ocorre desde os primórdios
da sociedade humana, como um discurso que produz efeitos de cura e prevenção de doenças.
A religiosidade é expressivamente utilizada como um abrigo para essas pessoas, as
instituições caracterizam-se como integrantes das redes de apoio para aqueles que sofrem
de segregação e/ou exclusão social. (Araújo; Barros, 2019, p.329).
Em um prefácio da Revista de Psiquiatria brasileira, realizado por Koenig (2007) sobre os
diálogos entre religião, espiritualidade e psiquiatria, entendidos como uma nova era na atenção à
saúde mental, o autor acrescenta que essas crenças estão associadas a um enfrentamento mais
exitoso de situações estressoras ou a recuperação mais rápida de diversas maneiras do sofrimento
psíquico.
Avançando nesse tema, Paiva (2018) denomina de sofrimento psíquico-espiritual a angústia
que ultrapassa o nível psicológico, circunstância importante de se considerar, pois “êxtase” e
“possessão” são manifestações recorrentes. Em sua concepção teórica, a autora recusa o
pensamento de que a religiosidade seja considerada somente como psicose, histeria, esquizofrenia,
transtorno dissociativo e outras formas que reduzem o sujeito na possibilidade de ter contato com
“Deus” e o “Diabo” ou de exaltá-los por meio de sua fé. Ao recusar a compreensão da Psiquiatria
tradicional, favorece narrativas da fé e, consequentemente, a criação de laços sociais com outros
64
religiosos, compreendendo que também é ético integrar o sujeito a um coletivo em contrapartida
ao confinamento de algo estranho.
Portanto, a vinculação com instituições religiosas é, inclusive, uma aposta das novas
práticas no campo da Saúde Mental, para favorecer outras alternativas assistenciais que não
separem o sofrimento das perspectivas sociais e culturais do sujeito (Baltazar; Silva, 2014). Isso
porque, marcadamente, as pessoas em sofrimento psíquico foram excluídas de sua comunidade.
Contudo a vinculação com as respectivas crenças promove interações, redes sociais, solidariedade,
atitudes cooperativas – que, eventualmente, dão conta do que lhes atormenta – e a ascensão social
que o modo de produção capitalista não comporta.
Paiva (2018) indica como sendo uma experiência muito oportuna professar a espiritualidade
em contrapartida à limitação em categorias biomédicas e construir um novo lugar social para a
loucura, considerando uma ampla complexidade que vai além de fatores biológicos, sociológicos,
antropológicos, históricos, políticos e culturais. Por outro lado, maneiras de professar a
religiosidade que beirem o extremo, como um fanatismo que desconsidere outras dimensões da
vida do sujeito, tendem a ser negativas, pois, de acordo com Murakami e Campos (2012), opõe-se
a uma compreensão multifacetada em Saúde Mental e, consequentemente, podem causar danos ao
sujeito.
Algumas vezes, determinadas religiões podem tornar-se rígidas e inflexíveis, estando
associadas ao pensamento mágico e de resistência. Isso pode dificultar o tratamento do
paciente, se é feita a proibição da psicoterapia ou do uso de medicação. No Brasil, onde a
mudança religiosa está ocorrendo rapidamente, a pobreza e a falta de conhecimento,
podem tornar as pessoas vulneráveis ao abuso espiritual. (Murakami; Campos, 2012, p.
365).
Assim, a negociação dos profissionais de Saúde com diversos saberes religiosos seria um
dos desafios de uma posição reformista.
As falas remetem também a sentidos associados às tramas familiares quando, por exemplo,
o sofrimento psíquico é explicado por Estamira como decorrente da relação com o avô, que
“estrupou” sua mãe e “fez coisa” com ela, e o relato de Elisângela, ao afirmar que precisou sair de
casa por causa de uma crise familiar, que resultou numa perseguição e contenção física. Considerar
a família como relevante na vida do sujeito é essencial para lidar com a fragilização decorrente do
sofrimento psíquico. Quando os parentes se organizam para viabilizar suporte, contribuem para
65
que essas pessoas resgatem a autonomia e a dignidade e, ao mesmo tempo, formam uma coalisão
partilhada entre os membros da família: "O grande desafio nos parece ser a compreensão da
indissociabilidade entre indivíduo e família, estando aí compreendidos aspectos de adoecimento e
de cuidado" (Santin; Klafke, 2011).
