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Ficha técnica
Título: Mas alguém quis a escola democrática?
Capa: “Todos juntos” (2001) – Marlene Monteiro (9 anos)
Autor: Pascal Paulus
Edição: março 2008
revisão: junho 2014
Formato: e-livro PDF 14 x 21 cm
Letra: Garamond 10; Calibri light 8
Pascal Paulus (http://pascalpaulus.weebly.com)
Mas alguém quis a escola democrática?
Pascal Paulus
Índice
Mas alguém quis? ............................................................................................................ 5
Os pais na escola. ............................................................................................................. 7 A escola no bairro ........................................................................................................ 7 O bairro e a população. ............................................................................................... 7 A Escola e a turma ....................................................................................................... 8 Discutir trabalho. ....................................................................................................... 10 Sem “happy end” ....................................................................................................... 15
O tempo da borboleta ................................................................................................... 19 Histórias com história................................................................................................ 20 As paralelas não se cruzam....................................................................................... 25 O agente do mercado fez contas e tomou conta. .................................................... 32 A contraproposta prudente: o olhar integrado. ....................................................... 37 Acão para uma vida decente; duas malhas de uma rede. ...................................... 40 Quando a borboleta levanta voo. ............................................................................. 44 Referências bibliográficas ......................................................................................... 46
Grande irmão cidadão... ou talvez não... ...................................................................... 49 Alfas, Epsilões e a Novilíngua. ................................................................................... 49 “Produto” velho em embalagem nova ou velha embalagem para novo “produto”? ....................... 52 A europeização da formação cívica .......................................................................... 55 O silenciamento ensurdecedor das crianças ............................................................ 58 Educação “para” ou “na” cidadania e consciencialização ...................................... 61 Uma prática fundada na pedagogia institucional ................................................... 65 Uma questão de opção ... ......................................................................................... 69 Referências bibliográficas ......................................................................................... 70
Leituras acerca da organização do trabalho no primeiro ciclo.................................... 75 Ofício ou profissão? ................................................................................................... 75 Hipóteses de trabalho para um maior sucesso educativo. ...................................... 78 Um instrumento possível de trabalho. ..................................................................... 82 Notas Bibliográficas .................................................................................................. 84 Anexos ........................................................................................................................ 85
“A escola é castradora quando utilizada como um instrumento de dominação”...... 89
Notas............................................................................................................................... 97
Mas alguém quis a escola democrática? 5
Mas alguém quis?
Reúno aqui quatro artigos e uma entrevista.
O primeiro texto Os pais na escola foi começado em 2001. O seu fecho data de
2008. Utilizei algumas ideias do texto no livro “A escola faz-se com pessoas”. Os
acontecimentos desde 2001 até a data mostraram-me que era então demasiado
otimista. Não parece ser possível, de momento, construir uma relação de
colaboração pedagógica e democrática entre mães, pais e professores a nível
institucional. Guardei a estrutura do texto de então que descrevia a crescente
participação dos pais e das mães nas atividades de aprendizagem das crianças.
Acrescentei o “sem Happy End”. A falta dum fim feliz institucional não
impede obviamente a continuação de trabalho em comum com os pro-
genitores dos meus pupilos. Entretanto continua a ser utopia elaborar uma
comunidade educativa no contexto em que trabalho.
A democracia está ameaçada pela autocracia.
O tempo da borboleta, escrito a meias com João Romualdo Silva segue algumas
crianças de bairros sociais diferentes com passados diferentes mas futuros
igualmente incertos. A partir das suas aventuras no mundo educativo ou
simplesmente normativo tentamos perceber como é que uma escola tornada
industria dificulta a aprendizagem da cidadania entre pessoas por si só já
fragilizadas pelo poder económico e pelo fosse enorme que existe entre ricos e
pobres.
Desenvolvo esta ideia no texto Grande irmão cidadão... ou talvez não... que serviu
de base para uma intervenção na ESE de Lisboa numa mesa redonda sobre
escola e cidadania. A mercantilização do ensino na Europa provoca uma
gradual individualização do ensino, incentivando professores e crianças a
formas de trabalho que transformam a aprendizagem para a cidadania em
lições de formação cívica. Favorece ao mesmo tempo a concorrência em vez
da cooperação, a solidariedade do poderoso com o fraco em vez da
intervenção democrática organizada para uma sociedade mais equitativa com
formas de participação direta pelos cidadãos.
O texto Leituras acerca da organização do trabalho no primeiro ciclo resulta da
observação dos dados Eurydice e PISA de 2005 e 2001 respetivamente.
Parecem existir indicadores que uma escola com monodocência prolongada,
menos trabalhos de casa, mais fontes de documentação diversificadas, menos
6 Pascal Paulus
manuais escolares como única fonte de saber e mais participação dos alunos
provocam melhores resultados escolares. Talvez não seria mau se os opinion
makers lessem e estudassem um pouco mais o material disponível, mesmo em
termos de listas de classificação e comparação em vez de produzirem
comentários, logo retomados por outros, sugerindo que uma escola autoritária
poderá resolver todos os males do insucesso.
A conversa com o Ricardo Costa originou o artigo A escola é castradora quando
utilizada como um instrumento de dominação na Página da Educação de Outubro de
2007, da sua mão.
Quis incluir o texto porque o Ricardo sintetiza de forma muito clara o
conjunto de reflexões aqui produzidos e retomadas ao longo da entrevista.
Agradeço todos os parceiros envolvidos na escrita dos textos que seguem e,
muito especialmente, João Romualdo Silva e Ricardo Costa.
Mas alguém quis a escola democrática? 7
Os pais na escola.
O texto que segue tem como base a transcrição1 da intervenção proferida no
plenário com o mesmo título no XXIII Congresso do Movimento da Escola
Moderna, em Évora.
A escola no bairro
O que vos quero contar não tem nada de especial. Limito-me à vos teste-
munhar como tento “cativar” os pais dos meus alunos e como a escola tenta
afastar os pais dos meus alunos.
Considero, e repito, que a nossa profissão nos obriga a construir uma parceria
com os pais e as mães dos nossos alunos, tarefa que nunca me pareceu parti-
cularmente difícil.
Mas terei que vos pintar um pouco o bairro e a escola para perceberem porque
utilizei os termos “cativar” e “afastar”.
O bairro e a população.
O bairro ganhou alguma fama nos arredores de Lisboa e no país, desde os
assaltos da gasolineira da autoestrada de Oeiras. Uma estação de televisão que
emite de perto do bairro e um semanário de grande tiragem, recorrem desde
então a ex-alunos da nossa escola, meninos de 15 à 17 anos, quando querem
ilustrar o que são “pequenos delinquentes”.
Estes faziam sempre alguma troça dos jornalistas, enalteciam os seus atos, para
ganharem mais espetacularidade – porque, em 2001, a maior parte deles se
limitava a roubar telemóveis e carteiras, ou roupa, nas lojas de artigos de
desporto da zona.
Mas também falavam do desporto preferido: com um carro roubado e sem
carta de condução “paras em frente da bófia. Baixas o vidro, mostras-te. Depois aceleras.
Depois disso, já podes convidar uma mulher para sair.”
Os grupos fazem e desfazem-se ao ritmo que as crianças passam da escola do
1º ciclo para o 2º ciclo. Rapazes mas também raparigas ficam expulsos da
escola, têm tempo para se organizar, aparecem e desaparecem. Alguns vão
presos outros entrem na linha.
8 Pascal Paulus
Existem até 2006 vários locais de ATL, nos dois bairros servidos pela escola.
Mais bem integrados no bairro do que a própria escola, como instituições,
estes serviços para enquadramento pós-escolar relacionavam-se bem com pais
e crianças. Outros permitiam simplesmente às crianças ter vivências em grupo,
sem ser na escola.
A gradual extensão das chamadas Atividades de Enriquecimento Curricular
(AEC) fez desaparecer pouco a pouco estes serviços extraescolares.
As entidades responsáveis para a organização das AEC preferiram centralizar a
oferta na própria escola através de subcontratação de empresas operando ao
nível do Concelho. Assim fazendo, concentraram as crianças todas na escola
para atividades escolares e extraescolares. De dois adultos de referência fora do
núcleo familiar, passaram a um adulto de referência acrescido de um grupo de
professores e monitores no seu conjunto muito volátil.
No meio de 2006 a zona passou novamente a ser de intervenção prioritária, o
que fez escrever vários jornais que se tratava de zonas perigosos. Aprendi pela
imprensa escrita que leciono num dos 24 mais perigosos núcleos escolares do
país.
A Escola e a turma
A escola tinha em 1988 480 alunos. Em 2000 existem para 270 alunos, 19
professores, dos quais 14 com turma. Só uma das professoras com turma, era
efetiva na escola desde há 10 anos, 1 efetivou-se naquele anos, afirmando estar
de passagem para se aproximar de casa. Fazia parte do grupo de 4 do então quadro distrital de vinculação que estavam
pelo segundo ano consecutivo na escola. O resto do pessoal docente era
contratado. Dois colegas ficaram assim três anos consecutivos contratados na
mesma escola.
No ano letivo 2000-2001 recebia, em média, alunos distribuídos de outras
turmas 1 dia em 31/2, ou seja, foram 51 dias de visitantes ao longo do ano.
Os meus alunos faltaram em média 11 dias por ano.
Resumindo: trabalhei, em todo este ano letivo, só 17 dias com a turma
completa, sem “outros” na sala.
Em 2008, depois da reorganização das regras de concurso com o objetivo de
fixar os corpos docentes nas escolas, existem 13 professores para 10 turmas
com um total de 203 alunos. No ano letivo 2007-2008 mantém-se o corpo
docente do ano anterior: 2 professores do quadro de escola (1 com turma e 1
transferido para o grupo de docência da Educação Especial) 2 contratados
Mas alguém quis a escola democrática? 9
sendo os outros do quadro de zona. Somos dois com permanência de mais de
5 anos na escola mas não ininterrupto.
Em 1999 tentou-se pela terceira vez instalar uma associação de pais. As
primeiras iniciativas foram lançadas por uma instituição com serviço de ATL
que tem a confiança da Câmara. Nunca conseguiu por falta de interesse da
parte dos pais. Houve alguns ensaios por parte do Conselho Executivo,
apoiado pelo Conselho Pedagógico, igualmente sem sucesso. Em 2000, uma
mãe cabo-verdiana de um dos meus alunos começou a participar, pela minha
insistência, nas reuniões do Conselho Pedagógico2. Fui nisso apoiado pela
mediadora, também cabo-verdiana de origem e cooptada neste órgão.
Desde que conheço a escola, considero o recreio um lugar muito agressivo.
Trata-se de um espaço cercado sem nenhum acondicionamento, nenhum
brinquedo. De terra batido, transforma-se em lama quando chove, em nuvem
de poeira quando não chove. Só convida a corridas (com os respetivos
choques inevitáveis) e à utilização do outro como objeto-brinquedo.
Em 2000 surgiu outra prática angustiante: até o fim do ano civil anterior, era
distribuído todos os dias, no intervalo do recreio, um pão com manteiga, às
vezes com fiambre ou queijo. A despesa era paga por um subsídio vindo de
uma instituição de solidariedade social, e havia uma contribuição, diria
simbólica, da parte dos pais.
Depois de acabar com esta distribuição, por falta de verbas, parte dos alunos
começou a trazer lanches, constituídos por sumos, refrigerantes e bolos ou
pães industriais com chocolate. Rapidamente instalou-se, entre os alunos, um
sistema de cobrança, contra proteção, o que tornou os conflitos no recreio
ainda mais insuportáveis e os fizeram entrar de vez no Conselho da nossa
turma.
Para manter o Conselho como instrumento regulador da turma, anunciei aos
alunos que ia, a este respeito, como adulto, intervir, no Conselho Pedagógico3.
E os alunos naquela altura eram 16. Tinha perdido 6 desde o ano anterior e
ganho 1, devido aos realojamentos em curso.
Havia, a partida, 4 famílias, onde, desde o primeiro ano, existia da parte da
mãe, analfabeta, interesse pelo progresso da filha, ou do filho, na escola. As
outras mães mostravam se, no início do ano passado pouco interessadas, ou
então com má impressão ou vergonha, acerca dos seus filhos, falando comigo,
e muitas vezes em frente deles, como se de objetos se tratasse, em termos
muito negativos.
Perante este quadro, penso que foi muito importante viver mesmo ao lado do
bairro, muito perto da escola. Como já tive oportunidade de contar, os
10 Pascal Paulus
momentos “Ler e mostrar”, todas as manhãs, ajudaram-me para aprender
muito sobre as tensões no bairro. A padeira, mas também a vendedora do
quiosque, que existia então mesmo ao lado da padaria, ajudaram-me a
contextualizar a informação, bastava eu fazer uma ou outra observação.
Já referi muitas vezes a padaria também como lugar histórico para mim: foi
onde comecei, com êxito, as reuniões de pais. Conseguia muitas vezes, só neste
local, ou na mercearia ao lado, falar com os “encarregados de educação” para
trocar impressões e dar recados.
Obviamente, só era possível instalar a relação institucional através do trabalho
e dos seus produtos. Neste caso, a mobilização de esforços, com a turma
vizinha, para termos lombas na estrada em frente à escola, o que conseguimos
6 meses mais tarde, foi o primeiro.
O segundo, foi quando os meus alunos e os colegas da turma vizinha,
correram as casas comerciais do bairro, com os professores, para entrevistar os
comerciantes. A cada um dos entrevistados foi depois oferecido um livrinho
com todas as entrevistas ilustradas4.
Discutir trabalho.
No primeiro ano de trabalho mostrava os livros A4 de projetos que os filhos
fizeram, mostrei os planos de trabalho, mostrei – com autorização dos alunos
– um pouco de um vídeo que uma colega veio gravar na nossa sala.
Mudava as reuniões de pais de dia e de hora, mas sempre as fiz depois das seis
e meia da tarde ou no fim de semana. Consegui pelo menos uma vinda de um
adulto de cada uma das famílias.
Mostrei a resposta de dois partidos políticos, de um bancário, de uma
embaixada e de outras pessoas à pedidos feitos pelos meus alunos. Alguns
ficaram surpreendidos com o trabalho dos alunos. No fim do ano, todos
ficaram surpreendidos que todos os alunos passavam para o 3º ano.
No início do ano seguinte, uma visita ao Jardim Zoológico em Outubro
desencadeou um trabalho muito vasto, realizado em conjunto com o grupo de
4º ano, com a colega que já estava na escola há 10 anos. Era um projeto sobre
animais e problemas ambientais, mas também sobre a evolução do ser humano
e a cor da pele, feito por 6 grupos, todos eles com alunos do 3º e do 4º ano
misturados. A medida que o trabalho crescia, cresceu também a minha vontade
de voltar a fazer o que já fiz tantas vezes: montar uma exposição para mostrar
o trabalho aos pais. Desafiei a minha colega, que aceitou e na reunião de pais,
Mas alguém quis a escola democrática? 11
marcada para as 19 horas, apareceram perto de 40 pessoas, representando 2
alunos em 3.
Os encontros a volta do trabalho conceberam um embrião da associação de
pais. Havia várias queixas, por causa das faltas de alguns professores, por causa
de brigas no recreio, por causa de insultos racistas entre crianças, mas também
vindo de adultos, e ... começou o problema do pão do lanche5.
A mãe que participava nos Conselhos Pedagógicos falou com a mediadora e
comigo, e ambos propusemos que talvez fora a altura para tentar de mobilizar
mais pessoas de forma organizada. Dissemos-lhe que tinha que ser ela a fazê-
lo, mas que a apoiaríamos. Ela aceitou, na condição que estivéssemos
presentes na reunião, para as pessoas perceber que se tratava de assuntos de
escola, e que não era assim alguma coisa que lhe passava na cabeça.
Na reunião havia mães e um pai. Mães da turma da colega do 4º ano, mães da
outra turma do 3º ano (com a qual tínhamos feito a saída ao bairro), mães da
minha turma. As outras são mães que apareceram, estavam inseridas num
projecto6 de educação parental para encarregados de educação de alunos de 1º
ano.
Decidiram avançar com a constituição da associação de pais. Iriam voltar a se
reunir para escolher quem ia ser a primeira direção e para entregar os estatutos.
Mesmo antes do fim do segundo período letivo, acabámos um trabalho longo,
com a outra turma de 3º ano, com o tema “À nossa volta”. Propus aos alunos
apresentar o trabalho aos pais, numa pequena exposição, como fizeram
anteriormente.
O trabalho foi exposto na biblioteca da escola e mandámos um convite aos
pais. Mandámos também um convite a algumas pessoas que nos ajudaram a
realizar o trabalho: a polícia, a guia da Sumolis.
As pessoas foram aparecendo ao longo de toda a tarde, desde as 18 horas, até
as 20.30.
À chegada, recebiam um livro, que fizemos, para acompanhar a exposição.
Duas cópias a cores deste livro entraram nas respetivas bibliotecas de turma.
O trabalho ainda existe7.
Dos 34 alunos nas duas turmas, 21 apareceram na exposição, acompanhados
dos seus pais. Alguns vieram sozinhos. Vieram também dois agentes da polícia
em representação do comissário que nos tinha recebido na esquadra. Esta
visita foi muito bem recebida pelos alunos, sentindo-se claramente valorizados
no seu trabalho.
12 Pascal Paulus
No primeiro dia a seguir às férias da Páscoa, expliquei aos alunos que é
diferente mostrar o que fizemos, numa exposição, do que mostrar como
fazemos, no dia-a-dia. Lembrei-lhes o vídeo do ano passado, e propus que
agora mostrássemos “ao vivo” como fazemos.
Alienaram logo, e, na sexta-feira a seguir, houve uma reunião de pais feita por
todos. Tínhamos combinado que, ao entrar, cada um continuava o seu
trabalho de plano, que de seguido trabalhássemos um texto em conjunto e que
acabássemos com alguns assuntos do Conselho, que íamos de propósito
prolongar para o efeito.
Só dois alunos disseram logo que não vinham e que os pais não podiam vir:
uma das meninas que tinha trazido a mãe à exposição e que brilhou naquela
altura pelas explicações que deu, e um rapaz, que faltava muitas vezes naquela
altura, por causa de uma prolongada sessão terapêutica que o fez perder dois
dias por semana desde o Natal até meadas do 3º período, e que o tornou um
pouco distante de algumas atividades da sala, por muito esforço que os outros
faziam para o manter ao corrente dos nossos assuntos.
O Bernardo e o Isaías mandaram representação: vieram as mães, mas não
vieram eles. O Elson não conseguiu trazer ninguém: veio sozinho.
Às seis, as portas da sala abriram-se para os primeiros chegados. Depois de
meia hora, estavam dois dos dezasseis alunos. No trabalho de plano, apoiei o
André e a Mafalda que estavam a acabar um teste de matemática, vi os textos
que o Luís e a Cláudia estavam a escrever, resolvi um pequeno problema no
computador, com o Elson, ajudei a Tatiana para preencher uma ficha de
leitura, e segui do canto do olho os outros que se diversificaram em atividades
de leitura, de desenho e de recolha de documentos para os novos projetos que
iriam arrancar na segunda-feira.
Quando avisei a equipa (Cláudia e André), que tínhamos que parar para
começar o trabalho de texto, todos, incluindo algumas mães, estavam
admiradas que já eram 7 horas.
Começámos a trabalhar um texto do Isaías, que depois de uma primeira caça
ao erro, ficou assim:
Era uma vez uma sereia e um sereio. Eram muito bonitos.
A sereia casamento o sereio. O sereio disse “aceito” e viveram felizes.
A Cláudia leu o texto.
Mãe do Luís: Faltam palavras.
Eu: É verdade. Aquela segunda frase, é estranha.
Mafalda: Pode ser “O sereio pediu casamento a sereia”.
Eu: Mas é ela que quer casar, não é ele.
Mas alguém quis a escola democrática? 13
Luís: Então “a sereia pediu o sereio para casar”.
Eu: E se queremos manter a palavra casamento?
Mãe da Cláudia: (baixinho) pedir em casamento.
Cláudia: A sereia pediu-o em casamento.
Tínhamos agora:
Era uma vez uma sereia e um “sereio”. Eram muito bonitos.
A sereia pediu o “sereio” em casamento e ele disse: “aceito”.
Viveram felizes.
Parámos depois de 15 minutos, e expliquei aos pais presentes que
normalmente ainda fazíamos propostas para alterar o texto, mas só na
presença do autor. Como o Isaías não estava, não alteráramos mais nada agora,
mas aguardáramos segunda-feira.
Luís reforçou: “Fazemos perguntas, por exemplo: “Tiveram filhos?”, e depois
juntamos a resposta.”
Cláudia: “E “Onde viveram” e “Tinham amigos” e assim.”8
A Cláudia continuou: “Podemos arrumar para a nossa reunião de Conselho?”
Os alunos juntaram os trabalhos que fizeram à folha do plano individual de
trabalho, fizeram a sua avaliação, e apresentaram o trabalho feito aos outros.
Depois:
André: Ouvimos quanto dinheiro há em caixa9.
Guida: A turma deve 21.432 escudos ao Pascal.
Eu: Já sei que o subsídio está na conta da escola. São 22.500 se não me
engano.
Guida: Ainda alguns pais devem dinheiro, podes falar com eles10.
Eu: Depois do Conselho tu e eu falamos com eles.
André: Ouvimos os outros responsáveis que querem falar.
Cláudia: Hoje, as folhas de linhas e as folhas de quadrados estavam todas
misturadas.
Eu: Não foi porque as nossas visitas estiveram a procura de alguma coisa?
Cláudia: Não, porque eles só mexeram nas folhas brancas.
Luís: Mas sabes quem foi?
Cláudia: Só queria dizer que se tem que ter mais cuidado.
Mafalda: Ainda há jornais de Fevereiro e Março para vender. Temos que
montar o jornal de Abril.
Eu: Já combinámos que o jornal de Abril terá o relato da nossa visita ao
museu.
14 Pascal Paulus
Jessica: Eu posso levar mais dois jornais para vender aos vizinhos.
Elson: Ainda não consegui mostrar a todos como funciona a Internet. Só
mostrei a 5 meninos11.
André: Lemos o Diário da turma.
André: “Como vamos fazer com as plantas?” Cláudia.
Cláudia: Temos agora estas plantas todas, como é que vamos fazer?
Luís: Como, como vamos fazer?
Cláudia: Sim, também vai haver responsáveis?
André: O Pascal esteve a regar as plantas.
Eu: Com a Cíntia e a Tatiana. Mas há outras soluções.
Guida: Então mas também pode haver um responsável.
Eu: André!
André: !? Ah! Há candidatos?
Levantam-se seis dedos. É a Iolanda que reúne consenso.
Eu: Proponho que alguém ajude a Iolanda para organizar a grelha.
Mãe do André: Porque não fazem todos os dias outro?
Luís: Fazemos. Isto é: cada um vai regar as plantas, mas é a Iolanda que
controla a vez de quem é.
Cláudia: É como para o computador, ou para as damas, ou para o xadrez e
assim: há um responsável que faz as grelhas para a gente apontar
quem é.
Eu: e...
Elson: E é árbitro, quando há problemas.
Eu: É que existem atritos. Normalmente, aparecem no Diário e depois
são discutidas, mas também acontece que é preciso uma terceira
pessoa para intervir quando há zangas – e há muitas – e então um
responsável, reconhecido por todos, ajuda bastante. Assim não sou
sempre eu que tem que intervir.
Luís: Eu depois ajudo a Iolanda. Já sei como é com as grelhas.
Iolanda olha radiante para as plantas.
[...]
No fim, o pai do André pergunta: Como é que se lembram de tudo que
decidam?
Elson: O Pascal escreve tudo neste livro que está no armário.
Luís: E todas as semanas lemos as decisões da semana anterior, antes de
começar, para ver o que foi feito.
Cláudia: E as regras estão na porta.
Mas alguém quis a escola democrática? 15
Mãe do Luís: Corrigem todos os textos?
Luís: Como assim?
Mãe do Luís: Sim, fazem sempre como fizeram com o texto do Isaías?
Eu: Não. Há demasiados textos para os trabalhar todos em conjunto. Às
vezes, trabalhamos só à dois. Também há textos em que só corrijo os
erros com o autor. Escolhemos os textos que vamos trabalhar juntos,
como escolhemos os que vão para o jornal e para o placar no
corredor, ao lado da nossa porta.
Entretanto, avança a formação da associação de pais por volta do dia 1 de
Junho, depois de, sem grandes formalismos, terem “normalizado” os lanches,
falando umas com as outras, na rua. A reunião é para formalizar a primeira
direção da associação de pais. Há mais ou menos o mesmo número de pessoas,
mas há umas pessoas novas, que vêm sobretudo para se queixar. O processo é
liderado por 3 mães que estavam na reunião anterior. São três mães eleitas para
a direção, uma de cada uma das turmas já referidas. Junta-se um dos três pais
presentes. São 3 cabo-verdianos, uma portuguesa. Uma mãe cigana, muito
ativa, diz que “neste momento” não pode fazer parte da direção.
No fim daquele ano letivo propôs-se uma atividade coletiva para a escola: uma
exposição de todas as turmas a volta do tema daquele ano “Cada livro um
amigo”. A exposição seria das 13.30 até as 18.00. A três insistimos que se ela
prolongue até às 20.
E, de facto, ao todo aparecem, até as 18 horas, só uma dezena de pais...
Sem “happy end”
Quando deixei a escola em 2003 para participar num projecto da Câmara de
Cascais, pensava que a intervenção dos pais na escola estava assegurada. Pouco
a pouco a associação ia ganhando força e entretanto havia pelo menos por
parte do corpo docente uma abertura aos contactos informais e a colaborações
pontuais.
Não contei com a capacidade punitiva que a instituição escolar tem. Logo no
meu regresso a escola em 2006 apercebi-me que os contextos tinham mudado
muito.
O corpo docente tinha mudado outra vez por completo. Na maioria eram
professores novos que desconheciam as relações extremamente complexas
entre por um lado pessoas do bairro, mães e pais mais ou menos interessados
no trabalho dos seus filhos, adultos com más recordações da escola, e ainda
16 Pascal Paulus
muitas pessoas com uma cultura sobretudo oral e por outro lado as estruturas
hierárquicas e normalizantes.
A passagem para agrupamento vertical também alterou em muito a vida da
escola. Como em quase todos os agrupamentos verticais, implantaram-se
lógicas da pluridocência e da organização pós-primeiro ciclo.
Com a preocupação de uma rápida assimilação, reorganizou-se quase tudo.
Toda a gestão tornou-se muito mais distante dos pais e das crianças. A frágil
associação de pais ainda sem estatutos depositados desapareceu quase no
mesmo momento em que as escolas se juntaram. Deixou de haver exposições
de trabalho envolvendo a escola toda a medida que a escola deixou de existir
como entidade. De uma estrutura de reuniões por escola, passou-se a uma
organização de reuniões por categoria profissional, dificultando a afirmação da
escola como identidade própria, diferente das outras do agrupamento.
