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MULHERES NEGRAS MOVEM O TOCANTINS: ASPECTOS FORMATIVOS DA
MOBILIZAÇÃO PARA O “ENCONTRO NACIONAL DE MULHERES NEGRAS 30
ANOS CONTRA O RACISMO, A VIOLÊNCIA E PELO BEM VIVER”
BLACK WOMEN MOVE THE TOCANTINS: FORMATIVE ASPECTS OF
MOBILIZATION FOR THE "NATIONAL MEETING OF BLACK WOMEN 30 YEARS
AGAINST RACISM, VIOLENCE AND LIVING"
Ana Lúcia Pereira1
RESUMO
Este trabalho se constitui em um estudo sobre os relatos e reflexões acerca do feminismo negro
com base na Memória do “Encontro Estadual de Mulheres Negras do Tocantins rumo ao
Encontro Nacional de Mulheres Negras 30 anos contra o racismo, a violência e pelo bem viver”,
encontro ocorrido no dia 20 de outubro de 2018, na cidade de Palmas/TO. A pesquisa de
natureza bibliográfica, procura demonstrar aspectos formativos gerados no processo de
mobilização estadual que ressaltam nuances do feminismo negro presente nas agendas políticas
e reivindicatórias dos movimentos sociais que desenvolvem atividades no Estado do Tocantins
e são protagonizados por mulheres negras empoderadas. A metodologia utilizada é a análise e
interpretação da memória do encontro estadual que contém estratégias definidas a partir do
papel e da autonomia de cada participante. As análises das nuances do feminismo negro terão
como parâmetro o pensamento de Ângela Davis (2016 e 2017) e bell hooks (2018)2. A
conclusão do trabalho é que ainda não existe uma regularidade na formação das mulheres negras
tocantinenses em torno do pensamento feminista negro e o Encontro Nacional de Mulheres
Negras ocorrido em 2018, foi importante para a formação e discussão do pensamento feminista
negro.
1 Ana Lúcia Pereira, docente na Universidade Federal do Tocantins, pesquisadora e
extensionista no Programa de Pesquisa e Extensão “Ordem Jurídica, Igualdade Étnico-Racial e
Educação” e ativista dos Agentes de Pastoral Negros do Brasil (APNs).
2 Justificamos o uso de minúsculas por ser opção da pensadora bell hooks e pelo fato da ficha
de catalogação da obra estar dessa forma.
Palavras-chave: Mulheres Negras. Encontro Estadual. Tocantins. Feminismo Negro.
1 QUEM SE ENCONTRA E POR QUE SE ENCONTRA
“Eu não vou me calar, não vou baixar minha cabeça pra você; eu não vou me acovardar,
não vou ser mais uma vítima.”
Daleti3.
Este trabalho se constitui em um estudo sobre os relatos e reflexões acerca do feminismo
negro com base na Memória do “Encontro Estadual de Mulheres Negras do Tocantins rumo
ao Encontro Nacional de Mulheres Negras 30 anos contra o racismo, a violência e pelo bem
viver”, ocorrido no dia 20 de outubro de 2018, na cidade de Palmas/TO.
A chamada para a participação no encontro foi feita a partir dos contatos das lideranças
envolvidas em outra grande mobilização das mulheres negras ocorrida no ano de 2015, por
ocasião da Marcha Nacional das Mulheres Negras Contra o Racismo, a Violência e Pelo Bem
Viver, a qual contou com a participação ativa de uma delegação do Estado do Tocantins.
A motivação maior para a realização de um encontro estadual foi o desejo de
participação do Encontro Nacional de Mulheres Negras 30 anos contra o racismo, a violência
e pelo bem viver: mulheres negras movem o Brasil, que estava sendo preparado para acontecer
em dezembro de 2018, na cidade de Goiânia. Nesse intuito, caso o Tocantins quisesse se fazer
presente, teria que se organizar para formar uma delegação composta por 25 mulheres negras.
A chamada também alertou para a possibilidade de ser o Encontro Estadual de Mulheres
Negras do Tocantins, um espaço para a reunião de forças para as mulheres negras organizadas
em movimentos, enfrentar a conjuntura negativa que se desenhava com a crescente perda de
direitos e de políticas públicas que até 2018, contemplavam as questões de gênero, raça e classe.
