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M M a a s s a a l l g g u u é é m m q q u u i i s s a a e e s s c c o o l l a a d d e e m m o o c c r r á á t t i i c c a a ? ? Pascal Paulus 2008

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MMaass aallgguuéémm qquuiiss aa eessccoollaa

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Pascal Paulus

2008

Ficha técnica

Título: Mas alguém quis a escola democrática?

Capa: “Todos juntos” (2001) – Marlene Monteiro (9 anos)

Autor: Pascal Paulus

Edição: março 2008

revisão: junho 2014

Formato: e-livro PDF 14 x 21 cm

Letra: Garamond 10; Calibri light 8

Pascal Paulus (http://pascalpaulus.weebly.com)

Mas alguém quis a escola democrática?

Pascal Paulus

Índice

Mas alguém quis? ............................................................................................................ 5

Os pais na escola. ............................................................................................................. 7 A escola no bairro ........................................................................................................ 7 O bairro e a população. ............................................................................................... 7 A Escola e a turma ....................................................................................................... 8 Discutir trabalho. ....................................................................................................... 10 Sem “happy end” ....................................................................................................... 15

O tempo da borboleta ................................................................................................... 19 Histórias com história................................................................................................ 20 As paralelas não se cruzam....................................................................................... 25 O agente do mercado fez contas e tomou conta. .................................................... 32 A contraproposta prudente: o olhar integrado. ....................................................... 37 Acão para uma vida decente; duas malhas de uma rede. ...................................... 40 Quando a borboleta levanta voo. ............................................................................. 44 Referências bibliográficas ......................................................................................... 46

Grande irmão cidadão... ou talvez não... ...................................................................... 49 Alfas, Epsilões e a Novilíngua. ................................................................................... 49 “Produto” velho em embalagem nova ou velha embalagem para novo “produto”? ....................... 52 A europeização da formação cívica .......................................................................... 55 O silenciamento ensurdecedor das crianças ............................................................ 58 Educação “para” ou “na” cidadania e consciencialização ...................................... 61 Uma prática fundada na pedagogia institucional ................................................... 65 Uma questão de opção ... ......................................................................................... 69 Referências bibliográficas ......................................................................................... 70

Leituras acerca da organização do trabalho no primeiro ciclo.................................... 75 Ofício ou profissão? ................................................................................................... 75 Hipóteses de trabalho para um maior sucesso educativo. ...................................... 78 Um instrumento possível de trabalho. ..................................................................... 82 Notas Bibliográficas .................................................................................................. 84 Anexos ........................................................................................................................ 85

“A escola é castradora quando utilizada como um instrumento de dominação”...... 89

Notas............................................................................................................................... 97

Mas alguém quis a escola democrática? 5

Mas alguém quis?

Reúno aqui quatro artigos e uma entrevista.

O primeiro texto Os pais na escola foi começado em 2001. O seu fecho data de

2008. Utilizei algumas ideias do texto no livro “A escola faz-se com pessoas”. Os

acontecimentos desde 2001 até a data mostraram-me que era então demasiado

otimista. Não parece ser possível, de momento, construir uma relação de

colaboração pedagógica e democrática entre mães, pais e professores a nível

institucional. Guardei a estrutura do texto de então que descrevia a crescente

participação dos pais e das mães nas atividades de aprendizagem das crianças.

Acrescentei o “sem Happy End”. A falta dum fim feliz institucional não

impede obviamente a continuação de trabalho em comum com os pro-

genitores dos meus pupilos. Entretanto continua a ser utopia elaborar uma

comunidade educativa no contexto em que trabalho.

A democracia está ameaçada pela autocracia.

O tempo da borboleta, escrito a meias com João Romualdo Silva segue algumas

crianças de bairros sociais diferentes com passados diferentes mas futuros

igualmente incertos. A partir das suas aventuras no mundo educativo ou

simplesmente normativo tentamos perceber como é que uma escola tornada

industria dificulta a aprendizagem da cidadania entre pessoas por si só já

fragilizadas pelo poder económico e pelo fosse enorme que existe entre ricos e

pobres.

Desenvolvo esta ideia no texto Grande irmão cidadão... ou talvez não... que serviu

de base para uma intervenção na ESE de Lisboa numa mesa redonda sobre

escola e cidadania. A mercantilização do ensino na Europa provoca uma

gradual individualização do ensino, incentivando professores e crianças a

formas de trabalho que transformam a aprendizagem para a cidadania em

lições de formação cívica. Favorece ao mesmo tempo a concorrência em vez

da cooperação, a solidariedade do poderoso com o fraco em vez da

intervenção democrática organizada para uma sociedade mais equitativa com

formas de participação direta pelos cidadãos.

O texto Leituras acerca da organização do trabalho no primeiro ciclo resulta da

observação dos dados Eurydice e PISA de 2005 e 2001 respetivamente.

Parecem existir indicadores que uma escola com monodocência prolongada,

menos trabalhos de casa, mais fontes de documentação diversificadas, menos

6 Pascal Paulus

manuais escolares como única fonte de saber e mais participação dos alunos

provocam melhores resultados escolares. Talvez não seria mau se os opinion

makers lessem e estudassem um pouco mais o material disponível, mesmo em

termos de listas de classificação e comparação em vez de produzirem

comentários, logo retomados por outros, sugerindo que uma escola autoritária

poderá resolver todos os males do insucesso.

A conversa com o Ricardo Costa originou o artigo A escola é castradora quando

utilizada como um instrumento de dominação na Página da Educação de Outubro de

2007, da sua mão.

Quis incluir o texto porque o Ricardo sintetiza de forma muito clara o

conjunto de reflexões aqui produzidos e retomadas ao longo da entrevista.

Agradeço todos os parceiros envolvidos na escrita dos textos que seguem e,

muito especialmente, João Romualdo Silva e Ricardo Costa.

Mas alguém quis a escola democrática? 7

Os pais na escola.

O texto que segue tem como base a transcrição1 da intervenção proferida no

plenário com o mesmo título no XXIII Congresso do Movimento da Escola

Moderna, em Évora.

A escola no bairro

O que vos quero contar não tem nada de especial. Limito-me à vos teste-

munhar como tento “cativar” os pais dos meus alunos e como a escola tenta

afastar os pais dos meus alunos.

Considero, e repito, que a nossa profissão nos obriga a construir uma parceria

com os pais e as mães dos nossos alunos, tarefa que nunca me pareceu parti-

cularmente difícil.

Mas terei que vos pintar um pouco o bairro e a escola para perceberem porque

utilizei os termos “cativar” e “afastar”.

O bairro e a população.

O bairro ganhou alguma fama nos arredores de Lisboa e no país, desde os

assaltos da gasolineira da autoestrada de Oeiras. Uma estação de televisão que

emite de perto do bairro e um semanário de grande tiragem, recorrem desde

então a ex-alunos da nossa escola, meninos de 15 à 17 anos, quando querem

ilustrar o que são “pequenos delinquentes”.

Estes faziam sempre alguma troça dos jornalistas, enalteciam os seus atos, para

ganharem mais espetacularidade – porque, em 2001, a maior parte deles se

limitava a roubar telemóveis e carteiras, ou roupa, nas lojas de artigos de

desporto da zona.

Mas também falavam do desporto preferido: com um carro roubado e sem

carta de condução “paras em frente da bófia. Baixas o vidro, mostras-te. Depois aceleras.

Depois disso, já podes convidar uma mulher para sair.”

Os grupos fazem e desfazem-se ao ritmo que as crianças passam da escola do

1º ciclo para o 2º ciclo. Rapazes mas também raparigas ficam expulsos da

escola, têm tempo para se organizar, aparecem e desaparecem. Alguns vão

presos outros entrem na linha.

8 Pascal Paulus

Existem até 2006 vários locais de ATL, nos dois bairros servidos pela escola.

Mais bem integrados no bairro do que a própria escola, como instituições,

estes serviços para enquadramento pós-escolar relacionavam-se bem com pais

e crianças. Outros permitiam simplesmente às crianças ter vivências em grupo,

sem ser na escola.

A gradual extensão das chamadas Atividades de Enriquecimento Curricular

(AEC) fez desaparecer pouco a pouco estes serviços extraescolares.

As entidades responsáveis para a organização das AEC preferiram centralizar a

oferta na própria escola através de subcontratação de empresas operando ao

nível do Concelho. Assim fazendo, concentraram as crianças todas na escola

para atividades escolares e extraescolares. De dois adultos de referência fora do

núcleo familiar, passaram a um adulto de referência acrescido de um grupo de

professores e monitores no seu conjunto muito volátil.

No meio de 2006 a zona passou novamente a ser de intervenção prioritária, o

que fez escrever vários jornais que se tratava de zonas perigosos. Aprendi pela

imprensa escrita que leciono num dos 24 mais perigosos núcleos escolares do

país.

A Escola e a turma

A escola tinha em 1988 480 alunos. Em 2000 existem para 270 alunos, 19

professores, dos quais 14 com turma. Só uma das professoras com turma, era

efetiva na escola desde há 10 anos, 1 efetivou-se naquele anos, afirmando estar

de passagem para se aproximar de casa. Fazia parte do grupo de 4 do então quadro distrital de vinculação que estavam

pelo segundo ano consecutivo na escola. O resto do pessoal docente era

contratado. Dois colegas ficaram assim três anos consecutivos contratados na

mesma escola.

No ano letivo 2000-2001 recebia, em média, alunos distribuídos de outras

turmas 1 dia em 31/2, ou seja, foram 51 dias de visitantes ao longo do ano.

Os meus alunos faltaram em média 11 dias por ano.

Resumindo: trabalhei, em todo este ano letivo, só 17 dias com a turma

completa, sem “outros” na sala.

Em 2008, depois da reorganização das regras de concurso com o objetivo de

fixar os corpos docentes nas escolas, existem 13 professores para 10 turmas

com um total de 203 alunos. No ano letivo 2007-2008 mantém-se o corpo

docente do ano anterior: 2 professores do quadro de escola (1 com turma e 1

transferido para o grupo de docência da Educação Especial) 2 contratados

Mas alguém quis a escola democrática? 9

sendo os outros do quadro de zona. Somos dois com permanência de mais de

5 anos na escola mas não ininterrupto.

Em 1999 tentou-se pela terceira vez instalar uma associação de pais. As

primeiras iniciativas foram lançadas por uma instituição com serviço de ATL

que tem a confiança da Câmara. Nunca conseguiu por falta de interesse da

parte dos pais. Houve alguns ensaios por parte do Conselho Executivo,

apoiado pelo Conselho Pedagógico, igualmente sem sucesso. Em 2000, uma

mãe cabo-verdiana de um dos meus alunos começou a participar, pela minha

insistência, nas reuniões do Conselho Pedagógico2. Fui nisso apoiado pela

mediadora, também cabo-verdiana de origem e cooptada neste órgão.

Desde que conheço a escola, considero o recreio um lugar muito agressivo.

Trata-se de um espaço cercado sem nenhum acondicionamento, nenhum

brinquedo. De terra batido, transforma-se em lama quando chove, em nuvem

de poeira quando não chove. Só convida a corridas (com os respetivos

choques inevitáveis) e à utilização do outro como objeto-brinquedo.

Em 2000 surgiu outra prática angustiante: até o fim do ano civil anterior, era

distribuído todos os dias, no intervalo do recreio, um pão com manteiga, às

vezes com fiambre ou queijo. A despesa era paga por um subsídio vindo de

uma instituição de solidariedade social, e havia uma contribuição, diria

simbólica, da parte dos pais.

Depois de acabar com esta distribuição, por falta de verbas, parte dos alunos

começou a trazer lanches, constituídos por sumos, refrigerantes e bolos ou

pães industriais com chocolate. Rapidamente instalou-se, entre os alunos, um

sistema de cobrança, contra proteção, o que tornou os conflitos no recreio

ainda mais insuportáveis e os fizeram entrar de vez no Conselho da nossa

turma.

Para manter o Conselho como instrumento regulador da turma, anunciei aos

alunos que ia, a este respeito, como adulto, intervir, no Conselho Pedagógico3.

E os alunos naquela altura eram 16. Tinha perdido 6 desde o ano anterior e

ganho 1, devido aos realojamentos em curso.

Havia, a partida, 4 famílias, onde, desde o primeiro ano, existia da parte da

mãe, analfabeta, interesse pelo progresso da filha, ou do filho, na escola. As

outras mães mostravam se, no início do ano passado pouco interessadas, ou

então com má impressão ou vergonha, acerca dos seus filhos, falando comigo,

e muitas vezes em frente deles, como se de objetos se tratasse, em termos

muito negativos.

Perante este quadro, penso que foi muito importante viver mesmo ao lado do

bairro, muito perto da escola. Como já tive oportunidade de contar, os

10 Pascal Paulus

momentos “Ler e mostrar”, todas as manhãs, ajudaram-me para aprender

muito sobre as tensões no bairro. A padeira, mas também a vendedora do

quiosque, que existia então mesmo ao lado da padaria, ajudaram-me a

contextualizar a informação, bastava eu fazer uma ou outra observação.

Já referi muitas vezes a padaria também como lugar histórico para mim: foi

onde comecei, com êxito, as reuniões de pais. Conseguia muitas vezes, só neste

local, ou na mercearia ao lado, falar com os “encarregados de educação” para

trocar impressões e dar recados.

Obviamente, só era possível instalar a relação institucional através do trabalho

e dos seus produtos. Neste caso, a mobilização de esforços, com a turma

vizinha, para termos lombas na estrada em frente à escola, o que conseguimos

6 meses mais tarde, foi o primeiro.

O segundo, foi quando os meus alunos e os colegas da turma vizinha,

correram as casas comerciais do bairro, com os professores, para entrevistar os

comerciantes. A cada um dos entrevistados foi depois oferecido um livrinho

com todas as entrevistas ilustradas4.

Discutir trabalho.

No primeiro ano de trabalho mostrava os livros A4 de projetos que os filhos

fizeram, mostrei os planos de trabalho, mostrei – com autorização dos alunos

– um pouco de um vídeo que uma colega veio gravar na nossa sala.

Mudava as reuniões de pais de dia e de hora, mas sempre as fiz depois das seis

e meia da tarde ou no fim de semana. Consegui pelo menos uma vinda de um

adulto de cada uma das famílias.

Mostrei a resposta de dois partidos políticos, de um bancário, de uma

embaixada e de outras pessoas à pedidos feitos pelos meus alunos. Alguns

ficaram surpreendidos com o trabalho dos alunos. No fim do ano, todos

ficaram surpreendidos que todos os alunos passavam para o 3º ano.