As reuniões de pais passaram a ser marcadas de forma central, com obrigações
de ordens de trabalho normalizados. Numa lógica de poupar no pessoal, as
reuniões de pais decorrem nos mesmos dias nas mesmas horas e sempre
demasiado cedo. Obriga a maioria dos pais a escolher entre as várias turmas
onde têm filhos quem primeiro vão procurar. Dificulta em muito a
organização de verdadeiras reuniões com troca de ideias e apresentação de
trabalhos.
Perdeu-se a possibilidade de gerir em conjunto (crianças, pais e professor) a
turma e as suas despesas. A própria organização escolar começa assim a
impedir a sua democracidade. Não se disponibiliza uma contabilidade em que a
turma está inscrita como um centro de custos, o que facilitava a gestão a
distância.
Os conselhos pedagógicos transformaram-se em reuniões consistindo
sobretudo em passagem de informações, onde o presidente deste conselho
transmite linhas de orientações hierarquicamente definidas. Não há pais no
conselho pedagógico já que não há associação de pais legalmente constituída.
Não há espaço, como havia anteriormente, para presenças informais12
.
Cada vez que se anuncia oficialmente um reforço da autonomia o debate se
torne mais pobre, mais normalizado e mais autocrático.
A instituição renega a democracia tal como a sociedade política a renega
quando procura reduzir toda a vida pública ao jogo parlamentar. A escola é só
um espelho do défice democrático que se começa a sentir numa sociedade
onde políticos no poder não dão crédito a associações civis, tentam abafar
Mas alguém quis a escola democrática? 17
pequenos partidos, redistribuem entre si os lugares de verdadeiro poder
político e económico, implementando cada vez melhor a oligarquia.
No micro-contexto os pais na escola não são desejados. São tolerados. Os
professores na escola não são facilitadores para a aprendizagem. São fun-
cionários pagos para transmitir normas e conteúdos empacotados em livros
escolares que se tornaram de uso obrigatório.
Os pais esperam do outro lado do portão e dão recados através da grade. Os
professores são aconselhados em não receber os pais na sala de aula, mas num
átrio ou numa sala fria, descontextualizada. Os poucos professores que
procuram envolver os pais e as mães no trabalho escolar dos seus filhos13
fazem-no em reuniões à porta da escola (na rua) ou a margem de toda a
organização normalizante. Aparece uma “dupla contabilidade”: existem as atas
formais e existe o trabalho efetivamente realizado.
Envolver mães e pais em visitas de estudo, em acampamentos e
acantonamentos, convidar mães para assistir e participar em momentos de
trabalho na sala de aula parece algo estranho neste contexto. São as formas que
encontrámos para, apesar da normalização que tende a afastar pessoas,
continuarmos a trabalhar com pessoas e não com papéis.
Mas alguém quis a escola democrática? 19
O tempo da borboleta
(com João Romualdo Silva)
Os fenómenos de desenvolvimento local e de educação são de complexa
análise. Algumas conversas iniciais em que trocamos experiências e pontos de
vista, levou-nos, numa das nossas divagações a outro fenómeno complexo: o
clima de uma região, ou até, do globo.
Lembrámo-nos da história de Lorenz que em 1961 descobriu o que se tornaria
o fundamento da teoria do caos. Ao trabalhar com um sistema de equações
que simulavam as variáveis para modelizar o clima de uma região, descobriu
com apoio do computador, como uma mínima mudança inicial podia gerar um
resultado dramaticamente diferente ao longo do tempo. Porém, o interessante
era que se criava uma representação de um sistema, em que existia um limite
bem preciso da área em que o gráfico resultante do cálculo se desenhava, ainda
que o cursor nunca passasse pelo mesmo ponto, nem era previsível quando ia
passar por um determinado ponto. O sistema, conhecido por “atractor de
Lorenz” apresentava-se na sua forma gráfica como uma dupla espiral em dois
planos, lembrando vagamente a forma de uma borboleta. Foi o que levou o
próprio Lorenz a utilizar a borboleta como metáfora. Num artigo muito
conhecido, descrevia um sistema complexo como aquele onde o levantar de
voo de uma borboleta no Brasil provocava, pelo batimento das asas uma ligeira
turbulência que se ia reforçando com o tempo, podendo provocar um furacão
no Texas. Como não se podia prever a altura do levantar do voo, nem a
direção que a borboleta tomava, ficava claro porque não se podia predizer a
longo prazo e com exatidão o que pode ocorrer aonde, quando se quer dar
uma ideia da evolução do tempo. Só se pode constatar que houve uma
turbulência inicial.
É esta metáfora que escolhemos utilizar na reflexão que aqui apresentamos
acerca de educação e desenvolvimento local, usando-a como pano de fundo
para perceber a nossa intervenção e a nossa experiência no terreno, numa
primeira linha quando trabalhamos com crianças e numa segunda linha,
enquanto como formadores, animadores, consultores de adultos que se
ocupam profissionalmente de crianças.
Apresentamos a nossa reflexão partindo de alguns exemplos, em ‘Histórias com
história’, que procuramos contextualizar, e que nos acompanharão ao longo do
20 Pascal Paulus
texto. Depois de, ainda neste primeiro ponto, constatar o que acontece,
desenvolvemos em ‘Paralelas não se cruzam’ alguns porquês.
Desenvolvemos uma ideia de que a educação e o desenvolvimento, através dos
seus respetivos atores, caminham em geral em linhas paralelas, não se
convergindo, nem num infinito futuro utópico. Procuramos explicações
possíveis quando constatamos que ‘O agente económico fez contas e tomou conta’
fixando o desenvolvimento para a linha do horizonte do crescimento, e a
educação para um horizonte de privatização.
As linhas de horizonte assimilam-se assim como fronteiras de um quadro
definido pelas regras económico-sociais do livre mercado na lógica da
Comunidade Europeia, ela própria orientada pelas regras de um macrosistema
orientado unicamente pela globalização do mercado e da praça financeira.
A contraproposta prudente lança um olhar integrador, no ponto quatro, que se
consegue observando momentaneamente o sistema por fora, como o
Quadrado, convidado pela Esfera, em observar Flatland a partir de uma nova
dimensão, até aí desconhecido pelo Quadrado14. Porém, propomo-nos ser
mais prudentes do que o Quadrado. Assim, desenvolvemos uma ideia de ‘Acão
para uma vida decente: duas malhas de rede’ a educação e o desenvolvimento local
entrelaçam-se e dão sustento ao trabalho com as pessoas, facilitando o
desabrochamento.
Vê-se então, aqui e acolá, uma ou outra borboleta a levantar voo. Na sexta e
última parte do texto, acompanhamos o significado de alguns destes voos.
Histórias com história.
O Moisés vive num bairro tristemente famoso na Área Metropolitana de
Lisboa. É cigano e sofre a escola que considera desinteressante. Os pais,
invulgarmente teimosos em comparação com o resto da família e de grande
parte da vizinhança, delinearam outro destino para o filho: querem que ele se
forme na Escola Profissional, não muito longe do bairro, para “ter uma
profissão a sério”. Mas o Moisés não quer mais escola, e até percebeu que os
seus atuais professores consideram que escola profissional ou escola nenhuma
significa mais ou menos a mesma coisa. Então, começa a faltar à escola e
arrisca-se a perder o ano escolar. Os pais não sabem muito bem como reagir...
Aparentemente, não acontece nada de muito extraordinário com o Moisés.
Simplesmente, ele vive num bairro, num lugar onde não é fácil convencer-se a
si próprio, ou aos outros, qual é a importância da formação. Ou dito com
outras palavras:
Mas alguém quis a escola democrática? 21
“Tudo o incita a abandonar os estudos, mesmo quando os pais, com muita
coragem, o pressionam para que prossiga (pois é certo que muitos operários
e camponeses desejam profundamente que os filhos estudem, pelo menos
para poderem viver melhor). Por outro lado, os filhos que reprovam,
sentem-se rejeitados e desinteressam-se. Frequentando uma classe que
sabem ser a última, onde poderão encontrar forças para trabalhar?
Os pais, por seu lado, receiam sempre que os filhos não possuam o nível
exigido; são os primeiros a «reconhecer» a necessidade da reprovação, pois
ignoram os seus perigos e esperem sempre algum benefício.”
Schwartz, Bertrand (1984, p. 59)
Wilson, Gerson e Nair vivem num bairro na periferia de Lisboa. O pai mudou
de País, a mãe não tem tempo para se ocupar deles. Vivem em casa da avó. Ela
é vendedora de peixe e passa a maior parte do dia na doca e na venda. O avô
raramente está. Quando está, é porque a bebida o obrigou a recuperar.
Quando está, é muitas vezes agressivo com as crianças. As da filha dele, mas
também as outras, dele e da mulher, que ainda andam lá em casa. Wilson tem
um tio, um ano mais velho. Enquanto o tio passa bastante tempo na escola,
porque gosta das refeições grátis e da professora, Wilson prefere ganhar
estatuto roubando a sua refeição e outros bens que lhe dão sustento. Os
irmãos mais novos, com 2 e 3 anos, têm habilidades que mostram que
aprendem depressa e bem com o primogénito.
Marlene, Iuri, Nelson, Tomas, Fátima, Ariana, fazem parte de um grupo de 35
crianças que frequentam um Atelier de tempos livros (ATL) num bairro social
na zona metropolitana de Lisboa, fazendo interstício entre o campo e a cidade.
Quando não estão no ATL, estão entregues a si próprios, a um ou outro
familiar, ou, mais excecionalmente, aos próprios pais. O mundo deles é a rua,
as pequenas provocações entre grupos de crianças, a publicidade televisiva
associada a algumas visitas furtivas a um grande centro comercial não muito
longe do bairro. São crianças de bairros que possibilitam aos técnicos,
especialistas em urbanização e globalização, escreverem diagnósticos como o
que transcrevemos aqui e que retiramos do sítio www.onuportugal.pt/
20010905habitat.pdf:
“A urbanização e a globalização são uma triste realidade dos nossos dias. As
cidades de hoje têm de competir entre si para atrair capitais. Para isso,
muitas autoridades locais oferecem incentivos financeiros, além de outros
de carácter essencialmente prático, como uma infraestrutura e serviços
urbanos que funcionem satisfatoriamente, sistemas de comunicações,
transportes eficientes, habitação suficiente e acesso aos serviços de
22 Pascal Paulus
educação e a lazeres. Mas, no novo “arquipélago urbano” de cidades
competitivas ligadas pela globalização da economia dos nossos dias, a
riqueza passa de uma mão rica para outra. Os pobres foram deixados para
trás.
Pode encontrar-se a pobreza em cidades de todo o mundo. Mas, nas
cidades do mundo em desenvolvimento, é mais profunda e mais
generalizada. Uma criança nascida numa cidade de um dos países menos
avançados tem 22 vezes mais possibilidades de morrer antes dos cinco anos
de idade do que uma criança nascida numa cidade de um país desenvolvido.
Nos países mais ricos, menos de 16% do total das famílias das zonas urbanas
vive na pobreza. Mas, nas zonas urbanas dos países em desenvolvimento,
36% das famílias e 41% dos agregados familiares cujo chefe de família é uma
mulher vivem com rendimentos que se situam abaixo do limiar de pobreza
definido a nível local. A urbanização e feminização da pobreza fizeram com
que mais de 1000 milhões de pobres vivam em zonas urbanas sem
habitação adequada nem acesso aos serviços básicos.”
As situações referidas são exemplos do público com quem trabalhamos. Eles
não são em nada diferente de milhares de outras pessoas, crianças e adultos,
oriundos sobretudo de fora da Comunidade Europeia. É a população
estrangeira residente em Portugal que:
“... do ponto de vista sociodemográfico, [...] apresenta, a nível agregado,
características que tipicamente são referenciadas nos fluxos internacionais
de mão de obra pouca qualificada, a saber: elevada concentração residencial
na Área Metropolitana de Lisboa; um rácio homem/mulher superior a um
(1,4 no período 1990-1995); peso desproporcionado do grupo etário 25-45
anos; e uma inserção no mercado de trabalho dominada pelo gruo de
ocupações socialmente pouco valorizadas, designadamente na categoria
trabalhadores da produção das indústrias extrativa e transformadora e
condutores de máquinas fixas e de transporte”.
Baganha, Maria Ioannis (2001, p. 143)
São crianças cujos pais se incluem em grupos populacionais que provocam
correntes migratórias. Claro que não é “a primeira corrente [que] é composta por mão-
de-obra altamente qualificada, ligada à gestão, às novas tecnologias e ao saber, atraída para
estes nódulos centrais...” Baganha (2001, p. 145), aqueles que são escolhidos a
dedo e que escolhem os seus empregos também a dedo, e para quem a
Comunidade Europeia concebeu o Espaço Schengen, mas representam “a
segunda corrente [que] é formada por mão-de-obra que, independentemente da sua
Mas alguém quis a escola democrática? 23
qualificação é atraída para estas cidades pelas oportunidades económicas geradas
parcialmente pela primeira corrente...” Baganha (2001, p. 145).
Como conta Sélys (1993), o voluntariado é, para eles, um logro: quando se está
no desemprego, assina-se não importa o quê para trabalhar e fazer entrar
dinheiro, também horários pesados ou horários noturnos.
Eles não têm acesso ao poder, nem sequer ao poder representativo, já que na
maior parte dos casos não têm direito a voto, por impedimento legal, ou por
desconhecimento. Não são informados, antes são levados pela desinformação.
No bairro do Wilson, há um local de voto com três secções. Duas delas
abrangem as pessoas com os números de eleitor mais antigo, o terceiro
abrange a população mais nova e os estrangeiros com direito a voto. Uma
rápida leitura dos resultados de cada secção mostra que o absentismo é maior
na terceira secção, que entre os votantes exprime uma preferência muito mais
acentuada para o CDS/PP e o PSD.
Convém lembrar que na Europa, maioritariamente governada pelo PPE – que
já foi o grupo europeu do CDS e que é atualmente o grupo que integra o PSD
– e pelo grupo internacional socialista, existiam, e recorremos a números
citados por Sélys (1993), em 1993, 24 milhões dos 140 milhões de assalariados
europeus com empregos atípicos, ou seja 1 em cada 6.
Estes empregos caracterizam-se por terem horários mais pesados, serem mais
cansativos e muitas vezes menos bem remunerados.
São horários mais pesados em países onde se pode trabalhar 9 horas, como em
Espanha, na Alemanha, na França, ou 10 como no Luxemburgo, nos Países
Baixos e na Dinamarca. Na Bélgica o total de horas diárias legais pode subir
até 12. Vale a pena referir que nestes países o horário semanal subiu; até 48
horas na França, 55 nos Países Baixos, e 65 na Bélgica.
A desregulamentação dos horários laborais pode não depender exclusivamente
da vontade dos parlamentos dos diferentes países membros da comunidade e
muito menos do parlamento europeu, que só tem poder consultivo. O núcleo
duro de onde saem as diretivas é a Comissão, não eleita por voto direto e o
Conselho de Ministros. E Sélys (1993, p. 18) alerta:
“Si le public n’a pas accès aux bâtiments de la Commission européenne ni à
celui du Conseil de ministres e très difficilement à ceux du Parlement
européen (seules les prisons sont plus fliquées à Bruxelles), par contre
certaines personnes s’y déplacent comme chez elles, ce sont les
lobbyistes.”15
24 Pascal Paulus
Ora, estes “lobistas” não são certamente os representantes das pessoas dos
bairros periféricos das grandes cidades. Aliás, que capacidade reivindicativa
teria um suposto lobby de migrantes, de trabalhadores de bairro? Que
conhecimentos têm os migrantes do mundo em que se encontram? A que
consciencialização podem eles apelar? Que direitos é que o acordo de
Schengen lhes proporciona? Citamos Sélys novamente:
‘‘La façon dont on traite des étrangers dans ce qui est connu du texte de
Schengen contribue à porter le discrédit a priori sur les étrangers, à assimiler
tout étranger a priori à une source d’insécurité, à cultiver la suspicion et
dans le climat actuel, à alimenter une banalisation du racisme dont on sait
malheureusement jusqu’à quelle extrémité elle peut conduire.”16
Sélys (1993, p. 29)
Sélys refere aqui uma afirmação do secretário-geral da liga francesa dos direitos
do Homem:
‘‘L’accord de Schengen vise, dans son article premier, la libre circulation des
personnes à l’intérieur des frontières des États composant Schengen. Et puis
s’ensuit 145 articles qui constituent tous des restrictions de liberté.’’17
Michel Tubiana cit. Sélys (1993, p. 29)
A Europa democrática parece ter voltado às origens da democracia. Como no
tempo de Atenas, a gestão é do povo com dinheiro e influência. Ou, por
outras palavras,
“On pourrait dire qu’on retourne au principe du vote censitaire, quand les
gens pouvaient voter selon leur capacité de propriétaire, de l’argent qu’ils
avaient. Maastricht c’est un peu ça, on revient avant la révolution
keynésienne, on en revient avant la révolution française.’’18
Luciana Castellina cit Sélys (1993, p. 71)
O Moisés, o Wilson, a Nair, a Marlene e os outros parecem, para já, ter o
direito de permanecerem no seu próprio bairro, na sua própria ignorância,
procurando arranjar trabalho não qualificado ou vivendo de pequenos furtos e
roubos. Wilson, com os seus 10 anos, é perito em assaltar carros e fugir com
eles. Entretanto, o Moisés parece juntar-se aos 54% de jovens que entrarão nas
estatísticas do abandono escolar ao nível do ensino secundário.
Juntam-se assim aos outros jovens, que por conveniência europeia deixaram de
ser criança. Lembramos que a percentagem de trabalho de jovens
trabalhadores (entre 13 e 18 anos), nalguns países da União Europeia era em
1989 (Sélys, 1993):
Mas alguém quis a escola democrática? 25
EU B D NL P GB DK
15 % 1 % 12 % 16 % 25 % 43 % 44 %
Enquanto para os Países Baixos e a Dinamarca se trata de trabalho muito
controlado e declarado e em tempo parcial, depois da escola, como a
distribuição de jornais por exemplo, sabe-se que para Portugal, Grã-Bretanha e
Espanha os números estão aquém da realidade que provavelmente apresentam
o dobro deste número.
Convém ainda lembrar que, pelo menos no papel, todos os estados membros
proíbem o trabalho infantil, a Inglaterra aliás desde 1802.
Mas também convém lembrar que para a Convenção das Nações Unidas, a
criança é como um ser humano com menos de 18 anos. Para a diretiva da
Comunidade Europeia que define o trabalho infantil, uma criança é um jovem
com menos de 15 anos. Nesta diretiva, a palavra criança é sistematicamente
substituída por “jovem”. A OIT recomenda, por fim, que a idade de trabalho
nunca seja inferior aos 15 anos e equiparada ao fim da escolaridade obrigatória.
As paralelas não se cruzam.
Aparentemente, as crianças de quem falamos deveriam estar enquadradas pelas
políticas de proteção, de desenvolvimento e de educação que a Comunidade
Europeia diz desenvolver. Iremos pensar um pouco acerca de duas destas
linhas: a educação e o desenvolvimento. Aqui, é nos difícil falar em
desenvolvimento local. Mas até teria sentido. Menos documentados,
poderíamos pensar que instrumentos como o Projeto Educativo Local, o
Projeto Educativo da Escola, os Conselhos Pedagógicos, o Conselho
Municipal de Educação, os vários planos de erradicação da pobreza, de
realojamento, de formação profissional, de aprendizagem ao longo da vida, de
coesão social, de desenvolvimento sustentado, todos eles utilizados por
políticos locais e europeus, deveriam dar fruto.
Mas como Moisés, Wilson e Marlene, vemos que as coisas não funcionam.
Os agentes de educação demitem-se, não percebem, ficam nervosos ou
incapacitados, os agentes de desenvolvimento não têm, dizem eles, respostas
adequadas.
O que se passa? Porque é que, num contexto de tão prezado e eficaz iniciativa
privada, as crianças com quem trabalhamos parecem ter os problemas que
têm?
Sélys (1993) considera que Maastricht é uma etapa importante para a
restauração de um capitalismo puro e duro, obrigando vários estados a
26 Pascal Paulus
desmantelar a proteção social construída ao longo de décadas. Na Bélgica, isto
implicou retirar das famílias, milhares de milhões de francos belgas,
aumentando taxas e impostos indiretos, retirando benefícios ao sistema de
saúde, enquanto os mesmos milhares de milhões são gastos sem um piscar de
olhos para sustentar moedas externas, isto é, para beneficiar especuladores,
nomeadamente bancos privados.
Isto pode ser parte do problema que torna o privado menos interessante e
interessado para as populações migrantes que vivem na periferia das grandes
cidades. Mas, já que a educação e o desenvolvimento teimam em se situar
paralelamente um ao outro, olhemos para cada um deles.
O olhar (clássico) do agente da educação
À partida o trabalho educativo, na escola e na periferia da escola parece bem
bonito e simples. Basta referir que:
“... o sistema de educação escolar pode afirmar-se como um lugar central de
afirmação da cidadania numa sociedade comunicacional gerida de um modo
dialógico, embora tendo sempre presente que a escola é um local de luta e
de compromisso, que não se muda por decreto ou discurso retórico, como
lembrava Paulo Freire,” Teodoro (2001, p. 155).
Dito assim, parece simples mas demasiado bonito para ser verdade. A escola e
todo o sistema educativo, promovendo o desenvolvimento e a aprendizagem
da pessoa cidadã. De facto, as coisas não correm bem assim e o autor
continua:
“Em trabalho de investigação terminado recentemente, mostra-se que uma
das características principais do processo de construção da escola de massas
em Portugal foi, precisamente, o seu carácter retórico – precoce no acto
legislativo e no discurso político, excessivamente tardio nos meios e nos
recursos (...)” Teodoro (2001, p. 155).
Parece-nos que existem vários problemas. Wilson e as crianças do Bairro da
Marlene não reconhecem na escola aquele lugar de afirmação. Têm alguma
dificuldade em perceber a sociedade comunicacional. Aliás, onde haveriam de
exercitar o diálogo? Não têm, à sua volta as pessoas e os contextos culturais
que lhes permitam desenvolver a capacidade de comunicação. As mensagens
são diretas, curtas de poucas palavras e de fácil perceção e execução. Somos
céticos, mas Sélys (1993, p. 136) mostra-se ainda mais cético e refere que a
Comunidade diz que a escola tem três objetivos: formação profissional, formar
pessoas, formá-las de maneira que se sintam bem enquanto estão a ser
Mas alguém quis a escola democrática? 27
formadas e formar futuros cidadãos na sociedade com um olhar crítico. Isto é
muito discutível, disse ele, se existe uma colagem muito forte entre empresa e
escola.
Mas no caso de Wilson e sobretudo de Moisés, as coisas tendem a complicar-
se ainda mais. Mesmo quando parece existir um projeto traçado, uma ideia de
projeto de vida que depende, em parte, da formação curricular formal da
escola, eles encontram-se em contracorrente. A escola tal como uma parte do
meio, considera e valoriza sobretudo o saber académico. Prosseguir estudos
numa escola profissional, não é considerado da mesma forma. Não se
estimula, não se prepara da mesma forma, como para os estudos que estão
mais em consonância com o próprio referencial pessoal dos professores. Este
referencial tende a ser encarado como a própria quinta-essência da nação, ou
dito de outra maneira:
“Será o caso, por exemplo, da questão da identidade nacional, que surge na
escola portuguesa como um ingrediente da própria modernização? Stoer e
Cortesão denunciam precisamente aquela dimensão ideológica tal como se
prefigura nas perceções profissionais dos professores: «além da sua
perceção de Portugal como país social e culturalmente homogéneo os
professores recusam, em princípio, reconhecer diferenças sobretudo dentro
da sua sala de aula. (...), não deixando interferir esse tipo de questões
naquilo que eles reputam ser um processo de ensino-aprendizagem
universal».”
Magalhães, António M. (2001, p. 325)
Assim, parece-nos que temos uma escola que, em abstrato, prepara
profissionalmente as crianças e os jovens, mas que, em concreto não se
consegue situar. Valoriza, humanisticamente, a transmissão do saber e a
preparação de um saber-fazer suficiente para saciar a sede da aprendizagem.
Por outro lado, cola-se à empresa, para justificar a formação de operários, mais
ou menos especializados. E no seguimento de Bourdieu, é-nos claro que a
escola reproduz os modelos sociais e não nos espanta a afirmação de Schwartz
(1984, p. 43) que segundo dados da OCDE em 1968, o ensino superior na
França serve num ratio de 1 para 18 para filhos de trabalhadores manuais em
relação a filhos de profissões liberais ou quadros superiores.
O que já é mais difícil de perceber, é como é possível que
“[...] muitos jovens encontram-se totalmente privados de formação
profissional e não conseguem sequer ser operários qualificados, nem a
fortiori técnicos. Condenados a ser operários e a realizar trabalhos mais
duros, não lhes é permitida nenhuma oportunidade de promoção ou de
28 Pascal Paulus
mudança. Ora, toda a sociedade deve permitir que os cidadãos defrontem
os dados móveis do mercado do trabalho, permanentemente, e não apenas
no limiar da vida ativa.” Schwartz (1984, p. 44)
Só se torna perceptível se explicitarmos o que está oculto na necessidade
constante em constranger a escola pública. É que na mercantilização extrema
do trabalho em todos os ramos de actividade, se torne mais difícil em manter-
se competitivo para conseguir emprego. A escola não está interessada em
manter todos competitivos, até porque a sociedade e as empresas precisam de
um mínimo de pessoal não qualificado. Ou, como refere Schwartz:
“É verdadeiramente de um filtro que se trata. É evidente que a escola forma,
é evidente que os professores procuram reduzir as desigualdades de
oportunidades, é evidente que a escola gratuita, laica, obrigatória, permitiu
uma promoção social das camadas populares. Mas com a evolução do
mundo moderno, as camadas favorecidas utilizaram cada vez mais o sistema
a seu favor, a escola deteriorou-se e desempenhou cada vez menos o seu
papel de emancipação.” (1984, p. 47)
Ainda queremos juntar às ideias anteriores, acerca da ambiguidade da escola e
das instituições peri-escolares, em relação às vivências de jovens e crianças,
pouco reconhecível pelos agentes que nestas instituições atuam, uma outra: a
formação que se diz ocorrer em contexto multicultural e transversal aos grupos
sociais, leva na prática, pelo pouco acompanhamento dos agentes a uma
estratificação social que os jovens das classes favorecidas impõem: a não
mistura e a hostilidade com que são recebidos os meios sociais que não são os
deles, foram objeto de estudo e:
“é notória a tendência para um maior fechamento por parte dos grupos de
meios sociais privilegiados. [...] Por outro lado, é entre as raparigas dos ditos
meios sociais favorecidos, que tal fechamento se faz sentir com particular
intensidade. [...] De facto, tudo nos leva a crer que nos cenários escolares, os
grupos de amigos surgem muitas vezes como substitutos ou equivalentes
funcionais do controle social familiar.”