A organização nacional se estruturou e passou a se comunicar com os estados por meio
de informes desde o mês de maio de 2018. Ficou explícito nas três reuniões preparatórias, que
o ano de 2018, simbolicamente deveria ser marcado por uma mobilização de mulheres negras
brasileiras por ser um ano onde se comemoravam os 30 anos do 1º Encontro Nacional de
3 Daleti Jeovana Pereira Neres, mulher negra, estudante de jornalismo da UFT, que se suicidou
no dia 20 de outubro de 2017, aos 20 anos.
Mulheres Negras e do Movimento atual de Mulheres Negras, ocorrido em Valença – RJ; os 130
anos da abolição da escravatura; os 30 anos do protesto negro da abolição e os 30 anos da
promulgação da Constituição Brasileira.
No caso das mulheres negras tocantinenses, ainda se comemorava os 30 anos da criação
do Estado e de sua alocação na Região Norte do Brasil, conforme reza o Artigo 13, do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Brasileira de 1988:
Art. 13. É criado o Estado do Tocantins, pelo desmembramento da área descrita neste artigo, dando-se sua instalação no quadragésimo sexto dia após
a eleição prevista no § 3º, mas não antes de 1º de janeiro de 1989.
§ 1º O Estado do Tocantins integra a Região Norte [...]. (BRASIL. 1999, p.
142)
Essa especificidade do Estado do Tocantins (pertencimento à Região Norte do Brasil),
também foi uma questão importante para a discussão da identidade da mulher negra inserida
em um movimento nacional, pois a maioria das pessoas ainda trabalham com a ideia de que o
Estado está alocado na Região Centro-Oeste.
No contexto de luta contra a opressão de classe, contra o sexismo e o racismo, pertencer
à Região Norte, também é um indicador de maior vulnerabilidade. Nesse sentido, era importante
que toda a sociedade brasileira pudesse perceber que as mulheres negras ainda continuavam
mobilizadas, em condições de colocar milhares de mulheres negras nas ruas. Também era
importante que a própria mulher negra pudesse se perceber, conversar, se articular e fazer
projetos coletivos para o enfrentamento das adversidades da conjuntura local, regional, nacional
e internacional que não tem sido favorável para as mulheres negras.
No Estado do Tocantins o convite foi para que as mulheres negras, estando organizadas
em movimentos sociais ou não, pudessem participar do encontro e também convidar outras
mulheres negras do seu círculo familiar, de amizade, de trabalho, de estudo ou de organização.
Que pudesse se encontrar, construir e fortalecer a luta do movimento de mulheres negras, com
uma abordagem específica do pensamento feminista negro.
Ao se tornar público, o convite já gerou reflexão, questionamento e resistência por parte
do movimento feminista branco: por que o encontro está voltado somente para mulheres
negras? A pergunta foi recorrente em todas as rodas de conversa4 e, muitas vezes, se colocava
de forma ressentida, dolorida, como se as mulheres negras tocantinenses estavam esquecendo
de reconhecer o trabalho das feministas brancas que fizeram história no Estado.
Esse fato demonstra o quanto o protagonismo das mulheres negras não é compreendido
(e aceito) nem mesmo pelas ativistas não negras e o quanto o sofrimento causado pelo racismo
sufoca e silencia vítimas, pelo fato de ser considerado pauta vencida em uma sociedade que
está forjada na falsa concepção de uma democracia racial.
O movimento nacional de mulheres negras, apoiado no pensamento feminista negro,
não concebe uma discussão sobre o feminismo sem a intersecção gênero, raça e classe.
Outrossim, na atual conjuntura brasileira, não basta falar sobre as mazelas de uma sociedade
excludente, sem se falar sobre o sofrimento e o terror que vitima a população negra. Não é
possível pensar caminhos para o futuro, mantendo o silêncio sobre o racismo.
Essa questão foi trabalhada por Ângela Davis (2016) ao mostrar que, na última década
do século XIX, no processo de campanha pelo sufrágio feminino, a presidenta da Associação
Estadunidense pelo Sufrágio Feminino, Susan B. Anthony, não concebia que as mulheres e
homens negros pudessem votar porque eram analfabetos. Mas na realidade, Davis (2016),
demonstra que essas mulheres norte-americanas, representadas por Anthony, não conseguiam
de fato falar sobre o terror e a violência sofrida pelos trabalhadores negros do Sul:
Não se tratava, portanto, de identificar o que estava por vir. O terror já reinava entre a população negra. Como Susan B. Anthony podia afirmar sua crença
nos direitos humanos e na igualdade política e, ao mesmo tempo, aconselhar
os membros de sua organização a permanecer em silêncio sobre o problema do racismo? A ideologia burguesa – e particularmente seus componentes
racistas – realmente deve possuir o poder de diluir as imagens reais do terror
em obscuridade e insignificância e de dissipar os terríveis gritos de sofrimento
dos seres humanos em murmúrios quase inaudíveis e, então, em silêncio. (DAVIS, 2016, p. 126-127).