No início do ano seguinte, uma visita ao Jardim Zoológico em Outubro

desencadeou um trabalho muito vasto, realizado em conjunto com o grupo de

4º ano, com a colega que já estava na escola há 10 anos. Era um projeto sobre

animais e problemas ambientais, mas também sobre a evolução do ser humano

e a cor da pele, feito por 6 grupos, todos eles com alunos do 3º e do 4º ano

misturados. A medida que o trabalho crescia, cresceu também a minha vontade

de voltar a fazer o que já fiz tantas vezes: montar uma exposição para mostrar

o trabalho aos pais. Desafiei a minha colega, que aceitou e na reunião de pais,

Mas alguém quis a escola democrática? 11

marcada para as 19 horas, apareceram perto de 40 pessoas, representando 2

alunos em 3.

Os encontros a volta do trabalho conceberam um embrião da associação de

pais. Havia várias queixas, por causa das faltas de alguns professores, por causa

de brigas no recreio, por causa de insultos racistas entre crianças, mas também

vindo de adultos, e ... começou o problema do pão do lanche5.

A mãe que participava nos Conselhos Pedagógicos falou com a mediadora e

comigo, e ambos propusemos que talvez fora a altura para tentar de mobilizar

mais pessoas de forma organizada. Dissemos-lhe que tinha que ser ela a fazê-

lo, mas que a apoiaríamos. Ela aceitou, na condição que estivéssemos

presentes na reunião, para as pessoas perceber que se tratava de assuntos de

escola, e que não era assim alguma coisa que lhe passava na cabeça.

Na reunião havia mães e um pai. Mães da turma da colega do 4º ano, mães da

outra turma do 3º ano (com a qual tínhamos feito a saída ao bairro), mães da

minha turma. As outras são mães que apareceram, estavam inseridas num

projecto6 de educação parental para encarregados de educação de alunos de 1º

ano.

Decidiram avançar com a constituição da associação de pais. Iriam voltar a se

reunir para escolher quem ia ser a primeira direção e para entregar os estatutos.

Mesmo antes do fim do segundo período letivo, acabámos um trabalho longo,

com a outra turma de 3º ano, com o tema “À nossa volta”. Propus aos alunos

apresentar o trabalho aos pais, numa pequena exposição, como fizeram

anteriormente.

O trabalho foi exposto na biblioteca da escola e mandámos um convite aos

pais. Mandámos também um convite a algumas pessoas que nos ajudaram a

realizar o trabalho: a polícia, a guia da Sumolis.

As pessoas foram aparecendo ao longo de toda a tarde, desde as 18 horas, até

as 20.30.

À chegada, recebiam um livro, que fizemos, para acompanhar a exposição.

Duas cópias a cores deste livro entraram nas respetivas bibliotecas de turma.

O trabalho ainda existe7.

Dos 34 alunos nas duas turmas, 21 apareceram na exposição, acompanhados

dos seus pais. Alguns vieram sozinhos. Vieram também dois agentes da polícia

em representação do comissário que nos tinha recebido na esquadra. Esta

visita foi muito bem recebida pelos alunos, sentindo-se claramente valorizados

no seu trabalho.

12 Pascal Paulus

No primeiro dia a seguir às férias da Páscoa, expliquei aos alunos que é

diferente mostrar o que fizemos, numa exposição, do que mostrar como

fazemos, no dia-a-dia. Lembrei-lhes o vídeo do ano passado, e propus que

agora mostrássemos “ao vivo” como fazemos.

Alienaram logo, e, na sexta-feira a seguir, houve uma reunião de pais feita por

todos. Tínhamos combinado que, ao entrar, cada um continuava o seu

trabalho de plano, que de seguido trabalhássemos um texto em conjunto e que

acabássemos com alguns assuntos do Conselho, que íamos de propósito

prolongar para o efeito.

Só dois alunos disseram logo que não vinham e que os pais não podiam vir:

uma das meninas que tinha trazido a mãe à exposição e que brilhou naquela

altura pelas explicações que deu, e um rapaz, que faltava muitas vezes naquela

altura, por causa de uma prolongada sessão terapêutica que o fez perder dois

dias por semana desde o Natal até meadas do 3º período, e que o tornou um

pouco distante de algumas atividades da sala, por muito esforço que os outros

faziam para o manter ao corrente dos nossos assuntos.

O Bernardo e o Isaías mandaram representação: vieram as mães, mas não

vieram eles. O Elson não conseguiu trazer ninguém: veio sozinho.

Às seis, as portas da sala abriram-se para os primeiros chegados. Depois de

meia hora, estavam dois dos dezasseis alunos. No trabalho de plano, apoiei o

André e a Mafalda que estavam a acabar um teste de matemática, vi os textos

que o Luís e a Cláudia estavam a escrever, resolvi um pequeno problema no

computador, com o Elson, ajudei a Tatiana para preencher uma ficha de

leitura, e segui do canto do olho os outros que se diversificaram em atividades

de leitura, de desenho e de recolha de documentos para os novos projetos que

iriam arrancar na segunda-feira.

Quando avisei a equipa (Cláudia e André), que tínhamos que parar para

começar o trabalho de texto, todos, incluindo algumas mães, estavam

admiradas que já eram 7 horas.

Começámos a trabalhar um texto do Isaías, que depois de uma primeira caça

ao erro, ficou assim:

Era uma vez uma sereia e um sereio. Eram muito bonitos.

A sereia casamento o sereio. O sereio disse “aceito” e viveram felizes.

A Cláudia leu o texto.

Mãe do Luís: Faltam palavras.

Eu: É verdade. Aquela segunda frase, é estranha.

Mafalda: Pode ser “O sereio pediu casamento a sereia”.

Eu: Mas é ela que quer casar, não é ele.

Mas alguém quis a escola democrática? 13

Luís: Então “a sereia pediu o sereio para casar”.

Eu: E se queremos manter a palavra casamento?

Mãe da Cláudia: (baixinho) pedir em casamento.

Cláudia: A sereia pediu-o em casamento.

Tínhamos agora:

Era uma vez uma sereia e um “sereio”. Eram muito bonitos.

A sereia pediu o “sereio” em casamento e ele disse: “aceito”.

Viveram felizes.

Parámos depois de 15 minutos, e expliquei aos pais presentes que

normalmente ainda fazíamos propostas para alterar o texto, mas só na

presença do autor. Como o Isaías não estava, não alteráramos mais nada agora,

mas aguardáramos segunda-feira.

Luís reforçou: “Fazemos perguntas, por exemplo: “Tiveram filhos?”, e depois

juntamos a resposta.”

Cláudia: “E “Onde viveram” e “Tinham amigos” e assim.”8

A Cláudia continuou: “Podemos arrumar para a nossa reunião de Conselho?”

Os alunos juntaram os trabalhos que fizeram à folha do plano individual de

trabalho, fizeram a sua avaliação, e apresentaram o trabalho feito aos outros.

Depois:

André: Ouvimos quanto dinheiro há em caixa9.

Guida: A turma deve 21.432 escudos ao Pascal.

Eu: Já sei que o subsídio está na conta da escola. São 22.500 se não me

engano.

Guida: Ainda alguns pais devem dinheiro, podes falar com eles10.

Eu: Depois do Conselho tu e eu falamos com eles.

André: Ouvimos os outros responsáveis que querem falar.

Cláudia: Hoje, as folhas de linhas e as folhas de quadrados estavam todas

misturadas.

Eu: Não foi porque as nossas visitas estiveram a procura de alguma coisa?

Cláudia: Não, porque eles só mexeram nas folhas brancas.

Luís: Mas sabes quem foi?

Cláudia: Só queria dizer que se tem que ter mais cuidado.

Mafalda: Ainda há jornais de Fevereiro e Março para vender. Temos que

montar o jornal de Abril.

Eu: Já combinámos que o jornal de Abril terá o relato da nossa visita ao

museu.

14 Pascal Paulus

Jessica: Eu posso levar mais dois jornais para vender aos vizinhos.

Elson: Ainda não consegui mostrar a todos como funciona a Internet. Só

mostrei a 5 meninos11.

André: Lemos o Diário da turma.

André: “Como vamos fazer com as plantas?” Cláudia.

Cláudia: Temos agora estas plantas todas, como é que vamos fazer?

Luís: Como, como vamos fazer?

Cláudia: Sim, também vai haver responsáveis?

André: O Pascal esteve a regar as plantas.

Eu: Com a Cíntia e a Tatiana. Mas há outras soluções.

Guida: Então mas também pode haver um responsável.

Eu: André!

André: !? Ah! Há candidatos?

Levantam-se seis dedos. É a Iolanda que reúne consenso.

Eu: Proponho que alguém ajude a Iolanda para organizar a grelha.

Mãe do André: Porque não fazem todos os dias outro?

Luís: Fazemos. Isto é: cada um vai regar as plantas, mas é a Iolanda que

controla a vez de quem é.

Cláudia: É como para o computador, ou para as damas, ou para o xadrez e

assim: há um responsável que faz as grelhas para a gente apontar

quem é.

Eu: e...

Elson: E é árbitro, quando há problemas.

Eu: É que existem atritos. Normalmente, aparecem no Diário e depois

são discutidas, mas também acontece que é preciso uma terceira

pessoa para intervir quando há zangas – e há muitas – e então um

responsável, reconhecido por todos, ajuda bastante. Assim não sou

sempre eu que tem que intervir.

Luís: Eu depois ajudo a Iolanda. Já sei como é com as grelhas.

Iolanda olha radiante para as plantas.

[...]

No fim, o pai do André pergunta: Como é que se lembram de tudo que

decidam?

Elson: O Pascal escreve tudo neste livro que está no armário.

Luís: E todas as semanas lemos as decisões da semana anterior, antes de

começar, para ver o que foi feito.

Cláudia: E as regras estão na porta.

Mas alguém quis a escola democrática? 15

Mãe do Luís: Corrigem todos os textos?

Luís: Como assim?

Mãe do Luís: Sim, fazem sempre como fizeram com o texto do Isaías?

Eu: Não. Há demasiados textos para os trabalhar todos em conjunto. Às

vezes, trabalhamos só à dois. Também há textos em que só corrijo os

erros com o autor. Escolhemos os textos que vamos trabalhar juntos,

como escolhemos os que vão para o jornal e para o placar no

corredor, ao lado da nossa porta.

Entretanto, avança a formação da associação de pais por volta do dia 1 de

Junho, depois de, sem grandes formalismos, terem “normalizado” os lanches,

falando umas com as outras, na rua. A reunião é para formalizar a primeira

direção da associação de pais. Há mais ou menos o mesmo número de pessoas,

mas há umas pessoas novas, que vêm sobretudo para se queixar. O processo é

liderado por 3 mães que estavam na reunião anterior. São três mães eleitas para

a direção, uma de cada uma das turmas já referidas. Junta-se um dos três pais

presentes. São 3 cabo-verdianos, uma portuguesa. Uma mãe cigana, muito

ativa, diz que “neste momento” não pode fazer parte da direção.

No fim daquele ano letivo propôs-se uma atividade coletiva para a escola: uma

exposição de todas as turmas a volta do tema daquele ano “Cada livro um

amigo”. A exposição seria das 13.30 até as 18.00. A três insistimos que se ela

prolongue até às 20.

E, de facto, ao todo aparecem, até as 18 horas, só uma dezena de pais...

Sem “happy end”

Quando deixei a escola em 2003 para participar num projecto da Câmara de

Cascais, pensava que a intervenção dos pais na escola estava assegurada. Pouco

a pouco a associação ia ganhando força e entretanto havia pelo menos por

parte do corpo docente uma abertura aos contactos informais e a colaborações

pontuais.

Não contei com a capacidade punitiva que a instituição escolar tem. Logo no

meu regresso a escola em 2006 apercebi-me que os contextos tinham mudado

muito.

O corpo docente tinha mudado outra vez por completo. Na maioria eram

professores novos que desconheciam as relações extremamente complexas

entre por um lado pessoas do bairro, mães e pais mais ou menos interessados

no trabalho dos seus filhos, adultos com más recordações da escola, e ainda

16 Pascal Paulus

muitas pessoas com uma cultura sobretudo oral e por outro lado as estruturas

hierárquicas e normalizantes.

A passagem para agrupamento vertical também alterou em muito a vida da

escola. Como em quase todos os agrupamentos verticais, implantaram-se

lógicas da pluridocência e da organização pós-primeiro ciclo.

Com a preocupação de uma rápida assimilação, reorganizou-se quase tudo.

Toda a gestão tornou-se muito mais distante dos pais e das crianças. A frágil

associação de pais ainda sem estatutos depositados desapareceu quase no

mesmo momento em que as escolas se juntaram. Deixou de haver exposições

de trabalho envolvendo a escola toda a medida que a escola deixou de existir

como entidade. De uma estrutura de reuniões por escola, passou-se a uma

organização de reuniões por categoria profissional, dificultando a afirmação da

escola como identidade própria, diferente das outras do agrupamento.

As reuniões de pais passaram a ser marcadas de forma central, com obrigações

de ordens de trabalho normalizados. Numa lógica de poupar no pessoal, as

reuniões de pais decorrem nos mesmos dias nas mesmas horas e sempre

demasiado cedo. Obriga a maioria dos pais a escolher entre as várias turmas

onde têm filhos quem primeiro vão procurar. Dificulta em muito a

organização de verdadeiras reuniões com troca de ideias e apresentação de

trabalhos.

Perdeu-se a possibilidade de gerir em conjunto (crianças, pais e professor) a

turma e as suas despesas. A própria organização escolar começa assim a

impedir a sua democracidade. Não se disponibiliza uma contabilidade em que a

turma está inscrita como um centro de custos, o que facilitava a gestão a

distância.

Os conselhos pedagógicos transformaram-se em reuniões consistindo

sobretudo em passagem de informações, onde o presidente deste conselho

transmite linhas de orientações hierarquicamente definidas. Não há pais no

conselho pedagógico já que não há associação de pais legalmente constituída.

Não há espaço, como havia anteriormente, para presenças informais12

.

Cada vez que se anuncia oficialmente um reforço da autonomia o debate se

torne mais pobre, mais normalizado e mais autocrático.

A instituição renega a democracia tal como a sociedade política a renega

quando procura reduzir toda a vida pública ao jogo parlamentar. A escola é só

um espelho do défice democrático que se começa a sentir numa sociedade

onde políticos no poder não dão crédito a associações civis, tentam abafar

Mas alguém quis a escola democrática? 17

pequenos partidos, redistribuem entre si os lugares de verdadeiro poder

político e económico, implementando cada vez melhor a oligarquia.

No micro-contexto os pais na escola não são desejados. São tolerados. Os

professores na escola não são facilitadores para a aprendizagem. São fun-

cionários pagos para transmitir normas e conteúdos empacotados em livros

escolares que se tornaram de uso obrigatório.