Lopes, João Teixeira (1996, p. 73)
O olhar (clássico) do técnico de desenvolvimento (crescimento)
Separado do agente educativo, o técnico de desenvolvimento levanta questões.
Muitas vezes existe um contexto político específico hostil às populações
migrantes. Estas políticas hostis influenciam a sua atuação. Um termo muito
ambíguo é o conceito de patamar de tolerância. Defende-se que a tolerância
entre uma população para os migrantes desaparece desde que se atinge uma
Mas alguém quis a escola democrática? 29
determinada percentagem de indivíduos e que isto deve ser o ponto de
saturação a partir do qual não são admitidos novos indivíduos.
Acontece que, os inquéritos realizados para esta questão no seio da
comunidade europeia, não associa o contacto com migrantes como causa para
atingir o patamar de tolerância. Diz Sélys):
“L’enquête montre au contraire que pour un pays donné, et ça se vérifie
partout en Europe, on est aussi raciste dans un petit village où ne vit pas un
seul immigré que dans un quartier à forte densité d’étrangers.”19
(1993, p. 35
Neste contexto, vale a pena transcrever o que Anne Melich, administradora
principal do serviço de sondagem da comissão europeia e coordenadora deste
inquérito nos revela:
“L’explication de la présence des immigrés, comme expliquant l’intolérance,
n’est pas vraie. Elle n’est pas vraie non plus dans les autres recherches que
nous connaissons. Par exemple, en France, on en a fait beaucoup. Dans les
quartiers de Paris, Grenoble, Lyon ou dans les villes françaises où il y a le
plus d’immigrés, ce n’est pas là qu’on trouve la plus grande intolérance. Le
taux d’intolérance en France est très souvent le fait de personnes qui ne
sont pas en rapport avec les immigrés. […] Le seuil de tolérance n’a pas de
base logique ni scientifique.’’20
Sélys (1993, p. 36)
Mas não deixa de ser interessante saber que o antigo primeiro ministro e atual
presidente da França, Jacques Chirac, exigia uma diferenciação entre
prestações sociais para franceses verdadeiros e estrangeiros, no sentido de
encorajar os estrangeiros a voltarem para o seu país de origem caso saíssem do
sistema produtivo.
As crianças do bairro do Wilson aperceberam-se da sua qualidade de diferente
apenas tolerado, aquando de uma deslocação para outro país do espaço
Schengen, descobriram que não eram cidadãos europeus, pura e simplesmente
porque Portugal não os considera portugueses. Deixavam assim de ter
assistência abrangida pelo sistema público de Saúde e tiveram que recorrer a
um seguro privado de saúde para o período de estadia fora de Portugal.
E aqui temos um elemento perturbador. Estas situações não são normalmente
objeto de estudo. O agente de desenvolvimento não dispõe de investigação
fenomenológica que o poderá ajudar no seu trabalho de intervenção. Poderá
realizá-lo procurando para tal um enquadramento que é difícil de encontrar.
Ora, a investigação, ainda que se tenha liberto da tirania dos dogmas, ia
30 Pascal Paulus
“... aprofundando as interdependências das ciências, do poder político e da
ordem económica capitalista, a uma relação instrumental com o mundo, de
dominação em nome de uma nova autoridade, a autoridade da ciência, e de
um novo princípio de intervenção, a tecnologia” Nunes (2001, p. 315).
Parafraseando uma ideia de Boaventura Sousa Santos, poderíamos afirmar aqui
que a ciência tornou-se nada prudente e produziu uma vida nada decente. Ou,
para retomar o discurso de Nunes, parece-nos difícil pensar que: “o esquecimento
da história das ciências, dos contextos sociais e culturas e dos conflitos políticos...” junto
com uma proposta de desenvolvimento baseado em modelos importados, são
dois factores
“... importantes para a afirmação e consolidação dessa «cultura da não-
cultura»”. Esta não-cultura, por sua vez, facilita a ocultação de uma “...
estreita relação que as ciências modernas ocidentais mantiveram com
dinâmicas de dominação social, económico e militar, que resultaram na
marginalização, exclusão ou mesmo destruição de modos de conhecimentos
diferentes radicados em experiências históricas distintas.” Nunes (2001, p.
315).
Percebe-se então facilmente que espreita o risco de demostrar cientificamente
a futilidade do conhecimento e da experiência histórica do migrante não
Europeu ou ainda proveniente do mundo não ocidental.
Só uma recusa de um trabalho científico sério e de uma avaliação séria das
situações em que as populações migrantes internas ou externas se encontram,
podem justificar a produção de textos políticos vazios de qualquer sentido real,
mas que são entusiasticamente subscritos e divulgados, como este da Cimeira
do Milénio em Nova Iorque (www.onuportugal.pt/20010905habitat.pdf)
Reduzir para metade, até ao ano 2015, a percentagem de habitantes do
planeta com rendimentos inferiores a um dólar por dia e a das pessoas que
passam fome; de igual modo, reduzir para metade a percentagem de
pessoas que não têm acesso a água potável ou carecem de meios para a
obter.
Até ao ano 2020, ter melhorado consideravelmente a vida de pelo menos
100 milhões de habitantes das zonas degradadas, como foi proposto na
iniciativa "Cidades sem bairros degradados".
Formular e aplicar estratégias que proporcionem aos jovens de todo o
mundo a possibilidade real de encontrar um trabalho digno e produtivo.
Estabelecer formas sólidas de colaboração com o sector privado e com as
organizações da sociedade civil em prol do desenvolvimento e da
erradicação da pobreza.
Mas alguém quis a escola democrática? 31
A cultura da não cultura revela-se no discurso claro e direto dos encarregados
do lobbying nos centros de decisão política, o que por si próprio ilustra que
todas as propostas não passam de discurso político sem fundamento.
Gérard de Selys (1993, p. 20) refere vários deputados europeus que explicam
como funciona este tipo de lobbying:
M.C.: «Il y a l’arme de la dénonciation publique, vous pouvez, par
exemple dire à la personne qui traite le dossier: Si c’est vraiment la
position que vous allez adopter l’industrie va prendre telles positions
publiques, où seront dénoncées les positions que vous avez prises.»
Francis Wurtz (acerca da manteiga de cacau): «... et bien, j’ai reçu la
visite du président d’un important consortium de compagnies de
chocolatiers qui a essayé de m’expliquer que j’avais vraiment tout
intérêt, au nom sans doute de la solidarité occidentale, à défendre les
intérêts des firmes européennes de chocolat plutôt que celui de ces
pauvres bougres du Sénégal, de Côte-d’Ivoire ou du Bénin.»21
Concluindo, consideramos que a não convergência entre a educação e o
desenvolvimento, mantém o poder numa situação confortável, em que lucra
duas vezes: a educação mantém-se no registo dos saberes simples e não forma
criticamente, porque não parte da análise previamente feita e o
desenvolvimento fica à mercê do lobbying perto do poder, porque não existe
um espírito crítico treinado. Ou, como afirma Bertrand Schwartz
“A educação permanente traduz-se então, pela transformação de
necessidades não sentidas em necessidades sentidas. Estamos muito longe
das aulas, dos programas, da Matemática, do Francês ou da formação
profissional!
Por que se reduz a isto a educação dos adultos? Será precisamente porque a
Matemática ou a Gramática, sobretudo em doses reduzidas, não
apresentam qualquer perigo, não «conscientizam» ninguém?.. De qualquer
modo, aí reside a chave do problema. Sem consciência de transformação
não haverá formação.
A educação dos adultos pode tornar-se elemento de igualação de
oportunidades, mas não caiamos no pedagogismo: só desde que defenda
um novo tipo de vida social e profissional, desde que se modifiquem as
relações sociais.” (1984, p 71)
Parece-nos pertinente alargar a pergunta e dizer: “E porque se reduz também a
isso a educação das crianças?” Para que não conscientizem também elas?
Porque não têm mesmo importância? Pareceu-nos importante tentar perceber
melhor.
32 Pascal Paulus
O agente do mercado fez contas e tomou conta.
Europa
Para perceber a construção da Europa, convém voltar ao fim da segunda
guerra mundial e lembrarmo-nos do “aliado” americano. (Sélys, 1993).
O discurso de Harry Truman é muito claro: “O mundo inteiro tem que adoptar o
sistema americano, porque o sistema americano só poderá sobreviver na América, se ele se
torna o sistema mundial” (6-03-46)
Os primeiros passos da globalização depois da segunda guerra mundial, numa
altura em que os interesses americanos incidem sobre os investimentos feitos
na Alemanha, obrigam a uma substituição dos cartéis por uma política
facilitadora de importação de carvão e aço alemão nos países da Europa, eles
próprios interessados em produção própria. Os americanos impuseram a
formação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) com a
respetiva abolição de restrições aduaneiras.
A reconstrução e a aproximação não é resultado da vontade do povo Europeu
mas da necessidade económica dos investidores americanos.
Yalta apontava para o desmantelamento da indústria de guerra alemã, e as
nacionalizações previstas e acolhidas pelos alemães do pós-guerra são
contrariados pelos americanos que não querem perder o capital investido antes
da guerra e pretendem uma Alemanha forte, servindo de muro contra o
comunismo.
Nem Yalta nem Potsdam, previram a divisão da Alemanha, mas antes uma
ocupação conjunta com objetivos comuns de retribuição de danos de guerra.
Os soviéticos, à partida mais credores, tinham inclusivamente direito a 50% do
montante global das reparações (prometido pelo Roosevelt).
Será neste contexto de ultrapassar o que foi negociado, que os americanos
impõem a bi-zona aos ingleses, para ter controlo direto sobre a produção do
Ruhr, que provocam o GATT e que é criado o Fundo Monetário Internacional
(Março de 1947). Posteriormente será lançado o plano Marshall.
Vale a pena também recordar que na sequência dos Tratados de Maastricht e
da formação do espaço Schengen, se opte por criar uma superpolícia, depois
de já ter havido outros grupos especiais. Interessante é a mudança de
significado do nome do grupo TREVI, que foi criado em 1975 perto da fonte
Trevi (daí o nome) para combater contra o terrorismo. Em 1989 é um
subgrupo do grupo de coordenação “livre circulação” e torna-se sigla de
Terrorismo, Radicalismo, Extremismo e Violência Internacional (Sélys, 1993).
Mas alguém quis a escola democrática? 33
Portugal
Os processos migratórios internos e externos em Portugal obedecem a
características que Baganha define assim:
“O que melhor caracteriza os atuais processos migratórios em Portugal é a
existência em simultâneo de fluxos de entrada e de saída de migrantes com
perfis económicos semelhantes, que se vão incorporar economicamente em
Portugal ou nos diversos países de destino essencialmente nos mesmos
segmentos do mercado de trabalho. Ora, como é sabido, a ocorrência
simultânea de fluxos migratórios de saída e de entrada similares na sua
composição e inserção económica de e para um mesmo país é uma
anomalia teórica.” (2001, p. 142)
Porém, é exatamente esta anomalia teórica que encontramos nos bairros nos
quais intervimos ou dos quais saem as crianças que acompanhamos depois de
aos “pais” lhes terem retirado a tutela. A subsistência das pessoas destes
bairros e também dos que desenvolvem atividades económicas (normalmente
em economia paralela por não possuírem o saber ou a documentação
necessário a uma atividade legalizada depende de
“atividades que não requerem qualquer tipo de qualificação e para as quais
os nacionais respetivos não demonstram possuir qualquer atracão. Neste
contexto, e dadas as atuais restrições à entrada legal de imigrantes
económicos, as oportunidades de trabalho neste segmento do mercado de
trabalho estão a ser progressiva e sistematicamente preenchidas por
imigrantes ilegais ou a trabalhar ilegalmente, situação potencialmente
geradora de situações de exploração económica e de exclusão social para
muitos dos novos «indesejados»”.(Baganha, 2001, p. 145)
Paradoxalmente, é a situação de viver no bairro em que a maioria exerce o
mesmo tipo de atividade de mão-de-obra barata e pouco ou não qualificada
que mantém as pessoas no trabalho. Pertencem aos mesmos circuitos,
trabalham para um grupo restrito de subempreiteiros, no caso do trabalho na
construção civil e, relacionam-se com os mesmos contratadores. Como foi dito
anteriormente, não discutem a deslocação e a ausência às vezes prolongada de
casa. Favorecem o aumento da margem de lucro dos empregadores, pelo
simples facto de serem rapidamente deslocáveis dentro do espaço Schengen
não obrigando os angariadores a recorrer à mão-de-obra importada
clandestinamente. Os bairros onde intervimos figuram assim, quase como uma
reserva estratégica que serve todo o espaço Schengen.
34 Pascal Paulus
“Dito de outra forma, a existência de liberdade de circulação de capitais,
serviços, bens e pessoas sem uma harmonização dos sistemas fiscais
nacionais, custos sociais do trabalho e sistemas de segurança social está a
determinar uma redistribuição significativa de mão-de-obra no espaço da EU
e simultaneamente a minar o denominado «modelo social europeu».
(Baganha, 2001, p. 147)
Educação
A comissão europeia (europa.eu.int/comm/)lança uma serie de promessas em
“Os desafios das cidades europeias”
Acesso económico aos serviços básicos, especialmente, habitação,
educação e formação, saúde, energia, transportes e comunicações,
policiamento eficaz e justiça.
Vias que levem à integração, em particular, para o núcleo duro de
desempregados de longa duração, jovens que abandonaram o ensino,
famílias monoparentais, minorias étnicas e outras vítimas da exclusão
social.
Estratégias de desenvolvimento económico que apoiem as empresas
locais, especialmente o arranque de novas empresas e as empresas das
comunidades locais através da criação de infraestruturas adequadas,
aconselhamento e serviços de apoio.
Melhoramento do ambiente físico, designadamente, renovação do
parque habitacional, medidas para reduzir a poluição e o vandalismo,
proteção e melhoramento dos edifícios e espaços públicos nas zonas
degradadas, bem como preservação do património histórico e cultural.
Desenvolvimento das comunidades locais que incentive a mistura das
várias camadas sociais e uma maior segurança pessoal, incluindo a
manutenção nas zonas desfavorecidas de centros comerciais e de lazer
locais.
Porém, não propõe políticas concretas e não refere a educação neste contexto.
Sabemos por outro lado que a educação de um país como Portugal não é
definida só pelo próprio governo, mas que existem perspetivas e ideologias que
ultrapassam a visão nacional.
Reproduzimos uma grelha de Teodoro (2001, p. 147). A grelha não obriga a
grandes comentários. Torna-se bem visível que os organismos internacionais
como a OCDE ou o Banco Mundial, que regulam e orientam em primeiro
lugar a economia local e global, influenciam, através do apoio técnico, uma
política educacional.
Mas alguém quis a escola democrática? 35
Org internacional. dominante
na assist. técnica
1955-1974 1974-1975 1976-1978 1979-1986
OCDE UNESCO Banco Mundial OCDE
Base política nacional
de apoio
Sectores
industrialistas,
tecnocratas e liberais
do Estado Novo (em
contraponto aos
sectores ruralistas,
principal apoio do
regime nos anos 30 e
40)
Poder
político-militar
revolucionário +
esquerda socialista,
comunista e
revolucionária
Partido Socialista Nova Direita (AD) e
Bloco Central (PS +
PSD)
Ideologia educacional
dominante
Ocdeismo Educação –
democracia –
cidadania, como
sinónimo de
socialismo
Normalização da
política educativa
como condição de
uma democracia
representativa
Novo vocacionalismo
e formação de
recursos humanos
como resultado do
mandato europeu
Principais intenções –
medidas de política
educativa
Expansão da
escolaridade
obrigatória pós-
primária,
planeamento
educativo,
modernização da
administração,
criação de novas
universidades e
reforma do ensino
superior.
Gestão democrática
das escolas
(autogestão),
democratização do
sucesso educativo,
educação
permanente,
superação da divisão
social do trabalho e
na organização do
sistema do ensino
Ensino superior de
curta duração,
contingentação do
acesso ao ensino
superior (numerus
clausus), reforço dos
poderes da
administração central
da educação.
(Re)criação do ensino
técnico profissional.
Mas além de influenciar, existe uma vontade expressa para a privatização de
parte do sistema de formação.
Sélys e Hirtt (1997: 101) lembram o acordo geral acerca do comércio e dos
serviços – Marraquexe 1994 – que foi assinado por 124 países e que prevê que
os governos subscritores devem atribuir subsídios às sociedades privadas de
ensino instaladas no seu território na mesma base que os subsídios atribuídos
ao ensino público. Se recusam, podem se ver proibidos em subsidiar o seu
próprio ensino público.
A intervenção educativa nos bairros periféricos deveria portanto obedecer a
uma política que permitisse ir ao encontro das prioridades referidas pela
própria comunidade europeia. Com meios públicos? Com meios privados?
Com iniciativas mistas? Com reforço de meios e recursos nas instituições
existentes? Com que participação na preparação das pessoas? Dizem Sélys e
Hirtt (1997: 87) que a formação dos professores do ensino básico é
36 Pascal Paulus
insuficiente. Conforme o país, é se formado professor em três ou quatro anos.
Necessita-se de cinco, sete ou mais anos para formar um bom quadro
comercial. Concluem com a pergunta se será mais difícil negociar um contrato
do que de instruir uma criança.
A racionalização dos custos públicos com a formação, que se percebe através
da declaração de Bologna que obriga a diminuir e normalizar o tempo de
formação para uma licenciatura, só provocará uma ainda maior fragmentação
do currículo da formação inicial, prejudicando a capacidade de análise e de
perceção de situações que por si só são muito complexas.
Desenvolvimento
O desenvolvimento preconizado e afixado pela Comunidade Europeia
constrói-se paradoxalmente à revelia dos povos interessados. É assim que se
percebe o interesse dos grupos de lobbying para um desenvolvimento reduzido
ao crescimento financeiro dos grupos económicos que atuam no seio da
Europa, mas não só, baseado no desenvolvimento do consumismo22. Os
acordos necessários a este desenvolvimento, ou são pouco divulgados, como o
supracitado acordo de Marraquexe, ou são negociados muito discretamente.
Ao falar do secretismo na negociação do acordo de Schengen, Sélys afirma:
‘‘Je trouve que c’est un précédent extrêmement grave dans la mesure où
c’est une question dont l’impact concerne beaucoup de pays de la
Communauté et hors de la Communauté et qu’elle a été l’objet d’une
tractation de plusieurs années dans le plus grand secret sans aucun contrôle
parlementaire, sans aucun débat au grand jour. Personne n’a été consulté.
Et s’il n’y avait pas eu l’attitude courageuse et juste du gouvernement
néerlandais qui a saisi son Parlement de cette question, peut-être
qu’aujourd’hui encore on ne saurait rien.’’23
(1993, p. 26)
Não se trata de situações inéditas. Vimos que a própria construção da união
europeia, a partir da CECA24, tem segredos que só vieram a ser divulgados
recentemente, ainda que já em 1952, o historiador Gérard Bossuat (cit Sélys
1993, p. 61) escrevesse que os Estados Unidos prometiam 500 milhões de
dólares a França, se ela ratificasse o tratado da CECA. O que estava em jogo
era a salvaguarda do investimento americano na indústria do Rhur25.
Outro desenvolvimento europeu é a revogação da interdição do trabalho de
noite, apresentado como uma vitória por parte do patronato mas também de
um determinado sector feminista, que vê nisto um argumento duvidoso de
igualdade de direitos, quando se analisa o que o trabalho noturno ou irregular
significa para o fim da coesão familiar e do sucesso escolar dos filhos26.
Mas alguém quis a escola democrática? 37
Ou, com as palavras de Sélys:
“La dénonciation de cette convention a réjoui le patronat et certaines
féministes. Il est intéressant, à cet égard, de rappeler qu’au début du siècle
déjà, les féministes bourgeoises étaient contre l’interdiction du travail de
nuit estimant que c’était une discrimination, et les ouvrières, au contraire,
en faveur de l’interdiction parce que, pour elles, le principal problème
n’était pas la discrimination mais bien l’exploitation dont étaient l’objet aussi
bien les hommes que les femmes.’’27
(1993, p. 90)
Aliás o mesmo autor cita alguns números que dão que pensar (Sélys: 1993, p.
115). Considerando o critério oficial de pobreza na Europa: ‘é pobre quem
ganha metade ou menos da metade do salário médio do país’, a Comunidade
contava com 30 milhões de pobres em 1980, enquanto durante a execução do
2º plano de apoio aos pobres, em 1985, este número subiu para 44 milhões.
Em 1992, dois anos depois do arranque do 3º plano já se contava com 51
milhões de pobres.
Na altura, havia uma verba de quase 12.500.000 euro ou seja, 0,24 € por pobre.
Na mesma altura despendia-se a mesma soma para apoiar um projeto de golfe
em Malmedy (Bélgica) e investia-se 4 vezes mais em programas como o
Erasmus, privilegiando a livre circulação de futuros quadros das empresas,
incluindo quadros do I&D.
Dito por outras palavras, o programa contra a pobreza representava em 1992
1/6300 do orçamento europeu, aplicado por inteiro no financiamento da
montagem de 39 projetos-piloto com duração de um ano, nos 12 países de
então.
Não é difícil perceber que estes projetos não beneficiam necessariamente
“os operários, e mais ainda os imigrantes, vivem em cidades, bairros ou
zonas pobres; significando o termo «zona» a localização marginal dessas
cidades-dormitórios que se limitam a organizar o sono, e mesmo esse...
Isolados de toda a vida cultural, essas «zonas» não são só pobres, como
segregam o empobrecimento cultural, não obstante os esforços realizados
por certas administrações municipais.” (Schwartz: 1984, p. 112)
A contraproposta prudente: o olhar integrado.
O reencontro entre a educação e o desenvolvimento local e sustentado não é
uma questão do ‘oposto do que se está a fazer’. Não se trata simplesmente de
contrariar os excessos de um mercado liberal ou neoliberal em que as regras
são ditadas por grandes grupos económicos com uma contraproposta de
38 Pascal Paulus
formação em que se põe a tónica num tipo de ‘reeducação’ em que os
responsáveis do estado pretendem saber o que é o melhor para as pessoas.
Schwartz alerta que:
“[...] paradoxalmente, a alternância escola-produção se apresenta à socie-
dade socialista com uma dupla origem que contribui fortemente para man-
ter o equívoco a seu respeito. Ela é simultaneamente uma herança capita-
lista e um projeto marxista. Herdeira capitalista porque a alternância consis-
tiu, e consiste ainda, em adaptar o material humano às exigências, às nor-
mas, à ideologia das classes dominantes, a fim de o integrar nas tarefas de
produção a pretexto de formação.
Projeto marxista, porque assenta na convicção de que só a participação dos
jovens na produção, durante o período da educação inicial, realiza essa
educação total em que a libertação das pessoas e a integração social
encontram a sua justa articulação.” (1984, p. 208)
Uma pista para uma construção mais prudente poderá passar pela
diversificação do trabalho educativo, convidando o estabelecimento de
parcerias locais entre intervenientes adultos. E aqui, a formação não formal
pode ser um contributo interessante em complemento com a formação formal.
Lembramos aqui Rogers, quando diz:
“Non-formal education is open to anyone irrespective of their former
educational level, whereas formal education is highly selective, dependent
on prior success in educational terms, rejecting the many and selecting the
few to continue their studies further. Because of this, formal education is
strongly organized; we can speak of a formal education system. Non-formal
education on the other hand has no clear pattern, no structure; we can only
speak of non-formal education programmes.”28
(1992, p. 26)
Pensando já no bairro onde mora o Moisés, onde moram o Wilson, o Gerson
e a Nair, no bairro também da Marlene, do Thomas e dos amigos deles, vemos
a junção da formação não-formal dos professores educadores e monitores de
tempos livres, em complemento à sua formação profissional formal, que todos
tiveram. A formação não-formal, passa por contactos com os país, por
passeios nos bairros de onde provêm as crianças com quem trabalham, ou, em
alternativa, se a entrada livre no bairro for difícil, pela construção de sinergias e
complementaridades com os mediadores de bairro e / ou os responsáveis de
organismos que intervêm diretamente nele, torna-se assim uma peça
fundamental. A formação não-formal também é a formação predileta dos
mediadores, dos animadores de bairro, dos pais e amigos que aí se
movimentam.
Mas alguém quis a escola democrática? 39
Um trabalho de reflexão a partir daí ajudará para que os atores ...
“...identificam parcialmente os indivíduos que, na sua economia subjetiva, aí
se identificam como eus, e entre a autoidentificação e a determinação pelos
lugares introduz-se uma distância, precisamente aquela que a reflexividade
individual possibilita. E a escola e por excelência o lugar onde a meta do
«bilinguismo cultural» (Stoer e Cortesão, ibid.) e a expressão da relatividade
das diferentes culturas poderão abrir possibilidades materiais e opções de
práticas sociais com as quais e pelas quais os indivíduos possam resignificar
as narrativas que as suas identificações são.” (Magalhães: 2001, p. 325).
Parece-nos oportuno falar aqui, além da borboleta, de outra metáfora, que
Roque Amaro (2000) utiliza: é a metáfora da semente, que uma vez plantada
em terra, regada e alimentada, acaba por revelar a potencialidade que tem em
si. O agente educativo e de desenvolvimento local – que pode estar reunido na
mesma pessoa física ou em diferentes pessoas que atuam no terreno –
transforma-se em catalisador disponível para esta e outras sementes, e que,
como catalisador, não se esgota, mas também se reforça nesta tarefa de
facilitador para a aprendizagem de outros.
Trata-se de abrir a escola como espaço fértil à aprendizagem, mas não de
qualquer maneira. Lembramos Schwartz:
“Uma escola cortada da vida não prepara, na verdade, nem para viver nem
para lutar; mas a abertura da escola para o mundo económico, social, etc.,
exige condições prévias essenciais e numerosas precauções. Uma escola
aberta bruscamente corre o risco de se dissolver. Os professores devem
manter o poder de controlar esta abertura dentro do respeito pelas
crianças.” E o próprio respeito pelas crianças é o assumir de uma construção
democrática que os professores também têm que assimilar.” (1984, p. 93)
É toda a concretização efetiva dos ‘slogans’ lançadas pela própria Comunidade
Europeia acerca da sustentabilidade dos bairros periféricos, que requer uma
intervenção altamente cautelosa e feita com pessoas que se formam à medida
que o trabalho avança, exatamente porque a situação é tão complexa que não
existem especialistas à partida. Mas existem uma série de possibilidades de
intervenção que podem ser tomadas em conta como aquelas que Schwartz
(1984: 112) sugere e que passam por repartir de forma diferente os recursos da
coletividade, por discriminação positiva, por ajudar os pais, por dotar as zonas
pobres de mais professores, tornando a escola um local de animação. Passa
também por proporcionar um ambiente cultural enriquecido, ao qual as
crianças tem direito, uma animação cultural integrada, suficientemente forte
para ir ao encontro do público, juntando teatro, exposições, bibliotecas, etc.