No contexto de acirramento do ódio, da violência e perda de direitos atualmente vividos
pela população negra no Brasil; quem deveria ter voz no processo de mobilização em prol de
4 Foi preciso responder essa pergunta e justificar a chamada do encontro voltado para as
mulheres negras em todos os encontros preparatórios realizados nas cidades de Palmas, Porto
Nacional, Arraias e Miracema.
uma sociedade mais justa e igualitária? Será que o índice de analfabetismo e a falta de tradição
e inserção no movimento feminista pode silenciar uma mulher negra? Foram essas questões
que balizaram a opção por de que a organização do encontro fosse protagonizada por mulheres
negras.
Considerando essas reflexões e a forma como ocorreu a chamada (prioritariamente
mulheres negras), acreditamos que, o “Encontro Estadual de Mulheres Negras do Tocantins
rumo ao Encontro Nacional de Mulheres Negras 30 anos contra o racismo, a violência e pelo
bem viver”, foi uma oportunidade de formação sobre a especificidade e a complexidade daquilo
que se entende sobre o feminismo negro. Para fins desse estudo sobre os relatos e reflexões
acerca do feminismo negro, compreendemos que problematizar sobre a base formativa dessas
mulheres, expressa no seu lugar de fala (RIBEIRO, 2017) e na natureza dos movimentos sociais
aos quais elas estão inseridas é importante.
A tabulação dos dados contidos nas fichas de inscrição das participantes do “Encontro
Estadual de Mulheres Negras do Tocantins rumo ao Encontro Nacional de Mulheres Negras
30 anos contra o racismo, a violência e pelo bem viver”, apontou que o encontro contou com
51(cinquenta e uma) participantes oriundas de 10 municípios (Araguaína, Arraias, Colinas,
Esperantina, Palmas, Paraíso do Tocantins, Ponte Alta, Ponte Alta do Bom Jesus, Porto
Nacional e São Felix).
Das 51(cinquenta e uma) participantes inscritas, 17 (dezessete) foram para o evento
porque se sentiram interessadas em trocar experiências e vivências, sem estarem ligadas a
movimentos sociais, sindicais e/ou ONG; no entanto, 34 (trinta e quatro) mulheres se
identificaram como pertencentes a uma organização5.
Ao identificar os nomes das organizações declaradasi nas fichas de inscrição, cruzamos
os dados com a leitura da memória final do encontro, onde consta que foi no momento de
apresentação das participantes que cada uma falou o seu nome; a instituição a que pertence; a
forma como foi convidada ou se informou sobre o evento e de sua expectativa para o encontro.
5 Conferir nota de fim do documento a lista dos movimentos sociais, órgãos e entidades onde
essas mulheres atuam e/ou se sentem acolhidas de uma forma ou de outra.
Nesse sentido, respeitando o papel e a autonomia de cada instituição declarada pela
participante, é possível averiguar que 8 (oito) instituições são de natureza mista que tem como
pauta a defesa dos direitos econômicos, sociais, culturais e políticos; 6 (seis) são de natureza
mista que tem como pauta o enfrentamento das desigualdades geradas pelas diferenças de
classe; 5 (cinco) são de natureza mista que tem como pauta a luta contra o racismo que vitima
a população negra; 4 (quatro) são movimentos de mulheres que discutem o feminismo de
natureza global e 3 (três) são movimentos de mulheres negras que fazem a intersecção
gênero/raça/classe.
A apresentação individual das participantes e a análise do perfil das entidades
declaradas permite perceber que são mulheres negras que respondem ao chamado pelo grau de
opressão sofrida no cotidiano; são mulheres negras ativistas que se encontram pela necessidade
de reivindicar direitos fundamentais, trazer visibilidade às suas pautas e promover a mudança
no ambiente em que atua (casa, trabalho, sindicato, escola, universidade, partido político). No
entanto, a questão da consciência da negritude e das mazelas do racismo para a população negra
foi o motivo principal para que essa representante pudesse dedicar parte do seu tempo para
discutir a questão da mulher negra na sociedade brasileira.