Entretanto, para viabilizar o suporte, é necessário considerar os recursos objetivos e
subjetivos. No estudo de Borba, Schwartz e Kantorski (2008) sobre a sobrecarga dos familiares
que convivem com o sofrimento psíquico, as autoras consideram os seguintes fatores como
preponderantes: o ônus financeiro, o físico e o emocional. Isso eleva as questões de saúde mental
a um patamar mais complexo, que vai além dos determinantes subjetivos, pois não há como garantir
condições favoráveis se a saúde não for vista de maneira ampliada, incluindo os determinantes
objetivos.
Em sua tese sobre o transtorno psíquico e o cuidado na família, Rosa (2011) critica o
processo de cuidado visto somente como um ato de amor, porque entende que, na relação entre os
parentes, a dignidade atravessa variáveis objetivas que dizem respeito, por exemplo, a encargos
econômicos ou à responsabilização das mulheres pelo cuidado. Essa discussão é importante, visto
que é difícil prover boas condições a um sujeito em meio a um sistema que não proporciona o
atendimento de suas necessidades ou dos parentes encarregados do cuidado.
É importante que a equipe de saúde mental atente para essa realidade, considerando as
condições reais da família, a fim de propiciarem oportunidades de superar dificuldades
vividas e minimizar a sobrecarga. A intervenção junto aos familiares visa não apenas
instrumentalizá-los como cuidadores, mas como pessoas que também precisam de
cuidados (Soares; Munari, 2007).
Câmara e Pereira (2010) concordam que, na atualidade, é necessário pensar no sofrimento
psíquico em uma perspectiva sistêmica, porque a complexidade das subjetividades está relacionada
ao contexto em que o sujeito vive. Para as autoras, é imprescindível superar o entendimento
tradicional que culpabiliza o sujeito e valorizar a experiência de vida em seus territórios. Navarini
e Hirdes (2008) também fundamentam uma crítica a modelos de terapêutica de clínica tradicional
que contrapõem os familiares ao sujeito em sofrimento psíquico, tendo em vista que essa instituição
social, apesar dos conflitos próprios, é indispensável para proporcionar respeito, acolhida e
cuidados a esses sujeitos.
66
Defendendo essa visão, Coelho, Barros e Velôso (2017) trilham o caminho de ultrapassar a
ênfase numa perspectiva individualista, alicerçada pelo modelo biomédico e hospitalocêntrico. Isso
nos ajuda a entender que a família, assim como toda relação, tem conflitos que geram sofrimento,
mas também características positivas que podem ser exploradas e benéficas para os sujeitos. Além
disso, essa perspectiva possibilita críticas ao viés clínico em contrapartida a uma valorização
psicossocial, por entender que, em conjunto, a atenção em saúde mental é uma estratégia mais
potente.
Santin e Klafke (2011), em seu estudo sobre o cuidado em saúde mental no ambiente
familiar, indicam que o efeito de quando não se toma esse núcleo como parceiro é perpetuar um
modelo clínico psicodinâmico, em que os pais são responsáveis pela estrutura de uma "psicose",
ou um modelo médico psiquiátrico de causa orgânica, que, eventualmente, tem base hereditária.
Para as autoras, culpar as famílias ainda é um aspecto recorrente nos discursos, com base nas teorias
de adoecimento psíquico que reproduzem o pensamento manicomial e que afastam os sujeitos de
seu meio sem reconhecer o potencial do convívio.
Percebe-se que, historicamente, a família muitas vezes ficou afastada do tratamento do
doente mental, porque esse, na maioria das vezes, encontrava-se em hospitais
psiquiátricos. Neste modelo, o familiar era alijado do tratamento, a proibição das visitas
nas primeiras semanas de internação acabava reforçando a culpa da família. Nos serviços
que operam no contexto da Reforma Psiquiátrica, observa-se a necessidade de a família
estar ao lado do portador de transtorno mental, modificando comportamentos, aprendendo
formas de manejo e interagindo com a equipe. (Navarini; Hirdes, 2008, p. 687).