Os pais esperam do outro lado do portão e dão recados através da grade. Os

professores são aconselhados em não receber os pais na sala de aula, mas num

átrio ou numa sala fria, descontextualizada. Os poucos professores que

procuram envolver os pais e as mães no trabalho escolar dos seus filhos13

fazem-no em reuniões à porta da escola (na rua) ou a margem de toda a

organização normalizante. Aparece uma “dupla contabilidade”: existem as atas

formais e existe o trabalho efetivamente realizado.

Envolver mães e pais em visitas de estudo, em acampamentos e

acantonamentos, convidar mães para assistir e participar em momentos de

trabalho na sala de aula parece algo estranho neste contexto. São as formas que

encontrámos para, apesar da normalização que tende a afastar pessoas,

continuarmos a trabalhar com pessoas e não com papéis.

Mas alguém quis a escola democrática? 19

O tempo da borboleta

(com João Romualdo Silva)

Os fenómenos de desenvolvimento local e de educação são de complexa

análise. Algumas conversas iniciais em que trocamos experiências e pontos de

vista, levou-nos, numa das nossas divagações a outro fenómeno complexo: o

clima de uma região, ou até, do globo.

Lembrámo-nos da história de Lorenz que em 1961 descobriu o que se tornaria

o fundamento da teoria do caos. Ao trabalhar com um sistema de equações

que simulavam as variáveis para modelizar o clima de uma região, descobriu

com apoio do computador, como uma mínima mudança inicial podia gerar um

resultado dramaticamente diferente ao longo do tempo. Porém, o interessante

era que se criava uma representação de um sistema, em que existia um limite

bem preciso da área em que o gráfico resultante do cálculo se desenhava, ainda

que o cursor nunca passasse pelo mesmo ponto, nem era previsível quando ia

passar por um determinado ponto. O sistema, conhecido por “atractor de

Lorenz” apresentava-se na sua forma gráfica como uma dupla espiral em dois

planos, lembrando vagamente a forma de uma borboleta. Foi o que levou o

próprio Lorenz a utilizar a borboleta como metáfora. Num artigo muito

conhecido, descrevia um sistema complexo como aquele onde o levantar de

voo de uma borboleta no Brasil provocava, pelo batimento das asas uma ligeira

turbulência que se ia reforçando com o tempo, podendo provocar um furacão

no Texas. Como não se podia prever a altura do levantar do voo, nem a

direção que a borboleta tomava, ficava claro porque não se podia predizer a

longo prazo e com exatidão o que pode ocorrer aonde, quando se quer dar

uma ideia da evolução do tempo. Só se pode constatar que houve uma

turbulência inicial.

É esta metáfora que escolhemos utilizar na reflexão que aqui apresentamos

acerca de educação e desenvolvimento local, usando-a como pano de fundo

para perceber a nossa intervenção e a nossa experiência no terreno, numa

primeira linha quando trabalhamos com crianças e numa segunda linha,

enquanto como formadores, animadores, consultores de adultos que se

ocupam profissionalmente de crianças.

Apresentamos a nossa reflexão partindo de alguns exemplos, em ‘Histórias com

história’, que procuramos contextualizar, e que nos acompanharão ao longo do

20 Pascal Paulus

texto. Depois de, ainda neste primeiro ponto, constatar o que acontece,

desenvolvemos em ‘Paralelas não se cruzam’ alguns porquês.

Desenvolvemos uma ideia de que a educação e o desenvolvimento, através dos

seus respetivos atores, caminham em geral em linhas paralelas, não se

convergindo, nem num infinito futuro utópico. Procuramos explicações

possíveis quando constatamos que ‘O agente económico fez contas e tomou conta’

fixando o desenvolvimento para a linha do horizonte do crescimento, e a

educação para um horizonte de privatização.

As linhas de horizonte assimilam-se assim como fronteiras de um quadro

definido pelas regras económico-sociais do livre mercado na lógica da

Comunidade Europeia, ela própria orientada pelas regras de um macrosistema

orientado unicamente pela globalização do mercado e da praça financeira.

A contraproposta prudente lança um olhar integrador, no ponto quatro, que se

consegue observando momentaneamente o sistema por fora, como o

Quadrado, convidado pela Esfera, em observar Flatland a partir de uma nova

dimensão, até aí desconhecido pelo Quadrado14. Porém, propomo-nos ser

mais prudentes do que o Quadrado. Assim, desenvolvemos uma ideia de ‘Acão

para uma vida decente: duas malhas de rede’ a educação e o desenvolvimento local

entrelaçam-se e dão sustento ao trabalho com as pessoas, facilitando o

desabrochamento.

Vê-se então, aqui e acolá, uma ou outra borboleta a levantar voo. Na sexta e

última parte do texto, acompanhamos o significado de alguns destes voos.

Histórias com história.

O Moisés vive num bairro tristemente famoso na Área Metropolitana de

Lisboa. É cigano e sofre a escola que considera desinteressante. Os pais,

invulgarmente teimosos em comparação com o resto da família e de grande

parte da vizinhança, delinearam outro destino para o filho: querem que ele se

forme na Escola Profissional, não muito longe do bairro, para “ter uma

profissão a sério”. Mas o Moisés não quer mais escola, e até percebeu que os

seus atuais professores consideram que escola profissional ou escola nenhuma

significa mais ou menos a mesma coisa. Então, começa a faltar à escola e

arrisca-se a perder o ano escolar. Os pais não sabem muito bem como reagir...

Aparentemente, não acontece nada de muito extraordinário com o Moisés.

Simplesmente, ele vive num bairro, num lugar onde não é fácil convencer-se a

si próprio, ou aos outros, qual é a importância da formação. Ou dito com

outras palavras:

Mas alguém quis a escola democrática? 21

“Tudo o incita a abandonar os estudos, mesmo quando os pais, com muita

coragem, o pressionam para que prossiga (pois é certo que muitos operários

e camponeses desejam profundamente que os filhos estudem, pelo menos

para poderem viver melhor). Por outro lado, os filhos que reprovam,

sentem-se rejeitados e desinteressam-se. Frequentando uma classe que

sabem ser a última, onde poderão encontrar forças para trabalhar?

Os pais, por seu lado, receiam sempre que os filhos não possuam o nível

exigido; são os primeiros a «reconhecer» a necessidade da reprovação, pois

ignoram os seus perigos e esperem sempre algum benefício.”

Schwartz, Bertrand (1984, p. 59)

Wilson, Gerson e Nair vivem num bairro na periferia de Lisboa. O pai mudou

de País, a mãe não tem tempo para se ocupar deles. Vivem em casa da avó. Ela

é vendedora de peixe e passa a maior parte do dia na doca e na venda. O avô

raramente está. Quando está, é porque a bebida o obrigou a recuperar.

Quando está, é muitas vezes agressivo com as crianças. As da filha dele, mas

também as outras, dele e da mulher, que ainda andam lá em casa. Wilson tem

um tio, um ano mais velho. Enquanto o tio passa bastante tempo na escola,

porque gosta das refeições grátis e da professora, Wilson prefere ganhar

estatuto roubando a sua refeição e outros bens que lhe dão sustento. Os

irmãos mais novos, com 2 e 3 anos, têm habilidades que mostram que

aprendem depressa e bem com o primogénito.

Marlene, Iuri, Nelson, Tomas, Fátima, Ariana, fazem parte de um grupo de 35

crianças que frequentam um Atelier de tempos livros (ATL) num bairro social

na zona metropolitana de Lisboa, fazendo interstício entre o campo e a cidade.

Quando não estão no ATL, estão entregues a si próprios, a um ou outro

familiar, ou, mais excecionalmente, aos próprios pais. O mundo deles é a rua,

as pequenas provocações entre grupos de crianças, a publicidade televisiva

associada a algumas visitas furtivas a um grande centro comercial não muito

longe do bairro. São crianças de bairros que possibilitam aos técnicos,

especialistas em urbanização e globalização, escreverem diagnósticos como o

que transcrevemos aqui e que retiramos do sítio www.onuportugal.pt/

20010905habitat.pdf:

“A urbanização e a globalização são uma triste realidade dos nossos dias. As

cidades de hoje têm de competir entre si para atrair capitais. Para isso,

muitas autoridades locais oferecem incentivos financeiros, além de outros

de carácter essencialmente prático, como uma infraestrutura e serviços

urbanos que funcionem satisfatoriamente, sistemas de comunicações,

transportes eficientes, habitação suficiente e acesso aos serviços de

22 Pascal Paulus

educação e a lazeres. Mas, no novo “arquipélago urbano” de cidades

competitivas ligadas pela globalização da economia dos nossos dias, a

riqueza passa de uma mão rica para outra. Os pobres foram deixados para

trás.

Pode encontrar-se a pobreza em cidades de todo o mundo. Mas, nas

cidades do mundo em desenvolvimento, é mais profunda e mais

generalizada. Uma criança nascida numa cidade de um dos países menos

avançados tem 22 vezes mais possibilidades de morrer antes dos cinco anos

de idade do que uma criança nascida numa cidade de um país desenvolvido.

Nos países mais ricos, menos de 16% do total das famílias das zonas urbanas

vive na pobreza. Mas, nas zonas urbanas dos países em desenvolvimento,

36% das famílias e 41% dos agregados familiares cujo chefe de família é uma

mulher vivem com rendimentos que se situam abaixo do limiar de pobreza

definido a nível local. A urbanização e feminização da pobreza fizeram com

que mais de 1000 milhões de pobres vivam em zonas urbanas sem

habitação adequada nem acesso aos serviços básicos.”

As situações referidas são exemplos do público com quem trabalhamos. Eles

não são em nada diferente de milhares de outras pessoas, crianças e adultos,

oriundos sobretudo de fora da Comunidade Europeia. É a população

estrangeira residente em Portugal que:

“... do ponto de vista sociodemográfico, [...] apresenta, a nível agregado,

características que tipicamente são referenciadas nos fluxos internacionais

de mão de obra pouca qualificada, a saber: elevada concentração residencial

na Área Metropolitana de Lisboa; um rácio homem/mulher superior a um

(1,4 no período 1990-1995); peso desproporcionado do grupo etário 25-45

anos; e uma inserção no mercado de trabalho dominada pelo gruo de

ocupações socialmente pouco valorizadas, designadamente na categoria

trabalhadores da produção das indústrias extrativa e transformadora e

condutores de máquinas fixas e de transporte”.

Baganha, Maria Ioannis (2001, p. 143)

São crianças cujos pais se incluem em grupos populacionais que provocam

correntes migratórias. Claro que não é “a primeira corrente [que] é composta por mão-

de-obra altamente qualificada, ligada à gestão, às novas tecnologias e ao saber, atraída para

estes nódulos centrais...” Baganha (2001, p. 145), aqueles que são escolhidos a

dedo e que escolhem os seus empregos também a dedo, e para quem a

Comunidade Europeia concebeu o Espaço Schengen, mas representam “a

segunda corrente [que] é formada por mão-de-obra que, independentemente da sua

Mas alguém quis a escola democrática? 23

qualificação é atraída para estas cidades pelas oportunidades económicas geradas

parcialmente pela primeira corrente...” Baganha (2001, p. 145).

Como conta Sélys (1993), o voluntariado é, para eles, um logro: quando se está

no desemprego, assina-se não importa o quê para trabalhar e fazer entrar

dinheiro, também horários pesados ou horários noturnos.

Eles não têm acesso ao poder, nem sequer ao poder representativo, já que na

maior parte dos casos não têm direito a voto, por impedimento legal, ou por

desconhecimento. Não são informados, antes são levados pela desinformação.

No bairro do Wilson, há um local de voto com três secções. Duas delas

abrangem as pessoas com os números de eleitor mais antigo, o terceiro

abrange a população mais nova e os estrangeiros com direito a voto. Uma

rápida leitura dos resultados de cada secção mostra que o absentismo é maior

na terceira secção, que entre os votantes exprime uma preferência muito mais

acentuada para o CDS/PP e o PSD.

Convém lembrar que na Europa, maioritariamente governada pelo PPE – que

já foi o grupo europeu do CDS e que é atualmente o grupo que integra o PSD

– e pelo grupo internacional socialista, existiam, e recorremos a números

citados por Sélys (1993), em 1993, 24 milhões dos 140 milhões de assalariados

europeus com empregos atípicos, ou seja 1 em cada 6.

Estes empregos caracterizam-se por terem horários mais pesados, serem mais

cansativos e muitas vezes menos bem remunerados.

São horários mais pesados em países onde se pode trabalhar 9 horas, como em

Espanha, na Alemanha, na França, ou 10 como no Luxemburgo, nos Países

Baixos e na Dinamarca. Na Bélgica o total de horas diárias legais pode subir

até 12. Vale a pena referir que nestes países o horário semanal subiu; até 48

horas na França, 55 nos Países Baixos, e 65 na Bélgica.

A desregulamentação dos horários laborais pode não depender exclusivamente

da vontade dos parlamentos dos diferentes países membros da comunidade e

muito menos do parlamento europeu, que só tem poder consultivo. O núcleo

duro de onde saem as diretivas é a Comissão, não eleita por voto direto e o

Conselho de Ministros. E Sélys (1993, p. 18) alerta:

“Si le public n’a pas accès aux bâtiments de la Commission européenne ni à

celui du Conseil de ministres e très difficilement à ceux du Parlement

européen (seules les prisons sont plus fliquées à Bruxelles), par contre

certaines personnes s’y déplacent comme chez elles, ce sont les

lobbyistes.”15

24 Pascal Paulus

Ora, estes “lobistas” não são certamente os representantes das pessoas dos

bairros periféricos das grandes cidades. Aliás, que capacidade reivindicativa

teria um suposto lobby de migrantes, de trabalhadores de bairro? Que

conhecimentos têm os migrantes do mundo em que se encontram? A que

consciencialização podem eles apelar? Que direitos é que o acordo de

Schengen lhes proporciona? Citamos Sélys novamente:

‘‘La façon dont on traite des étrangers dans ce qui est connu du texte de

Schengen contribue à porter le discrédit a priori sur les étrangers, à assimiler

tout étranger a priori à une source d’insécurité, à cultiver la suspicion et

dans le climat actuel, à alimenter une banalisation du racisme dont on sait

malheureusement jusqu’à quelle extrémité elle peut conduire.”16

Sélys (1993, p. 29)

Sélys refere aqui uma afirmação do secretário-geral da liga francesa dos direitos

do Homem:

‘‘L’accord de Schengen vise, dans son article premier, la libre circulation des

personnes à l’intérieur des frontières des États composant Schengen. Et puis

s’ensuit 145 articles qui constituent tous des restrictions de liberté.’’17

Michel Tubiana cit. Sélys (1993, p. 29)

A Europa democrática parece ter voltado às origens da democracia. Como no

tempo de Atenas, a gestão é do povo com dinheiro e influência. Ou, por

outras palavras,

“On pourrait dire qu’on retourne au principe du vote censitaire, quand les

gens pouvaient voter selon leur capacité de propriétaire, de l’argent qu’ils

avaient. Maastricht c’est un peu ça, on revient avant la révolution

keynésienne, on en revient avant la révolution française.’’18

Luciana Castellina cit Sélys (1993, p. 71)

O Moisés, o Wilson, a Nair, a Marlene e os outros parecem, para já, ter o

direito de permanecerem no seu próprio bairro, na sua própria ignorância,

procurando arranjar trabalho não qualificado ou vivendo de pequenos furtos e

roubos. Wilson, com os seus 10 anos, é perito em assaltar carros e fugir com

eles. Entretanto, o Moisés parece juntar-se aos 54% de jovens que entrarão nas

estatísticas do abandono escolar ao nível do ensino secundário.