2 ASPECTOS FORMATIVOS DO FEMINISMO NEGRO
2.1 Enfrentamento ao capitalismo monopolista como condição para a igualdade
O “Encontro Estadual de Mulheres Negras do Tocantins rumo ao Encontro Nacional
de Mulheres Negras 30 anos contra o racismo, a violência e pelo bem viver”, tratou da opressão
sofrida pela mulher negra trabalhadora e da ameaça aos seus direitos.
Segundo a memória do encontro, no Brasil, nas décadas de 1980 e 1990 a mulher negra
trabalhadora acumulou perdas de direitos trabalhistas que ainda podem ser expressas de forma
mais contundente quando se faz a comparação dos salários desagregados por sexo e raça
(homem branco; mulher branca; homem negro; mulher negra). Nesse sentido, as mulheres que
são penalizadas têm cor e classe social.
Angela Davis (2017) afirma:
[...] Se não tivermos medo de adotar uma postura revolucionária – se
desejarmos, de fato, ser radicais em nossa mudança -, precisaremos atingir a
raiz da nossa opressão. Afinal radical significa simplesmente “compreender
as coisas desde a raiz”. Nossa pauta de empoderamento das mulheres deve,
portanto, ser inequívoca na contestação do capitalismo monopolista como o maior obstáculo para a conquista da igualdade. (DAVIS, 2017, p. 24).
O desemprego e a informalidade do trabalho diminuem o tempo de carteira assinada e
a proteção social. O retrocesso inicia com a Emenda Constitucional 95, a atual reforma
trabalhista e a reforma da previdência.
A Emenda Constitucional 95 trava por 20 anos os gastos públicos com Educação, Saúde
e Segurança e alguns exemplos desse impacto são: a) ausência de investimentos na abertura de
creches: quem cuida das crianças? As mulheres. b) ausência de investimentos na saúde: quem
cuida dos doentes? As mulheres.
No caso da reforma trabalhista, o trabalho intermitente afeta diretamente as mulheres
pretas, por não ter continuidade do contrato. Exemplo daquilo que chamamos de free-lance.
Atualmente as diaristas, em sua maioria mulheres negras, não possuem os seus direitos
trabalhistas garantidos.
Os sindicatos perdem o seu papel político de mediador no processo de negociação entre
capital e trabalho. “O negociado sobre o legislado” supostamente coloca as mulheres negras em
situação de igualdade com o empregador. Na realidade a mulher negra estará em uma situação
de maior vulnerabilidade por conta do aumento do desemprego e do exército industrial de
reserva.
Segundo a Reforma Trabalhista, “desde que autorizado” as mulheres gestantes poderão
trabalhar em locais insalubres. Essa autorização torna-se coercitiva à medida que ameaça a
permanência dessas mulheres no emprego, pois, se as mulheres não pedirem essa autorização
de seus médicos serão despedidas.
Também no serviço público e privado, o trabalho tem sido terceirizado. Isso significa
que a trabalhadora está a mercê de uma empresa contratante que está fora do espaço geográfico
onde o serviço está sendo realizado. A quem a trabalhadora irá recorrer?
Os postos de trabalho dos jovens e das mulheres estão sendo precarizados e o processo
de adoecimento está sendo mais acentuado devido às lesões por trabalhos repetitivos.
Nesse sentido a organização da classe trabalhadora necessita da força e da presença das
mulheres negras. O processo de conscientização passa pela compreensão de que a luta por
igualdade é sinônimo de enfrentamento do capitalismo monopolista.
2.2 Enfrentamento ao racismo como condição indispensável para a democracia
O encontro foi pensado para ser um espaço de formação sobre a conjuntura política do
Brasil e os impactos sobre a vida da mulher negra. Como afirma Djamila Ribeiro, “o feminismo
negro não é uma luta meramente identitária, até porque branquitude e masculinidade também
são identidades. Pensar feminismos negros é pensar projetos democráticos”. (RIBEIRO, 2018,
p. 7).
Se o feminismo negro pensa projetos democráticos, precisa necessariamente pensar
sobre a política do país e como ela afeta a vida e o cotidiano das mulheres negras. A leitura da
conjuntura política e econômica do Brasil, partiu da percepção das desigualdades sociais, raciais
e de gênero, como expressão da violência e do racismo estrutural que afetam a democracia do
país e a dignidade da pessoa humana.