40 Pascal Paulus
Nada disto é fácil e nem tudo depende dos atores locais, professores,
mediadores, intervenientes locais. Há situações que dependem da política
central, como vimos mais influenciado pelos lobbies económicos do que pelos
‘lobbies’ do bairro. Há outros que dependem simplesmente da forma como os
bens culturais são postos no mercado. Sélys (1993, p. 143) lembra a este
respeito que o real significado do preço livre do livro, por exemplo, tende a
globalizar e a fazer desaparecer nichos de mercado para novos títulos ou novos
autores. Quem está interessado em vender livros por encomenda? São poucos.
E são poucos os que os procuram. Porque, para procurar um livro, tem que se
saber o que se está a procurar. Nunca é tarefa fácil, muito menos para quem
tem poucos hábitos de leitura.
Schwartz (1984, p. 133) fala da pedagogia do contrato no sentido que uma
intervenção pedagógica numa comunidade passa pela responsabilização
‘contratual’ de todos os envolvidos, também e sobretudo os moradores. Os
exemplos que conduzem a nossa reflexão assentam na educação de crianças.
Parece-nos que aqui, o contrato é tão simples e tão complexo como expresso
no provérbio africano “para educar uma criança é necessário uma aldeia”. Mas
não temos que ficar pelo dito popular. Dispomos coletivamente do conhe-
cimento prudente (Boaventura Sousa Santos) que nos permite caminhar para
uma vida decente, contribuindo simultaneamente para a construção deste
mesmo conhecimento e trabalhando para a devolução do conhecimento ao
saber do senso-comum.
Acão para uma vida decente; duas malhas de uma rede.
Continuando com uma ideia de Boaventura Sousa Santos (2001, p 71 e.s.)
constatamos nos bairros que nos interessam algumas características da
globalização SMM29. Se por um lado reconhecemos nas crianças e nos adultos
o sucesso do modelo de localismo globalizado nos hábitos de alimentação,
com uma grande apetência para o fast-food e para a visita e o consumo nos
centros comerciais, ficando a comida tradicional subalternamente incluída,
delegada para as festas tradicionais, constatamos também a tendência levando
à exclusão de outros hábitos por completo suplantados pela hegemonia do
filme de violência, da televisão de produção de sonhos, do telejornal com não
outro conteúdo do que o equivalente às histórias bairristas.
Nalguns casos o bairro suburbano onde intervimos promove um tipo de
etnicização do trabalho, como caracterizado no globalismo localizado: os
bairros tornam-se locais transparentes para os subempreiteiros que procuram
mão-de-obra não qualificada e barata; primeiro os migrantes internos dos anos
Mas alguém quis a escola democrática? 41
’60, depois os migrantes provenientes das antigas colónias, atualmente os
migrantes provenientes do Este da Europa. Estes trabalhadores, sem grandes
opções de escolha, aparecem como menos exigentes.
A comunidade cigana destes bairros, maioritariamente vendedor ambulante ou
feirante, com o trabalho perfeitamente etnicizado, vê-se numa posição de
excluída, reforçada pela falta de alternativas reais a sua atividade que torna
complicado a integração, nem sempre desejada aliás.
Neste contexto, a história de Moisés, dos quais os pais apostam na formação
profissional dele, é duplamente difícil. Por um lado pela recusa implícita da
própria comunidade, por outro lado pela forma pouco animadora com que os
próprios educadores encaram a formação profissional não académica, fazendo
perceber ao Moisés que é um perdedor.
É aí que a aposta do mediador em clarificar com o rapaz o que significa o
sonho dele em «ser cigana» foi o início de uma estratégia acertada. Perante a
insistência do rapaz, o próprio mediador obrigou o Moisés então a ser cigano,
levando-o de manhã muito cedo para ir às feiras. Rapidamente o rapaz preferiu
então voltar a escola, para já por ser menos duro, e depois porque começou a
considerar que a ideia dos pais não era completamente descabida de interesse.
Não podemos ver o trabalho de desenvolvimento local desagregado do
trabalho de educação. Muitas vezes trata-se de relações ténues, provisórias,
entre pessoas que se vão cruzando a volta do bairro e dentro do bairro.
A conjugação de métodos formais e não formais, em estruturas igualmente
formais ou não formais, como Alan Rogers (1992, p. 27) nos apresentam em
esquema permite-nos uma visão integradora:
métodos não formais p.e. grupos
estruturados p.e. aprendizagem
pela descoberta
sistema formal
sistema não formal
p.e. palestres
p.e. demonstrações no local
Métodos formais
Matriz para ilustrar o leque de metodologias usadas no formal e o não-formal.
Parece-nos possível introduzir uma cultura de reflexão e discussão entre
grupos diversos, ainda que uns se espelhem em estruturas ou métodos formais
e outros em estruturas ou métodos não formais. A problematização que resulta
deste tipo de reflexão ajuda certamente na clarificação de posições e na
construção de patamares de entendimento.
42 Pascal Paulus
É possível então pensar nas correntes contra-hegemónicas (Boaventura Sousa
Santos) e ver neste tipo de ação elementos de construção para o cosmo-
politismo.
A intervenção desenvolve-se em dois planos: ao nível dos adultos e na
transferência de práticas no trabalho com as crianças. Ou, como refere Rogers:
“Some people write as if non-formal education and adult education are the
same thing, but I do not think so, for two main reasons:
Some non-formal education is offered to out-of-school children. This is
clearly not adult education for it does not call for adult learning
methods; it cannot treat the learners as adults. Non-formal education,
although it includes some forms of adult education, is wider than adult
education.
Secondly, some education inside the formal system is directed towards
adult rather than younger learners and uses adult teaching-learning
methods; it treats the learners as adults. Although this cannot be called
non-formal education, it can be included in our definition of adult
education.”30
(1992, p. 27)
Assim, a Marlene, o Thomas e os seus amigos, quebram fronteiras, não só as
fronteiras de Schengen, mas sobretudo as fronteiras do bairro em que se
movem normalmente, quando se organizam com as monitoras para irem
visitar Lisboa de transporte público, quando descobrem o comboio, em que,
mesmo sendo da zona suburbana, nunca tinham andado, quando aprendem a
ver um filme do início até o fim, quando percebem que um filme tem uma
história, que o mundo não é tão fragmentada como os spots publicitários na
televisão lhes fez pensar.
Quebram fronteiras, o Wilson, o Gerson e a Nair, quando saem do ghetto
familiar em que se encontravam e quando se interlaçam com outras pessoas,
crianças e adultas, e quando os outros se cruzam com eles, como se cruzam
com o Moisés, nos locais formais e informais de encontro, acompanhados por
pessoas adultas que refletiram em conjunto acerca do trabalho com as crianças.
Nada mais do que ‘‘…accepter ces étrangers et mettre en œuvre des structures d’accueil
parce que, d’une certaine façon, ça a toujours été la richesse de l’Europe. Après tout, nous
sommes des bâtards des différents peuples qui ont traversé l’Europe dans les 2000 ans qui
nous ont précédé,’’31 como refere André Lambert, dirigente da ‘Association pour
le développement de la recherche appliquée en sciences sociales’ (apud Sélys:
1993, p. 88)
Todas estas crianças de que falámos aqui, parecem reencaminhar-se porque
houve uma certa vontade coletiva dos adultos à sua volta em intervir neste
sentido.
Mas alguém quis a escola democrática? 43
Claro que há outros perigos. Colette Moulaert, pediatra (apud Selys: 1993, p.
89) revela que enquanto 18% das crianças de quem o pai trabalha de dia
deixam a escola ao fazer 16 anos, a percentagem sobe para 39% das crianças
de quem o pai trabalha de noite.
Uma realidade conhecida do Wilson e dos amigos da Marlene e para a qual
também Plasman (ULB) (apud Sélys: 1993, p. 89) alerta: por mais que seja
afirmado o contrário, temos que estar muito conscientes de que existe uma
grande mistificação acerca da flexibilidade do tempo de trabalho; este não
existe para que as famílias se reencontrem, como nos é apresentado, mas é
organizado em função das empresas como é o caso das grandes superfícies.
Eis o sentido da urgente reflexão acerca do alargamento ou não do horário do
atendimento pós-escolar. Trata-se de um problema muito mais vasto do que a
simples afirmação de que precisamos de estruturas que deem resposta a
necessidade da população. Necessidade da população ou processo conduzido
pelo poder no sentido de salvaguardar os interesses acionistas das empresas?
Trabalho de noite prejudica a saúde, afirma Pierre Andlauer presidente do
instituto da medicina de trabalho, na Alsácia. Continua:
“Deuxième désagrément: les troubles de l’humeur et du caractère, les trou-
bles nerveux, qui ouvrent des symptômes très précis d’intolérance à toutes
sortes de choses, notamment à sa famille, à son entourage, aux relations
que l’on a habituellement dans le travail.’’32
(apud Sélys: 1993, p. 91)
A culturização das crianças nos bairros suburbanos é por isso tão importante:
para se poder lançar pistas que contrariem a fatalidade da replicação daquilo
que existe. É necessário construir a história a partir das histórias de cada uma
delas, ouvindo o que têm para contar, ouvindo o que os pais têm para contar.
Mas não se pode ficar pelo simples registo. Quando Marlene e os amigos falam
do campo de futebol que nunca mais é construído, desenvolvem um trabalho,
no ATL, que além de uma visita a um estádio, desemboca na apresentação de
uma maqueta pela qual uma das responsáveis do gabinete PER se interessa.
A deslocação de transporte público, ajuda para perceber como se pode
deslocar mais confortavelmente entre vários pontos da grande cidade, o que
permite a possibilidade de explicar, aos familiares analfabetos, como se pode
utilizar o metro. É pensar com Selys que
“se a Europa se transforma num mercado de capitais, completamente
liberalizado, sem fiscalidade sobre os capitais, arriscamos um capitalismo
selvagem, como no tempo de Reagan na América. Mesmo assim, uma
solidariedade entre gerações permite o financiamento da Segurança
Social.”33
(1993, p. 112)
44 Pascal Paulus
São aspetos de uma abertura da educação para o meio exterior e não só para as
empresas e as suas necessidades ainda que
“... uma abertura da escola sobre o meio exterior não pode deixar de induzir
uma abertura sobre a realidade conflitual do social. E aí se coloca o
problema extremamente delicado e escaldante da formação cívica e social
das crianças, e da própria definição da escola laica. É necessário encontrar o
equilíbrio, quão instável, entre uma escola que se declara neutra, enquanto
a política a envolve, outra que politiza tudo em sentido único, e uma
terceira, enfim, que, a pretexto de pluralismo, permite que todos os
professores intervenham em qualquer momento, de maneira pessoal e em
todos os acontecimentos.” Schwartz (1984, p. 91)
Quando a borboleta levanta voo.
No mundo do secretismo, da história contada de uma determinada forma,
muitas tempestades podem ser contrariadas pelas borboletas que, não se sabe
quando e não se sabe porquê, levantam voo. Elas são muitas e diversas.
Citamos Sélys mais uma vez, falando dos historiadores americanos:
“Les historiens se penchent aujourd’hui avec étonnement sur la création de
la Communauté européenne. Les historiens américains découvrent avec
surprise, dans les archives gouvernementales qui leurs deviennent
accessibles (au compte-gouttes) vingt ou trente ans après que les
événements se sont produits, que leurs dirigeants n’avaient pas du tout
peur des Soviétiques dans les années 40 mais craignaient avant tout que
leurs alliés européens ne virent au socialisme et les privent ainsi d’un
marché qui leur était indispensable pour écouler leur surproduction et éviter
une grave récession, leur économie n’étant plus dopée par la production
massive d’armement.’’34
(1993, p. 56)
Estes historiadores que escrevem e publicam são borboletas que,
inesperadamente, levantam voo. Mas há outras, em todo o lado. O cosmo-
politismo de que fala Boaventura Sousa Santos, em que vamos descobrindo
pequenas e grandes organizações, mais ou menos estruturadas, que lutam
contra a exclusão, contra a hegemonia, em busca de valores que permitam um
desenvolvimento sustentável movem, crescem, mudam de rumo, influenciam.
Como o bater de asas das borboletas, provocam as turbulências do ar.
O dispositivo que se instalou para acompanhar alguns dos bairros e das
estruturas que intervêm nos bairros das crianças de que falámos foi pensado
como catalisador, para permitir terreno fértil ao aparecimento de novas
Mas alguém quis a escola democrática? 45
borboletas,35 focando a sua atenção sobretudo para as pessoas, na perspetiva
de que
“a inovação resulta mais da ação isolada e alguns professores ou grupos de
professores do que das escolas. [...];
Há constrangimentos que limitam o alcance da nossa ação, como por
exemplo o facto de parte do coletivo de professores mudar todos os anos.
[...]
Sem a mediação e a dinamização do Urban, algumas escolas revelam pouca
iniciativa para empreenderem projetos em parceria com outras escolas.”
Fundação para o desenvolvimento do vale de Campanhã (2001, p. 136)
Nisto não se trata de sonhos ou de utopias. Trata-se de trabalhar no terreno,
dentro do sistema, aproveitando das oportunidades que o sistema, às vezes
involuntariamente, às vezes voluntariamente vai dando. Existem outras
realizações, como aquela de que nos fala Maria Beatriz Canário:
“A experiência foi iniciada num período em que, em França, se procedeu à
descentralização da administração educativa e em que as Câmaras viram
ampliadas as suas competências no domínio educativo. [...]
Progressivamente, os serviços culturais dependentes da Câmara, biblioteca,
cinema, escola de música e museu, passaram a ter a obrigação de prestar
serviço às escolas, nomeadamente, através da realização sistemática de
«aulas de descoberta e exploração». [...]
O que observamos neste caso, fundamentalmente, é que a cidade soube
definir uma política educativa local e executá-la, tendo sempre fundado as
suas iniciativas em parcerias educativas; para conseguir realizar essa política
criou estruturas organizativas próprias, adaptadas a esse propósito e aos
circunstancialismos locais.” (2000, p. 5)
Não tínhamos grandes expectativas com a escrita desta reflexão. Quisemos
somente procurar dentro das nossas práticas algumas atividades que nos fazem
pensar que a vida decente se constrói, dia a dia, com pequenos passos, com
avanços e retrocessos. O atractor de Lorenz mostra-nos que é possível
influenciar um sistema complexo por dentro, mesmo quando se introduz
variações mínimas. Por mais que o “meanstream” destrua a rede cultural e
educacional humanista, por mais que ele nos prive da história, não controla,
nem nunca poderá controlar, todos os voos. Por isso, por mais pequena que
seja a experiência, ela pode dar aso a outra. O simples facto que ela existe, tão
frágil como uma borboleta na selva, provoca uma brisa que se pode tornar
vendaval.
46 Pascal Paulus
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Mas alguém quis a escola democrática? 47
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Nações Unidas. Assembleia geral da Onu discute, em sessão extraordinária, o milénio
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Mas alguém quis a escola democrática? 49
Grande irmão cidadão... ou talvez não...
Alfas, Epsilões e a Novilíngua.
A cidadania é um constructo próprio da civilização humana. Indo ao
dicionário, verificamos que se trata de uma qualidade, um direito de cidadão,
de pessoa pertencente à cidade e que, dentro da definição no contexto histórico
e geográfico, tem a liberdade de intervir na organização deste grupo político de
pertence. Dito assim, parece simples.
A experiência ensina que a realidade é muito mais complexa. Atualmente quem
é delegado para gerir, considera-se profissional. Aldous Huxley (1937) chamar-
lhe-ia o Alpha-menos ou o Beta-mais. Considera-se profissional porque pensa
que o poder que o instalou assim o considera. Este poder – muitas vezes
invisível – é, por ele, designado por “vontade popular”, “soberania do povo”,
“povo livre”, “expressão democrática da população” conforme os contextos e
as épocas.
Parece-me que estas designações são sobretudo reformulações para manter os
Gamas, Deltas e Epsilões do admirável mundo novo moderadamente
interessado e convencido do seu contributo, dentro dos limites que o Alpha-
mais-mais considera tolerável. Vejo este último menos como uma pessoa mas
antes como um grupo restrito de influência, um lobby que detém o poder
efetivo sobre os Alpha-menos e os Beta-mais, e que tem como objetivo
principal manter uma ordem caracterizada pela livre circulação de capitais.
A livre circulação dos capitais passa por tudo o que um mercado, ele também
“livre”, oferece para vender e onde tem que haver quem compra.
Agradecendo o convite que me foi feito para participar nesta conversa para
ajudar a fazer um balanço da Formação cívica no currículo do ensino básico, e
refletir sobre as perspetivas que oferece, não escondo que, no texto que segue,
coloro este balanço da condução da Educação para a cidadania como é
referido no currículo, bastante negro. No fim, limito-me a partilhar convosco o
que tem sido, desde há 27 anos, a perspetiva de trabalho na qual me
reconheço.
Assim, tentarei mostrar nos pontos “Produto” velho em embalagem nova ou
velha embalagem para novo “produto”? e “A europeização da formação
cívica” que neste contexto, a cidadania também se tornou um produto,
50 Pascal Paulus
vendido – no nosso caso – como uma novidade europeia que possibilitará a
plena integração de cada um dos cidadãos, pelo menos, se comprou bem, e
assim, assegurou a sua empregabilidade, termo inventado no contexto da
Sociedade Cognitiva.
Um produto vendido, de que se diz que cada um tem a liberdade de comprar
ou não, assumindo as consequências do seu ato. Ou como diz Pedro Sá36, em
resposta a um artigo de G. Oliveira Martins, falando da abstenção:
“... Ela deve ser interpretada não como desencanto com a política, mas
como um alheamento total e indiferença. O que, numa sociedade livre e
democrática, também tem de ser admissível, pois não é obrigatório que
todos estejam interessados na coisa pública - aliás, isto é algo parecido com
um fenómeno inverso ao dos free riders, quem não participa na tomada de
decisões também sofre com as eventuais más consequências.”
Daí até dizer que quem não está integrado na comunidade o deve
exclusivamente a si próprio, vai um pequeno passo. Para contrariar este risco,
parece que a via é a da escola. Mas será? Sustento, no ponto “O silenciamento
ensurdecedor das crianças” que a introdução da “Educação para a Cidadania”
no currículo, ainda que se possa ler como uma proposta na tradição da
Educação Humanista, parece, na prática, mais uma definição da décima
primeira edição do Dicionário da Novilíngua editado em 1984 (Georges
Orwell, 1948). Existem sinais para tal. Na maioria dos casos, a transversalidade
não é percebida como o apoio ao questionamento feito pelos próprios alunos,
no decorrer do seu processo de aprendizagem, mas como um rebordo de um
manto de retalhos para a qual faltam definir as cores e o ponto. Vejam, como
exemplo, a Associação Nacional dos Professores Licenciados (2000) que
regista que
“... afirmadas estas potencialidades da transversalidade, não são de
esquecer os riscos que a acompanham. Sem menus de ensino/aprendizagem
de cidadania, cada professor de disciplina, ou de projeto, não terá por onde
selecionar materiais adequados à informação (ou sua falta) de que os alunos
dispõem. Sem parâmetros de ensino/aprendizagem para as diversas etapas
da vida escolar, a educação para a cidadania será um saco de boas intenções
pedagogicamente nulas.”
Por outro lado, José Adelino Maltez37, candidato nas listas autárquicas da Nova
Democracia, deixa claro que melhorar o Estado implica que
“se restaure a cidadania ativa contra o indiferentismo, reinventando os laços
tradicionais da vizinhança, do municipalismo, do regionalismo, do
Mas alguém quis a escola democrática? 51
sindicalismo e do patriotismo, bem como apoiando a autonomia da
sociedade civil, através da esquecida educação cívica e de uma autêntica
revolução do sistema de ensino, liquidando a herança de Veiga Simão e dos
compadres educacionólogos e avaliólogos, esses profissionais do
reformismo burocrático que, com ele, andam a ser pagos vitaliciamente
para nos continuarmos a derrotar em ministerialices pseudo-educativas que
deveriam ser liminarmente extintas.”
João Paraskeva (2005, p. 9) afirma que conceitos como justiça social e
liberdade sujeitaram-se a um processo de resignificação e afirma que “em
essência, estamos perante um processo de reconfiguração, no seio do senso comum, do
verdadeiro significado de determinados vocábulos.” Sustenta (2005, p. 11) que o projeto
neoliberal tem que esbater os verdadeiros conceitos de democracia e de estado,
abrindo a porta a uma perigosa Estadofobia. Cita José Saramago (2005, p. 13)
que fala de uma prática “que desnuda a democracia que pouco mais tem que argumentar
que o voto em si” consequência da relação perigosa entre o mercado e o Estado.
Em que medida é que se trata, na escola pública, somente de ensinar Gama,
Delta ou Epsilão a ser obediente e eficiente, em ensinar-lhes Novilíngua,
reservando-se para já as escolas privadas para os Alpha e os Beta-mais. Pondo-
me nesta perspetiva, procuro então encontrar o que se faz com as crianças38 na
escola básica para que possam perceber e viver a cidadania, e em que medida é
que a cidadania é trabalhada com elas como ferramenta de trabalho para
intervir a partir da sua condição e não em função da condição de outros, sejam
elas Alphas ou Epsilões. Desenvolvo esta ideia em “Educação “para” ou “na”
cidadania e consciencialização” deixando para “Uma prática fundada na
pedagogia institucional” o relato de alguns aspetos da minha prática de
professor de primeiro ciclo na escola da Outurela e Portela.
Acredito que continua a ser possível e sobretudo que continua a ser
absolutamente necessário estimular e apadrinhar o ensino-aprendizagem que
permite aos alunos utilizar o próprio contexto de referência para criar, com o
seu professor, modelos de vivência e intervenção democrática, mas
extremamente crítica, porque são estas atividades que são a melhor garantia
contra o esvaziamento das ideias e dos conceitos ao qual assistimos. Não
escondo que esta intervenção significa também uma incondicional aposta na
escola pública, gratuita e universal.
Convém, neste contexto, lembrar que a Conferência dos Representantes dos
Governos dos Estados-membros (2004), na sua primeira proposta para uma
Constituição Europeia, ofusca esta escola e que define o direito a educação – e
não a escola – no seu artigo II-74º no primeiro ponto como um direito de
52 Pascal Paulus
todas as pessoas, dizendo no seu segundo ponto que “Este direito inclui a
possibilidade de frequentar gratuitamente o ensino obrigatório”, para concluir no terceiro
que existe liberdade de criação de estabelecimentos e o direito dos pais de
assegurar a educação e o ensino dos filhos segundo as suas convicções, desde
que democráticas. É óbvio que este texto abre caminho para a privatização
generalizada do ensino, com dinheiro público, antevendo-se tanto os cenários
de gestão eficaz de uma oferta livre, regida pelo mercado, como de escolas
reservadas para elites e classe média, deixando para “o resto” uma escola pobre
e gratuita. Lembra a realidade analisada por Loïc Wacquant (2004) que
documenta como grande número de estados dos Estados Unidos da América
investem cada vez mais no encarceramento dos pobres, transferindo verbas da
Educação39, da Saúde e dos Serviços Sociais, para a Segurança, construindo
mais e mais prisões, onde reaparecem contextos de trabalhos forçados para
empresas públicas ou semi-públicas. Escreve (2004, p. 174) que, nalguns
estados, os salários dos guardas prisionais são tão apelativos que muitos
professores mudam de estabelecimento e de profissão. Menciona também
(2004, p. 126) o número de presos por 100.000 habitantes em 1997, que nos
países nórdicos da Europa se situam na casa dos 50-60, na Bélgica e na
Holanda fiquem pelos 82 – 87, passando para 120 na Grã-Bretanha, 145 em
Portugal e 648 nos Estados Unidos. Seria útil estudar se existe uma correlação
entre a organização da escola – modelo privada pago com uma escola pública
residual versus modelo público e gratuito – e a taxa de encarceramento.
“Produto” velho em embalagem nova ou velha embalagem para novo “produto”?
De que vontade de educação para a cidadania falamos afinal? Permitam-me
ilustrar com alguns exemplos, o que se propõe em tempos e locais variados.
Alberto Oliverio (1986, p. 22) lembra como em 1666, mais de um século antes
da Revolução Francesa, Charles Démia avisava os administradores de Lyon
que, para tirar as crianças pobres da vagabundagem nas ruas, melhor seria criar
uma escola, de toda a conveniência para a polícia, para os educar e fazer delas
fiéis servidoras. As escolas de Démia e La Salle, rapidamente conhecidas como
a escola dos pobres, tornaram-se uma referência entre os mais abastecidos.
100 anos mais tarde deu-se o iluminismo e a revolução francesa.
Mas passado cento e cinquenta anos, depois da instauração da res pública, do
aparecimento das ciências sociais, das ciências de educação, do nascimento de
movimentos pedagógicos, da Escola Nova, de Ferrière, e, entre nós, de
António Sérgio, eis que a Educação Cívica volta à normalização... Transcrevo
alguns dos muitos exemplos que encontrei:
Mas alguém quis a escola democrática? 53
O decreto nº 28 262, de 8 de Dezembro de 1937 (Regulamento da
Mocidade Portuguesa Feminina) define no artigo 3º “A educação cívica
inspirar-se-á no imperativo do bem comum e nas grandes tradições nacionais, para que
em cada filiada se defina e fixe a consciência do dever e da responsabilidade da mulher
portuguesa na continuidade histórica da Nação.”;
Augusto César Pires de Lima (1937: 21) constata que a palmatória entrou
em desuso, mas tampouco admite que a educação cívica seja transmitida
por frases sem sentido, como (1937, p. 137): “Sabeis qual é a vossa Pátria?
Sabei-lo com certeza, pois que tantas vezes o temos repetido. Não é a aldeia, não é a
cidade em que nascestes. É Portugal, o belo e glorioso Portugal!” Propõe substituir
esta prosa por histórias, como A Batalha dos Atoleiros de Fernão Lopes
que conta (1937, p. 136):
“Nun’Alvares, a cavalo na sua mula, com gesto alegre, ia aconselhando:
amigos, lembrai-vos de quatro cousas: a primeira encomendar-vos a Deus e à
Virgem; a segunda, que estamos aqui para servir o Mestre e ganhar honra; a
terceira, que nos defendemos a nós, as nossas casas, à terra em que nascemos;
a quarta, finalmente – paciência, coragem: é ter na ideia – pelejar, não uma
hora, mas um dia... o que for necessário.” Ganha-se a batalha e “Vendo o
destrôço, Nun’Alvares correu em perseguição dos castelhanos, que fugiram em
debandada, sem se atreverem a voltar à carga.”