Juntam-se assim aos outros jovens, que por conveniência europeia deixaram de

ser criança. Lembramos que a percentagem de trabalho de jovens

trabalhadores (entre 13 e 18 anos), nalguns países da União Europeia era em

1989 (Sélys, 1993):

Mas alguém quis a escola democrática? 25

EU B D NL P GB DK

15 % 1 % 12 % 16 % 25 % 43 % 44 %

Enquanto para os Países Baixos e a Dinamarca se trata de trabalho muito

controlado e declarado e em tempo parcial, depois da escola, como a

distribuição de jornais por exemplo, sabe-se que para Portugal, Grã-Bretanha e

Espanha os números estão aquém da realidade que provavelmente apresentam

o dobro deste número.

Convém ainda lembrar que, pelo menos no papel, todos os estados membros

proíbem o trabalho infantil, a Inglaterra aliás desde 1802.

Mas também convém lembrar que para a Convenção das Nações Unidas, a

criança é como um ser humano com menos de 18 anos. Para a diretiva da

Comunidade Europeia que define o trabalho infantil, uma criança é um jovem

com menos de 15 anos. Nesta diretiva, a palavra criança é sistematicamente

substituída por “jovem”. A OIT recomenda, por fim, que a idade de trabalho

nunca seja inferior aos 15 anos e equiparada ao fim da escolaridade obrigatória.

As paralelas não se cruzam.

Aparentemente, as crianças de quem falamos deveriam estar enquadradas pelas

políticas de proteção, de desenvolvimento e de educação que a Comunidade

Europeia diz desenvolver. Iremos pensar um pouco acerca de duas destas

linhas: a educação e o desenvolvimento. Aqui, é nos difícil falar em

desenvolvimento local. Mas até teria sentido. Menos documentados,

poderíamos pensar que instrumentos como o Projeto Educativo Local, o

Projeto Educativo da Escola, os Conselhos Pedagógicos, o Conselho

Municipal de Educação, os vários planos de erradicação da pobreza, de

realojamento, de formação profissional, de aprendizagem ao longo da vida, de

coesão social, de desenvolvimento sustentado, todos eles utilizados por

políticos locais e europeus, deveriam dar fruto.

Mas como Moisés, Wilson e Marlene, vemos que as coisas não funcionam.

Os agentes de educação demitem-se, não percebem, ficam nervosos ou

incapacitados, os agentes de desenvolvimento não têm, dizem eles, respostas

adequadas.

O que se passa? Porque é que, num contexto de tão prezado e eficaz iniciativa

privada, as crianças com quem trabalhamos parecem ter os problemas que

têm?

Sélys (1993) considera que Maastricht é uma etapa importante para a

restauração de um capitalismo puro e duro, obrigando vários estados a

26 Pascal Paulus

desmantelar a proteção social construída ao longo de décadas. Na Bélgica, isto

implicou retirar das famílias, milhares de milhões de francos belgas,

aumentando taxas e impostos indiretos, retirando benefícios ao sistema de

saúde, enquanto os mesmos milhares de milhões são gastos sem um piscar de

olhos para sustentar moedas externas, isto é, para beneficiar especuladores,

nomeadamente bancos privados.

Isto pode ser parte do problema que torna o privado menos interessante e

interessado para as populações migrantes que vivem na periferia das grandes

cidades. Mas, já que a educação e o desenvolvimento teimam em se situar

paralelamente um ao outro, olhemos para cada um deles.

O olhar (clássico) do agente da educação

À partida o trabalho educativo, na escola e na periferia da escola parece bem

bonito e simples. Basta referir que:

“... o sistema de educação escolar pode afirmar-se como um lugar central de

afirmação da cidadania numa sociedade comunicacional gerida de um modo

dialógico, embora tendo sempre presente que a escola é um local de luta e

de compromisso, que não se muda por decreto ou discurso retórico, como

lembrava Paulo Freire,” Teodoro (2001, p. 155).

Dito assim, parece simples mas demasiado bonito para ser verdade. A escola e

todo o sistema educativo, promovendo o desenvolvimento e a aprendizagem

da pessoa cidadã. De facto, as coisas não correm bem assim e o autor

continua:

“Em trabalho de investigação terminado recentemente, mostra-se que uma

das características principais do processo de construção da escola de massas

em Portugal foi, precisamente, o seu carácter retórico – precoce no acto

legislativo e no discurso político, excessivamente tardio nos meios e nos

recursos (...)” Teodoro (2001, p. 155).

Parece-nos que existem vários problemas. Wilson e as crianças do Bairro da

Marlene não reconhecem na escola aquele lugar de afirmação. Têm alguma

dificuldade em perceber a sociedade comunicacional. Aliás, onde haveriam de

exercitar o diálogo? Não têm, à sua volta as pessoas e os contextos culturais

que lhes permitam desenvolver a capacidade de comunicação. As mensagens

são diretas, curtas de poucas palavras e de fácil perceção e execução. Somos

céticos, mas Sélys (1993, p. 136) mostra-se ainda mais cético e refere que a

Comunidade diz que a escola tem três objetivos: formação profissional, formar

pessoas, formá-las de maneira que se sintam bem enquanto estão a ser

Mas alguém quis a escola democrática? 27

formadas e formar futuros cidadãos na sociedade com um olhar crítico. Isto é

muito discutível, disse ele, se existe uma colagem muito forte entre empresa e

escola.

Mas no caso de Wilson e sobretudo de Moisés, as coisas tendem a complicar-

se ainda mais. Mesmo quando parece existir um projeto traçado, uma ideia de

projeto de vida que depende, em parte, da formação curricular formal da

escola, eles encontram-se em contracorrente. A escola tal como uma parte do

meio, considera e valoriza sobretudo o saber académico. Prosseguir estudos

numa escola profissional, não é considerado da mesma forma. Não se

estimula, não se prepara da mesma forma, como para os estudos que estão

mais em consonância com o próprio referencial pessoal dos professores. Este

referencial tende a ser encarado como a própria quinta-essência da nação, ou

dito de outra maneira:

“Será o caso, por exemplo, da questão da identidade nacional, que surge na

escola portuguesa como um ingrediente da própria modernização? Stoer e

Cortesão denunciam precisamente aquela dimensão ideológica tal como se

prefigura nas perceções profissionais dos professores: «além da sua

perceção de Portugal como país social e culturalmente homogéneo os

professores recusam, em princípio, reconhecer diferenças sobretudo dentro

da sua sala de aula. (...), não deixando interferir esse tipo de questões

naquilo que eles reputam ser um processo de ensino-aprendizagem

universal».”

Magalhães, António M. (2001, p. 325)

Assim, parece-nos que temos uma escola que, em abstrato, prepara

profissionalmente as crianças e os jovens, mas que, em concreto não se

consegue situar. Valoriza, humanisticamente, a transmissão do saber e a

preparação de um saber-fazer suficiente para saciar a sede da aprendizagem.

Por outro lado, cola-se à empresa, para justificar a formação de operários, mais

ou menos especializados. E no seguimento de Bourdieu, é-nos claro que a

escola reproduz os modelos sociais e não nos espanta a afirmação de Schwartz

(1984, p. 43) que segundo dados da OCDE em 1968, o ensino superior na

França serve num ratio de 1 para 18 para filhos de trabalhadores manuais em

relação a filhos de profissões liberais ou quadros superiores.

O que já é mais difícil de perceber, é como é possível que

“[...] muitos jovens encontram-se totalmente privados de formação

profissional e não conseguem sequer ser operários qualificados, nem a

fortiori técnicos. Condenados a ser operários e a realizar trabalhos mais

duros, não lhes é permitida nenhuma oportunidade de promoção ou de

28 Pascal Paulus

mudança. Ora, toda a sociedade deve permitir que os cidadãos defrontem

os dados móveis do mercado do trabalho, permanentemente, e não apenas

no limiar da vida ativa.” Schwartz (1984, p. 44)

Só se torna perceptível se explicitarmos o que está oculto na necessidade

constante em constranger a escola pública. É que na mercantilização extrema

do trabalho em todos os ramos de actividade, se torne mais difícil em manter-

se competitivo para conseguir emprego. A escola não está interessada em

manter todos competitivos, até porque a sociedade e as empresas precisam de

um mínimo de pessoal não qualificado. Ou, como refere Schwartz:

“É verdadeiramente de um filtro que se trata. É evidente que a escola forma,

é evidente que os professores procuram reduzir as desigualdades de

oportunidades, é evidente que a escola gratuita, laica, obrigatória, permitiu

uma promoção social das camadas populares. Mas com a evolução do

mundo moderno, as camadas favorecidas utilizaram cada vez mais o sistema

a seu favor, a escola deteriorou-se e desempenhou cada vez menos o seu

papel de emancipação.” (1984, p. 47)

Ainda queremos juntar às ideias anteriores, acerca da ambiguidade da escola e

das instituições peri-escolares, em relação às vivências de jovens e crianças,

pouco reconhecível pelos agentes que nestas instituições atuam, uma outra: a

formação que se diz ocorrer em contexto multicultural e transversal aos grupos

sociais, leva na prática, pelo pouco acompanhamento dos agentes a uma

estratificação social que os jovens das classes favorecidas impõem: a não

mistura e a hostilidade com que são recebidos os meios sociais que não são os

deles, foram objeto de estudo e:

“é notória a tendência para um maior fechamento por parte dos grupos de

meios sociais privilegiados. [...] Por outro lado, é entre as raparigas dos ditos

meios sociais favorecidos, que tal fechamento se faz sentir com particular

intensidade. [...] De facto, tudo nos leva a crer que nos cenários escolares, os

grupos de amigos surgem muitas vezes como substitutos ou equivalentes

funcionais do controle social familiar.”

Lopes, João Teixeira (1996, p. 73)

O olhar (clássico) do técnico de desenvolvimento (crescimento)

Separado do agente educativo, o técnico de desenvolvimento levanta questões.

Muitas vezes existe um contexto político específico hostil às populações

migrantes. Estas políticas hostis influenciam a sua atuação. Um termo muito

ambíguo é o conceito de patamar de tolerância. Defende-se que a tolerância

entre uma população para os migrantes desaparece desde que se atinge uma

Mas alguém quis a escola democrática? 29

determinada percentagem de indivíduos e que isto deve ser o ponto de

saturação a partir do qual não são admitidos novos indivíduos.

Acontece que, os inquéritos realizados para esta questão no seio da

comunidade europeia, não associa o contacto com migrantes como causa para

atingir o patamar de tolerância. Diz Sélys):

“L’enquête montre au contraire que pour un pays donné, et ça se vérifie

partout en Europe, on est aussi raciste dans un petit village où ne vit pas un

seul immigré que dans un quartier à forte densité d’étrangers.”19

(1993, p. 35

Neste contexto, vale a pena transcrever o que Anne Melich, administradora

principal do serviço de sondagem da comissão europeia e coordenadora deste

inquérito nos revela:

“L’explication de la présence des immigrés, comme expliquant l’intolérance,

n’est pas vraie. Elle n’est pas vraie non plus dans les autres recherches que

nous connaissons. Par exemple, en France, on en a fait beaucoup. Dans les

quartiers de Paris, Grenoble, Lyon ou dans les villes françaises où il y a le

plus d’immigrés, ce n’est pas là qu’on trouve la plus grande intolérance. Le

taux d’intolérance en France est très souvent le fait de personnes qui ne

sont pas en rapport avec les immigrés. […] Le seuil de tolérance n’a pas de

base logique ni scientifique.’’20

Sélys (1993, p. 36)

Mas não deixa de ser interessante saber que o antigo primeiro ministro e atual

presidente da França, Jacques Chirac, exigia uma diferenciação entre

prestações sociais para franceses verdadeiros e estrangeiros, no sentido de

encorajar os estrangeiros a voltarem para o seu país de origem caso saíssem do

sistema produtivo.

As crianças do bairro do Wilson aperceberam-se da sua qualidade de diferente

apenas tolerado, aquando de uma deslocação para outro país do espaço

Schengen, descobriram que não eram cidadãos europeus, pura e simplesmente

porque Portugal não os considera portugueses. Deixavam assim de ter

assistência abrangida pelo sistema público de Saúde e tiveram que recorrer a

um seguro privado de saúde para o período de estadia fora de Portugal.

E aqui temos um elemento perturbador. Estas situações não são normalmente

objeto de estudo. O agente de desenvolvimento não dispõe de investigação

fenomenológica que o poderá ajudar no seu trabalho de intervenção. Poderá

realizá-lo procurando para tal um enquadramento que é difícil de encontrar.

Ora, a investigação, ainda que se tenha liberto da tirania dos dogmas, ia

30 Pascal Paulus

“... aprofundando as interdependências das ciências, do poder político e da

ordem económica capitalista, a uma relação instrumental com o mundo, de

dominação em nome de uma nova autoridade, a autoridade da ciência, e de

um novo princípio de intervenção, a tecnologia” Nunes (2001, p. 315).

Parafraseando uma ideia de Boaventura Sousa Santos, poderíamos afirmar aqui

que a ciência tornou-se nada prudente e produziu uma vida nada decente. Ou,

para retomar o discurso de Nunes, parece-nos difícil pensar que: “o esquecimento

da história das ciências, dos contextos sociais e culturas e dos conflitos políticos...” junto

com uma proposta de desenvolvimento baseado em modelos importados, são

dois factores

“... importantes para a afirmação e consolidação dessa «cultura da não-

cultura»”. Esta não-cultura, por sua vez, facilita a ocultação de uma “...

estreita relação que as ciências modernas ocidentais mantiveram com

dinâmicas de dominação social, económico e militar, que resultaram na

marginalização, exclusão ou mesmo destruição de modos de conhecimentos

diferentes radicados em experiências históricas distintas.” Nunes (2001, p.

315).

Percebe-se então facilmente que espreita o risco de demostrar cientificamente

a futilidade do conhecimento e da experiência histórica do migrante não

Europeu ou ainda proveniente do mundo não ocidental.