Como podemos perceber, ao longo do tempo, o discurso de distanciamento e culpabilização
da família foi, paulatinamente, substituído por uma corresponsabilização, pois a aliança entre os
profissionais e a família é fundamental para não se perder de vista o usuário, viabilizando melhores
estratégias e produzindo efeitos que propiciem dignidade às pessoas em sofrimento psíquico como
quaisquer outras. Salles e Barros (2013) afirmam que é necessário melhorar as relações ao lidar
com a herança cultural que permeia as famílias e exclui essas pessoas por serem representadas
como perigosas.
Os discursos presentes nos vídeos também sugerem sentidos vinculados às relações
cotidianas quando as narrativas trazem situações do dia a dia como marcantes. Isso acontece, por
exemplo, quando Estamira discorre sobre a insegurança de andar no seu território e quando Leonor
67
fala sobre a sensação de que os outros regulam suas vivências diárias. Mas, ambas resistem a essas
experiências.
Salles e Barros (2013) afirmam que as relações cotidianas são representativas de uma rotina
que deixa marcas físicas e subjetivas nas pessoas ao longo do tempo, que não só causam efeitos
benéficos como também danosos para a saúde mental. É por isso que é necessário repensar a
dinâmica do dia a dia, pois, quando os costumes dão suporte e incentivo, novos horizontes são
traçados, visando alcançar dignidade e respeito à cidadania, além de estímulo ao senso crítico e ao
protagonismo.
Para Souza (1998), é no cotidiano que os conhecimentos são construídos. Talvez por isso
eles nunca sejam fechados e homogêneos, e os discursos comportam incoerências e variabilidades
que não representam um problema. É importante considerar isso, porque os símbolos e as imagens
da loucura, por exemplo, são repertórios produzidos e direcionados no dia a dia, com a intenção de
convencer os outros e dar sentido ao desmoronamento e à angústia trazidos pelo sofrimento naquele
momento da vida do sujeito.
Nessa permanente construção/desconstrução de sentidos, Rotelli (n/d) assevera que
dialogar com a comunidade também é uma possibilidade de ‘desinstitucionalizar’ os pensamentos
asilares que vão sendo sutilmente absorvidos pelas pessoas, pois, se o sujeito é a unidade que faz
parte de um coletivo maior, precisa reestabelecer seus vínculos com qualidade. Na prática, esse
novo lugar para o sofrimento psíquico se dá quando se rompe com discursos científicos, legalistas,
administrativos e culturais, que constroem o entendimento da loucura, de maneira deturpada, como
adoecimento ou incapacidade.
A produção da vida e a reprodução social que são o objetivo e a prática da "instituição
inventada" devem evitar as estreitas vias do olhar clinico, assim como da investigação
psicológica e da simples compreensão fenomenológica, e fazer-se tecido, engenharia de
reconstrução de sentido [...] (Rotelli, n/d, p. 3, grifo do autor).
A citação destacada concorda com o pensamento de Zanchet, Palombini e Resende (2017)
de que é necessário transformar as ideias acerca do sofrimento psíquico em concepções que
reconheçam o potencial e o protagonismo dos sujeitos, como já exaustivamente sinalizado neste
trabalho. Talvez a sensação de Leonor de ser vigiada, em seu dia a dia, não seja apenas uma
interpretação própria, mas a denúncia de que sua liberdade de expressão não pode ser plenamente
68
estabelecida, indicando a loucura como esse fenômeno que ainda luta por um espaço de dignidade
e tolerância por mais estranho que soem seus comportamentos.
Em seu capítulo sobre outras faces da clausura, Pelbart (1990) discorre sobre os manicômios
mentais que permanecem incutidos na representação de “tratamento” psíquico, inclusive no
cotidiano. Assim, a contribuição desse autor com essa discussão reside no fato de que, ao vivenciar
a loucura, as pessoas sofrem rechaço de maneiras bem mais camufladas, mas que perpetuam a
discriminação e a passividade – questão importante, sobretudo, atualmente, quando é ambicionado
um novo lugar social para a loucura pela proposta reformista.
Nessa direção, Saad, Bastos e Souza (2019, p. 653) indicam que a estratégia de
comunicação fica bastante enriquecida quando se valoriza o diálogo, pois rompe com a hegemonia
do modelo biomédico ao conferir protagonismo aos usuários. “Tais abordagens devem romper com
o habitual para dar sentido aos discursos e favorecer ressignificações na interlocução”.