Pires de Lima (1937, p. 138) conclui que, contar histórias facilita mais a
educação de amor à pátria e a educação cívica;
António Rapoula escreve, num comentário40, depois da agressão do João
Pinto ao árbitro durante um jogo de futebol: “Não é só no futebol que isto
ocorre. Segundo os últimos dados estatísticos existem mais agressões a
elementos das forças policiais, mais agressões a professores escolares, mais
agressões no trânsito, mais agressões civis, etc., etc.
Isto revela uma grande falta de reconhecimento de autoridade por parte de
todos os cidadãos portugueses. Se nós somos de brandos costumes, não parece.
A educação cívica deve começar por aqui: deve existir autoridade legítima que
deve ser reconhecida e respeitada por todos. [...] O árbitro é soberano e a sua
autoridade deve ser respeitada e aceite, mesmo que tenha errado.”;
A APEL – Associação Promotora do Ensino Livre (1998) escreve no seu
projeto educativo:
“... é ministrada uma educação integral inspirada nos princípios católicos de
forma a contribuir para uma reflexão consciente sobre os valores espirituais,
morais e cívicos [...]. E como tal, procura proporcionar a aquisição de noções de
educação cívica, moral e religiosa. Através da disciplina denominada "Religião e
Moral" [...], procura-se ilustrar os progressos da cultura e da ciência à luz da
mensagem cristã católica.”;
54 Pascal Paulus
No regulamento interno de uma Escola Profissional lemos acerca do
Diretor de Turma:
“Em relação aos alunos, o diretor de turma deverá:
Colaborar nos projetos de orientação educativa elaborados pelo conselho
pedagógico
Promover a educação cívica, moral e a sociabilização dos alunos através de
atividades de participação e complemento curricular, nomeadamente das
visitas de estudo, seminários, colóquios, comemorações do dia da escola e
outras”;
O Centro de Investigação de Tecnologias de Informação para uma
Democracia Participativa – CITIDEP (2003) – propõe um Kit cidadania:
“O Kit Cidadania será um conjunto de informações base e ferramentas que
permitam ajudar qualquer cidadão a exercer os seus direitos e deveres de
cidadania, sobretudo os que se relacionam com informações e serviços
gratuitos disponíveis por via internet.” Apoia ao treino para o
preenchimento de formulários, pretenda-se o Kit “articulado com o
curriculum em cidadania e em internet das escolas do ensino secundário.”
Os autores defendem que assim facilitam:
(a) Acesso do cidadão `a informação produzida e/ou arquivada pela
administração pública e demais entidades da sociedade civil [...];
(b) Direitos e deveres cívicos do cidadão, sobretudo face à
administração pública (incluindo reclamação);
(c) Oportunidades de intervenção cívica do cidadão (voto legislativo,
local, referendário, europeu; períodos de consulta publica
obrigatória em projetos de lei, avaliação de impacte ambiental,
planos diretores municipais, etc.; associações cívicas, organizações
não governamentais, etc.)”
Parece ser uma constante, associar a educação cívica a uma ideia, ou de
“meninos ignorantes”, que têm que aprender os feitos históricos
inevitavelmente positivos resultante duma cultura cristã ocidental ou então de
“meninos mal comportados” que têm que ser educados para a obediência ou
mesmo para a subserviência41.
Perante as definições extremamente vagas do próprio decreto-lei 6/2001 de 18
de Janeiro e das referências à educação para a cidadania no Currículo e nos
programas do ensino obrigatório, aparecem no mercado variadíssimos livros,
cadernos, cadernos de fichas e outro material que organizam a área curricular
não disciplinar de “formação cívica”. Escamoteiam quase sempre a “Educação
para a cidadania” – demasiado transversal? – para organizar “conteúdos” de
formação cívica e de cidadania, que retomam os “grandes clássicos”: os
Mas alguém quis a escola democrática? 55
símbolos da nação e da União Europeia, os direitos e deveres elementares (em
que a intervenção cívica passa pelo voto e eventualmente pelo pressionar do
presidente da Junta de Freguesia), a saúde, a educação sexual, a educação
ambiental. Alguns reduzem a “educação para a cidadania... com civismo” no 1º
ciclo à leitura de textos de manual moralistas ou de cançonetas e lengalengas.
Outros propõem debates entre alunos a partir de fichas de trabalho sobre um
determinado tema. Raramente – para não dizer nunca – se centra a ação nas
crianças. De facto, não me parece difícil concordar com Sarmento (2000) que
escreve:
“O efeito de ressemantização da expressão "educação para a cidadania" (a
qual é geneticamente filiável na conceptualização da educação democrática
de um John Dewey, ou, entre nós, de um António Sérgio), torna
provavelmente indispensável o seu abandono: se, ao falarmos de algo,
empregamos uma expressão que também significa o seu contrário, é
preferível utilizarmos palavras diferentes, para resgatar significados
distintos.”
Entretanto podemos tentar perceber como e porque aparece a Educação para
a Cidadania na nomenclatura Europeia, quando se fala de Educação,
Formação, Sociedade Cognitiva e Empregabilidade.
A europeização da formação cívica
Voltamos um momento à Associação dos professores licenciados (2000), que
afirma que:
“A extensão dos compromissos e requisitos exigidos pela cidadania é
variável. [...] Sociologicamente, a cidadania prende-se com a aquisição de
vínculos que oferecem coesão à população de um Estado. Economicamente,
a cidadania traduz-se na capacidade de o Estado recolher contribuições e
impostos e de os redistribuir através da oferta de bens públicos.
Politicamente, a cidadania cria laços de legitimidade entre governantes e
governados que, no quadro das democracias europeias atuais, se prolongam
em obrigações para além das fronteiras nacionais. A cidadania democrática
experimentou uma evolução enriquecedora no quadro da União Europeia.”
Lembra o artigo 8º do Tratado da União que define o cidadão da União.
O que se pretende com a educação deste cidadão europeu, além de o ensinar –
e acho bem – de pagar contribuições e – e acho menos bem – de perpetuar os
mesmos círculos do poder? Provavelmente não fazia parte desta educação que
os meus alunos percebessem as consequências de terem nascido em Portugal
56 Pascal Paulus
de pais cabo-verdianos, o que significa que não são cidadãos portugueses e
portanto também não são cidadãos europeus, o que lhes negava o direito ao
então formulário E111 que permitia a assistência médica em outro país da
União, na altura de uma visita aos correspondentes, fora do país, mesmo que
os seus pais descontem regularmente para a Segurança Social. São
pormenores?
A ata da reunião – e saliento o ponto 2 – constituinte da Rede Europeia de
Conselhos de Educação (Eunec: 2000) diz-nos que:
“... os participantes trabalharam no sentido de adotarem um plano de ação
para a rede dos Conselhos Europeus. Tendo em vista o reforço do papel da
educação e da formação e tendo em conta o estabelecimento duma
estratégia para tornar mais competitiva e dinâmica a União Europeia,
baseada em mais conhecimento, mais emprego e mais coesão social, [...], foi
adotado um plano de ação [...] com as seguintes áreas prioritárias de
trabalho e reflexão:
1. os aspetos que se prendem com a "Lifelong Learning" - promoção da
sociedade do conhecimento capaz de criar oportunidades para todos;
luta contra a exclusão social, promoção da coesão social; o papel dos
parceiros sociais na educação ao longo da vida;
2. a promoção da educação para a cidadania - promoção da coesão social
(integração das minorias42); valores democráticos; línguas;
partenariado; educação como um "bem" público;
3. a promoção da mobilidade - no sentido da aquisição de competências
nas novas tecnologias numa sociedade do conhecimento e da inovação;
validação dos certificados e da formação; promoção das dimensões
intercultural, interlinguística e inter-religiosa; intercâmbio de
professores e estudantes entre os países.”
Contradições? Do ponto de vista dos Alphas, talvez não. Gérard de Sélys e
Nico Hirtt (2003) fazem uma leitura aprofundada. Documentaram
exaustivamente, no seu livro Tableau Noir, o significado destes três eixos de
trabalho prioritário. Revelam, a partir das atas de reuniões, dos relatórios e dos
documentos de trabalho publicados, as relações existentes entre os grupos de
pressão dos industriais europeus, como O European Round Table (ERT) ou o
G7, as organizações internacionais como o OCDE, o FMI e o OMC e a União
Europeia. Descrevem (2003, p. 59) como as empresas privadas descobrem o
mercado da Educação, sobretudo o mercado da formação a distância.
Mostram (2003, p. 94 e.s.) como os relatórios dos grupos como o ERT ou a
OCDE influenciam os livros brancos da UE para o que diz respeito a
Mas alguém quis a escola democrática? 57
formação profissional, o ensino a distância, mas também ao conceito de
Sociedade Cognitiva ou Sociedade de Informação. Explicam a relação entre os
grandes programas de intercâmbio entre estudantes e investigadores e o
desenvolvimento de produtos que facilitam a organização de redes de
formação a distância – pagos – que serão apresentados aos cidadãos para se
atualizarem na sua profissão, nos seus estudos e para adquirir aquela condição
espantosa, que se inventou, a que se deu o nome de empregabilidade.
Documentam a relação direta entre o desenvolvimento de software educativo
privado e o financiamento público deste desenvolvimento através de
programas como o Da Vinci (2003, p. 35). Relacionam os pedidos constantes
nos relatórios do G7 acerca da Sociedade de Informação e as propostas de
substituir – ou pelo menos desenvolver em paralelo – os diplomas por um
sistema de creditação internacional, em que a finalidade é permitir que a
creditação seja feita sem recorrer ao (lento) sistema de diplomas nacionais,
passando a iniciativa da creditação do público para o privado, com a mais
recente legislação Europeia, incluindo o “acordo de Bolonha”. Deverá permitir
no futuro a validação da formação dos trabalhadores diretamente a partir das
empresas formadoras, sem ter que passar pelo cunho do Estado, através de
uma Universidade ou de outra Instituição de Formação Superior. Ilustram
também (2003, p. 43) com exemplos de empresas como Bosch, Ford e
Siemens na Alemanha, na Suíça ou nos Estados Unidos da América, como se
passa a formação profissional da esfera pública ou empresarial para a esfera da
família ou da pessoa: quem se quer atualizar, fá-lo-á em casa, através de ligação
a Internet e / ou comprando pacotes de formação43.
Estabelecer a relação entre a cidadania e a sociedade cognitiva ou a sociedade
da informação, dentro do contexto do mercado livre – e como veremos
adiante, relacionar a Educação para a cidadania com aulas em Tecnologia de
Informação e Comunicação (TIC) – , ou como o define Sarmento (2000):
“A ressemantização da educação para a cidadania torna possível o que, de
outro modo, se tornaria incompreensível: a conciliação de uma retórica
cívica com uma agenda educativa dependente de uma lógica contábil ou de
mercado, construída em todo o mundo (com especial ênfase nos países
anglo-saxónicos) em torno de uma orientação política neoliberal”,
permite centrar esta mesma Educação para a cidadania em questões técnicas
que convêm aos grandes grupos económicos.
O problema dos meus alunos cabo-verdianos torna-se assim, de facto, um
pormenor sem importância para o Grande Irmão cidadão.
58 Pascal Paulus
O silenciamento ensurdecedor das crianças
Aliás, às vezes parece que toda a criança é pormenor sem grande importância,
apesar da citada retórica cívica. A política educativa europeia evidencia-se nas
orientações dadas para a área não curricular de “Formação Cívica”, ou antes
pela ausência delas. Percebe-se que a forma extremamente vaga como aparece
a Educação para a Cidadania e a Formação Cívica em todas os textos do
legislador, revele uma tensão. É a tensão existente entre uma orientação
neoliberal de uma economia de mercado muito agressiva, conduzida a partir
das organizações supranacionais e a apresentação, em termos formais, de uma
organização de estado democrático, com delegação de poder através do voto,
que deveria evoluir de Estado Nacional para Estado Europeu. E esta tensão
toma contornos de um mal-estar cada vez menos disfarçado. O Currículo
Nacional publicado pelo DEB (2001) refere nas competências gerais um
conjunto de possibilidades de interpretação do termo Formação Cívica,
globalmente no sentido que chamarei de humanista. Mas não o desenvolve. O
programa do primeiro ciclo publicado pelo DGEBS (1990), anterior à
explicitação da “Educação pela Cidadania”, é, por isso mesmo, ainda menos
claro.
A lacuna que surge assim e que se entende, face a um pedido que cobra, com
as mesmas palavras, conceitos antagónicos, é rapidamente preenchida pelo
conjunto de cadernos e de fichas de trabalho, propostos aos professores, por
várias editoras, às vezes sem explicitar quem são os autores, o que os confunde
com uma qualquer orientação pública. Nunca é explicitado como é que o
aluno poderá ser agente nesta formação cívica, muito menos na transversal
“Educação para a Cidadania”. Na melhor das hipóteses, enumeram-se os
órgãos de gestão dos agrupamentos, indicando qual é neles o papel –
extremamente limitado – dos representantes dos alunos. Lê-se rapidamente
que as crianças do 1º ciclo nem têm acesso direto à organização da sua
aprendizagem. Ou, como salienta Manuel Sarmento (2000):
“Com efeito, o contrabando semântico realizado em torno da educação para
a cidadania exprime-se, desde logo, na atribuição a esta expressão do
significado conservador de "socialização" das crianças e adolescentes nas
normas e valores dominantes, potencialmente postos em causa pela anomia
social ou a "crise de valores". Nesta aceção "educação para a cidadania" é
sinónimo de "disciplinação". Numa outra aceção, ideológica e politicamente
também conservadora, mas mais mitigada, "educação para a cidadania"
significa a (intencionalidade da) inserção social de crianças e adolescentes
pela aquisição da cultura (dos saberes e das normas sociais) dominante.”
Mas alguém quis a escola democrática? 59
Com outras palavras, 350 anos mais tarde, estamos de volta às aulas de bom
comportamento e de educação para a obediência das escolas de Démia e La
Salle. Vale a pena referir uma das páginas eletrónicas do Sítio do Instituto da
Defesa Nacional (1999), onde lemos:
“[...] A Cidadania engloba três áreas de intervenção escolar:
Curricular - Projeto educativo, programa interdisciplinar, objetivos,
competências e conteúdos, metodologias de ensino-aprendizagem,
avaliação e apoios educativos;
Organizativa - Regulamento da escola, cooperação nos órgãos de
gestão, na organização de espaços e serviços, em atividades de
enriquecimento, na orientação vocacional;
Comunitária - Participação de Pais e Comunidade, parcerias com
instituições e associações locais e/ou nacionais e/internacionais,
intercâmbio com escolas.”
Refere que no, Ensino Básico - 1º Ciclo, a gestão e planificação é feita no
conselho de Docentes e que a operacionalização é feita pelo professor titular
da turma. As crianças não existem aqui...
Aprendemos também que:
“O GC agregou a si membros do Gabinete de Assuntos Externos e Relações
Internacionais, do Instituto da Inovação Educacional, da Comissão Nacional
da UNESCO, do Secretariado Interculturas; da Marinha, Exército e Força
Aérea bem como Guarda Nacional Republicana e Polícia de Segurança
Pública; e ainda Professores do Ensino Secundário e Superior, e organizações
de segurança e defesa.” (realçado é meu) Trata-se do grupo encarregado
para: “promover a educação cívica das crianças e jovens, numa perspetiva
transcurricular, “considerando que a adesão aos valores e princípios
constantes da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da
Constituição da República Portuguesa implica o reconhecimento e o
exercício de direitos e deveres que dão expressão ao conceito de cidadania
ativa e responsável”.”
Refere o Despacho conjunto n.º 267/99, de 11 de Março de 1999 do
ministério da Educação e do Ministério da Defesa Nacional, que será
completado, uma vez que o Grupo de Contacto tornou-se Comissão de
Cidadania tendo entre outras tarefas que tratar da:
“Formação Contínua de Professores Prevê-se o estabelecimento de um
currículo de Cidadania destinado aos professores dos Ensinos Básico e
Secundário; está projetada a realização de Jornadas Cidadania e Tecnologias
60 Pascal Paulus
da Informação e Comunicação (TIC), de 15 horas, iniciando-se uma nova fase
de formação com recurso às novas tecnologias e tendo em vista a
implementação de projetos on-line (antevê-se a conjugação da Educação
para a Cidadania com a utilização das Novas Tecnologias da Informação e
Comunicação).”
Estas jornadas enquadram-se perfeitamente no pedido feito pelas associações
empresariais à Comunidade Europeia. É de fácil perceção que o papel das
crianças é visto como mero recetor. Recetor em múltiplas situações, que estes
dois exemplos entre imensos, publicados em variadíssimos Sítios da Internet44,
ilustram:
Dia dos namorados; Objetivos específicos: Promover a amizade;
Conteúdos a que se subordina: Educação cívica; Destinatários: Alunos 2º
ano Recursos: Cartolinas, papel A4 cavalinho, lápis de cor, marcadores…
Proponente(s): Professoras 2º ano.
Atividade: Torneio de Futebol; Destinatários: Alunos da EB2/3; Docentes
Responsáveis: Professores de Educação Cívica; Recursos
Humanos/Materiais Professores, Alunos, Bolas.
A programação passa ao lado das crianças. Nem o Manifesto para o Futuro da
Educação em Portugal da Confap (2005) nos traz garantias que as crianças se
possam tornar os protagonistas. Trabalha se “para”, não “com”: à partida, as
crianças passam a ser “protegidas”:
“Subordinação das políticas de educação e dos procedimentos
administrativos decorrentes, ao superior interesse da criança, com a criação
do Provedor da Criança com competências de âmbito alargado”45
E depois, tudo sob o título esclarecedor Instrução e Educação (sublinhado é
meu):
“7- Garantia de que a Formação Cívica passe a funcionar como a área
disciplinar não curricular, em que as questões da educação para a cidadania
são abordadas, com carácter obrigatório, nomeadamente as referentes à
educação para a participação cívica, para a prevenção rodoviária, para a
educação sexual, segurança e promoção da saúde;”
Acaba, dando a mão aos professores das crianças rotuladas como mais difíceis
(?):
“Reconhecimento da CONFAP como Entidade Certificadora da Formação
Parental, permitindo-lhe concorrer a programas europeus integrados de
formação, para que implemente através das suas estruturas concelhias e
Mas alguém quis a escola democrática? 61
regionais, garantindo a qualificação dos pais como educadores e
intervenientes cívicos.”
Educação “para” ou “na” cidadania e consciencialização
A escola, onde, não raras vezes, o poder executivo e a presidência do Conselho
Pedagógico se concentram numa só pessoa, onde há situações de Conselhos
de Docentes que trabalham caoticamente, libertando pouco tempo para
assuntos pedagógicos e trocas de experiências, onde demasiadas vezes um
Conselho colegial como é o pedagógico ou o de docentes se organiza em salas
que só permitam colocar as cadeiras em filas viradas para a (mesa do)
presidente, não terá grandes dificuldades em aceitar a Instrução e a Educação
proposta pela Confap.
Terá talvez mais dificuldades em perceber como se pode gerir, em cooperação
e democraticamente, seja entre adultos, seja entre crianças e adultos.
E mesmo quando se evolui para um tipo de gestão em cooperação, ainda
existem grandes variações no “conteúdo” gerido – desde uma consciência
assistencialista, que continua no espírito de trabalhar para e não com as pessoas,
até uma gestão participada de projetos de intervenção, passando pela gestão
em conjunto do currículo.
Podemos exemplificar com um plano de atividades de uma escola secundária46
onde destacamos as atividades e os objetivos dos intervenientes do Clube de
Educação para a cidadania, o potencial perigo de uma intervenção paternalista:
Atividade: Peditório Nacional da AMI; Objetivo: Desenvolver o espírito
comunitário e solidário.
Atividade: Campanha de recolha de roupas e brinquedos; Objetivo:
Desenvolver o espírito comunitário e solidário; manter relações com
instituições de carácter cívico e de solidariedade social; desenvolver
comportamentos de cooperação e respeito pelos outros.
Atividade: Estudo da possibilidade da criação de duas bolsas de mérito para
alunos; Objetivo: Desenvolver o espírito comunitário e solidário.
Tenho alguma dificuldade em aceitar que recolher restos, fundos, coisas que se
deixou de usar e estimular a concorrência através de prémios se podem
considerar atividades de desenvolvimento humano, mesmo numa sociedade
onde os bancos se publicitam como o paradigma de Instituição de
Solidariedade Social. Receio que se queira aproveitar as desigualdades
instaladas, para “comprar” consciência, o que é diferente de promover uma
consciencialização. João Paraskeva (2004, p. 26) lembra que
62 Pascal Paulus
“Em primeiro lugar, será de bom-tom não nos esquecermos das razões pela
qual numa determinada sociedade se vão perpetuando indivíduos com
menos oportunidades. Em segundo lugar, os que ‘têm menos
oportunidades’ são cidadãs e cidadãos com Direitos e não se têm de sujeitar
ao ‘sabor’ da solidariedade dos que não têm menos oportunidades” Quando
não se distingue a diferença entre, por um lado, trabalhar para um Estado
solidário e, por outro lado, a solidariedade dos ricos com os pobres, torna-se
difícil interiorizar o conceito de equidade, subjacente a qualquer Estado que
queira promover um desenvolvimento sustentável fazendo da redistribuição
da riqueza um ponto de honra.
Outras atividades que se enquadram igualmente nas vagas indicações acerca da
formação cívica, provenientes do Ministério, ficam por conta de outros.
Enumeram assim:
Atividade: Declaração Universal dos Direitos Humanos; Objetivo:
Consciencializar para a defesa e promoção dos Direitos Humanos
Atividade: X Olimpíadas do Ambiente; Objetivo: Promover o interesse pela
temática ambiental; aprofundar os conhecimentos sobre a situação
ambiental portuguesa; desenvolver valores de proteção do meio ambiente
Atividade: Atelier "Vamos Reciclar papel"; Objetivo: Sensibilizar para a
importância da reciclagem de papel na sociedade de consuma atual.
Atividade: Água "Poupar para não faltar" - Campanha de sensibilização para
a redução do consumo de água; Objetivo: Promover a redução do consumo
de água
Atividade: Dia do Consumidor - Palestra interativa sobre Consumo
Sustentável; Objetivo: Refletir/encontrar formas sustentáveis de consumo.
É óbvio que não se consegue tirar ilações a partir destas propostas, sobre o
grau de intervenção que estas atividades geram entre os alunos. Pelo benefício
da dúvida, podemos esperar que, atividades deste tipo numa escola pública,
levam a alguma consciencialização, pelo facto de – em princípio – existir uma
maior diversidade de públicos, do que numa escola resultante de uma privativa
liberdade de escolha de ensino – reservado a quem tem posses ou, não tendo, a
quem tem comportamento considerado bom – que segrega e torna o outro um
objeto de falsa solidariedade.
A partilha pública, aliás, é estimulada de várias formas, como pelo Ministério
de Educação (2000) ao promover o Fórum Cívico: “O Fórum [...], pode
funcionar como um poderoso recurso educativo capaz de ativar inter-
activamente estes domínios da transdisciplinaridade. Aberto a profissionais de
educação e a todos os intervenientes na escola, o Fórum virtual permite o
Mas alguém quis a escola democrática? 63
debate aberto, franco e refletido.” Quero pressupor que se abra também aos
alunos. Neste fórum encontramos entre outras propostas a sugestão da
organização de uma Assembleia de Turma, no formato de tertúlia escolarizada.
São atividades para:
“Debater a importância do diálogo democrático na tomada de decisões
conjunta sobre assuntos da turma e/ou na resolução de situações
problemáticas.
Constituir a turma em assembleia de forma organizacional para o debate
de assuntos de interesse do grupo, [...].
Eleger uma mesa de assembleia (rotativa) e atribuir-lhes as respetivas
competências:
Elaborar a ordem dos temas a tratar, definir conjuntamente as regras de
funcionamento da assembleia de turma, conduzir a discussão na
assembleia, escrever a ata com resumo do que se discutiu e concluiu”.
Explicita que se visa promover a tolerância, o respeito pelo outro, a
solidariedade, a defesa da paz, dos direitos humanos, o espírito democrático, a
democracia participativa, entre outros, e que permite o processo de
interiorização da ideia de representatividade.
Os temas que podem ser tratados, são os que vêm referidos em todos os
manuais para a condução das atividades na área curricular não disciplinar de
Formação Cívica: Educação Ambiental, Educação sexual, Prevenção rodoviária,
Solidariedade, Educação para o Consumidor”
Acredito que, num contexto em que os alunos, por norma, não são convidados
a falarem, estas tertúlias sejam uma mais-valia. Duvido que eduquem para a
consciencialização, já que raramente apelam a uma intervenção ativa como
cidadão. Podem sim, gerar discussões na Internet, entre pares, como este47:
“O ensino só poderia ser totalmente imparcial se fosse ministrado por
máquinas e recebido por máquinas. E ainda tínhamos que contar com os
valores e opiniões do fulano que programasse a máquina... Não há pessoas
sem opinião, pois não? A menos que sejam completamente mentecaptas e
essas, esperemo-lo, não são professores. [...] Podemos sempre, em vez de
transmitir valores como "a tolerância, a solidariedade, a igualdade e a
democracia", informar apenas as crianças de que eles existem e continuar,
informando-os de que também existem a intolerância, o vale-tudo-
incluindo-tirar-olhos, o racismo, os totalitarismos vários e a filha-de-putice
em geral e depois dizer a miúdos de seis, sete ou doze anos que, de posse
das informações, escolham. Mas gostavas que os teus filhos andassem numa
escola assim?” A cidadania como ela é encarada pelos Alpha-mais, está
64 Pascal Paulus
salvaguardada: aqui, entre jovens, a escola é vista como um lugar onde
existem professores com ideias próprios – mas que vão ao encontro dos
“grandes valores” – que transmitem. A simples suposição que as crianças
poderiam estar dentro do processo, serem protagonistas, estarem na
cidadania, não ocorre.
É exatamente esta distinção entre “educar na cidadania” e “educar para a
cidadania” que é realçada no artigo Educar na Cidadania. Diz o autor não
identificado no Sítio Educare (2005):
“A educação será para a cidadania ou na cidadania? Não se trata de uma
subtil diferença entre a palavra na e a palavra para. [...]. Importante é o
espírito da coisa, pelo que prefiro a expressão "educar na cidadania", no hic
et nunc do drama escolar. Fazemo-nos no que fazemos. Aprendemos
cidadania, como tudo o resto, no devir que já somos no aqui e agora.”
E exemplifica:
“Há escolas onde a cidadania acontece. Numa reunião de Assembleia, um
miúdo, que fora transferido para a nova escola há menos de um mês, pediu
a palavra pela primeira vez. E disse:
"Para que é que estamos para aqui a discutir? Na outra escola, as
professoras diziam o que devíamos fazer… e pronto!"
O miúdo já tinha feito cinco anos de "educação para a cidadania", mas não
sabia que ainda estava a começar a tirar o curso de "educação na
cidadania". A "lição" seguinte foi-lhe ministrada por um colega mais antigo
na escola, quando contestou uma decisão dos professores:
"Eu não gostei nada de o professor ter feito as equipas. Ainda por cima
deu barraca, só houve zaragata e não houve futebol mesmo nenhum.".”