A crise política instalada no país a partir de 2016, acirrou a violência no campo, na
cidade e nas florestas. A sociedade passou a sofrer as ações de força, repressão e extermínio
que afetam diretamente as famílias negras e os movimentos sociais organizados. Quem são as
vítimas preferenciais dessas operações policiais? São os jovens negros, filhos das mulheres
negras (o exemplo mais recente foi a morte de um jovem negro na presença de sua mãe, vítima
de um segurança do supermercado). Esse e inúmeros outros casos são exemplos da cidadania
negada aos jovens e às mulheres negras.
Na memória do encontro, são destacadas as tarefas que as mulheres negras precisam
desempenhar para mudar essa correlação de forças que o cenário político coloca para a vida
pessoal de cada participante e para o futuro político das organizações representadas.
É preciso manter as conquistas e os direitos que as gerações anteriores deixaram como
legado à essa geração, por isso as mulheres negras devem se manter mobilizadas.
O feminismo negro pressupõe mobilização permanente e união das forças populares. As
mulheres negras continuam em marcha (referência à Marcha Nacional das Mulheres Negras,
contra o racismo, a violência e pelo bem viver) e estão inseridas na luta contra o racismo.
Outro ponto que foi muito discutido no encontro é que a representação da extrema direita
expressa pela bancada evangélica no Congresso Nacional exige que a mulher negra faça um
trabalho de conscientização no espaço interno da família. O acirramento da violência contra a
mulher negra obriga que uma procure proteger a outra. Há que se fazer o enfrentamento do
debate mantendo a interseccionalidade (raça, gênero e sexualidade, sem hierarquizar a questão
da sexualidade) e principalmente sobre o papel revolucionário da mulher negra.
Segundo Angela Davis (2017),
As mulheres da classe trabalhadora, em particular as de minorias étnicas,
enfrentam a opressão sexista de um modo que reflete a realidade e a complexidade das interconexões propositais entre opressão econômica, racial
e sexual. Enquanto a experiência das mulheres brancas de classe média com o
sexismo incorpora uma forma relativamente isolada dessa opressão, a experiência das mulheres da classe trabalhadora obrigatoriamente situa o
sexismo no contexto da exploração de classe – e as experiências das mulheres
negras, por sua vez, contextualizam a opressão de gênero nas conjunturas de
racismo. (DAVIS, 2017, p. 37).
Nesse sentido, o “Encontro Estadual de Mulheres Negras do Tocantins rumo ao
Encontro Nacional de Mulheres Negras 30 anos contra o racismo, a violência e pelo bem
viver”, demonstrou que não existe democracia em uma sociedade que não discute o racismo;
não existe igualdade em uma sociedade que não discute o sexismo.
2.3 Enfrentamento ao sexismo como condição para a dignidade humana
Dentre os aspectos formativos sobre o feminismo negro, contido na memória do
encontro, o debate específico sobre o sexismo não esteve tão explícito como um aspecto a ser
inserido na formação sobre o feminismo negro. Aparentemente o conceito sobre sexismo já era
consenso no grupo e mulheres negras que já estão em movimento enfrentando as diferenças
sociais e as desigualdades raciais.
No entanto, parafraseando bell hooks (2018) “feministas são formadas, não nascem
feministas” e por isso a necessidade de explicitar o que é o feminismo. Ela afirma textualmente:
[...] “Feminismo é um movimento para acabar com o sexismo, exploração
sexista e opressão”. [...] o movimento não tem a ver com ser anti-homem. Deixa claro que o problema é o sexismo. E essa clareza nos ajuda a lembrar
que todos nós, mulheres e homens, temos sido socializados desde o
nascimento para aceitar pensamentos e ações sexistas. Como consequência, mulheres podem ser tão sexistas quanto homens. Isso não desculpa ou justifica
a dominação masculina; isso significa que seria inocência e equívoco de
pensadoras feministas simplificar o feminismo e enxerga-lo como se fosse um
movimento de mulher contra homem. Para acabar com o patriarcado (outra
maneira de nomear o sexismo institucionalizado), precisamos deixar claro que
todos nós participamos da disseminação do sexismo, até mudarmos a consciência e o coração; até desapegarmos de pensamentos e ações sexistas e
substitui-los por pensamentos e ações feministas (hooks, 2018).
O Encontro Estadual procurou através de dinâmicas de grupo, atividades culturais e
expressões musicais, promover a conscientização das mulheres negras sobre a necessidade de
enfrentar o sexismo incutido em pensamentos e ações de todas as mulheres que ali estavam.