Só uma recusa de um trabalho científico sério e de uma avaliação séria das

situações em que as populações migrantes internas ou externas se encontram,

podem justificar a produção de textos políticos vazios de qualquer sentido real,

mas que são entusiasticamente subscritos e divulgados, como este da Cimeira

do Milénio em Nova Iorque (www.onuportugal.pt/20010905habitat.pdf)

Reduzir para metade, até ao ano 2015, a percentagem de habitantes do

planeta com rendimentos inferiores a um dólar por dia e a das pessoas que

passam fome; de igual modo, reduzir para metade a percentagem de

pessoas que não têm acesso a água potável ou carecem de meios para a

obter.

Até ao ano 2020, ter melhorado consideravelmente a vida de pelo menos

100 milhões de habitantes das zonas degradadas, como foi proposto na

iniciativa "Cidades sem bairros degradados".

Formular e aplicar estratégias que proporcionem aos jovens de todo o

mundo a possibilidade real de encontrar um trabalho digno e produtivo.

Estabelecer formas sólidas de colaboração com o sector privado e com as

organizações da sociedade civil em prol do desenvolvimento e da

erradicação da pobreza.

Mas alguém quis a escola democrática? 31

A cultura da não cultura revela-se no discurso claro e direto dos encarregados

do lobbying nos centros de decisão política, o que por si próprio ilustra que

todas as propostas não passam de discurso político sem fundamento.

Gérard de Selys (1993, p. 20) refere vários deputados europeus que explicam

como funciona este tipo de lobbying:

M.C.: «Il y a l’arme de la dénonciation publique, vous pouvez, par

exemple dire à la personne qui traite le dossier: Si c’est vraiment la

position que vous allez adopter l’industrie va prendre telles positions

publiques, où seront dénoncées les positions que vous avez prises.»

Francis Wurtz (acerca da manteiga de cacau): «... et bien, j’ai reçu la

visite du président d’un important consortium de compagnies de

chocolatiers qui a essayé de m’expliquer que j’avais vraiment tout

intérêt, au nom sans doute de la solidarité occidentale, à défendre les

intérêts des firmes européennes de chocolat plutôt que celui de ces

pauvres bougres du Sénégal, de Côte-d’Ivoire ou du Bénin.»21

Concluindo, consideramos que a não convergência entre a educação e o

desenvolvimento, mantém o poder numa situação confortável, em que lucra

duas vezes: a educação mantém-se no registo dos saberes simples e não forma

criticamente, porque não parte da análise previamente feita e o

desenvolvimento fica à mercê do lobbying perto do poder, porque não existe

um espírito crítico treinado. Ou, como afirma Bertrand Schwartz

“A educação permanente traduz-se então, pela transformação de

necessidades não sentidas em necessidades sentidas. Estamos muito longe

das aulas, dos programas, da Matemática, do Francês ou da formação

profissional!

Por que se reduz a isto a educação dos adultos? Será precisamente porque a

Matemática ou a Gramática, sobretudo em doses reduzidas, não

apresentam qualquer perigo, não «conscientizam» ninguém?.. De qualquer

modo, aí reside a chave do problema. Sem consciência de transformação

não haverá formação.

A educação dos adultos pode tornar-se elemento de igualação de

oportunidades, mas não caiamos no pedagogismo: só desde que defenda

um novo tipo de vida social e profissional, desde que se modifiquem as

relações sociais.” (1984, p 71)

Parece-nos pertinente alargar a pergunta e dizer: “E porque se reduz também a

isso a educação das crianças?” Para que não conscientizem também elas?

Porque não têm mesmo importância? Pareceu-nos importante tentar perceber

melhor.

32 Pascal Paulus

O agente do mercado fez contas e tomou conta.

Europa

Para perceber a construção da Europa, convém voltar ao fim da segunda

guerra mundial e lembrarmo-nos do “aliado” americano. (Sélys, 1993).

O discurso de Harry Truman é muito claro: “O mundo inteiro tem que adoptar o

sistema americano, porque o sistema americano só poderá sobreviver na América, se ele se

torna o sistema mundial” (6-03-46)

Os primeiros passos da globalização depois da segunda guerra mundial, numa

altura em que os interesses americanos incidem sobre os investimentos feitos

na Alemanha, obrigam a uma substituição dos cartéis por uma política

facilitadora de importação de carvão e aço alemão nos países da Europa, eles

próprios interessados em produção própria. Os americanos impuseram a

formação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) com a

respetiva abolição de restrições aduaneiras.

A reconstrução e a aproximação não é resultado da vontade do povo Europeu

mas da necessidade económica dos investidores americanos.

Yalta apontava para o desmantelamento da indústria de guerra alemã, e as

nacionalizações previstas e acolhidas pelos alemães do pós-guerra são

contrariados pelos americanos que não querem perder o capital investido antes

da guerra e pretendem uma Alemanha forte, servindo de muro contra o

comunismo.

Nem Yalta nem Potsdam, previram a divisão da Alemanha, mas antes uma

ocupação conjunta com objetivos comuns de retribuição de danos de guerra.

Os soviéticos, à partida mais credores, tinham inclusivamente direito a 50% do

montante global das reparações (prometido pelo Roosevelt).

Será neste contexto de ultrapassar o que foi negociado, que os americanos

impõem a bi-zona aos ingleses, para ter controlo direto sobre a produção do

Ruhr, que provocam o GATT e que é criado o Fundo Monetário Internacional

(Março de 1947). Posteriormente será lançado o plano Marshall.

Vale a pena também recordar que na sequência dos Tratados de Maastricht e

da formação do espaço Schengen, se opte por criar uma superpolícia, depois

de já ter havido outros grupos especiais. Interessante é a mudança de

significado do nome do grupo TREVI, que foi criado em 1975 perto da fonte

Trevi (daí o nome) para combater contra o terrorismo. Em 1989 é um

subgrupo do grupo de coordenação “livre circulação” e torna-se sigla de

Terrorismo, Radicalismo, Extremismo e Violência Internacional (Sélys, 1993).

Mas alguém quis a escola democrática? 33

Portugal

Os processos migratórios internos e externos em Portugal obedecem a

características que Baganha define assim:

“O que melhor caracteriza os atuais processos migratórios em Portugal é a

existência em simultâneo de fluxos de entrada e de saída de migrantes com

perfis económicos semelhantes, que se vão incorporar economicamente em

Portugal ou nos diversos países de destino essencialmente nos mesmos

segmentos do mercado de trabalho. Ora, como é sabido, a ocorrência

simultânea de fluxos migratórios de saída e de entrada similares na sua

composição e inserção económica de e para um mesmo país é uma

anomalia teórica.” (2001, p. 142)

Porém, é exatamente esta anomalia teórica que encontramos nos bairros nos

quais intervimos ou dos quais saem as crianças que acompanhamos depois de

aos “pais” lhes terem retirado a tutela. A subsistência das pessoas destes

bairros e também dos que desenvolvem atividades económicas (normalmente

em economia paralela por não possuírem o saber ou a documentação

necessário a uma atividade legalizada depende de

“atividades que não requerem qualquer tipo de qualificação e para as quais

os nacionais respetivos não demonstram possuir qualquer atracão. Neste

contexto, e dadas as atuais restrições à entrada legal de imigrantes

económicos, as oportunidades de trabalho neste segmento do mercado de

trabalho estão a ser progressiva e sistematicamente preenchidas por

imigrantes ilegais ou a trabalhar ilegalmente, situação potencialmente

geradora de situações de exploração económica e de exclusão social para

muitos dos novos «indesejados»”.(Baganha, 2001, p. 145)

Paradoxalmente, é a situação de viver no bairro em que a maioria exerce o

mesmo tipo de atividade de mão-de-obra barata e pouco ou não qualificada

que mantém as pessoas no trabalho. Pertencem aos mesmos circuitos,

trabalham para um grupo restrito de subempreiteiros, no caso do trabalho na

construção civil e, relacionam-se com os mesmos contratadores. Como foi dito

anteriormente, não discutem a deslocação e a ausência às vezes prolongada de

casa. Favorecem o aumento da margem de lucro dos empregadores, pelo

simples facto de serem rapidamente deslocáveis dentro do espaço Schengen

não obrigando os angariadores a recorrer à mão-de-obra importada

clandestinamente. Os bairros onde intervimos figuram assim, quase como uma

reserva estratégica que serve todo o espaço Schengen.

34 Pascal Paulus

“Dito de outra forma, a existência de liberdade de circulação de capitais,

serviços, bens e pessoas sem uma harmonização dos sistemas fiscais

nacionais, custos sociais do trabalho e sistemas de segurança social está a

determinar uma redistribuição significativa de mão-de-obra no espaço da EU

e simultaneamente a minar o denominado «modelo social europeu».

(Baganha, 2001, p. 147)

Educação

A comissão europeia (europa.eu.int/comm/)lança uma serie de promessas em

“Os desafios das cidades europeias”

Acesso económico aos serviços básicos, especialmente, habitação,

educação e formação, saúde, energia, transportes e comunicações,

policiamento eficaz e justiça.

Vias que levem à integração, em particular, para o núcleo duro de

desempregados de longa duração, jovens que abandonaram o ensino,

famílias monoparentais, minorias étnicas e outras vítimas da exclusão

social.

Estratégias de desenvolvimento económico que apoiem as empresas

locais, especialmente o arranque de novas empresas e as empresas das

comunidades locais através da criação de infraestruturas adequadas,

aconselhamento e serviços de apoio.

Melhoramento do ambiente físico, designadamente, renovação do

parque habitacional, medidas para reduzir a poluição e o vandalismo,

proteção e melhoramento dos edifícios e espaços públicos nas zonas

degradadas, bem como preservação do património histórico e cultural.

Desenvolvimento das comunidades locais que incentive a mistura das

várias camadas sociais e uma maior segurança pessoal, incluindo a

manutenção nas zonas desfavorecidas de centros comerciais e de lazer

locais.

Porém, não propõe políticas concretas e não refere a educação neste contexto.

Sabemos por outro lado que a educação de um país como Portugal não é

definida só pelo próprio governo, mas que existem perspetivas e ideologias que

ultrapassam a visão nacional.

Reproduzimos uma grelha de Teodoro (2001, p. 147). A grelha não obriga a

grandes comentários. Torna-se bem visível que os organismos internacionais

como a OCDE ou o Banco Mundial, que regulam e orientam em primeiro

lugar a economia local e global, influenciam, através do apoio técnico, uma

política educacional.

Mas alguém quis a escola democrática? 35

Org internacional. dominante

na assist. técnica

1955-1974 1974-1975 1976-1978 1979-1986

OCDE UNESCO Banco Mundial OCDE

Base política nacional

de apoio

Sectores

industrialistas,

tecnocratas e liberais

do Estado Novo (em

contraponto aos

sectores ruralistas,

principal apoio do

regime nos anos 30 e

40)

Poder

político-militar

revolucionário +

esquerda socialista,

comunista e

revolucionária

Partido Socialista Nova Direita (AD) e

Bloco Central (PS +

PSD)

Ideologia educacional

dominante

Ocdeismo Educação –

democracia –

cidadania, como

sinónimo de

socialismo

Normalização da

política educativa

como condição de

uma democracia

representativa

Novo vocacionalismo

e formação de

recursos humanos

como resultado do

mandato europeu

Principais intenções –

medidas de política

educativa

Expansão da

escolaridade

obrigatória pós-

primária,

planeamento

educativo,

modernização da

administração,

criação de novas

universidades e

reforma do ensino

superior.

Gestão democrática

das escolas

(autogestão),

democratização do

sucesso educativo,

educação

permanente,

superação da divisão

social do trabalho e

na organização do

sistema do ensino

Ensino superior de

curta duração,

contingentação do

acesso ao ensino

superior (numerus

clausus), reforço dos

poderes da

administração central

da educação.

(Re)criação do ensino

técnico profissional.

Mas além de influenciar, existe uma vontade expressa para a privatização de

parte do sistema de formação.

Sélys e Hirtt (1997: 101) lembram o acordo geral acerca do comércio e dos

serviços – Marraquexe 1994 – que foi assinado por 124 países e que prevê que

os governos subscritores devem atribuir subsídios às sociedades privadas de

ensino instaladas no seu território na mesma base que os subsídios atribuídos

ao ensino público. Se recusam, podem se ver proibidos em subsidiar o seu

próprio ensino público.

A intervenção educativa nos bairros periféricos deveria portanto obedecer a

uma política que permitisse ir ao encontro das prioridades referidas pela

própria comunidade europeia. Com meios públicos? Com meios privados?

Com iniciativas mistas? Com reforço de meios e recursos nas instituições

existentes? Com que participação na preparação das pessoas? Dizem Sélys e

Hirtt (1997: 87) que a formação dos professores do ensino básico é

36 Pascal Paulus

insuficiente. Conforme o país, é se formado professor em três ou quatro anos.

Necessita-se de cinco, sete ou mais anos para formar um bom quadro

comercial. Concluem com a pergunta se será mais difícil negociar um contrato

do que de instruir uma criança.

A racionalização dos custos públicos com a formação, que se percebe através

da declaração de Bologna que obriga a diminuir e normalizar o tempo de

formação para uma licenciatura, só provocará uma ainda maior fragmentação

do currículo da formação inicial, prejudicando a capacidade de análise e de

perceção de situações que por si só são muito complexas.

Desenvolvimento

O desenvolvimento preconizado e afixado pela Comunidade Europeia

constrói-se paradoxalmente à revelia dos povos interessados. É assim que se

percebe o interesse dos grupos de lobbying para um desenvolvimento reduzido

ao crescimento financeiro dos grupos económicos que atuam no seio da

Europa, mas não só, baseado no desenvolvimento do consumismo22. Os

acordos necessários a este desenvolvimento, ou são pouco divulgados, como o

supracitado acordo de Marraquexe, ou são negociados muito discretamente.

Ao falar do secretismo na negociação do acordo de Schengen, Sélys afirma:

‘‘Je trouve que c’est un précédent extrêmement grave dans la mesure où

c’est une question dont l’impact concerne beaucoup de pays de la

Communauté et hors de la Communauté et qu’elle a été l’objet d’une

tractation de plusieurs années dans le plus grand secret sans aucun contrôle

parlementaire, sans aucun débat au grand jour. Personne n’a été consulté.

Et s’il n’y avait pas eu l’attitude courageuse et juste du gouvernement

néerlandais qui a saisi son Parlement de cette question, peut-être

qu’aujourd’hui encore on ne saurait rien.’’23

(1993, p. 26)

Não se trata de situações inéditas. Vimos que a própria construção da união

europeia, a partir da CECA24, tem segredos que só vieram a ser divulgados

recentemente, ainda que já em 1952, o historiador Gérard Bossuat (cit Sélys

1993, p. 61) escrevesse que os Estados Unidos prometiam 500 milhões de

dólares a França, se ela ratificasse o tratado da CECA. O que estava em jogo

era a salvaguarda do investimento americano na indústria do Rhur25.