Esta reunião identificada como Assembleia, que me parece ocorrer no 2º ou
no 3º ciclo, vai de certa forma ao encontro de uma possível interpretação das
Orientações Curriculares para a Educação Pré-escolar publicadas pelo DEB (2002, p.
20):
“No sentido da educação para a cidadania, as orientações curriculares dão
particular importância à organização do ambiente educativo como um
contexto de vida democrática em que as crianças participam [...]. É nesta
vivência que se inscreve a área de formação pessoal e social, considerada
como área integradora de todo o processo de educação pré-escolar.”
Mas alguém quis a escola democrática? 65
Uma prática fundada na pedagogia institucional
É nesta vivência também que inscrevo, desde há muito, a minha prática com as
crianças com quem trabalho, e que exemplificarei aqui a partir dum grupo, na
Outurela, com quem trabalhei três anos consecutivos. Aposto na construção
participada de um cenário pedagógico – um espaço cultural facilitador – onde
o Conselho de cooperação48 é uma peça-chave. Aqui, procuro conciliar a
integração na sociedade existente com a crítica democrática, participativa e de
intervenção nela, a partir da análise da própria vivência, abordando de maneira
integrada muitos dos temas tão focadas na Formação Cívica e que, para mim,
não passam de assuntos de possíveis projetos de trabalho individuais ou
coletivas, no âmbito dos programas do 1º ciclo.
Mas trata-se sobretudo de continuar onde o manual pára, legitimado pelo
legado humanista da escola e sustentado pela liberdade metodológica na
abordagem do currículo e no estudo dos conteúdos do programa com as
crianças, como descrevi em vários artigos49.
Saliento aqui os aspetos da gestão participada da sala. Começo sempre por
apresentar aos alunos, o programa referente ao seu ano de trabalho, adaptando
a linguagem à sua capacidade de interpretação. Atualmente, trabalho a partir
do esboço do que será o Projeto Curricular de Turma do grupo envolvido. Em
conjunto pormenorizamos as linhas de ação deste Projeto, definindo campos
de intervenção. Contei, no artigo “Será que isto é cidadania?”, que prevemos –
caso se trate da continuação de um ano letivo para outro – tempo no fim do
ano letivo que termina, para, a partir de um balanço exaustivo, começar a
preparar as linhas de ação do ano seguinte. O balanço e a preparação incluem
sempre a análise das contas da turma e o orçamento das atividades do ano a
seguir. Normalmente, gerimos a compra do material didático e de desgaste – e
que não provém da escola (como o material MAB ou Cuisenaire, os mapas, o
material disponibilizado para a utilização do computador, etc.) – necessário
para a boa execução do projeto de turma em conjunto, havendo um controle
direto da parte dos pais. Organizo-me com as crianças, criando simples
instrumentos de registo e de análise (ver anexos 2 e 3) e com os pais,
apresentando balanços mensais (ver anexo 1) para que todos saibamos com o
que podemos contar. Implica discutir prioridades, reavaliar custos, entre alunos
e professor e pontualmente pedir adiamentos, reforços, ou justificar o dinheiro
que sobra aos pais e às mães, que continuam a ser nossos financiadores,
mesmo se recebem um subsídio camarário para compra de material escolar. Os
momentos de balanço com os pais servem também para apresentar o resultado
de projetos e de intervenções, o que torna gradualmente mais fácil a
66 Pascal Paulus
canalização de dinheiro previsto para manuais completamente supérfluos para
material bem mais necessário: boas tintas, bons pincéis, papel de vários
tamanhos e espessuras para o canto permanente da pintura, algum reforço para
a biblioteca da turma, material para produzir jornais, cadernos, exposições que
relatam o trabalho feito. Rapidamente, todos percebem que o custo do suposto
ensino gratuito se torne muito menor, se a gestão e a compra do material de
desgaste é feito em conjunto. Anos de orçamentos participativos e
cooperativos o comprovam facilmente.
Como já referi, a democratização da gestão implica a criação dum órgão de
moderação, o Conselho de cooperação. É nele que discutimos os planos de
trabalho coletivos, nos ajudamos mutuamente no ajustamento dos planos
individuais de trabalho, é nele que discutimos as dificuldades organizacionais, é
nele que elaboramos e modificamos leis, regras, rotinas, dentro do contexto
onde temos legitimidade: o espaço-tempo da turma, 25 horas por semana, 180
dias por ano letivo, de ano em ano, sempre em democracia direta, em que cada
um se representa a si próprio, dentro do coletivo. Esta interpretação da
cidadania na escola está amplamente descrita e comentada, por Sérgio Niza,
entre outros textos, nos editoriais da revista Escola Moderna.
Obrigo-me a não confundir a cidadania e a democracia, objetos de uma ou
várias lições, com a educação na cidadania e a democracia, como meio de
trabalho, fruto de um processo civilizacional, para conseguir com que as
crianças consigam intervir ativamente no meio, melhorando assim as suas
aprendizagens. Chamo a atenção pela mais recente proposta de definição dada
por Jean Oury (1999) da pedagogia institucional:
“La Pédagogie Institutionnelle est un ensemble non clos de réponses
possibles aux questions qui, même si elles ne sont pas posées, se posent
quotidiennement à quiconque prétend faire œuvre d'éducation et
d'apprentissage. Il ne s'agit pas d'une méthode... Elle se caractérise autant
par les questions qu'elle pose que par les réponses qu'elle élabore.
Comment la mettre en œuvre?
S'il suffisait d'expliquer la pédagogie institutionnelle, ça se saurait. La classe
coopérative ne se livre pas en kit et ne peut exister sans un maître, sujet et
praticien.
Ne nous voilons pas la face, ce qu'on appelle la citoyenneté, la démocratie à
l'école ne sont pas des buts mais un préalable a des apprentissages scolaires
performants. Ça passe par l'apprentissage de la loi, du groupe et de la
maîtrise de certaines institutions. Ça passe par le Désir, le désir de chacun
d'être dans la classe, de la classe. Alors, les enfants apprennent ou
Mas alguém quis a escola democrática? 67
réapprennent. Pas aussi bien, mieux. Mais pour cela, il faut des maîtres et
donc une véritable formation à cette maîtrise, continue, en groupes, avec
d'autres : une transformation personnelle et professionnelle.
Changer de métier ou changer le mener.”50
A gestão do poder no seio do grupo não é fácil. Tem avanços e recuos, implica
negociação, mas também a gestão de conflitos, que – no meu caso, neste grupo
da Outurela – eram às vezes violentos. Irene Santos (2004: 165) que foi
observadora envolvida durante seis meses, relata de forma clara como as
tensões desembocam em escolhas às vezes difíceis: “... quando o professor saía
da sala, estava em causa um conflito, cuja resolução imediata, com a saída da
figura de autoridade, era repentinamente posta nas «mãos» das crianças. [Uma]
reclamação [registada acerca disso] revela o incómodo que as crianças sentiram
nesta situação em que eram obrigados a reagir. Situação, aliás, integrada num
modo de autoridade próprio que o professor Pascal pretendeu desenvolver,
caracterizado nomeadamente pela negociação; pela possibilidade de acatar
decisões tomadas [...] Uma autoridade que não deixa de ser penosa para as
crianças, na medida em que as confronta frequentemente com os
compromissos que assumem pontual ou globalmente, e de que o professor é o
principal gestor, animador, provocador.”
Enquanto se vai construindo a teia complexa da gestão das atividades, do
espaço, do tempo, do dinheiro e dos projetos, enquanto se vai negociando
colaborações entre pares, responsabilidades e tarefas, surge também a
necessidade de intervir ativamente no meio, a partir de provocações internas
ou externas.
A publicação mensal do jornal da turma, a manutenção do Sítio da turma na
Internet, a preparação de exposições interativas com a comunidade e com os
pais e as mães, que relatei em “Os pais na escola” são atividades que permitam
esta intervenção.
Surgem projetos. “As máquinas de lavar roupa”, na altura da mudança de casa da
“barraca” para o apartamento de baixo custo no “bairro social”51, como para
tomar posse de uma nova realidade. “As mães-criança”, na altura em que
falamos sobre mais uma adolescente que engravidou e que arrisca a ser posta
fora de casa, pelo que as meninas da turma, então com 8 – 9 anos queiram
saber se os pais podem “botar fora” as crianças grávidas, procurando resposta
para as amigas em causa e saber o que existe em termos de linhas de apoio. E
sobretudo, aprender como evitar chegar a tal ponto. O estudo sobre o racismo,
68 Pascal Paulus
procurando saber como as crianças, colegas da escola sentem o racismo na
pele e porque é que isto acontece.
Mas também surgem projetos que intervêm diretamente com o meio: o
trabalho de fundo para conseguir a melhoria dos passeios e das passagens de
peões, o trabalho acerca de Lisboa, que serve também para consultar com
mães analfabetas a planta do metro e dos transportes públicos, um grande
projeto de solidariedade com as mulheres do Afeganistão, a partir da
correspondência com um grupo de mulheres que lutam contra os Taliban, que
lançou a turma durante três meses numa retrospetiva que relacionou a sua
própria ação e intervenção com a carta dos Direitos das Crianças, descrito em
“Uma questão de opção ... curricular” Tão ou mais importante do que a publicação
de um caderno especial dedicado às mulheres opositoras aos Taliban, foi o
trabalho de consciencialização das próprias crianças, que se tornaram
sabedoras confiantes da sua própria capacidade útil e possível de intervir
ativamente. Deixaram de ser as crianças que precisam de apoios, de
intervenções, de especialistas em bairros complicados, para se tornar políticos,
intervindo na polis.
O último grande projeto do grupo durou vários meses e consistiu em trabalhar
em conjunto e com os correspondentes para tornar possível um encontro de
trabalho de uma semana, servindo de base para um conjunto de projetos
relacionados, abordando conteúdos do programa de 4º ano de escolaridade. A
dificuldade residia no facto de os correspondentes serem Belgas e viverem em
Leuven, na Bélgica. Implicou a gestão de um projeto bem ambicioso,
orçamentado em aproximadamente 8000 euros. Projeto que consolidou o
saber-fazer intervencional das crianças envolvidas; geriram todos os aspetos
burocráticos e fizeram as intervenções necessárias à sua realização.
Nos três anos que trabalhámos juntos, houve intervenções conduzidas com
sucesso junto à Câmara, ao bairro, à embaixada da Suíça, aos sindicatos de
professores, a deputados, dirigentes partidários e candidatos presidenciais. Em
mais do que uma ocasião, as crianças aprenderam a perceber a diferença entre
a retórica oca e as reais possibilidades de intervenção. Intervieram para e por si
próprio e ajudaram outros para também intervir para si próprios. Recusaram
categoricamente, numa reunião de Conselho de “pedir esmola”, mesmo que
seja para oferecer a outros, mas aceitaram partilhar o lucro do seu esforço de
trabalho com outros.
Mas alguém quis a escola democrática? 69
Uma questão de opção ...
Tracei aqui, em poucas palavras, o caminho percorrido pelas crianças com
quem trabalho, ciente que o poder instituído na turma, no seio do Conselho de
Cooperação, incentivando a gestão participada, como atrás ilustrei, o foi,
apenas porque assim o quis como professor e que o legislador me dá o direito
à escolha metodológica.
Parece-me claro que a escolha pelo tipo de interpretação dada à Formação
Cívica também depende do legislador, unicamente no sentido de que é ele que
decide se temos escolha ou não. É a ténue diferença entre o Grande Irmão
cidadão que fica pelas tipologias de Alpha até Epsilão, e o Grande Irmão que,
uma vez terminado o Dicionário da Novilíngua, formula um sentido único
para todos os conceitos também para o de Formação Cívica, não aceitando a
partir daí alternativas, simplesmente porque sentenciou que não existem
palavras sequer para as conceptualizar. Apesar de todos os defeitos que
podemos apontar à democracia formal que este Grande Irmão do primeiro
tipo nos propõe, é nela ainda possível ganhar espaço para construir alternativas
viáveis de intervenção na cidadania, com as pessoas com quem trabalhamos,
crianças ou adultos. Mas também não tenho dúvidas de que obrigá-lo a manter
a possibilidade de escolha, depende da capacidade mobilizadora de quem está
criticamente atento aos significados implícitos.
Faço este balanço a partir do que me foi dado a ver em termos de orientações,
publicações e realizações que, na sua maioria, interpretam a cidadania e a
subsequente instalação da “Educação para cidadania” e da “formação cívica”
no sentido de calar as crianças. Em todo o lado impera o modelo de formação
descrito por Paulo Freire como modelo bancário, com um conteúdo
moralizador de educação para o bom comportamento. Esta corrente principal
pode levar o Grande Irmão a deslizar em direção ao controlo do poder, no
sentido imaginado pelo seu criador. Questiono, com Ariana Cosme e Rui
Trindade (2000), quando falam do aparecimento da área curricular não
disciplinar e constatam que:
“a decisão atual pode corresponder, tanto a um exercício de legitimação
pública da política educativa do M.E. como à cedência a "lobbies"
organizados que visam conquistar um espaço de influência no âmbito das
escolas [...]”
Como democrata laico e ateu defendo o direito, para quem o quiser, à
instalação de escolas religiosas, sem condições. Como democrata autorizo-me
ter dúvidas acerca da universalidade dos progressos da cultura e da ciência à
70 Pascal Paulus
luz da mensagem cristã católica. A ciência matemática parece-me ter ganho
imenso com a matemática Hindu, com o trabalho de Al-Kwoharizmi, que
levou séculos a ser aceite pelo poder no seio da igreja católica, que nem deu
grande ouvido a divulgação a este respeito, feita pelo papa Silvestre II em 998.
Também tenho dúvidas que a Inquisição tenha sido garante pelo progresso da
ciência, quando queimou Giordano Bruno. Como democrata, considero
imprescindível estudar a história nacional, necessário para perceber melhor a
minha condição de cidadão. O contributo das forças de segurança pode ser
útil. Os meus alunos da Outurela mantiveram uma troca de correspondência e
de informação com o comissário da PSP local, acerca da história das bandeiras,
acerca de aspetos de segurança, e convidaram-no para a peça de teatro que
montaram a partir do texto de Daniel Pennac “O olho do Lobo”, convite que
foi aceite. Como democrata, não consigo estudar, com os meus alunos, os
descobrimentos, sem olhar para eles como Europeu, mas também como
Africano, como descendente dos povos escravizados, oprimidos pelo poder,
que controla as forças de segurança. Como democrata, desconfio criticamente,
sempre que alguém se concede um poder absoluto, maioritário ou prolongado,
seja em que nível de decisão. Os excessos do pequeno poder são-nos bem
conhecidos.
Ariana Cosme e Rui Trindade (2000) concluem:
“Os alunos das nossas escolas, do 1º Ciclo ao Ensino Superior, necessitam
indubitavelmente de viver, experimentar e refletir sobre experiências cívicas
relevantes, o que não significa, contudo, que necessitem para isso de uma
disciplina de Educação Cívica nos seus programas de estudo.”
A disciplina de Educação ou Formação Cívica não faz necessariamente mal.
Mas estou convencido que é ilusão pensar que ela forma cidadãos
intervenientes. E isto, os Alpha-mais-mais sabem-no muito bem. Na minha
perspetiva, a promoção da intervenção cívica passa pelos projetos de
intervenção, pela construção de documentação de referência a partir daí, com
crianças, desde o Jardim de Infância. Quero promover a intervenção cívica por
parte das pessoas com quem trabalho, por ter a obrigação democrática de o
fazer e por considerar ser necessário haver novas gerações capazes de
continuar a obrigar o Grande Irmão, seja ele qual for, a respeitar este direito
democrático.
Referências bibliográficas
Associação Nacional dos Professores Licenciados (2000), Educação para a
cidadania numa educação global. Consultado em 7 de Setembro de 2005
Mas alguém quis a escola democrática? 71
através de http://pwp.netcabo.pt/ netmendo/Artigo% 20ANPL%2025
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Mas alguém quis a escola democrática? 73
Anexos
Balanço ano lectivo 1999 – 2000 (em escudos)
Receitas set out nov dec jan feb mar apr maio jun total
Jornal 2100 2500 500 1500 1500 2000 10100
Vendas 4800 4800
Subsídio 62500 62500
Oferta 1000 1000
0
Total 0 0 2100 2500 63000 6300 2500 2000 0 0 78400
Despesas set out nov dec jan feb mar apr maio jun total
fotocopias 7305 3240 2800 2898 1800 3000 21043
material 3935 3729 420 8960 1730 2845 984 22603
livros 9122 12368 21490
cadernos 2200 3100 5300
vários 4800 1505 6305
0
0
Total 11240 0 16091 3220 14058 23798 4350 3984 0 0 76741
diferença Set Out Nov Dez Jan Feb Mar Apr maio
-11240 0 -13991 -720 48942 -17498 -1850 -1984 0
Anexo 1: Contabilidade do 2º ano de escolaridade como é discutida e apresentada em reuniões bi-mensais às mães e aos pais
Registo de compras e vendas. Mês de:
Dia Tínhamos Recebemos Gastámos Temos
Totais
Anexo 2: Modelo do registo de compras e vendas
Mas alguém quis a escola democrática? 75
Leituras acerca da organização do trabalho no primeiro ciclo.
Ofício ou profissão?
A Ministra de Educação despachou, em Agosto de 2005, que os Conselhos
Executivos das escolas têm que incluir, no horário da escola, as horas da
componente não letiva ao nível de estabelecimento de cada um dos
professores. Que é já, entretanto, do conhecimento geral.
Desde 1990 que está definido o horário de estabelecimento, consagrado no
artigo 82º do estatuto da carreira docente (ECD52), mas só esporadicamente
estava anotado em horário, quantas horas representavam das ditas não letivas,
e o que os professores faziam neste tempo. Existem tempos mais visíveis,
como aqueles definidos pela alínea d) do ponto 3 do referido artigo, que fala
da formação contínua, dos congressos, dos seminários, etc. Este trabalho já
fazia parte da profissão, como é normal numa profissão intelectual, e continua
a estar contemplado no horário de estabelecimento, mas tem que estar
anotado.
Mas havia outras atividades da profissão que eram menos visíveis: como é que
um grupo de professores de uma escola desenvolve a integração dos alunos na
comunidade educativa? (alínea a)) Como organiza o recreio e as pausas de
meio-dia para quem almoça na escola? Também era menos visível como
organiza os contactos com a comunidade (alínea b)), com as famílias, a não ser
pela calendarização das reuniões de grupo e do atendimento individual, que é
só a parte mais evidente deste trabalho. Não era tão visível como se
desenvolve o trabalho pedagógico que sustenta o projeto educativo da escola, a
partir de reuniões e grupos de trabalho. Nem era sempre claro que tipo de
estudos ou de investigação eles faziam, que intervenção eles preparavam
(alínea f)). A substituição de docentes ausentes não é grande problema no 1º
ciclo em monodocência, já que normalmente as crianças da turma sem
professor são distribuídas pelas outras.
Todas estas vertentes fazem parte do trabalho de estabelecimento, definido
pelo artigo 82º e a ministra achou por bem lembrar que existem, talvez porque
o trabalho era pouco visível.
Talvez, nalguns casos, o fosse, porque o próprio projeto educativo não era
muito explícito ou muito claro: há professores que continuam a confundi-lo
76 Pascal Paulus
com um projeto temático qualquer que se desenvolve numa turma ou num
conjunto de turmas durante um ano letivo.
Talvez, noutros casos, porque os professores, vindo de longe, não sabiam
muito bem que trabalho havia para fazer, e que ninguém estava disponível para
os integrar.
Talvez, ainda, porque nada do que se fazia era explicitado.
Talvez, e temos que o admitir, porque nalguns casos, o trabalho não existia.
Mas também há aqueles onde era bem claro, este trabalho a nível do
estabelecimento, porque existia um projecto educativo da escola, porque a
equipa que trabalhava na escola sabia muito bem no que cada um estava a
trabalhar. Não estava por ventura formalmente explicitado, mas aí a emenda é
fácil.
Recordo-me da escola do 1º ciclo, onde trabalhei durante 5 anos e onde
desenvolvemos em conjunto quase dois períodos de Projeto Educativo.
Quase, porque no 6º ano de trabalho, a escola foi agrupada, obrigatoriamente,
à outra. Não foi dramático, mas implicou reorganizações que impediram
completar o Projeto Educativo como estava inicialmente previsto. Porém,
nestes 5 anos os professores constituíram, depois de terem construído o
primeiro projeto educativo, a partir de discussões e observações, de e com o
meio em que a escola estava inserida, um conjunto de grupos de trabalho.
Menciono os trabalhos de que me lembro, por ter participado neles:
estudar em pormenor o programa e depois o Currículo Nacional, para o
traduzir para os alunos e permitir-lhes tomar conhecimento do que lhes é
exigido em termos de aprendizagens;
elaborar listas de verificação, permitindo a autoavaliação aos alunos;
organizar a animação do recreio, recorrendo a mediadores;
conceber, experimentar e retificar ficheiros com propostas de trabalho
para que crianças pudessem utilizar autonomamente o canto de ciências
da sala de aula;
organizar pelo menos trimestralmente reuniões de pais por turma, em que
se incluía a apresentação do trabalho realizado pelos alunos;
articular com outros intervenientes no bairro a ocupação dos tempos
livres das crianças que tinham que recorrer a este serviço de apoio;
aplicar – mesmo quando não obrigatório – e estudar os resultados das
provas de aferição, para poder corrigir estratégias propostas no Projeto
Educativo;
Mas alguém quis a escola democrática? 77
debater a partir daí a organização da formação contínua centrada sobre a
escola, para a qual recorreram durante 4 anos ao Centro de Formação à
qual a escola está ligada;
Os professores, na maioria jovens, em início de carreira, e portanto,
contratados, junto com uns poucos professores mais velhos, do quadro,
participavam em muitas ocasiões nas reuniões pedagógicas (alínea c) do ECD)
já envolvidos neste processo, criando-lhes a vontade de construir instrumentos
de trabalho que contribuíssem para melhorar a intervenção junto dos seus
alunos. Tenho a certeza que o tempo não era contabilizado como o Ministério
agora obriga, mas também sei que não teria sido difícil fazê-lo. Não tenho
disso testemunho, porque um corpo docente muito volátil e que assim
desapareceu, impediu este exercício de estilo. A promessa de maior fixação do
corpo docente a partir do próximo ano poderá talvez ajudar a recuperar tempo
perdido. Estou curioso, já que, em princípio voltarei para a mesma escola no
próximo ano letivo.
O exemplo que acabo de descrever é, infelizmente, neste momento
contraditado por práticas, no meu ver, duvidosas. Talvez tenha sido uma ideia
infeliz, conjugar a exigência de maior rigor na explicitação do horário de
estabelecimento e dos professores, com a concretização de duas promessas
eleitorais um tanto demagógicas: abrir as escolas até as 17.30 e ministrar aulas
de inglês aos alunos dos 3º e 4º anos. A urgência para esta concretização,
transformaram estas promessas em dois objetivos que parecem obrigar à sua
implementação a todo o custo. Para o inglês, o custo é claro: abriu-se, para este
tempo não-curricular, a porta da escola pública a um sem número de
instituições privadas, que vendem os seus produtos, parte pago por dinheiros
públicos. Já existem relatos da obrigação da compra de um manual (não
curricular?) de 25 Euros. Para a generalizada abertura das escolas até as 17.30 o
custo é menos claro. O tempo não-curricular que não o inglês, que era
enquadrado por estruturas externas à escola, muitas vezes por organismos
públicas ou semipúblicos, está a desaparecer53. Um empobrecimento do leque
de atividades proporcionadas, talvez. Mas o maior custo, ainda que
provavelmente não intencional, é sem dúvida o facto que a profissão
intelectual de professor de 1º ciclo se está a transformar rapidamente, em
muitos agrupamentos, num ofício meramente técnico. Conhecemos já
múltiplos exemplos em que os professores de 1º ciclo são obrigados pelos
respetivos Conselhos Executivos a trocar o seu tempo de estabelecimento
como previsto no ECD, por um tipo de função de auxiliar de tempos livres.
Esta obrigação surge, muitas vezes, sem tomar em conta o Projeto Educativo
78 Pascal Paulus
– ou caso este não exista, a realidade contextual da escola – e, nalguns casos
sem sequer ouvir as pessoas envolvidas. Numa frenética vontade de responder
à sua própria interpretação do despacho ministerial, estes Conselhos
Executivos provocaram problemas de vária ordem.
Houve situações lamentáveis, em que redes de complementaridade, tecidas ao
longo de anos, nalguns casos entre associações de pais, escolas e / ou
organismos de Atividades de Tempos Livres, ficaram desfeitas sem mais, de
um dia para outro. Houve trabalho, resultado da concretização de objetivos,
contemplados em Projeto Educativo, que ficou sem efeito, de 31 de Agosto
para 1 de Setembro. Existem agrupamentos que deslocam professores de 1º
ciclo da escola onde trabalham para outra escola do agrupamento, para ocupar
as crianças, argumentando que na sua própria escola a associação de pais
organiza o prolongamento não curricular. A flexibilização neoliberal no seu
melhor. Parece que estes Conselhos Executivos, na ânsia de controlar, só
conseguem imaginar este mesmo controlo do trabalho do professor fora do
trabalho letivo, quando ele estiver ocupado a ocupar crianças.
Infelizmente, em muitos estabelecimentos, o trabalho previsto no ponto 3 do
artigo 82º do ECD desapareceu, porque todos os professores foram desviados
para a ocupação das crianças. Esperemos que o tempo reponha ordem na
situação e que se consiga travar o despotismo anárquico que reina nalguns dos
agrupamentos de escolas. Esperemos que haja aqui também um olhar atento
dos decisores que, talvez bem-intencionados, despoletaram repentinamente,
em determinados casos, práticas duvidosas e insustentáveis.
Hipóteses de trabalho para um maior sucesso educativo.
Esperemos. Lembramos também que há um trabalho mais necessário para ser
feito pelos docentes que conduzem um projeto educativo de uma escola.
Acontece, por exemplo, que, no meio de todo este remoinho, poderão bem
passar desapercebidos entre os professores do 1º ciclo, dois documentos, que
com certeza servem de base para muito estudo e reflexão no interior dos
estabelecimentos públicos de educação. Trata-se dos resultados da avaliação de
competências de alunos de 15 anos, publicado pela OCDE, com o nome de
PISA 2003 e do livro Números Chave da Educação na Europa 2005, publicado pela
Eurydice. Os resultados do PISA 2003 referem-se a este ano, enquanto os
dados da Eurydice se referem ao ano letivo 2003-2004.
Mas alguém quis a escola democrática? 79
É de todo o interesse cruzar dados entre estes dois documentos, para tentar
perceber como se poderá trabalhar para uma escola pública de primeiro ciclo,
que promova mais sucesso entre os seus alunos.