Foi possível perceber a reflexão sobre o patriarcado quando nos grupos de trabalho
foram discutidos temas como saúde, sexualidade e direitos reprodutivos das mulheres negras.
O sexismo ficou explícito na denúncia do projeto de esterilização compulsória de
mulheres negras pobres e moradoras de rua; na denúncia do aumento do feminicídio e do
homicídio de mulheres negras e transgênero. A memória do encontro toca na necessidade de
enfrentamento ao sexismo quando destaca que o estupro não tem a ver com a questão sexual,
tem a ver com a relação de poder.
Durante o debate, as menções sobre a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, foram
importantes para as mulheres negras, mas precisam ser acompanhadas de políticas públicas
inclusivas e de punição aos agressores. No Brasil, os avanços em relação às políticas públicas
de enfrentamento ao sexismo e ao patriarcado observados nos últimos 10 anos, demonstram o
quanto “[...] mudanças feministas já tocaram a vida de todas as pessoas de forma positiva. E,
ainda assim, perdemos de vista o positivo, quando tudo o que ouvimos sobre feminismo é
negativo.” (hooks, 2018).
Analisando os discursos expressos nas vozes das mulheres negras presentes no
“Encontro Estadual de Mulheres Negras do Tocantins rumo ao Encontro Nacional de Mulheres
Negras 30 anos contra o racismo, a violência e pelo bem viver”, foi possível perceber que,
ainda que estivessem “em movimento”, engajadas em defesa de suas agendas políticas e
reivindicatórias, havia uma lacuna em relação à consciência feminista que as colocasse em
condições de “criar uma base para a solidariedade entre mulheres”, conforme nos ensina bell
hooks :
Essa base se apoiou em nossa crítica do que então chamávamos de “o inimigo
interno”, em referência ao nosso sexismo internalizado. Sabíamos, por
experiência própria, que, como mulheres, fomos socializadas pelo pensamento
patriarcal para enxergar a nós mesmas como pessoas inferiores aos homens,
para nos ver, sempre e somente, competindo umas com as outras pela
aprovação patriarcal, para olhar umas às outras com inveja, medo e ódio. O pensamento sexista nos fez julgar sem compaixão e punir duramente umas às
outras. O pensamento feminista nos ajudou a desprender o auto-ódio
feminimo. Ele nos permitiu que nos libertássemos do controle do pensamento patriarcal sobre nossa consciência. (hooks, 2018).
Acreditamos que essas questões teóricas que parecem estar solucionadas nos discursos
e ações de algumas lideranças dos movimentos de mulheres que discutem o feminismo de
natureza global e dos movimentos de mulheres negras que fazem a intersecção
gênero/raça/classe. No entanto, é preciso que a discussão seja aprofundada para que as outras
mulheres possam atingir essa conscientização feminista revolucionária:
A conscientização feminista revolucionária enfatizou a importância de
aprender sobre o patriarcado como sistema de dominação, como ele se
institucionalizou e como é disseminado e mantido. Compreender a maneira como a dominação masculina e o sexismo eram expressos no dia a dia
conscientizou mulheres sobre como éramos vitimadas, exploradas e, em
piores cenários, oprimidas. No início do movimento feminista contemporâneo, os grupos de conscientização frequentemente se tornaram
espaços em que mulheres simplesmente liberavam a hostilidade e a ira por
serem vitimizadas, com pouco ou nenhum foco em estratégias de
intervenção e transformação. (hooks, 2018). [Grifo nosso]
Consideramos que a mobilização para a realização do Encontro Estadual de Mulheres
Negras do Tocantins, com a intenção da participação no Encontro Nacional, foi eficiente e
eficaz naquilo que se propôs (organizar uma delegação para o encontro nacional), no entanto,
acreditamos que é preciso avançar em direção a uma conscientização feminista revolucionária,
com foco em estratégias de intervenção e transformação.
Nesse sentido, um dos caminhos seria a realização de um encontro para que as mulheres
negras pudessem fazer uma avaliação de todo o processo de mobilização e/ou de uma proposta
para o dia seguinte, demonstrou “pouco ou nenhum foco em estratégias de intervenção e
transformação” que pudesse construir agenda reivindicatória das mulheres negras no Estado
ou agenda formativa sobre o feminismo negro.