Assim, encerra-se provisoriamente essa discussão, ciente de que o saber médico
psiquiátrico com formato asilar precisa ser contestado. Como afirma Figueirêdo (2013), a ideia de
que o louco é um monstro que compromete a vida em sociedade deve ser revista.
Venturini (2010) refere-se ao “caminho dos cantos” para indicar que os aborígenes
australianos, enquanto percorrem determinadas estradas, cantam, uníssonos com seus
companheiros e antepassados, uma metáfora para o que deveria ser a saúde comunitária que nos
aproxima da “tessitura do amanhecer”, no poema ‘Tecendo a manhã’, de João Cabral de Melo Neto
(2008, p. 219). É com esses versos que finalizamos este capítulo:
Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que
apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um
galo antes e o lance a outro; e de outros galos que, com muitos outros galos, se cruzem os
fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo,
entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se
entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo
de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão.
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa surgiu da necessidade de explorar o desconhecido e da possibilidade de
estranhar os processos e as contradições inerentes ao fluxo contínuo de transformação do cotidiano.
Considerando isso, fizemos uma pesquisa documental, que se fundamentou na perspectiva teórico-
metodológica da produção de sentidos, por meio da análise das práticas discursivas, e tomou como
fonte os vídeos ‘Estamira’, ‘I am not a monster: schizophrenia’ e ‘A loucura entre nós’, três obras
audiovisuais que foram selecionadas, pois respondiam ao principal objetivo deste trabalho, que foi
de analisar os sentidos produzidos sobre o sofrimento psíquico em relatos de usuários de Saúde
Mental.
Esse objetivo geral abrange outros três específicos – analisar como se constroem, nas
narrativas desses sujeitos, o surgimento e a permanência do sofrimento psíquico; identificar os
discursos (religioso, asilar, reformista etc.) que referenciam o sentido que eles atribuem ao
sofrimento; e analisar o posicionamento dessas pessoas acerca do diagnóstico elaborado pelo saber
médico.
Em primeiro lugar, podemos ressaltar que os discursos diziam do surgimento ou da
permanência do sofrimento sem um início que fosse igual para os outros, pois, enquanto um
participante o localizou numa etapa da vida em particular, outros disseram que o sofrimento veio
em decorrência de tragédias ou do uso abusivo de diversas substâncias. Podemos inferir disso a
inexatidão e a imprevisibilidade do existir, que revela a inconstância das experiências que
mobilizam afetos e transformam os posicionamentos. Embora essa seja uma conclusão óbvia,
consideramos importante mencioná-la.
Então, os discursos apontaram para o surgimento e a permanência do sofrimento psíquico
de forma muito particular, pois são determinados por circunstâncias singulares advindas da forma
como cada pessoa lida com o cotidiano na trajetória de sua vida. Logo, cada um tem condições
muito únicas, e isso nos leva a refletir sobre a questão dos fatores objetivos, como o poder
econômico ou até condições físicas, além de fatores subjetivos.
Nos relatos, a visão tradicional da loucura foi questionada no que se refere a algo ofensivo,
indesejável e comparável com o que não é humano, sobretudo na conferência de Cecília, que já
carrega como título a negação de que o esquizofrênico é um monstro.
70
Nos vídeos, os relatos se apoiam no saber da Psiquiatria para descrever e nomear o
sofrimento psíquico usando expressões como esquizofrenia, paranoia, crise depressiva,
bipolaridade ou referências a manuais classificatórios da medicina. Há quem se identifique com o
hospital psiquiátrico de tal maneira que chega até mesmo a traçar um comparativo entre se ausentar
daquele recinto e ter um braço amputado. Entretanto, outros relatos usam as mais diversas
estratégias retóricas para lidar com essa experiência de outra maneira.
Nessa direção, alguns relatos demonstram uma recusa a aceitar a tendência
hospitalocêntrica e de medicamentalização. Posicionando-se dessa maneira, os sujeitos também
resistem ao processo de estigmatização, pois são vozes que protagonizam e reivindicam dignidade,
respeito e tolerância. Além disso, alguns deles rompem, ainda que provisoriamente, com um
diagnóstico que minimiza seu próprio saber.