Proponho, para exemplificar, uma abordagem em que olhamos uma pequena
escolha de países54 europeus, que participaram na avaliação PISA, e dos quais
os dados, fornecidos pelas suas respetivas estruturas ligadas ao Ministério de
Educação (no caso de Portugal o então GIASE), foram integrados nos
Números Chave.
Na primeira amostra que escolhi (tabela 1), estão contemplados três países que
obtêm, no PISA, resultados entre o primeiro quarto dos 40 países avaliados.
São a Finlândia, os Países Baixos e a Bélgica (neerlandesa quando disponível
por região) que têm em comum a monodocência para pelo menos 6 anos de
escolaridade. A Bélgica tem ainda a particularidade de ser um dos três países da
Europa (e o único contemplado no PISA) em que a formação inicial de
professores que lecionam até ao 9º ano de escolaridade não é universitária nem
do tipo universitário. Isto é, à saída os professores não obtém licenciatura.
Segue a Dinamarca que já teve o sistema de monodocência e que mudou para
um sistema de pluridocência, onde os professores têm um dos melhores
ordenados da Europa, e onde se investe consideravelmente mais per capita do
que em Portugal no ensino dos alunos de 6 até 15 anos. A Dinamarca está
entre os países no terceiro quarto da lista
Os últimos dois países são Itália e Portugal, ambos no último quarto do grupo
de 40, a Itália um pouco à frente de Portugal.
Os números na tabela 1, à seguir ao título “contextos”, retiradas do
documento da Eurydice permitem tecer algumas primeiras hipóteses:
Países Baixos, Finlândia e Bélgica, que têm em comum uma longa mono-
docência55, vêm à cabeça. Entre o grupo estudado, em dois destes países os
alunos têm o menor número de horas de aula por ano. A Itália, com mais
horas de aula por ano do que os Países Baixos, e a Dinamarca com menos do
que a Finlândia mas mais do que a Bélgica, têm em comum terem assumido,
desde o início da escolaridade, um sistema de pluridocência. A diferença entre
os dois tem basicamente a ver com o salário dos professores: são mal pagos na
Itália, bem pagos na Dinamarca, tanto comparativamente entre eles, como em
função do estandarte de poder de compra no próprio país (PPA – Paridade de
Poder de Aquisição).
Uma tendência geral, à qual só a Dinamarca foge, é que existe uma relação
inversamente proporcional entre o número de horas de aula dos alunos e o
resultado obtido no PISA. Juntamos a este dado que a Bélgica e os Países
80 Pascal Paulus
Baixos declaram o menor número de horas contratuais dos professores. Em
contrapartida, os Países Baixos declaram o valor mais alto, embora sem definir
de que tipo de trabalho se trata, por não indicar qual é o tempo obrigatório na
escola. Com esta exceção, pode ler-se que maior número de dias de trabalho
dos professores não influencia positivamente os resultados PISA. A relação
parece antes inversa.
Neste contexto é interessante referir que os dados fornecidos pelo GIASE em
2003 à Eurydice considera o horário de estabelecimento do professor de 35
horas, das quais 25 letivas no 1º ciclo. Isto é, parece ter antecipado alguns
Conselhos Executivos, que fazem desaparecer o tempo de trabalho individual.
Olhando para as despesas anunciadas em USD per capita para os alunos entre 6
e 15 anos e a organização da docência, é claro que mais despesa gera melhor
resultados para a monodocência, mas que a pluridocência custa mais cara e dá
piores resultados.
É difícil relacionar o salário do professor com os resultados obtidos. Não é por
ser melhor pago que os resultados são melhores. Os professores finlandeses
ganham relativamente pouco, os dinamarqueses relativamente muito. Belgas e
holandeses ganham bem, portugueses e italianos ganham mal, quando
comparamos os valores efetivos entre os vários países, mas quando
comparamos em função do PPA, os portugueses aparecem em primeiro lugar.
Pode aqui haver uma distorção, havendo um valor de PPA artificialmente
baixo, devido ao bem conhecido mercado de economia paralela.
Assim, uma primeira leitura parece dar como tendências:
Pluridocência é pior do que monodocência;
mais investimento gera melhores resultados, salvo no caso da
pluridocência;
menos tempo de aula parece beneficiar os alunos e melhorar os resultados
PISA, quando em monodocência;
trabalhar mais tempo na escola não tem relação significativa com
melhores resultados.
Para poder formular algumas hipóteses acerca de o que poderá influenciar
melhores competências na literacia em geral e na literacia matemática e em
ciências, procurei juntar alguns dados, provenientes de um estudo incluído no
documento da Eurydice (PIRLS 2001) baseado em inquéritos a amostras
alargadas feitas a professores que trabalham num 4º ano de escolaridade, num
conjunto de países da Europa. Primeiro fiz uma amostra pequena de países,
que juntei na tabela 2. Além dos Países Baixos (primeiro quarto) e da Itália
Mas alguém quis a escola democrática? 81
(último quarto) únicos participantes presentes na tabela 1 que participaram
neste estudo, juntei dois países do segundo quarto (a França56 e a república
Checa, por ser um antigo país de leste), e 1 país do terceiro quarto, a
Alemanha, que assume a pluridocência a partir da 4ª classe em quase metade
do seu território enquanto a mantém até o 6º ano na outra metade do país. É
de referir que enquanto os Países Baixos estão destacadamente a frente neste
conjunto, a Itália está destacadamente atrás.
Escolhi entre as variáveis recolhidas pelo PIRLS as que têm a ver com a
organização da docência e um conjunto de perguntas que revelam algo sobre
práticas de ensino, sabendo que em todos estes países o ensino frontal (o
docente está em frente dos alunos, sentados em filas), mesmo em
monodocência, é largamente maioritário.
Como se pode deduzir da tabela, os Países Baixos é onde há menos trabalho
de casa (a pergunta incide sobre o trabalho de casa para a disciplina língua
materna), Alemanha é onde há mais, enquanto a Itália mantém uma posição
média. A França é quem mais aposta nas idas à biblioteca, logo seguida pelos
Países Baixos, enquanto na Itália se vai menos vezes à biblioteca com os
alunos. No que se refere à utilização da literatura infantil como meio para
facilitar o processo de aprendizagem, os Países Baixos são quem a utiliza mais,
a Alemanha e a Itália quem utiliza menos.
E o manual? Enquanto os professores dos Países Baixos afirmam menos
utilizar o manual, na república Checa é onde é mais utilizado, logo seguido pela
Itália.
Poder-se-ia formular como hipótese que um país com mais probabilidade para
obter bons resultados no PISA será aquele onde menos trabalho de casa se
propõe, onde menos se utiliza o manual e onde mais se recorre à ida a
biblioteca e à literatura infantil. Esta hipótese continua coerente com a leitura
de que a monodocência facilita a aprendizagem: contrabalança na França e na
República Checa a utilização mais frequente do manual, enquanto a
pluridocência reforça o que parece ser negativo para a obtenção de bons
resultados para os alunos Alemães e Italianos.
Para procurar se de facto esta hipótese tem algum fundamento, para alguém
que queira fazer um estudo académico neste sentido, ofereço ainda uma
terceira “colheita”57.
Esta colheita aparece na tabela 3, e procura ilustrar como é que estas variáveis
se relacionam em todos os países europeus contemplados no PIRLS que
também o são no PISA. Trata-se novamente da organização da docência e de
82 Pascal Paulus
duas variáveis que chamei de indicadores de prática: o trabalho de casa e a
utilização do manual.
Para construir a tabela 4, relacionei os países entre eles para estas três variáveis,
procurando se se delineava alguma tendência. Sendo 12 os países, a relação
também vai de 1 até 12, aparecendo assim uma classificação de três grupos: 1-4
(muito), 5-8 (média), 9-12 (pouco).
Fazendo uma leitura desta tabela continua a aparecer como melhor hipótese de
êxito nas provas PISA o país onde se dá pouco trabalho de casa, onde se
utiliza pouco o manual e onde a monodocência está bem implantada (Países
Baixos continua a ser o único exemplo).
Mais trabalho de casa ou mais utilização do manual é positivamente
influenciado por mais monodocência, embora o ganho diminua à medida que
uma destas variáveis aumenta. Para a Suécia o contrário também é verdade: a
pluridocência já mais fortemente instalada (18%) é positivamente compensado
por menos trabalho de casa e menos uso do manual. Eis a leitura possível para
o segundo grupo.
No terceiro grupo, que só contempla três países, é menos claro esta relação,
talvez porque se encontrem relativamente perto uns dos outros no ranking do
PISA. Em relação com os anteriores mantém se a linha decrescente nos
resultados, inversamente proporcional com a linha crescente da quantidade
trabalhos de casa, do uso do manual e da pluridocência, em que a república da
Eslováquia continua a ter um ligeiro benefício pelo facto de ter uma
pluridocência ainda abaixo dos 40%. Os últimos três países da lista têm em
dois dos casos muito trabalho de casa e muito uso do manual com percen-
tagens de pluridocência que rondam os 50%. Itália, que recorre menos ao
trabalho de casa e ao uso do manual tem aqui uma ligeira compensação para
uma pluridocência generalizada.
Um instrumento possível de trabalho.
Como referi acima, a leitura destes dois documentos permite a construção de
hipóteses de trabalho para estudar o que leva ao sucesso nas provas PISA, que
um estudioso das ciências de educação poderá desenvolver com estudos mais
pormenorizados e complementares.
Quem está na escola e quer trabalhar sobre o projeto educativo desta escola,
poderá para já trocar informação entre colegas que utilizam muito o manual,
com outros que o utilizam pouco, entre quem manda muito trabalho para casa,
quem manda pouco. Poder-se-ão comparar formas de utilizar o manual e tipos
Mas alguém quis a escola democrática? 83
de trabalho de casa se houver. E poder-se-á combinar construir testes de
avaliação formativos, não só para os estudantes mas também para os
professores, testes baseados nas perguntas do PISA ou das provas de aferição,
para assim procurar que estratégias resultam melhor com que grupos.
Poder-se-ia fazer correspondência (internacional – e porque não em inglês –
neste caso) escolar, algo que consta do programa do 1º ciclo, com um grupo de
uma determinada escola com metodologia própria nos Países Baixos ou na
Bélgica58 – países com muitos emigrantes que falam português – para também
poder aproveitar da experiência concreta desta ou daquela metodologia em
relação ao PISA.
A partir daí poder-se-ia procurar envolver mais pessoas no processo educativo,
envolvendo pais e mães, e desenvolver estratégias de complementaridade.
Já agora, poder-se-ia chamar a atenção dos representantes dos sindicatos e dos
professores das escolas superiores para terem algum cuidado quando
defendem por razões que talvez não sejam pedagógicas uma maior implan-
tação da pluridocência mais cedo na escolaridade.
De qualquer forma, este trabalho, que considero trabalho de estabelecimento,
parece me bem mais interessante, produtivo e propício para o
desenvolvimento do sistema educativo português do que a implementação de
medidas duvidosas pelo pequeno poder cego que manda fazer “igual para
todos”, chamando a isso descentralização.
Fernand Oury diria “Impossível? Não, já que existe” Existe em países onde há
escolas organizadas à volta de um projeto pedagógico em monodocência ou
em team-teaching. Sim, porque há exemplos, também aqui em Portugal.
Utópico?
Herman Portocarero, diplomata e poeta Belga, escreveu acerca da utopia:
“O não realizar da utopia é, de facto, a essência dela. Trata-se duma terra
que só pode ser espreitada, da margem oposta. Pisá-la é mortal, seduzir
para o fazer essencial. É a ninfa do pensamento, que deve recusar tornar-se
a prostituta da política.”
84 Pascal Paulus
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Mas alguém quis a escola democrática? 85
Anexos
Tabela 1 Tabela 1 NL FI BE (nl) PT IT DK Observações
Resultados Pisa – pos. média 5,25 1,6 8 29,8 27,6 18,4
PISA 2003
Posição Mat – Variação/Relação 1 3 8 30 31 16 BE (ger) e FI estatisticamente igual
Posição Mat – Quantid. Número 8 1 7 31 29 13 NL e BE (ger) est. Igual – PT e IT também
Posição Mat – Cult. Mat. Geral 4 2 8 30 31 16 NL e BE (ger) est. Igual – PT e IT também
Posição Cultura Científica 8 1 14 32 27 31 BE geral
PISA 2000
Posição Ling. - compr. Escrita - 1 3 26 20 16 BE e FI estatisticamente igual
Posição Relativa entre os seis 2 1 3 6 5 4
Contextos
Relações estruturais
Pib/capita e ranking matemática 2 4 3 6 5 1 DK na mediana, NL, FI e BE (ger) acima
55000 53000 63000 48000 75000 74000 BE geral
3 1 6 25 24 11 BE geral
Tempos (ens. Primário)
Tempo lectivo professores 23 22 25 24 24 Por semana
Duração tempo lectivo em minutos 45 50 60 60 45
Tempo lectivo em horas 23,5 17,25 18,33 25 24 18 Linha 21 x linha 22 / 60
Tempo de escola (contratado) 25 18,33 35 25,1 37 Por semana – inf. PT não respeita o ECD
Tempo de escola (contratado) 200 193 182 180 220 209 Dias por ano Ano
Tempo de trabalho contratado 200 193 182 225 281 Dias por ano Ano
Dias de aula por ano 200 190 182 180 200 200
Horas de aula por ano (média) 940 627 849 910 980 720 Aulas dos alunos
Horas de aula por ano (média) 910 700 Aulas dos professores
Horas de trabalho anuais profs 1659 1575
Posição Relativa entre os seis
Tempo lectivo alunos 3 6 4 1 2 5 De mais para menos
Tempo trabalho anual professores 1 5 6 3 2 4 De mais para menos
Trabalho de casa alunos 15 anos 5 3 5 4 10 5 Média em horas por semana
Posição Relativo entre os seis 2 6 2 5 1 2 De mais para menos
Professores
Faixa etária em %
< 40 anos 39 45 51 40 28 28
40 – 50 anos 36 24 28 40 36 25
> 50 anos 24 28 20 20 34 45 (nunca mais do 65 anos)
Salários anuais aproximados em USD
PIB per capita 1999 24780 24280 25380 10670 20090 33040
PPA 21620 20670 23480 14380 20200 23830
Relação salário de ingresso 103 99 94 139 76 97
Relação salário de fim de carreira 150 125 154 320 112 110
Salário aproximado de ingresso 25523,4 24037,2 23857,2 14831,3 15268,4 32048,8
Salário aproximado de fim de carreira 37170 30350 39085,2 34144 22500,8 36344
Salário aproximado médio 31346,7 27193,6 31471,2 24487,65 18884,6 34196,4
Relação salário médio / PPA 145,0% 131,6% 134,0% 170,3% 93,5% 143,5%
Posição Relativa entre os seis
Valores absolutos 3 4 2 5 6 1
Valores em função do PPA 2 5 4 1 6 3
Idade médio corpo docente 3 5 6 3 1 1 De mais velho para mais novo
Despesa média por aluno de 6 até 15 anos em PPA (USD)
Posição resultados para esta despesa média (em 27)
NL = Países Baixos; FI = Finlândia; BE = Bélgica; PT = Portugal; IT = Itália; DK = Dinamarca
86 Pascal Paulus
Tabela 2
Tabela 2 CZ FR IT NL DE
Pisa resultados
Compreensão escrita 19 14 20 21
Ciências 2003 9 13 26 8 18
Cultura matemática 2003 13 16 31 4 19
Relativo 2 3 5 1 4
Ensino
Trabalho de casa em %
Sem ou 1 vez por semana 2 11 4 70 1
3 / 4 dias 89 66 82 30 57
Mais do 4 dias 8 22 9 0 41
Relativo (de mais para menos) 2 4 3 5 1
Ida a biblioteca + que 1 vez por sem. 32 57 16 41 20
Relativo 3 1 5 2 4
Manual (utilização) em %
Todos os dias 68 28 68 21 43
1 à 2 vezes por semana 30 60 25 54 43
Relativo 1 4 2 5 3
Utilização literatura infantil em % 60 63 52 68 34
Relativo 3 2 4 1 5
Monodocência 54 50 1 60 38
“Teamteaching” (2 em simultâneo) 1 9 10 25 2
Por disciplinas 39 29 85 2 50
Relativo (mono = 1) 3 2 5 1 4
Docência na escola primária (4º ano)
em %
FR = França; CZ = República Checa; DE = Alemanha
Mas alguém quis a escola democrática? 87
Tabela 3
Tabela 3 CZ DE EL FR IT LV HU NL SK SE IS NO
Pisa resultados
Compreensão escrita 19 21 25 14 20 28 23 9 11 11
Cultura matemática 2003 13 19 32 16 31 27 25 4 21 17 14 14
Cultura ciências 2003 9 18 30 13 27 25 17 8 20 15 21 21
Relativo 2 7 12 4 10 11 9 1 8 2 5 5
Ensino
Trabalho de casa em %
Sem ou 1 vez por semana 2 1 2 11 5 0 0 71 20 14 0 1
1 / 4 dias 90 57 52 66 85 53 51 29 73 80 50 59
Todos os dias 8 42 46 23 10 47 49 0 7 6 50 40
Relativo (de mais para menos) 9 6 4 7 8 3 2 12 11 10 1 4
Manual (utilização) em %
Todos os dias 68 43 95 28 68 95 98 28 98 27 68 63
1 à 2 vezes por semana 30 44 2 51 24 5 1 55 2 31 26 34
Relativo 5 9 3 10 5 3 1 11 1 12 5 8
Monodocência 54 38 48 51 2 55 28 59 42 40 80 60
“Teamteaching” (2 em simultâneo) 2 2 0 9 11 0 10 25 3 29 8 16
Por disciplinas 39 50 41 30 85 41 51 2 38 18 8 18
Relativo (mono = 1) 9 10 6 8 12 5 11 2 7 4 1 3
Docência na escola primária (4º ano)
em %
EL = Grécia; LV = Letónia; HU = Hungria; SK = Eslováquia; SE = Suécia; IS = Islândia; NO = Noruega.
Tabela 4
Tabela 4 País Trab. casa manual monodocência
1/4 Países baixos pouco pouco muito
2/4 Rep. Checa pouco média pouco
Suécia pouco pouco muito
França média pouco média
Islândia muito média muito
Noruega muito média muito
3/4 Alemanha média pouco pouco
Rep. Eslovénia pouco muito média
Hungria muito muito pouco
4/4 Itália média média pouco
Lituania muito muito média
Grécia muito muito média
88 Pascal Paulus
Horário não letivo
(voltar ao texto)
Horário não-letivo: trabalho a nível do estabelecimento de educação ou de
ensino – princípio geral. (Estatuto da Carreira Docente)
Artigo 82.° Componente não letiva
A componente não letiva do pessoal docente abrange a realização de trabalho a
nível individual e a prestação de trabalho a nível do estabelecimento de
educação ou de ensino.
O trabalho a nível individual pode compreender, para além da preparação das
aulas e da avaliação do processo ensino-aprendizagem, a elaboração de estudos
e de trabalhos de investigação de natureza pedagógica ou científico-pedagógica.
O trabalho a nível do estabelecimento de educação ou de ensino deve integrar-
se nas respetivas estruturas pedagógicas com o objetivo de contribuir para a
realização do projeto educativo da escola, podendo compreender:
a) A colaboração em atividades de complemento curricular que visem promover
o enriquecimento cultural e a inserção dos educandos na comunidade;
b) A informação e orientação educacional dos alunos em colaboração com as
famílias e com as estruturas escolares locais e regionais;
c) A participação em reuniões de natureza pedagógica legalmente convocadas;
d) A participação, promovida nos termos legais ou devidamente autorizada, em
ações de formação contínua ou em congressos, conferências, seminários e
reuniões para estudo e debate de questões e problemas relacionados com a
atividade docente;
e) A substituição de outros docentes do mesmo estabelecimento de educação
ou de ensino, nos termos da alínea m) do n.° 2 e do n.° 3 do artigo 10.° do
presente Estatuto;
(máximo de 5 dias úteis – ver artigo 10º)
f) A realização de estudos e de trabalhos de investigação que entre outros
objetivos visem contribuir para a promoção do sucesso escolar e educativo.
Por portaria do Ministro da Educação serão definidas as condições em que pode
ainda ser determinada uma redução total ou parcial da componente leciva nos
casos previstos nas alíneas a), b) e f) do número anterior.
Mas alguém quis a escola democrática? 89
“A escola é castradora quando utilizada como um instrumento
de dominação”
Ricardo Jorge Costa
Diplomado pela Escola Normal de Gent, na Bélgica, em 1977, onde se formou
como professor do ensino primário, faz uma curta passagem pelo ensino
público laico belga e é convidado a integrar uma equipa cujo objetivo era criar,
na cidade de Leuven, uma escola assente na pedagogia institucional. No início
dos anos 80 trabalha na alfabetização de adultos e participa em projetos de
desenvolvimento local e trabalho com jovens sob contrato de aprendizagem.
Vem para Portugal no final da década de 80, onde trabalha como coordenador
pedagógico numa escola privada. A equivalência parcial do diploma permite-
lhe começar a trabalhar no primeiro ciclo do ensino básico público e,
paralelamente, como formador de formação contínua de professores do 1º
ciclo nas áreas da matemática e do desenvolvimento curricular, função que
exerceu ao longo de 18 anos.
É, desde 2005, professor efetivo da escola básica do primeiro ciclo Amélia
Vieira Luís e integrou a equipa do Laboratório de Aprendizagens, da Câmara
de Cascais, um espaço de reflexão e de experimentação para técnicos ligados
ao ensino. É também sócio do Movimento da Escola Moderna e da
cooperativa Sociedade de Estudos e Intervenção em Engenharia Social, na
qual tem participado em projetos de desenvolvimento local, baseado na
intervenção com mulheres, em zonas urbanas.
Autor dos livros “Histórias de matemática – uma abordagem da didática
experimental da matemática” (publicado em coautoria com Miguel Narciso) e
“A escola faz-se com pessoas – Undi N ta Bai?” e de dezenas de artigos em
diversas publicações periódicas, Pascal Paulus é também colaborador regular
de A Página da Educação na rubrica “Coisas do tempo”.
Conte-nos um pouco acerca do seu percurso pessoal: porquê a opção pelo primeiro ciclo e de
que forma um professor belga acaba por vir dar aulas para Portugal…
Eu sou professor do ensino primário de formação – ou “instituteur”, como se
designa em francês, que considero uma palavra mais adequada por
corresponder melhor à especificidade do trabalho de monodocência,
90 Pascal Paulus
permitindo um trabalho pedagógico continuado com crianças e jovens e a
criação de um espaço cultural de referência.
O contacto com a pedagogia institucional, concretizada através do meu pai,
professor de jovens em contexto de trabalho que haviam sido afastados do
sistema educativo regular, foi determinante na minha opção. Para a minha
decisão contribuiu igualmente o estágio que realizei numa turma organizada
por um professor que fazia parte de um grupo ligado à pedagogia institucional
e que trabalhava com Fernand Oury, “instituteur” francês ligado ao
Movimento da Escola Moderna francesa.
Esta experiência constituiu para mim um encantamento: ver como é possível
pôr os miúdos a organizarem-se por eles próprios, através da mediação do
professor, uma conceptualização de turma que Fernand Oury designava por
“turma cooperativa organizada pela pedagogia institucional”, onde o conselho
de turma é o instituinte de toda a organização da turma.
De que forma veio parar a Portugal?
Depois de alguns anos a trabalhar na Bélgica ligado a vários projetos fundados
na pedagogia institucional, conheci um grupo português num congresso
internacional dos Movimentos da Escola Moderna, realizado em Lovaina. Esse
encontro marcou-me decisivamente, não só pelo teor do debate que propor-
cionou como pelo facto de me ter apercebido que havia pessoas neste país a
implementar aquilo que eu procurava fazer na Flandres.
À paixão pedagógica junta-se uma paixão pessoal, já que conheci a minha
mulher, também ela professora, através do Movimento da Escola Moderna. A
ideia de virmos para Portugal concretizou-se porque naquela altura, em
meados dos anos 80, nos parecia pedagogicamente mais aliciante trabalhar na
escola primária portuguesa do que na flamenga. Além de os desafios serem
maiores, agradava-nos a forma como estava organizado o ensino e pareceu-nos
que o programa do 1º ciclo aprovado em 1989 facilitava a gestão institucional.
A realidade entretanto mudou, mas na altura estes fatores foram determinantes
na nossa escolha.
Trabalha numa escola dos arredores de Lisboa com uma população essencialmente composta
por crianças filhas de pais imigrantes ou pertencentes a minorias. É mais difícil trabalhar
nessas condições?
Penso que é basicamente o mesmo trabalhar com filhos de imigrantes ou
trabalhar com filhos de residentes. Há, no entanto, uma série de condi-
cionantes que complicam a relação com a escola. Uma delas é o facto de estas
crianças serem oriundas de famílias que não têm um estatuto social, ou cujo
Mas alguém quis a escola democrática? 91
estatuto não é reconhecido como o estatuto padrão. Faço minhas as palavras
de um colunista do jornal Público, que se referia recentemente ao facto de hoje
em dia já não existir “proletariado” mas sim “precariado”.
Estas crianças são precisamente filhas desse precariado, pessoas que muitas
vezes estão apenas de passagem no país, em transição para outros países
europeus como a Inglaterra, a Holanda ou a Suíça. Muitos dos meus alunos
chegam mesmo a perguntar-me por que razão eu próprio não emigro…
porque têm noção de que aqui a vida está difícil.
Depois, a escola e os próprios professores são quase vistos como funcionários
das finanças (risos) e a relação entre as duas partes é praticamente reduzida ao
mínimo indispensável. Quando a escola contacta os encarregados de educação
é habitualmente para lhes dar conta do mau comportamento das crianças… A
própria escola cria com estas pessoas uma relação hierárquica, burocra-
ticamente bem definida.
Um dos aspetos que mais me surpreende, por exemplo, é o facto de uma
criança só se poder matricular se tiver o boletim de vacinas em dia, coisa que
eu nunca tinha visto na Bélgica. Eu compreendo os motivos que estão por trás
desta medida, mas ainda assim, na minha opinião, não deixa de ser algo
estranho. Ou seja, há uma estrutura que nada tem a ver com a escola e que
coloca entraves. A relação que a partir daí se estabelece é, naturalmente, uma
relação hierárquica.
Sente que esse contexto socialmente desfavorecido que retratou coloca mais dificuldades na
implementação do trabalho pedagógico dos professores?
Eu costumo dizer que trabalho num bairro de pessoas pobres. Assim é mais
claro. Um bairro que pertence a uma freguesia onde cerca de um terço do total
de fogos é de habitação social (noventa por cento dos quais concentrados aqui)
e onde existem quatro escolas do primeiro ciclo, duas delas pertencentes ao
nosso agrupamento. Estas duas escolas servem cerca de 300 crianças, todas
elas oriundas deste meio. Ou seja, não há outros miúdos na minha escola a não
ser os miúdos do bairro social, havendo portanto, um fenómeno de
“guetização” muito forte.