Outro desenvolvimento europeu é a revogação da interdição do trabalho de

noite, apresentado como uma vitória por parte do patronato mas também de

um determinado sector feminista, que vê nisto um argumento duvidoso de

igualdade de direitos, quando se analisa o que o trabalho noturno ou irregular

significa para o fim da coesão familiar e do sucesso escolar dos filhos26.

Mas alguém quis a escola democrática? 37

Ou, com as palavras de Sélys:

“La dénonciation de cette convention a réjoui le patronat et certaines

féministes. Il est intéressant, à cet égard, de rappeler qu’au début du siècle

déjà, les féministes bourgeoises étaient contre l’interdiction du travail de

nuit estimant que c’était une discrimination, et les ouvrières, au contraire,

en faveur de l’interdiction parce que, pour elles, le principal problème

n’était pas la discrimination mais bien l’exploitation dont étaient l’objet aussi

bien les hommes que les femmes.’’27

(1993, p. 90)

Aliás o mesmo autor cita alguns números que dão que pensar (Sélys: 1993, p.

115). Considerando o critério oficial de pobreza na Europa: ‘é pobre quem

ganha metade ou menos da metade do salário médio do país’, a Comunidade

contava com 30 milhões de pobres em 1980, enquanto durante a execução do

2º plano de apoio aos pobres, em 1985, este número subiu para 44 milhões.

Em 1992, dois anos depois do arranque do 3º plano já se contava com 51

milhões de pobres.

Na altura, havia uma verba de quase 12.500.000 euro ou seja, 0,24 € por pobre.

Na mesma altura despendia-se a mesma soma para apoiar um projeto de golfe

em Malmedy (Bélgica) e investia-se 4 vezes mais em programas como o

Erasmus, privilegiando a livre circulação de futuros quadros das empresas,

incluindo quadros do I&D.

Dito por outras palavras, o programa contra a pobreza representava em 1992

1/6300 do orçamento europeu, aplicado por inteiro no financiamento da

montagem de 39 projetos-piloto com duração de um ano, nos 12 países de

então.

Não é difícil perceber que estes projetos não beneficiam necessariamente

“os operários, e mais ainda os imigrantes, vivem em cidades, bairros ou

zonas pobres; significando o termo «zona» a localização marginal dessas

cidades-dormitórios que se limitam a organizar o sono, e mesmo esse...

Isolados de toda a vida cultural, essas «zonas» não são só pobres, como

segregam o empobrecimento cultural, não obstante os esforços realizados

por certas administrações municipais.” (Schwartz: 1984, p. 112)

A contraproposta prudente: o olhar integrado.

O reencontro entre a educação e o desenvolvimento local e sustentado não é

uma questão do ‘oposto do que se está a fazer’. Não se trata simplesmente de

contrariar os excessos de um mercado liberal ou neoliberal em que as regras

são ditadas por grandes grupos económicos com uma contraproposta de

38 Pascal Paulus

formação em que se põe a tónica num tipo de ‘reeducação’ em que os

responsáveis do estado pretendem saber o que é o melhor para as pessoas.

Schwartz alerta que:

“[...] paradoxalmente, a alternância escola-produção se apresenta à socie-

dade socialista com uma dupla origem que contribui fortemente para man-

ter o equívoco a seu respeito. Ela é simultaneamente uma herança capita-

lista e um projeto marxista. Herdeira capitalista porque a alternância consis-

tiu, e consiste ainda, em adaptar o material humano às exigências, às nor-

mas, à ideologia das classes dominantes, a fim de o integrar nas tarefas de

produção a pretexto de formação.

Projeto marxista, porque assenta na convicção de que só a participação dos

jovens na produção, durante o período da educação inicial, realiza essa

educação total em que a libertação das pessoas e a integração social

encontram a sua justa articulação.” (1984, p. 208)

Uma pista para uma construção mais prudente poderá passar pela

diversificação do trabalho educativo, convidando o estabelecimento de

parcerias locais entre intervenientes adultos. E aqui, a formação não formal

pode ser um contributo interessante em complemento com a formação formal.

Lembramos aqui Rogers, quando diz:

“Non-formal education is open to anyone irrespective of their former

educational level, whereas formal education is highly selective, dependent

on prior success in educational terms, rejecting the many and selecting the

few to continue their studies further. Because of this, formal education is

strongly organized; we can speak of a formal education system. Non-formal

education on the other hand has no clear pattern, no structure; we can only

speak of non-formal education programmes.”28

(1992, p. 26)

Pensando já no bairro onde mora o Moisés, onde moram o Wilson, o Gerson

e a Nair, no bairro também da Marlene, do Thomas e dos amigos deles, vemos

a junção da formação não-formal dos professores educadores e monitores de

tempos livres, em complemento à sua formação profissional formal, que todos

tiveram. A formação não-formal, passa por contactos com os país, por

passeios nos bairros de onde provêm as crianças com quem trabalham, ou, em

alternativa, se a entrada livre no bairro for difícil, pela construção de sinergias e

complementaridades com os mediadores de bairro e / ou os responsáveis de

organismos que intervêm diretamente nele, torna-se assim uma peça

fundamental. A formação não-formal também é a formação predileta dos

mediadores, dos animadores de bairro, dos pais e amigos que aí se

movimentam.

Mas alguém quis a escola democrática? 39

Um trabalho de reflexão a partir daí ajudará para que os atores ...

“...identificam parcialmente os indivíduos que, na sua economia subjetiva, aí

se identificam como eus, e entre a autoidentificação e a determinação pelos

lugares introduz-se uma distância, precisamente aquela que a reflexividade

individual possibilita. E a escola e por excelência o lugar onde a meta do

«bilinguismo cultural» (Stoer e Cortesão, ibid.) e a expressão da relatividade

das diferentes culturas poderão abrir possibilidades materiais e opções de

práticas sociais com as quais e pelas quais os indivíduos possam resignificar

as narrativas que as suas identificações são.” (Magalhães: 2001, p. 325).

Parece-nos oportuno falar aqui, além da borboleta, de outra metáfora, que

Roque Amaro (2000) utiliza: é a metáfora da semente, que uma vez plantada

em terra, regada e alimentada, acaba por revelar a potencialidade que tem em

si. O agente educativo e de desenvolvimento local – que pode estar reunido na

mesma pessoa física ou em diferentes pessoas que atuam no terreno –

transforma-se em catalisador disponível para esta e outras sementes, e que,

como catalisador, não se esgota, mas também se reforça nesta tarefa de

facilitador para a aprendizagem de outros.

Trata-se de abrir a escola como espaço fértil à aprendizagem, mas não de

qualquer maneira. Lembramos Schwartz:

“Uma escola cortada da vida não prepara, na verdade, nem para viver nem

para lutar; mas a abertura da escola para o mundo económico, social, etc.,

exige condições prévias essenciais e numerosas precauções. Uma escola

aberta bruscamente corre o risco de se dissolver. Os professores devem

manter o poder de controlar esta abertura dentro do respeito pelas

crianças.” E o próprio respeito pelas crianças é o assumir de uma construção

democrática que os professores também têm que assimilar.” (1984, p. 93)

É toda a concretização efetiva dos ‘slogans’ lançadas pela própria Comunidade

Europeia acerca da sustentabilidade dos bairros periféricos, que requer uma

intervenção altamente cautelosa e feita com pessoas que se formam à medida

que o trabalho avança, exatamente porque a situação é tão complexa que não

existem especialistas à partida. Mas existem uma série de possibilidades de

intervenção que podem ser tomadas em conta como aquelas que Schwartz

(1984: 112) sugere e que passam por repartir de forma diferente os recursos da

coletividade, por discriminação positiva, por ajudar os pais, por dotar as zonas

pobres de mais professores, tornando a escola um local de animação. Passa

também por proporcionar um ambiente cultural enriquecido, ao qual as

crianças tem direito, uma animação cultural integrada, suficientemente forte

para ir ao encontro do público, juntando teatro, exposições, bibliotecas, etc.

40 Pascal Paulus

Nada disto é fácil e nem tudo depende dos atores locais, professores,

mediadores, intervenientes locais. Há situações que dependem da política

central, como vimos mais influenciado pelos lobbies económicos do que pelos

‘lobbies’ do bairro. Há outros que dependem simplesmente da forma como os

bens culturais são postos no mercado. Sélys (1993, p. 143) lembra a este

respeito que o real significado do preço livre do livro, por exemplo, tende a

globalizar e a fazer desaparecer nichos de mercado para novos títulos ou novos

autores. Quem está interessado em vender livros por encomenda? São poucos.

E são poucos os que os procuram. Porque, para procurar um livro, tem que se

saber o que se está a procurar. Nunca é tarefa fácil, muito menos para quem

tem poucos hábitos de leitura.

Schwartz (1984, p. 133) fala da pedagogia do contrato no sentido que uma

intervenção pedagógica numa comunidade passa pela responsabilização

‘contratual’ de todos os envolvidos, também e sobretudo os moradores. Os

exemplos que conduzem a nossa reflexão assentam na educação de crianças.

Parece-nos que aqui, o contrato é tão simples e tão complexo como expresso

no provérbio africano “para educar uma criança é necessário uma aldeia”. Mas

não temos que ficar pelo dito popular. Dispomos coletivamente do conhe-

cimento prudente (Boaventura Sousa Santos) que nos permite caminhar para

uma vida decente, contribuindo simultaneamente para a construção deste

mesmo conhecimento e trabalhando para a devolução do conhecimento ao

saber do senso-comum.

Acão para uma vida decente; duas malhas de uma rede.

Continuando com uma ideia de Boaventura Sousa Santos (2001, p 71 e.s.)

constatamos nos bairros que nos interessam algumas características da

globalização SMM29. Se por um lado reconhecemos nas crianças e nos adultos

o sucesso do modelo de localismo globalizado nos hábitos de alimentação,

com uma grande apetência para o fast-food e para a visita e o consumo nos

centros comerciais, ficando a comida tradicional subalternamente incluída,

delegada para as festas tradicionais, constatamos também a tendência levando

à exclusão de outros hábitos por completo suplantados pela hegemonia do

filme de violência, da televisão de produção de sonhos, do telejornal com não

outro conteúdo do que o equivalente às histórias bairristas.

Nalguns casos o bairro suburbano onde intervimos promove um tipo de

etnicização do trabalho, como caracterizado no globalismo localizado: os

bairros tornam-se locais transparentes para os subempreiteiros que procuram

mão-de-obra não qualificada e barata; primeiro os migrantes internos dos anos

Mas alguém quis a escola democrática? 41

’60, depois os migrantes provenientes das antigas colónias, atualmente os

migrantes provenientes do Este da Europa. Estes trabalhadores, sem grandes

opções de escolha, aparecem como menos exigentes.

A comunidade cigana destes bairros, maioritariamente vendedor ambulante ou

feirante, com o trabalho perfeitamente etnicizado, vê-se numa posição de

excluída, reforçada pela falta de alternativas reais a sua atividade que torna

complicado a integração, nem sempre desejada aliás.

Neste contexto, a história de Moisés, dos quais os pais apostam na formação

profissional dele, é duplamente difícil. Por um lado pela recusa implícita da

própria comunidade, por outro lado pela forma pouco animadora com que os

próprios educadores encaram a formação profissional não académica, fazendo

perceber ao Moisés que é um perdedor.

É aí que a aposta do mediador em clarificar com o rapaz o que significa o

sonho dele em «ser cigana» foi o início de uma estratégia acertada. Perante a

insistência do rapaz, o próprio mediador obrigou o Moisés então a ser cigano,

levando-o de manhã muito cedo para ir às feiras. Rapidamente o rapaz preferiu

então voltar a escola, para já por ser menos duro, e depois porque começou a

considerar que a ideia dos pais não era completamente descabida de interesse.

Não podemos ver o trabalho de desenvolvimento local desagregado do

trabalho de educação. Muitas vezes trata-se de relações ténues, provisórias,

entre pessoas que se vão cruzando a volta do bairro e dentro do bairro.

A conjugação de métodos formais e não formais, em estruturas igualmente

formais ou não formais, como Alan Rogers (1992, p. 27) nos apresentam em

esquema permite-nos uma visão integradora:

métodos não formais p.e. grupos

estruturados p.e. aprendizagem

pela descoberta

sistema formal

sistema não formal

p.e. palestres

p.e. demonstrações no local

Métodos formais

Matriz para ilustrar o leque de metodologias usadas no formal e o não-formal.

Parece-nos possível introduzir uma cultura de reflexão e discussão entre

grupos diversos, ainda que uns se espelhem em estruturas ou métodos formais

e outros em estruturas ou métodos não formais. A problematização que resulta

deste tipo de reflexão ajuda certamente na clarificação de posições e na

construção de patamares de entendimento.

42 Pascal Paulus

É possível então pensar nas correntes contra-hegemónicas (Boaventura Sousa

Santos) e ver neste tipo de ação elementos de construção para o cosmo-

politismo.

A intervenção desenvolve-se em dois planos: ao nível dos adultos e na

transferência de práticas no trabalho com as crianças. Ou, como refere Rogers:

“Some people write as if non-formal education and adult education are the

same thing, but I do not think so, for two main reasons:

Some non-formal education is offered to out-of-school children. This is

clearly not adult education for it does not call for adult learning

methods; it cannot treat the learners as adults. Non-formal education,

although it includes some forms of adult education, is wider than adult

education.

Secondly, some education inside the formal system is directed towards

adult rather than younger learners and uses adult teaching-learning

methods; it treats the learners as adults. Although this cannot be called

non-formal education, it can be included in our definition of adult

education.”30

(1992, p. 27)

Assim, a Marlene, o Thomas e os seus amigos, quebram fronteiras, não só as

fronteiras de Schengen, mas sobretudo as fronteiras do bairro em que se

movem normalmente, quando se organizam com as monitoras para irem

visitar Lisboa de transporte público, quando descobrem o comboio, em que,

mesmo sendo da zona suburbana, nunca tinham andado, quando aprendem a

ver um filme do início até o fim, quando percebem que um filme tem uma

história, que o mundo não é tão fragmentada como os spots publicitários na

televisão lhes fez pensar.

Quebram fronteiras, o Wilson, o Gerson e a Nair, quando saem do ghetto

familiar em que se encontravam e quando se interlaçam com outras pessoas,

crianças e adultas, e quando os outros se cruzam com eles, como se cruzam

com o Moisés, nos locais formais e informais de encontro, acompanhados por

pessoas adultas que refletiram em conjunto acerca do trabalho com as crianças.