Os relatos também referenciam o sofrimento no sentido religioso ou místico. Isso possibilita
concluir que a fé tem uma força muito intensa e pode se articular a questões de Saúde Mental. Essas
dimensões que transcendem a racionalidade são um desafio para os profissionais, que precisam
ultrapassar uma perspectiva dos saberes que negam a dimensão espiritual e acolher a amplitude
que a reflexão sobre saúde pode alcançar.
Outro comentário pode ser realizado no tocante à medicação, pois alguns usuários se
posicionaram utilizando o recurso de forma moderada, gerido por suas intenções e pelo
reconhecimento do momento necessário para usá-lo. Esse posicionamento nos leva a pensar que a
medicamentalização pode ser superada quando se retira a centralidade orgânica e redirecionamos
o olhar para uma perspectiva “biopsicossocioespiritual”.
Constatamos, ainda, que as tramas familiares são fundamentais na história de vida dessas
pessoas, quando os participantes falam de situações de abuso sexual e crises familiares. As tensões
são constantes, mas acreditamos, assim como a proposta reformista defende, que pode existir uma
conexão entre os parentes que vai além de consanguinidade, pois os afetos são constitutivos das
identidades e carregam um potencial que auxilia o processo de cuidado.
Não obstante, além da família, os usuários referenciam o cotidiano, quando dizem que não
podem circular ou que se sentem vigiados e, consequentemente, aprisionados, o que reforça o
pensamento de que é importante imergir no território dos sujeitos, pois, só assim, teremos
condições de proporcionar uma atenção em Saúde Mental que acolha o sofrimento psíquico a partir
de suas referências do dia a dia. Além disso, é preciso aproximar o sujeito do seu coletivo de
71
pertença, colocando em prática a política reformista de conferir assistência aos transtornos
psíquicos no território sem ocorrer à segregação que é inerente ao paradigma asilar.
Dessa maneira, os sujeitos ressaltaram que têm vínculos com outros contextos e ocupam
diversos lugares além do hospital, por mais que haja conflitos em algumas relações. E como se
reconhecem como parte integrante desses locais, podemos concluir que convocam o outro a se
corresponsabilizar. Então, é preciso garantir justiça social e proporcionar uma atenção psicossocial
de boa qualidade, na perspectiva de não excluir ou discriminar as pessoas em sofrimento psíquico.
Tomadas em conjunto essas reflexões, podemos ser levados a concluir que a Reforma
Psiquiátrica está em permanente construção, e a conquista por um novo lugar social da loucura é
gradual. Caso essa proposta de fortalecimento do movimento reformista não seja considerada, pode
haver uma violência significativa, proposição tão legítima que é inevitável a reclamação de
Estamira através de grito e de indignação.
Todos esses elementos podem ser valiosos para reestruturar a atenção em saúde mental e,
especialmente, para se praticar com mais eficácia a abordagem psicossocial. Assim, esperamos que
a Reforma não se restrinja à retirada das pessoas dos hospitais, mas que, junto com elas,
proporcione o resgate de sua cidadania, e que estimule a autonomia e a “habilitação” ao usuário.
Como serviço substitutivo, que tem o objetivo de desconstruir a loucura como doença
mental, o CAPS, através de equipe multidisciplinar nos territórios, enfoca não apenas o
atendimento individual do usuário, mas também seus relacionamentos afetivos, sociais, familiares
e comunitários, considerando o papel indispensável desses coletivos para “habilitar” o indivíduo.
Portanto, o sofrimento psíquico existe, mas não deve descaracterizá-los como pessoas, ao contrário,
ele não elimina o potencial do sujeito nem a condição humana de ser criativa e potente. Cada vez
mais, esse discurso deve ser considerado, devido à urgência de se superar uma Psiquiatria asilar,
segregatícia e intolerante com a variedade de posicionamentos identitários.