3 PERSPECTIVAS PARA O FUTURO
A metodologia do “Encontro Estadual de Mulheres Negras do Tocantins rumo ao
Encontro Nacional de Mulheres Negras 30 anos contra o racismo, a violência e pelo bem
viver”, contou com a realização de trabalhos em grupo, e garantiu que o evento desenhasse uma
agenda para o futuro da organização das mulheres negras no Estado do Tocantins (a palavra
organização está no singular porque o encontro em si foi de organizações, no plural). O desafio
para o feminismo negro é promover uma organização unificada que interseccione gênero, classe
e raça.
Foram duas as orientações para o trabalho em grupo: realizar o mapeamento das
principais questões sociais, econômicas, políticas e culturais que afetam as mulheres negras
tocantinenses e realizar o mapeamento das principais iniciativas e estratégias empreendidas
pelas Mulheres negras tocantinenses que reafirmem o histórico de luta e resistências.
Foram quatro eixos temáticos trabalhados: 1) Mundo do trabalho: mulheres do campo,
da floresta e das águas; 2) Violência contra a mulher; 3) Perspectivas das mulheres negras na
comunicação e 4) Afetos e Cultura.
Quando pensamos sobre os aspectos formativos sobre o feminismo negro nesse espaço
de discussão em grupos, percebemos que as mulheres negras tocantinenses estão envolvidas em
todas as questões sociais, econômicas, políticas e culturais que envolvem o Estado, haja vista
que mais de 70/% da população do Estado se autodeclara preta e parda.
O enfrentamento ao capitalismo monopolista ficou expresso nos debates dos grupos 1 e
3, que trouxeram a luta das mulheres em prol da manutenção das políticas públicas voltadas
para saúde, educação, comunicação e segurança.
Os relatos sobre o aumento da violência no campo e nas florestas (representantes
quilombolas e quebradeiras de coco respectivamente); o destaque dado ao retrocesso da venda
direta dos produtos das agricultoras familiares; ao desvio de recursos destinados à agricultura
familiar (veículos e insumos usados para outros fins) e ao retrocesso das políticas de acesso à
terra, são indícios do quanto as mulheres negras estão sofrendo as mazelas do capitalismo
monopolista em seu cotidiano.
Ainda foi destacado que a liberação do porte de arma de fogo e o alcance desse
instrumento de violência é prejudicial às famílias que estão a frente da luta pelo acesso à terra
no Brasil.
O enfrentamento ao racismo foi mais evidente nos debates dos grupos 3 e 4, já que a
pauta da comunicação, do afeto e da cultura foi direcionada para a realidade da mulher negra.
Os grupos analisaram historicamente o racismo estrutural e demonstraram que a
comunicação, é um setor que concentra empresas a serviço do capital, que está concentrado nas
mãos dos brancos e destacaram que os grupos subalternos falaram e disputaram esse espaço,
inclusive mulheres negras.
Foi abordado que atualmente o feminismo negro também se ocupa do ativismo digital
como instrumento de luta para um projeto social emancipatório e que, para além da
comunicação digital, é importante a comunicação oral, o diálogo e a paciência para escolher o
melhor momento de intervenção.
Como perspectiva para o presente e o futuro, foi proposto a construção de um processo
que promova a comunicação contra hegemônica e a utilização dos meios de comunicação como
uma ferramenta de libertação.
A necessidade de enfrentamento ao sexismo e ao patriarcado se manifestou de forma
mais incisiva nos grupos 2 e 4, principalmente quando abordaram a questão da coisificação do
corpo da mulher negra, a problemática da não aceitação do cabelo crespo e sobre a afetividade
e a solidão da mulher negra.
No grupo que discutiu a violência contra a mulher, a questão do estupro e,
consequentemente do aborto como política pública se colocou. Nesse ponto, temos novamente
que recorrer ao pensamento de bell hooks (2018):
A questão do aborto chamou atenção da mídia de massa porque realmente
desafiou o pensamento cristão fundamentalista. Desafiou diretamente a noção
de que a razão da existência de uma mulher é gerar crianças. Chamou a atenção da nação para o corpo da mulher de uma forma que nenhuma outra
questão poderia fazer. Era um desafio direcionado à igreja. Mais tarde, todas
as outras questões reprodutivas para as quais pensadoras feministas chamaram a atenção eram com frequência ignoradas pela mídia de massa. Os problemas
médicos de longo prazo, desde cesarianas e histerectomias, não eram assuntos
interessantes para a mídia de massa; frequentemente chamaram a atenção para um sistema médico patriarcal capitalista, dominado por homens, que
controlava o corpo das mulheres e fazia com elas qualquer coisa que quisesse
fazer. Focar em injustiça de gênero nessas arenas teria sido um tanto quanto
radical para uma mídia de massa que permanece profundamente conservadora e, em sua maioria, antifeminista. (hooks, 2018).