Recentemente, foi construído em frente ao bairro social um empreendimento
privado, sendo curioso verificar que, à medida que este vai sendo habitado,
aumenta o número de carrinhas de escolas e colégios que vêm buscar os
miúdos. Portanto não há nenhuma interação entre os dois contextos.
Postas as coisas nestes termos, é óbvio que existem dificuldades pedagógicas
acrescidas no nosso trabalho. Eu lido com crianças que muitas vezes não têm
92 Pascal Paulus
sequer um livro em casa e cujos pais têm um tempo limitado para se ocupar
delas. Nos últimos anos, muitas delas tiveram oportunidade de frequentar o
ensino pré-escolar, o que é muito bom. Mas que por si só não é suficiente,
porque não há uma cultura de referência escolar nas respetivas famílias. Neste
sentido, é preciso estar extremamente atento às referências trazidas por estas
crianças e pelos pais para, a partir daí, ter âncoras que possam ajudar a fazer a
transferência da cultura que lhes é própria para uma outra cultura.
Acrescente-se a isso, e este aspeto parece-me muito importante, o facto de a
escola, em muitos sentidos, ter a mesma cultura autoritária, de cima para baixo,
que se vive no bairro. Famílias em que o pai manda na mãe, e a mãe, por sua
vez, manda nos filhos. Quando estes se portam mal, o pai reprime a mãe que
reprime os filhos.
Na escola pública está presente exatamente este género de estrutura vertical, na
qual a criança, situada na base, é alvo de sansões disciplinares ditadas por um
regulamento interno que lhe é imposto por adultos. Ora, para uma criança que
em casa tem como referência a autoridade do adulto, que manda e castiga caso
ela desobedeça, a associação é quase imediata, apenas diverge na forma.
E dado que as crianças nos seus grupos de pertença se revoltam contra a
autoridade dos adultos, acabam por fazer o mesmo revoltando-se contra a
autoridade da escola… Dentro deste contexto, tentar implementar uma
comunidade democrática e pô-la a funcionar é um desafio muito grande.
Como é esse esforço de tentar pôr em prática uma comunidade democrática na escola e na sala
de aula? Os outros professores acompanham-no ou têm uma certa desconfiança dessa atitude?
Não posso falar pelos restantes professores. Felizmente, a liberdade
metodológica do professor está consagrado no Estatuto da Carreira Docente.
Na minha opinião, para as crianças se desenvolverem como cidadãos têm de
ter contacto com uma forma de democracia direta e não delegada, como
habitualmente acontece. E isto tem de ser aprendido e experienciado numa
comunidade pequena. E um bom instrumento para a pôr em prática é o
chamado Conselho de Cooperação.
Que é uma das metodologias defendidas pelo Movimento da Escola Moderna…
Sim, exatamente. Que se inicia pela organização do trabalho na sala de aula, no
qual se apela à cooperação dos alunos, e que num segundo momento se
concretiza num momento formal, que é o Conselho de Cooperação, onde se
tratam os assuntos mais importantes que dizem respeito à vida da turma.
Mas alguém quis a escola democrática? 93
De resto, tudo se resume a uma questão de tempo e de paciência. Não será no
primeiro dia que as crianças vão contar o que lhes vai na alma, mas é uma
forma de construir espaços onde esta abertura se torna possível, e que, pouco a
pouco, vai criando laços mais fortes entre o professor e as crianças.
Que resultados práticos tem colhido da implementação do Conselho de Cooperação?
Ele resulta sobretudo quando é aplicado na resolução de aspetos muito
práticos e concretos do quotidiano da sala de aula, como determinar, por
exemplo, o que fazer quando um pincel utilizado para uma cor fica inutilizado
por ter sido aplicado numa cor diferente. Em primeiro lugar, claro, ter mais
atenção para que isso não volte a acontecer. Depois, comprar outro pincel. É
através destes pequenos mecanismos que os alunos se apercebem de que há
um debate possível sobre a forma de se organizarem na sala de aula.
E isso acaba por ser aplicado a outros contextos, como as relações entre os alunos e entre estes
e a escola?
Sim, mas só com o decorrer do tempo. Este ano, por exemplo, tive miúdos de
5 e 6 anos que iniciavam o ensino primário. E a nossa escola, apesar de ser um
estabelecimento de intervenção prioritário e de no projeto estar contemplado a
reorganização do espaço exterior, não tem qualquer tipo de equipamento
lúdico no recreio, tarefa que compete à autarquia.
Aproveitando uma discussão sobre este tema realizada numa outra turma,
lancei a ideia aos meus alunos de elaborarmos uma proposta à câmara
municipal, que também foi acolhida por outro professor. E isso implicou uma
planificação do trabalho, através da realização de inquéritos, de recolha de
informação, do estabelecimento de contactos, da construção de uma maquete,
etc. No final, produzimos um pequeno filme que mostrava aos responsáveis
autárquicos qual o tipo de recreio que as crianças gostariam de ver
implementado.
Apesar de se tratar de um trabalho eminentemente prático, pelo meio surgem
sempre discussões, que já são de ordem organizacional. Depois, o trabalho
conjunto de duas turmas acaba sempre por originar algum tipo de conflito.
Nesse caso, temos de os discutir e ver qual a melhor forma de os ultrapassar…
Tendo em conta que a metodologia de trabalho do Movimento da Escola Moderna é um
pouco diferente daquele que é habitualmente desenvolvido pela maioria dos professores, sente-
se isolado na sua forma de trabalhar?
Por vezes, mas a necessidade de falar com outros colegas sobre o quotidiano
da escola faz com que procure romper esse isolamento, quando e se ele
94 Pascal Paulus
acontece. Porque há sempre a possibilidade de no interior de uma comunidade
escolar (e a minha não é tão pequena quanto isso) procurar aqueles que, tal
como eu, estão atentos àquilo que acontece na comunidade escolar e no bairro
em que ela se integra. E pensar que há sempre a possibilidade de estabelecer
uma parceria.
Por outro lado, também considero fundamental não interferir no trabalho dos
outros quando isso não é desejado. Nesse sentido, nunca critico nenhum
colega e mantenho-me disponível para o debate. A partir daí é sempre possível
trabalhar em conjunto. O importante, na minha opinião, é não ficar no
isolamento.
O livro que editou sob a chancela da Profedições intitula-se “A Escola Faz-se com Pessoas
– Undi N Tai Bai?”. O título do livro pretende, de alguma forma, ilustrar essa concepção
de escola e de trabalho?
A escola é um espaço cultural e um espaço de humanização. É, ao mesmo
tempo, um espaço de passagem. E nesse sentido é, em si própria, um espaço
artificial. O grupo de trabalho que se encontra nesse espaço é, também ele,
artificial. Ninguém escolheu estar com aquelas crianças. E nenhuma daquelas
crianças escolheu estar naquele espaço, com aqueles adultos. A única condição
que está pré-definida é o facto de a escolaridade obrigatória obrigar à passagem
por um espaço comum. No que esse espaço se converte depende de todos os
elementos que nele interagem. Cada uma das crianças com a sua história de
vida e o professor com a sua história de vida.
Depois, na minha opinião, este espaço só tem sentido se também interagir
com o exterior. Ele é uma espécie de laboratório, onde se aprende o que é ser
cidadão num contexto de participação direta. Todos nós temos hipóteses de
agir sobre o contexto que nos rodeia. Há neste espaço algumas regras
exteriores a ele e uma “encomenda” à qual não podemos, nem devemos,
escapar: os conteúdos programáticos. Enquanto grupo, a nossa tarefa é dar
resposta à encomenda que nos foi proposta, para a qual nos organizamos e
trabalhamos.
Mas isto só faz sentido se o que aprendermos servir para alguma coisa depois
de sairmos daquele espaço cultural. Daí a ideia de que a escola só tem sentido
se a pensarmos como um espaço de construção entre pessoas, sejam elas
crianças ou adultos, num contexto de alfabetização ou de formação
contínua… A ideia continua a ser a mesma. A mais-valia do saber que aí se
gera é construída a partir das pessoas, com as pessoas, para aquelas pessoas.
Mas alguém quis a escola democrática? 95
Num dos seus textos já se referiu à escola como uma instituição “castradora”. Até que ponto
é possível mudar essa perceção?
A escola é castradora quando a sociedade a utiliza como um instrumento de
dominação. Neste sentido, penso que a mudança terá de ir mais além do que a
simples alteração de práticas pedagógicas.
Paulo Freire dizia com insistência que só existe pedagogia quando se trabalha
com as pessoas. A escola, no fundo, é um instrumento político que pode
assumir o seu papel de duas formas totalmente distintas: um em que domina,
reproduzindo socialmente indivíduos que se limitam a executar aquilo que se
lhes ordena; outro no qual assume valores humanistas, formando e dando
possibilidade às pessoas de se deslumbrarem – a “escola dos deslum-
bramentos”. Uma escola em que o aluno está na posse dos instrumentos que
lhe permitem a si próprio evoluir num contexto de democracia participativa.
A escola castradora a que me refiro não corresponde politicamente a esta
última dimensão, refletindo, afinal, aquilo que é a democracia representativa
das nossas sociedades, onde os alunos não têm a palavra, onde aprendem não
a ser cidadãos mas meras entidades.
Foi, durante muitos anos, formador de professores. Que conselho daria a quem se está a
iniciar na profissão?
Um professor é, antes de mais, um ser humano. É precisamente isso que o
qualifica. E como qualquer ser humano ele tem um determinado patamar de
segurança, que só evolui quando ele aceita confrontar-se com os seus pares,
permitindo-lhe questionar-se e ultrapassar os obstáculos que se lhe deparam.
Julgo que a formação inicial de professores, quando conduzida com
inteligência, possui um conjunto de elementos interessantes (como o figurino
de estágios, o ano probatório e a figura de professor cooperante) que
possibilitam a construção desse processo.
Ao novo professor não basta ter muitos conhecimentos científicos, é
indispensável ter esse patamar mínimo de segurança e contar com alguém mais
experiente que, servindo de referente, o ajude a fazer a gestão da sua
aprendizagem de forma que mais tarde possa ser ele o referente na gestão da
aprendizagem dos seus alunos.
Neste sentido, julgo que o ano probatório proposto no novo figurino de
formação inicial pode constituir uma excelente forma de ir ganhando algumas
certezas provisórias em espaços onde o jovem professor ainda não sente muito
à vontade. Acima de tudo, porém, penso que é um processo que passa muito
Mas alguém quis a escola democrática? 97
Notas
1 Publicado originalmente em Escola Moderna (2001).
2 A escola estava em autonomia naquela altura. A pequena escala permitia muitas
vezes uma abordagem “no nonsence”. Foi precisamente esta pequena dimensão que a
fez perder a autonomia em 2004. Inseriu-se no agrupamento do qual ainda faz parte
em 2008.
3 Como se verá mais à frente esta prática de cobrança foi importante para interessar
as mães para uma proto-associação de pais. Em 2007 foi reposto a distribuição
seletiva de pães e bebidas, quando, no âmbito do TEIP se reintroduz o estatuto do
“aluno carenciado”.
4 Em 2008 fizemos um vasto trabalho de recolha de informação junto aos
comerciantes do bairro. No fim, fomos cantar-lhes as janeiras de forma original: em
vez de pedir, fizemos questão de oferecer o nosso jornal com todo o que tínhamos
aprendido acerca do bairro. Foram 3 horas de canto e 23 jornais entregues.
5 Ver supra
6 No quadro de uma intervenção maior, paga com dinheiro vindo da Comunidade
Europeia. Tratava-se de um megaprojecto centrada sobre a zona de intervenção
prioritária. 8 anos depois, a zona continua prioritária, não sei se também para
megaprojetos.
7 No sítio http://pascalpaulus.byethost7.com/turmadois/local/intro.htm
8 Para quem quiser saber como o texto ficou, ele encontra-se no jornal da turma nº
15, Abril 2001. E está no sítio já referido (ver nota anterior).
9 O dinheiro nunca estava efetivamente na caixa, obviamente. Mas como sabíamos
quanto dinheiro havia de projetos e subsídios destinados à nossa turma, era fácil
fazer orçamentos e controlar despesas. Era fácil também gerir o material em
comum. Em 2008 é impossível saber quanto dinheiro está destinado à turma. A
gestão deixou de ser transparente para crianças e pais.
10 Naquele ano tínhamos combinado gerir todo o material da turma em conjunto. O
orçamento não ultrapassava o subsídio para material escolar máximo. Os pais que
não eram abrangidos pelo subsídio concordaram em pagar o equivalente. A turma
apresentava em cada reunião de pais as contas. Já não é assim...
11 Na altura a rede era distribuída para todas as salas de aula. Neste momento, só se
tem acesso a Internet numa sala com dez computadores, numa lógica
concentracionária.
12 Tinha-me habituado a conselhos pedagógicos em que o presidente não era o
presidente do executivo. Conselhos que convidavam pessoas para participar no
debate pedagógico e que faziam questão estarem abertos a toda a comunidade
escolar. Todos podiam sempre intervir. E todos intervinham. Só nos atos formais
de votação e de avaliação é que os membros eleitos tinham exclusividade de voto.
98 Pascal Paulus
Discutia-se só assuntos pedagógicos, deixando para comissões o trabalho técnico-
pedagógico.
13 O que não tem nada a ver com os trabalhos de casa. Estes, no primeiro ciclo,
servem, demasiadas vezes, para, de forma cínica, passar a competência letiva dos
professores para os pais.
14 Edwin A. Abbot descreve, no livro “Flatland – o país plano” as relações sociais
entre a população de figuras geométricas que aí habitam. O quadrado ilumina-se
depois da sua viagem com a Esfera, e... arrependa-se depois por ter pregar a boa
palavra.
15 Enquanto o público não tem acesso aos edifícios da Comissão Europeia, nem ao
local de trabalho do Conselho de Ministros, e muito dificilmente tem ao
Parlamento Europeu (só as prisões são mais bem guardadas em Bruxelas), outras
pessoas entrem e saem como em casa deles, são os lobistas. (tradução dos autores).
16 A maneira como se trata os estrangeiros no que é conhecido do texto de Schengen,
contribui para desacreditar a priori os estrangeiros, a assemelhar qualquer
estrangeiro a priori a fonte de insegurança, a cultivar a suspeição e no clima atual,
alimentar uma banalização do racismo do qual se sabe infelizmente até que limites
pode conduzir. (tradução dos autores)
17 O acordo de Schengen prevê, no seu primeiro artigo, a livre circulação das pessoas
no interior das fronteiras dos Estados que fazem parte do acordo. Depois, seguem
145 artigos que definem todas as limitações a esta livre circulação.
18 Pode-se dizer que voltamos para o voto censitário, do tempo em que as pessoas
podiam votar conforme a sua capacidade de possuidor de bens, de fortuna.
Maastricht é um pouco isto, volta-se para os tempos de antes da revolução
Keynesiana, volta-se para o tempo antes da revolução francesa.
19 O inquérito mostra, pelo contrário, que num qualquer país, e isto verifica-se em
toda a parte, na Europa, é-se tão racista numa pequena aldeia, sem um único
imigrante, como num bairro com grande número de estrangeiros. (tradução dos
autores)
20 A explicação da presença dos imigrantes como fator determinante para a
intolerância, não está certa. Não está certa, também não em outras investigações
que conhecemos. Por exemplo, na França, fez-se muita investigação neste sentido.
Não é nos bairros de Paris, Grenoble, Lyon ou nas cidades francesas onde existem
muitos imigrantes, que se encontra taxas de intolerância mais elevadas. Na França,
as taxas de intolerância são muitas vezes resultado de pessoas que não têm nenhum
contacto com imigrantes. […] O patamar de tolerância não tem base lógica nem
científica. (tradução dos autores)
21 M.C.: “Existe a arma da denúncia pública, pode-se por exemplo dizer à pessoa que
tem o assunto em mão: «se é mesmo a atitude que vai assumir, a industria vai tomar
esta ou aquela posição pública, onde as suas opções serão denunciadas».”
Francis Wurtz (acerca da manteiga de cacau): “… então, recebi a visita do
presidente de um consorcio importante de fabricantes de chocolate que tentou
explicar-me que tinha realmente todo o interesse, provavelmente em nome da
Mas alguém quis a escola democrática? 99
solidariedade ocidental, em defender os interesses das companhias de chocolate
europeias, antes do que daqueles pobres diabos de Senegal, Costa de Marfim ou
Benin.” (tradução dos autores)
22 Enquanto o golfista norte-americano Tiger Woods recebe 55.000 dólares diários de
patrocínio da marca Nike, os trabalhadores tailandeses auferem nas fábricas da
marca um salário diário de 4 dólares em médio. (Revista “Pública”, 23.05.2004) É a
promoção da marca e a livre circulação dos bens que convêm aos acionistas, e não
o desenvolvimento sustentado da população operária nas concentrações urbanas a
volta das fábricas.
23 Acho um precedente extremamente gravoso no sentido em que se trate de uma
questão com grande impacto em muitos países dentro e fora da Comunidade e que
foi tratado durante vários anos no segredo mais absoluto, fora do controle de
qualquer parlamento, sem nenhum grande debate. Ninguém foi consultado. E se
não tinha havido a atitude corajosa e justa do governo neerlandês que envolveu o
seu parlamento nesta questão, talvez até hoje ninguém sabia de nada. (tradução dos
autores).
24 Comunidade Europeia de Carvão e Aço.
25 Ver supra, página 32
26 Existe uma relação entre o trabalho de noite e o abandono precoce da escola. Ver
infra, página 59.
27 A revogação desta convenção foi do grande agrado do patronato e de certas
feministas. É interessante a este respeito, lembrar que já no início do século, as
feministas burguesas eram contra a proibição do trabalho de noite, considerado
uma discriminação enquanto as operárias, pelo contrário, estavam a favor da
interdição, porque, para elas, o problema principal não era a discriminação mas
antes a exploração de que eram alvo tanto as mulheres como os homens. (tradução
dos autores)
28 “A Educação não formal está aberta para todos independentemente do seu nível
anterior, enquanto a educação formal é muito selectiva, depende dos sucessos
educativos anteriores, recusando muitos e seleccionando poucos para continuar a
estudar.
Por esta razão, a educação formal está muito organizada. Podemos falar de um
sistema educacional formal. Educação não formal, ao contrário, não obedece a
modelo preciso, não tem estrutura evidente; só podemos falar de programas
educacionais não formais.” (tradução dos autores)
29 Referimos aqui a proposta de Boaventura Sousa Santos em que ele considera 4
fenómenos de globalização, dois de cima para baixo (hegemónicos) que intitula de
localismo globalizado e globalismo localizado, pilares do Sistema Mundial Moderno
(SMM) e dois outros, de baixo para cima (contra-hegemónicos) que intitula de
cosmopolitismo e património comum da humanidade, portadores do Sistema
Mundial Em Transição (SMET)
30 “Algumas pessoas escrevem como se a educação não formal e a educação de
adultos seja a mesma coisa, mas eu penso que não é, por dois motivos:
100 Pascal Paulus
(a) alguma da educação não formal é dirigida a crianças fora da escola. Isto é
claramente formação não dirigida a adultos, não têm métodos de ensino para
adultos, não pode tratar os aprendendos como adultos. Educação não formal, ainda
que inclui muitas variantes da educação de adultos, é mais lato.
(b) Em 2º lugar, há alguma formação dentro do sistema formal, direccionado mais
para adultos do que para jovens, utilizando métodos para adultos. Ainda que não
seja formação não formal, pode-se incluí-la na formação de adultos. (tradução dos
autores)
31 … aceitar estes estrangeiros e instalar estruturas de acolhimento, porque, de uma
certa forma, isto foi sempre a riqueza da Europa. A final de contas, somos os
bastardos dos vários povos que atravessaram a Europa nos 2000 anos que nos
precederam. (tradução dos autores)
32 Segundo problema: as perturbações de humor e de carácter, as perturbações
nervosas, que abrem caminho para sintomas muito precisos de intolerância a uma
data de situações, nomeadamente à família, ao meio envolvente, às relações que
habitualmente se estabelecem no trabalho. (tradução dos autores)
33 Tradução do francês pelos autores.
34 Os historiadores olham hoje com espanto a criação da Comunidade Europeia. Os
historiadores americanos descobrem surpreendidos, nos arquivos governamentais
que se lhes torna acessíveis (a conta-gotas) vinte ou trinta anos depois dos
acontecimentos, que os seus dirigentes não tinham nenhum medo dos soviéticos
nos anos ’40, mas que temiam sobretudo que os seus aliados europeus se iam virar
para o socialismo e os privar desta forma de um mercado que lhes era indispensável
para escoar a sobreprodução e evitar uma grave recessão, agora que a sua economia
já não beneficiava da guerra. (tradução dos autores)
35 Referimo-nos aqui ao “Laboratório de Aprendizagens” implantado pela divisão de
educação de Cascais para apoiar o combate a exclusão e ao insucesso escolar.
36 Em http://blogs.parlamento.pt/casadoscomuns/archive/2005-02-15/2925.aspx
consultado em 8 de Setembro de 2005
37 Numa entrevista publicada em http://demoliberal.com.pt/ convidado.php?ide=35,
consultado em 8 de Setembro de 2005
38 A Convenção dos Direitos da Criança considera como criança todo o ser humano
até aos 18 anos, exceto se nos termos da lei atingir mais cedo a maioridade (art. 1º
da referida Convenção).
39 Aqui o autor também demonstra como a política de cheques-ensino só aceleraram
o processo de degradação da escola pública que continua a ser a única escola
efetivamente possível para a maioria dos pobres, transferindo dinheiro público para
as escolas privadas.
40 Em http://www.cds-pp.pt/cidade19.htm, consultado em 3 de Setembro de 2005
41 A democracia participativa que faz parte da sigla CIDEP é explicitada como a
possibilidade de consultar e dar opinião sobre o que a “sociedade política”
apresenta. Não se vislumbra aqui o orçamento participativo ao nível dos bairros, o
trabalho de “baixo” para “cima”.
Mas alguém quis a escola democrática? 101
42 Realçado pelo autor
43 Depois da reunião do G7 em que são abordados aspetos do e-learning, a Comissão
das Comunidades Europeias (1995) alerta no Livro Branco sobre a educação e a
formação, pelo risco de descida de qualidade de software educativo. Por isso, disse,
insistiu junto ao G7 para que haja incentivos à criação de bom software. De facto,
na mesma altura disponibiliza-se dinheiro público aos privados para desenvolver
produtos (financiamento no quadro do programa Da Vinci) que depois serão
vendidos aos potenciais formandos.
44 Como por exemplo em http://www.eb1-porto-n16.rcts.pt/actividades.htm e em
http://www.basico.maiadigital.pt/MDE/Internet/PT/Basico/Agrupamentos/
LevanteMaia/Escolas/EB23Nogueira/
No segundo exemplo, não cheguei a perceber se o torneio é mesmo da
competência dos professores de educação cívica (?) ou se há uma troca de
significado com os da educação física.
45 Será que é isto o papel pensado para o “sindicato das crianças” por quem o
promoveu? Uma representação pelos adultos, ou por algumas crianças escolhidas a
dedo? É cedo para perceber. Oxalá que não caem na tentação de promover
encontros entre o “sindicato das crianças” e os “pequenos deputados”, outra
iniciativa que os políticos se lembraram lançar com a ideia que assim se promove a
cidadania.
46 Que consultamos em http://www.secundario.maiadigital.pt/ MDE/Internet/-
PT/Secundario/Escolas/Secund.
47 Num blogue do Sítio www.explicações.com com endereço
http://www.explicacoes.com/php_nuke/html/ modules.php?name =News&file=-
article& sid =1196
48 Ver os grupos de Pedagogia institucional e as publicações do Movimento da Escola
Moderna.
49 Ver referências bibliográficas.
50 A pedagogia institucional é um conjunto não fechado de possíveis respostas a
perguntas que, ainda que não tenham sido colocadas, se colocam diariamente a seja
quem for que pretende fazer da educação e da aprendizagem o seu trabalho. Não se
trata de um método... Ela é caracterizada tanto pelas perguntas que lança, como
pelas respostas que elabora. Como a pôr em prática?
Se fosse fácil explicar a pedagogia institucional, sabê-lo-íamos. A classe cooperativa
não se entrega em kit e não pode existir sem um mestre, sujeito e prático.
Não tapamos a cara, o que se chama de cidadania, de democracia na escola não são
fins, mas condição para aprendizagens escolares performantes. Passa pela
aprendizagem da lei, do grupo e da mestria de certas instituições. Passa pelo
Desejo, o desejo de cada um de estar na turma, ser da turma. Então, as crianças
aprendem e reaprendem. Não tão bem, melhor. Mas para isso, precisamos de
mestres, e portanto de uma verdadeira formação para se tornar mestre,
constantemente, em grupo, com outros: uma transformação pessoal e profissional.
Mudar de profissão ou mudar a condução. (Tradução do autor)
102 Pascal Paulus
51 Os miúdos negros e pobres vivem em bairros sociais. Será que os ricos e brancos
vivem em bairros associais?
52 Ver anexo.
53 Talvez para libertar dinheiro para pagar as instituições privadas que fornecem só
uma actividade que é o Inglês?
54 NL = Países Baixos; FI = Finlândia; BE = Bélgica; PT = Portugal; IT = Itália; DK
= Dinamarca
55 A regra é monodocência na escola primária até a 4ª ou a 6ª classe, na Europa.
Alguns países apresentam o team-teaching como alternativa. Trata-se de um
trabalho a dois, em que dois professores se partilham uma turma, trabalhando em
conjunto ou em alternância. A diferença com a pluridocência é que não são
especialistas de uma disciplina e que não trabalham simultaneamente em várias
turmas. Ver Eurydice (2005: 277 e.s.)
56 FR = França; CZ = República Checa; DE = Alemanha.
57 EL = Grécia; LV = Letónia; HU = Hungria; SK = Eslováquia; SE = Suécia; IS =
Islândia; NO = Noruega.
58 Existem nestes dois países uma grande variedade de escolas públicas que adoptam
no seu projeto educativo uma metodologia própria. O sistema de colocação de
docentes facilita a formação de um corpo docente que se obriga a seguir a
metodologia referida no projeto educativo da escola.
Pascal Paulus (1957) formou-se como professor de ensino primário na Bélgica e doutorou em Sociologia de Educação no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, sob a orientação de Rui Canário. Foi cofundador da escola “de Appeltuin”, orientada pela pedagogia institucional de Fernand Oury. Vive e trabalha em Portugal desde 1986, onde tem desenvolvido projetos de trabalho como sócio ativo do Movimento da Escola Moderna.
A escola não é democrática, porque na sociedade muitos não a querem democrática.
Ilustra-se este ponto de vista a partir de alguns relatos de prática que servem de base para uma reflexão acerca do sentido da escola.