Nada mais do que ‘‘…accepter ces étrangers et mettre en œuvre des structures d’accueil

parce que, d’une certaine façon, ça a toujours été la richesse de l’Europe. Après tout, nous

sommes des bâtards des différents peuples qui ont traversé l’Europe dans les 2000 ans qui

nous ont précédé,’’31 como refere André Lambert, dirigente da ‘Association pour

le développement de la recherche appliquée en sciences sociales’ (apud Sélys:

1993, p. 88)

Todas estas crianças de que falámos aqui, parecem reencaminhar-se porque

houve uma certa vontade coletiva dos adultos à sua volta em intervir neste

sentido.

Mas alguém quis a escola democrática? 43

Claro que há outros perigos. Colette Moulaert, pediatra (apud Selys: 1993, p.

89) revela que enquanto 18% das crianças de quem o pai trabalha de dia

deixam a escola ao fazer 16 anos, a percentagem sobe para 39% das crianças

de quem o pai trabalha de noite.

Uma realidade conhecida do Wilson e dos amigos da Marlene e para a qual

também Plasman (ULB) (apud Sélys: 1993, p. 89) alerta: por mais que seja

afirmado o contrário, temos que estar muito conscientes de que existe uma

grande mistificação acerca da flexibilidade do tempo de trabalho; este não

existe para que as famílias se reencontrem, como nos é apresentado, mas é

organizado em função das empresas como é o caso das grandes superfícies.

Eis o sentido da urgente reflexão acerca do alargamento ou não do horário do

atendimento pós-escolar. Trata-se de um problema muito mais vasto do que a

simples afirmação de que precisamos de estruturas que deem resposta a

necessidade da população. Necessidade da população ou processo conduzido

pelo poder no sentido de salvaguardar os interesses acionistas das empresas?

Trabalho de noite prejudica a saúde, afirma Pierre Andlauer presidente do

instituto da medicina de trabalho, na Alsácia. Continua:

“Deuxième désagrément: les troubles de l’humeur et du caractère, les trou-

bles nerveux, qui ouvrent des symptômes très précis d’intolérance à toutes

sortes de choses, notamment à sa famille, à son entourage, aux relations

que l’on a habituellement dans le travail.’’32

(apud Sélys: 1993, p. 91)

A culturização das crianças nos bairros suburbanos é por isso tão importante:

para se poder lançar pistas que contrariem a fatalidade da replicação daquilo

que existe. É necessário construir a história a partir das histórias de cada uma

delas, ouvindo o que têm para contar, ouvindo o que os pais têm para contar.

Mas não se pode ficar pelo simples registo. Quando Marlene e os amigos falam

do campo de futebol que nunca mais é construído, desenvolvem um trabalho,

no ATL, que além de uma visita a um estádio, desemboca na apresentação de

uma maqueta pela qual uma das responsáveis do gabinete PER se interessa.

A deslocação de transporte público, ajuda para perceber como se pode

deslocar mais confortavelmente entre vários pontos da grande cidade, o que

permite a possibilidade de explicar, aos familiares analfabetos, como se pode

utilizar o metro. É pensar com Selys que

“se a Europa se transforma num mercado de capitais, completamente

liberalizado, sem fiscalidade sobre os capitais, arriscamos um capitalismo

selvagem, como no tempo de Reagan na América. Mesmo assim, uma

solidariedade entre gerações permite o financiamento da Segurança

Social.”33

(1993, p. 112)

44 Pascal Paulus

São aspetos de uma abertura da educação para o meio exterior e não só para as

empresas e as suas necessidades ainda que

“... uma abertura da escola sobre o meio exterior não pode deixar de induzir

uma abertura sobre a realidade conflitual do social. E aí se coloca o

problema extremamente delicado e escaldante da formação cívica e social

das crianças, e da própria definição da escola laica. É necessário encontrar o

equilíbrio, quão instável, entre uma escola que se declara neutra, enquanto

a política a envolve, outra que politiza tudo em sentido único, e uma

terceira, enfim, que, a pretexto de pluralismo, permite que todos os

professores intervenham em qualquer momento, de maneira pessoal e em

todos os acontecimentos.” Schwartz (1984, p. 91)

Quando a borboleta levanta voo.

No mundo do secretismo, da história contada de uma determinada forma,

muitas tempestades podem ser contrariadas pelas borboletas que, não se sabe

quando e não se sabe porquê, levantam voo. Elas são muitas e diversas.

Citamos Sélys mais uma vez, falando dos historiadores americanos:

“Les historiens se penchent aujourd’hui avec étonnement sur la création de

la Communauté européenne. Les historiens américains découvrent avec

surprise, dans les archives gouvernementales qui leurs deviennent

accessibles (au compte-gouttes) vingt ou trente ans après que les

événements se sont produits, que leurs dirigeants n’avaient pas du tout

peur des Soviétiques dans les années 40 mais craignaient avant tout que

leurs alliés européens ne virent au socialisme et les privent ainsi d’un

marché qui leur était indispensable pour écouler leur surproduction et éviter

une grave récession, leur économie n’étant plus dopée par la production

massive d’armement.’’34

(1993, p. 56)

Estes historiadores que escrevem e publicam são borboletas que,

inesperadamente, levantam voo. Mas há outras, em todo o lado. O cosmo-

politismo de que fala Boaventura Sousa Santos, em que vamos descobrindo

pequenas e grandes organizações, mais ou menos estruturadas, que lutam

contra a exclusão, contra a hegemonia, em busca de valores que permitam um

desenvolvimento sustentável movem, crescem, mudam de rumo, influenciam.

Como o bater de asas das borboletas, provocam as turbulências do ar.

O dispositivo que se instalou para acompanhar alguns dos bairros e das

estruturas que intervêm nos bairros das crianças de que falámos foi pensado

como catalisador, para permitir terreno fértil ao aparecimento de novas

Mas alguém quis a escola democrática? 45

borboletas,35 focando a sua atenção sobretudo para as pessoas, na perspetiva

de que

“a inovação resulta mais da ação isolada e alguns professores ou grupos de

professores do que das escolas. [...];

Há constrangimentos que limitam o alcance da nossa ação, como por

exemplo o facto de parte do coletivo de professores mudar todos os anos.

[...]

Sem a mediação e a dinamização do Urban, algumas escolas revelam pouca

iniciativa para empreenderem projetos em parceria com outras escolas.”

Fundação para o desenvolvimento do vale de Campanhã (2001, p. 136)

Nisto não se trata de sonhos ou de utopias. Trata-se de trabalhar no terreno,

dentro do sistema, aproveitando das oportunidades que o sistema, às vezes

involuntariamente, às vezes voluntariamente vai dando. Existem outras

realizações, como aquela de que nos fala Maria Beatriz Canário:

“A experiência foi iniciada num período em que, em França, se procedeu à

descentralização da administração educativa e em que as Câmaras viram

ampliadas as suas competências no domínio educativo. [...]

Progressivamente, os serviços culturais dependentes da Câmara, biblioteca,

cinema, escola de música e museu, passaram a ter a obrigação de prestar

serviço às escolas, nomeadamente, através da realização sistemática de

«aulas de descoberta e exploração». [...]

O que observamos neste caso, fundamentalmente, é que a cidade soube

definir uma política educativa local e executá-la, tendo sempre fundado as

suas iniciativas em parcerias educativas; para conseguir realizar essa política

criou estruturas organizativas próprias, adaptadas a esse propósito e aos

circunstancialismos locais.” (2000, p. 5)

Não tínhamos grandes expectativas com a escrita desta reflexão. Quisemos

somente procurar dentro das nossas práticas algumas atividades que nos fazem

pensar que a vida decente se constrói, dia a dia, com pequenos passos, com

avanços e retrocessos. O atractor de Lorenz mostra-nos que é possível

influenciar um sistema complexo por dentro, mesmo quando se introduz

variações mínimas. Por mais que o “meanstream” destrua a rede cultural e

educacional humanista, por mais que ele nos prive da história, não controla,

nem nunca poderá controlar, todos os voos. Por isso, por mais pequena que

seja a experiência, ela pode dar aso a outra. O simples facto que ela existe, tão

frágil como uma borboleta na selva, provoca uma brisa que se pode tornar

vendaval.

46 Pascal Paulus

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práticas de desenvolvimento, através da Educação, da Cultura e da

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Mas alguém quis a escola democrática? 47

Consultas em páginas Internet entre 20 de março e 6 de abril de 2004:

Comissão Europeia. Os desafios das cidades europeias; europa.eu.int/comm-

/environment/urban/pdf/annex_pt.pdf

Nações Unidas. Assembleia geral da Onu discute, em sessão extraordinária, o milénio

urbano; www.onuportugal.pt/20010905habitat.pdf

Mas alguém quis a escola democrática? 49

Grande irmão cidadão... ou talvez não...

Alfas, Epsilões e a Novilíngua.

A cidadania é um constructo próprio da civilização humana. Indo ao

dicionário, verificamos que se trata de uma qualidade, um direito de cidadão,

de pessoa pertencente à cidade e que, dentro da definição no contexto histórico

e geográfico, tem a liberdade de intervir na organização deste grupo político de

pertence. Dito assim, parece simples.

A experiência ensina que a realidade é muito mais complexa. Atualmente quem

é delegado para gerir, considera-se profissional. Aldous Huxley (1937) chamar-

lhe-ia o Alpha-menos ou o Beta-mais. Considera-se profissional porque pensa

que o poder que o instalou assim o considera. Este poder – muitas vezes

invisível – é, por ele, designado por “vontade popular”, “soberania do povo”,

“povo livre”, “expressão democrática da população” conforme os contextos e

as épocas.

Parece-me que estas designações são sobretudo reformulações para manter os

Gamas, Deltas e Epsilões do admirável mundo novo moderadamente

interessado e convencido do seu contributo, dentro dos limites que o Alpha-

mais-mais considera tolerável. Vejo este último menos como uma pessoa mas

antes como um grupo restrito de influência, um lobby que detém o poder

efetivo sobre os Alpha-menos e os Beta-mais, e que tem como objetivo

principal manter uma ordem caracterizada pela livre circulação de capitais.

A livre circulação dos capitais passa por tudo o que um mercado, ele também

“livre”, oferece para vender e onde tem que haver quem compra.

Agradecendo o convite que me foi feito para participar nesta conversa para

ajudar a fazer um balanço da Formação cívica no currículo do ensino básico, e

refletir sobre as perspetivas que oferece, não escondo que, no texto que segue,

coloro este balanço da condução da Educação para a cidadania como é

referido no currículo, bastante negro. No fim, limito-me a partilhar convosco o

que tem sido, desde há 27 anos, a perspetiva de trabalho na qual me

reconheço.

Assim, tentarei mostrar nos pontos “Produto” velho em embalagem nova ou

velha embalagem para novo “produto”? e “A europeização da formação

cívica” que neste contexto, a cidadania também se tornou um produto,

50 Pascal Paulus

vendido – no nosso caso – como uma novidade europeia que possibilitará a

plena integração de cada um dos cidadãos, pelo menos, se comprou bem, e

assim, assegurou a sua empregabilidade, termo inventado no contexto da

Sociedade Cognitiva.

Um produto vendido, de que se diz que cada um tem a liberdade de comprar

ou não, assumindo as consequências do seu ato. Ou como diz Pedro Sá36, em

resposta a um artigo de G. Oliveira Martins, falando da abstenção:

“... Ela deve ser interpretada não como desencanto com a política, mas

como um alheamento total e indiferença. O que, numa sociedade livre e

democrática, também tem de ser admissível, pois não é obrigatório que

todos estejam interessados na coisa pública - aliás, isto é algo parecido com

um fenómeno inverso ao dos free riders, quem não participa na tomada de

decisões também sofre com as eventuais más consequências.”

Daí até dizer que quem não está integrado na comunidade o deve

exclusivamente a si próprio, vai um pequeno passo. Para contrariar este risco,

parece que a via é a da escola. Mas será? Sustento, no ponto “O silenciamento

ensurdecedor das crianças” que a introdução da “Educação para a Cidadania”

no currículo, ainda que se possa ler como uma proposta na tradição da

Educação Humanista, parece, na prática, mais uma definição da décima

primeira edição do Dicionário da Novilíngua editado em 1984 (Georges

Orwell, 1948). Existem sinais para tal. Na maioria dos casos, a transversalidade

não é percebida como o apoio ao questionamento feito pelos próprios alunos,

no decorrer do seu processo de aprendizagem, mas como um rebordo de um

manto de retalhos para a qual faltam definir as cores e o ponto. Vejam, como

exemplo, a Associação Nacional dos Professores Licenciados (2000) que

regista que

“... afirmadas estas potencialidades da transversalidade, não são de

esquecer os riscos que a acompanham. Sem menus de ensino/aprendizagem

de cidadania, cada professor de disciplina, ou de projeto, não terá por onde

selecionar materiais adequados à informação (ou sua falta) de que os alunos

dispõem. Sem parâmetros de ensino/aprendizagem para as diversas etapas

da vida escolar, a educação para a cidadania será um saco de boas intenções

pedagogicamente nulas.”

Por outro lado, José Adelino Maltez37, candidato nas listas autárquicas da Nova

Democracia, deixa claro que melhorar o Estado implica que

“se restaure a cidadania ativa contra o indiferentismo, reinventando os laços

tradicionais da vizinhança, do municipalismo, do regionalismo, do

Mas alguém quis a escola democrática? 51

sindicalismo e do patriotismo, bem como apoiando a autonomia da

sociedade civil, através da esquecida educação cívica e de uma autêntica

revolução do sistema de ensino, liquidando a herança de Veiga Simão e dos

compadres educacionólogos e avaliólogos, esses profissionais do

reformismo burocrático que, com ele, andam a ser pagos vitaliciamente

para nos continuarmos a derrotar em ministerialices pseudo-educativas que

deveriam ser liminarmente extintas.”

João Paraskeva (2005, p. 9) afirma que conceitos como justiça social e

liberdade sujeitaram-se a um processo de resignificação e afirma que “em

essência, estamos perante um processo de reconfiguração, no seio do senso comum, do

verdadeiro significado de determinados vocábulos.” Sustenta (2005, p. 11) que o projeto

neoliberal tem que esbater os verdadeiros conceitos de democracia e de estado,

abrindo a porta a uma perigosa Estadofobia. Cita José Saramago (2005, p. 13)

que fala de uma prática “que desnuda a democracia que pouco mais tem que argumentar

que o voto em si” consequência da relação perigosa entre o mercado e o Estado.

Em que medida é que se trata, na escola pública, somente de ensinar Gama,

Delta ou Epsilão a ser obediente e eficiente, em ensinar-lhes Novilíngua,

reservando-se para já as escolas privadas para os Alpha e os Beta-mais. Pondo-

me nesta perspetiva, procuro então encontrar o que se faz com as crianças38 na

escola básica para que possam perceber e viver a cidadania, e em que medida é

que a cidadania é trabalhada com elas como ferramenta de trabalho para

intervir a partir da sua condição e não em função da condição de outros, sejam

elas Alphas ou Epsilões. Desenvolvo esta ideia em “Educação “para” ou “na”

cidadania e consciencialização” deixando para “Uma prática fundada na

pedagogia institucional” o relato de alguns aspetos da minha prática de

professor de primeiro ciclo na escola da Outurela e Portela.