A discussão sobre o estupro coletivo, o aborto e outros tipos de violência contra a mulher
negra foram discussões difíceis por conta do “inimigo interno” que habita corações e mentes
das pessoas, e isso não foi diferente no Encontro Estadual, no entanto, a superação desse desafio
foi colocado como uma perspectiva para o futuro.
Dentre as propostas de ações e atividades a serem realizadas pelo movimento de
mulheres negras, há que se destacar a promoção da ancestralidade cultural da mulher negra e o
respeito às religiões de matriz africana.
Há que se destacar que o encontro estadual de mulheres negras do Tocantins contou
com a participação, o potencial de mobilização e o conhecimento sobre feminismo negro e das
jovens feministas negras. Parece irrelevante essa constatação, mas dentre as perspectivas de
futuro, há que se destacar que o avanço da mobilização de mulheres negras, depende de um
debate mais aprofundado sobre a sororidade e as relações intergeracionais. Diferentemente dos
movimentos feministas globais, no movimento de mulheres negras do Tocantins, as jovens
feministas é que desenvolvem o conhecimento teórico sobre o pensamento feminista negro, são
elas que estão mais aptas a promover momentos de formação específico.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A conclusão do trabalho é que ainda não existe uma regularidade na formação das
mulheres negras tocantinenses em torno do pensamento feminista negro e que as atividades
pontuais realizadas para garantir a participação em grandes eventos tais quais a Marcha
Nacional de Mulheres Negras ocorrida em 2015 e o Encontro Nacional de Mulheres Negras
ocorrido em 2018, foram cruciais para a aproximação de lideranças negras que assumiram o
desafio de promover um trabalho de formação, com amplitude estadual, pautado no pensamento
feminista negro.
As dificuldades para apoio humano, logístico e material para a realização do encontro
foi também uma oportunidade de aproximação e mobilização das companheiras e de debate
interno das instituições representadas no evento.
REFERÊNCIAS
BRASIL. 1999. Constituição 1998: Texto Constitucional de 5 de outubro de 1988 com
alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nº 1/92 a 22/99 e Emendas
Constitucionais de Revisão nº 1 a 6/94. Brasília, Senado Federal, Subsecretaria de Edições
Técnicas, 360 p.
DAVIS, A. 2016. Mulheres, Raça e Classe. 1 ed. São Paulo, Boitempo, 245 p.
_________. 2017. Mulheres, Cultura e Política. 1ed. São Paulo, Boitempo, 198 p.
ENCONTRO ESTADUAL DE MULHERES NEGRAS DO TOCANTINS RUMO AO
ENCONTRO NACIONAL DE MULHERES NEGRAS 30 ANOS CONTRA O RACISMO,
A VIOLÊNCIA E PELO BEM VIVER”. 2018. Tocantins – Memória do Encontro Estadual,
Palmas, documento impresso, 26 p.
hooks b. 2018. O feminismo é para todo mundo [recurso eletrônico]: políticas arrebatadoras.
Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, Recurso digital, 144 p.
RIBEIRO, D. 2017. O que é lugar de fala? Belo Horizonte, Letramento, 114 p.
__________. 2018. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo, Companhia das Letras,
134 p.
i Nome e/ou siglas das organizações que foram declaradas nas fichas de inscrição do encontro
estadual, por ordem alfabética: Ajunta Preta; Alagbara, Agentes de Pastoral Negros do Brasil
(APNs); Anca, Associação de Mulheres de Esperantina, Brejo/TO; Centro de Direitos Humanos
de Palmas (CDHP); Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins
(Coeqto); Comsaúde; Conselho Estadual de Economia Solidária; Conselho Estadual de Saúde;
Consulta Popular; Central Única dos Trabalhadores (CUT); Federação dos Trabalhadores na
Agricultura do Estado do Tocantins (FETAET); Grupo de Consciência Negra do Tocantins
(GRUCONTO); Instituto Federal do Tocantins (IFTO/Colinas); Levante Popular da Juventude;
Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB); Marcha Mundial de Mulheres; Partido dos
Trabalhadores (PT); Rede Candaces de Lésbicas Negras e Feministas; Sindicato dos
Trabalhadores em Educação no Estado do Tocantins (SINTET); Universidade Federal do
Tocantins (UFT); Unidos por um mundo melhor (UPMM); Viração.