A relevância social deste estudo é que pode ser somado com os que já existem sobre o tema,
ao escutar as pessoas em sofrimento psíquico e valorizar suas experiências, ressignificando-as,
rompendo com um diagnóstico que minimiza seu saber. Isso se justifica porque é imprescindível,
nas novas abordagens sobre Saúde Mental, trazer notoriedade para pessoas que, durante tantos
anos, foram excluídas, porque, mais do que silenciadas, essas pessoas foram deixadas de ser
ouvidas, já que nunca perderam suas vozes. Com esse olhar atento, passamos a nos entender como
72
parte responsável pelo acolhimento e pelo respeito ao outro em sua diversidade de expressões e
significados.
Assim, considerando todos os aspectos aqui abordados, esperamos que este trabalho possa
contribuir com uma reflexão acerca do que é sofrimento psíquico, na voz dos próprios usuários da
Saúde Mental, e para reorientar as políticas públicas de saúde comprometidas em favorecer a
cidadania e a inclusão social. A pesquisa também poderá trazer subsídios acadêmicos que
fortaleçam o movimento da Reforma Psiquiátrica, pois, como já salientado, desde 2015, o cenário
político nacional tem sido assumido por conservadores que endossam uma Contrarreforma
alinhada aos interesses particulares de pessoas que se beneficiam através da indústria médico-
farmacêutica, dos meios de comunicação em massa e de alguns periódicos científicos.
No âmbito acadêmico, sugerimos que sejam feitos novos estudos sobre o sofrimento
psíquico, por meio de entrevistas que facilitem a exploração de determinadas questões que o limite
de uma pesquisa documental não contemplou, dentre outros aspectos, visto que a mídia escolhida
já havia seguido roteiros com outras estruturas ou objetivos.
Seja como for, que a utopia sirva para nos mobilizar como o escritor uruguaio Eduardo
Galeano pondera: “me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos, caminho dez passos, e o
horizonte corre dez passos, e por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia?
Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.
73
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Vídeos
A LOUCURA entre nós. Direção: Fernanda Fontes Vareille. Produção: Fernanda Fontes Vareille,
Amanda Gracioli. Intérpretes: Aloísio José da Paixão Conceição, Marcelo Magnelli, Elisângela
Costa de Oliveira, Dimitri Ganzelevichi, Edilson dos Santos, Cândido dos Santos Júnior, Clarisse
de Oliveira, Leni Nunes dos Santos, Bárbara Cerqueira dos Santos, Bárbara Pinto Costa. Roteiro:
Fernanda Vareille. Salvador: Águas de Março, 2016. (1:16:05), son. color. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=nozKu0MjkHU&t=3695s. Acesso em: 08 nov. 2021.
ESTAMIRA. Direção: Marcos Prado. Produção: José Bastos Padilha Neto. Intérpretes: Estamira.
Duque de Caxias: Zazen Produções, 2004. (1:54:11), son. color. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=IcUKQNj3HEg. Acesso em: 08 nov. 2021.
81
I am not a monster: schizophrenia. University Park - Pensilvânia, Conferencista: Cecília
McGough, 2017. 1 vídeo (0:14:40). Publicado pelo TEDx Talks. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=xbagFzcyNiM. Acesso em: 08 nov. 2021.
82
APÊNDICE A: ESTRUTURA DO MAPA DIALÓGICO
Quem fala
Como se constroem,
nas narrativas desses
sujeitos, o surgimento
e a permanência do
sofrimento psíquico
Discursos (religioso,
asilar, reformista etc.)
que referenciam o
sentido que eles
atribuem ao
sofrimento
Posicionamento
dessas pessoas
acerca do
diagnóstico
elaborado pelo
saber médico
Cecília McGough
[Fala conferência ‘I am
not a monster:
schizophrenia’] (Linhas
a-b)
Estamira
[Fala vídeo ‘Estamira’]
(Linhas g-h)
Cartola
[Fala vídeo ‘A
loucura entre nós’]
(Linhas j-l)
Djavan
[Fala vídeo ‘A loucura
entre nós’] (Linhas n-o)
Nadir
[Fala vídeo ‘A loucura
entre nós’] (Linhas q-r)
Leonor
[Fala vídeo ‘A loucura
entre nós’] (Linhas u-v)
Elisângela
[Fala vídeo ‘A
loucura entre nós’]
(Linhas x-y)
83
ANEXO A: PARECER CONSUBSTANCIADO DO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA
(UEPB)
84
85