Acredito que continua a ser possível e sobretudo que continua a ser

absolutamente necessário estimular e apadrinhar o ensino-aprendizagem que

permite aos alunos utilizar o próprio contexto de referência para criar, com o

seu professor, modelos de vivência e intervenção democrática, mas

extremamente crítica, porque são estas atividades que são a melhor garantia

contra o esvaziamento das ideias e dos conceitos ao qual assistimos. Não

escondo que esta intervenção significa também uma incondicional aposta na

escola pública, gratuita e universal.

Convém, neste contexto, lembrar que a Conferência dos Representantes dos

Governos dos Estados-membros (2004), na sua primeira proposta para uma

Constituição Europeia, ofusca esta escola e que define o direito a educação – e

não a escola – no seu artigo II-74º no primeiro ponto como um direito de

52 Pascal Paulus

todas as pessoas, dizendo no seu segundo ponto que “Este direito inclui a

possibilidade de frequentar gratuitamente o ensino obrigatório”, para concluir no terceiro

que existe liberdade de criação de estabelecimentos e o direito dos pais de

assegurar a educação e o ensino dos filhos segundo as suas convicções, desde

que democráticas. É óbvio que este texto abre caminho para a privatização

generalizada do ensino, com dinheiro público, antevendo-se tanto os cenários

de gestão eficaz de uma oferta livre, regida pelo mercado, como de escolas

reservadas para elites e classe média, deixando para “o resto” uma escola pobre

e gratuita. Lembra a realidade analisada por Loïc Wacquant (2004) que

documenta como grande número de estados dos Estados Unidos da América

investem cada vez mais no encarceramento dos pobres, transferindo verbas da

Educação39, da Saúde e dos Serviços Sociais, para a Segurança, construindo

mais e mais prisões, onde reaparecem contextos de trabalhos forçados para

empresas públicas ou semi-públicas. Escreve (2004, p. 174) que, nalguns

estados, os salários dos guardas prisionais são tão apelativos que muitos

professores mudam de estabelecimento e de profissão. Menciona também

(2004, p. 126) o número de presos por 100.000 habitantes em 1997, que nos

países nórdicos da Europa se situam na casa dos 50-60, na Bélgica e na

Holanda fiquem pelos 82 – 87, passando para 120 na Grã-Bretanha, 145 em

Portugal e 648 nos Estados Unidos. Seria útil estudar se existe uma correlação

entre a organização da escola – modelo privada pago com uma escola pública

residual versus modelo público e gratuito – e a taxa de encarceramento.

“Produto” velho em embalagem nova ou velha embalagem para novo “produto”?

De que vontade de educação para a cidadania falamos afinal? Permitam-me

ilustrar com alguns exemplos, o que se propõe em tempos e locais variados.

Alberto Oliverio (1986, p. 22) lembra como em 1666, mais de um século antes

da Revolução Francesa, Charles Démia avisava os administradores de Lyon

que, para tirar as crianças pobres da vagabundagem nas ruas, melhor seria criar

uma escola, de toda a conveniência para a polícia, para os educar e fazer delas

fiéis servidoras. As escolas de Démia e La Salle, rapidamente conhecidas como

a escola dos pobres, tornaram-se uma referência entre os mais abastecidos.

100 anos mais tarde deu-se o iluminismo e a revolução francesa.

Mas passado cento e cinquenta anos, depois da instauração da res pública, do

aparecimento das ciências sociais, das ciências de educação, do nascimento de

movimentos pedagógicos, da Escola Nova, de Ferrière, e, entre nós, de

António Sérgio, eis que a Educação Cívica volta à normalização... Transcrevo

alguns dos muitos exemplos que encontrei:

Mas alguém quis a escola democrática? 53

O decreto nº 28 262, de 8 de Dezembro de 1937 (Regulamento da

Mocidade Portuguesa Feminina) define no artigo 3º “A educação cívica

inspirar-se-á no imperativo do bem comum e nas grandes tradições nacionais, para que

em cada filiada se defina e fixe a consciência do dever e da responsabilidade da mulher

portuguesa na continuidade histórica da Nação.”;

Augusto César Pires de Lima (1937: 21) constata que a palmatória entrou

em desuso, mas tampouco admite que a educação cívica seja transmitida

por frases sem sentido, como (1937, p. 137): “Sabeis qual é a vossa Pátria?

Sabei-lo com certeza, pois que tantas vezes o temos repetido. Não é a aldeia, não é a

cidade em que nascestes. É Portugal, o belo e glorioso Portugal!” Propõe substituir

esta prosa por histórias, como A Batalha dos Atoleiros de Fernão Lopes

que conta (1937, p. 136):

“Nun’Alvares, a cavalo na sua mula, com gesto alegre, ia aconselhando:

amigos, lembrai-vos de quatro cousas: a primeira encomendar-vos a Deus e à

Virgem; a segunda, que estamos aqui para servir o Mestre e ganhar honra; a

terceira, que nos defendemos a nós, as nossas casas, à terra em que nascemos;

a quarta, finalmente – paciência, coragem: é ter na ideia – pelejar, não uma

hora, mas um dia... o que for necessário.” Ganha-se a batalha e “Vendo o

destrôço, Nun’Alvares correu em perseguição dos castelhanos, que fugiram em

debandada, sem se atreverem a voltar à carga.”

Pires de Lima (1937, p. 138) conclui que, contar histórias facilita mais a

educação de amor à pátria e a educação cívica;

António Rapoula escreve, num comentário40, depois da agressão do João

Pinto ao árbitro durante um jogo de futebol: “Não é só no futebol que isto

ocorre. Segundo os últimos dados estatísticos existem mais agressões a

elementos das forças policiais, mais agressões a professores escolares, mais

agressões no trânsito, mais agressões civis, etc., etc.

Isto revela uma grande falta de reconhecimento de autoridade por parte de

todos os cidadãos portugueses. Se nós somos de brandos costumes, não parece.

A educação cívica deve começar por aqui: deve existir autoridade legítima que

deve ser reconhecida e respeitada por todos. [...] O árbitro é soberano e a sua

autoridade deve ser respeitada e aceite, mesmo que tenha errado.”;

A APEL – Associação Promotora do Ensino Livre (1998) escreve no seu

projeto educativo:

“... é ministrada uma educação integral inspirada nos princípios católicos de

forma a contribuir para uma reflexão consciente sobre os valores espirituais,

morais e cívicos [...]. E como tal, procura proporcionar a aquisição de noções de

educação cívica, moral e religiosa. Através da disciplina denominada "Religião e

Moral" [...], procura-se ilustrar os progressos da cultura e da ciência à luz da

mensagem cristã católica.”;

54 Pascal Paulus

No regulamento interno de uma Escola Profissional lemos acerca do

Diretor de Turma:

“Em relação aos alunos, o diretor de turma deverá:

Colaborar nos projetos de orientação educativa elaborados pelo conselho

pedagógico

Promover a educação cívica, moral e a sociabilização dos alunos através de

atividades de participação e complemento curricular, nomeadamente das

visitas de estudo, seminários, colóquios, comemorações do dia da escola e

outras”;

O Centro de Investigação de Tecnologias de Informação para uma

Democracia Participativa – CITIDEP (2003) – propõe um Kit cidadania:

“O Kit Cidadania será um conjunto de informações base e ferramentas que

permitam ajudar qualquer cidadão a exercer os seus direitos e deveres de

cidadania, sobretudo os que se relacionam com informações e serviços

gratuitos disponíveis por via internet.” Apoia ao treino para o

preenchimento de formulários, pretenda-se o Kit “articulado com o

curriculum em cidadania e em internet das escolas do ensino secundário.”

Os autores defendem que assim facilitam:

(a) Acesso do cidadão `a informação produzida e/ou arquivada pela

administração pública e demais entidades da sociedade civil [...];

(b) Direitos e deveres cívicos do cidadão, sobretudo face à

administração pública (incluindo reclamação);

(c) Oportunidades de intervenção cívica do cidadão (voto legislativo,

local, referendário, europeu; períodos de consulta publica

obrigatória em projetos de lei, avaliação de impacte ambiental,

planos diretores municipais, etc.; associações cívicas, organizações

não governamentais, etc.)”

Parece ser uma constante, associar a educação cívica a uma ideia, ou de

“meninos ignorantes”, que têm que aprender os feitos históricos

inevitavelmente positivos resultante duma cultura cristã ocidental ou então de

“meninos mal comportados” que têm que ser educados para a obediência ou

mesmo para a subserviência41.

Perante as definições extremamente vagas do próprio decreto-lei 6/2001 de 18

de Janeiro e das referências à educação para a cidadania no Currículo e nos

programas do ensino obrigatório, aparecem no mercado variadíssimos livros,

cadernos, cadernos de fichas e outro material que organizam a área curricular

não disciplinar de “formação cívica”. Escamoteiam quase sempre a “Educação

para a cidadania” – demasiado transversal? – para organizar “conteúdos” de

formação cívica e de cidadania, que retomam os “grandes clássicos”: os

Mas alguém quis a escola democrática? 55

símbolos da nação e da União Europeia, os direitos e deveres elementares (em

que a intervenção cívica passa pelo voto e eventualmente pelo pressionar do

presidente da Junta de Freguesia), a saúde, a educação sexual, a educação

ambiental. Alguns reduzem a “educação para a cidadania... com civismo” no 1º

ciclo à leitura de textos de manual moralistas ou de cançonetas e lengalengas.

Outros propõem debates entre alunos a partir de fichas de trabalho sobre um

determinado tema. Raramente – para não dizer nunca – se centra a ação nas

crianças. De facto, não me parece difícil concordar com Sarmento (2000) que

escreve:

“O efeito de ressemantização da expressão "educação para a cidadania" (a

qual é geneticamente filiável na conceptualização da educação democrática

de um John Dewey, ou, entre nós, de um António Sérgio), torna

provavelmente indispensável o seu abandono: se, ao falarmos de algo,

empregamos uma expressão que também significa o seu contrário, é

preferível utilizarmos palavras diferentes, para resgatar significados

distintos.”

Entretanto podemos tentar perceber como e porque aparece a Educação para

a Cidadania na nomenclatura Europeia, quando se fala de Educação,

Formação, Sociedade Cognitiva e Empregabilidade.

A europeização da formação cívica

Voltamos um momento à Associação dos professores licenciados (2000), que

afirma que:

“A extensão dos compromissos e requisitos exigidos pela cidadania é

variável. [...] Sociologicamente, a cidadania prende-se com a aquisição de

vínculos que oferecem coesão à população de um Estado. Economicamente,

a cidadania traduz-se na capacidade de o Estado recolher contribuições e

impostos e de os redistribuir através da oferta de bens públicos.

Politicamente, a cidadania cria laços de legitimidade entre governantes e

governados que, no quadro das democracias europeias atuais, se prolongam

em obrigações para além das fronteiras nacionais. A cidadania democrática

experimentou uma evolução enriquecedora no quadro da União Europeia.”

Lembra o artigo 8º do Tratado da União que define o cidadão da União.

O que se pretende com a educação deste cidadão europeu, além de o ensinar –

e acho bem – de pagar contribuições e – e acho menos bem – de perpetuar os

mesmos círculos do poder? Provavelmente não fazia parte desta educação que

os meus alunos percebessem as consequências de terem nascido em Portugal

56 Pascal Paulus

de pais cabo-verdianos, o que significa que não são cidadãos portugueses e

portanto também não são cidadãos europeus, o que lhes negava o direito ao

então formulário E111 que permitia a assistência médica em outro país da

União, na altura de uma visita aos correspondentes, fora do país, mesmo que

os seus pais descontem regularmente para a Segurança Social. São

pormenores?

A ata da reunião – e saliento o ponto 2 – constituinte da Rede Europeia de

Conselhos de Educação (Eunec: 2000) diz-nos que:

“... os participantes trabalharam no sentido de adotarem um plano de ação

para a rede dos Conselhos Europeus. Tendo em vista o reforço do papel da

educação e da formação e tendo em conta o estabelecimento duma

estratégia para tornar mais competitiva e dinâmica a União Europeia,

baseada em mais conhecimento, mais emprego e mais coesão social, [...], foi

adotado um plano de ação [...] com as seguintes áreas prioritárias de

trabalho e reflexão:

1. os aspetos que se prendem com a "Lifelong Learning" - promoção da

sociedade do conhecimento capaz de criar oportunidades para todos;

luta contra a exclusão social, promoção da coesão social; o papel dos

parceiros sociais na educação ao longo da vida;

2. a promoção da educação para a cidadania - promoção da coesão social

(integração das minorias42); valores democráticos; línguas;

partenariado; educação como um "bem" público;

3. a promoção da mobilidade - no sentido da aquisição de competências

nas novas tecnologias numa sociedade do conhecimento e da inovação;

validação dos certificados e da formação; promoção das dimensões

intercultural, interlinguística e inter-religiosa; intercâmbio de

professores e estudantes entre os países.”

Contradições? Do ponto de vista dos Alphas, talvez não. Gérard de Sélys e

Nico Hirtt (2003) fazem uma leitura aprofundada. Documentaram

exaustivamente, no seu livro Tableau Noir, o significado destes três eixos de

trabalho prioritário. Revelam, a partir das atas de reuniões, dos relatórios e dos

documentos de trabalho publicados, as relações existentes entre os grupos de

pressão dos industriais europeus, como O European Round Table (ERT) ou o

G7, as organizações internacionais como o OCDE, o FMI e o OMC e a União

Europeia. Descrevem (2003, p. 59) como as empresas privadas descobrem o

mercado da Educação, sobretudo o mercado da formação a distância.

Mostram (2003, p. 94 e.s.) como os relatórios dos grupos como o ERT ou a

OCDE influenciam os livros brancos da UE para o que diz respeito a

Mas alguém quis a escola democrática? 57

formação profissional, o ensino a distância, mas também ao conceito de

Sociedade Cognitiva ou Sociedade de Informação. Explicam a relação entre os

grandes programas de intercâmbio entre estudantes e investigadores e o

desenvolvimento de produtos que facilitam a organização de redes de

formação a distância – pagos – que serão apresentados aos cidadãos para se

atualizarem na sua profissão, nos seus estudos e para adquirir aquela condição

espantosa, que se inventou, a que se deu o nome de empregabilidade.

Documentam a relação direta entre o desenvolvimento de software educativo

privado e o financiamento público deste desenvolvimento através de

programas como o Da Vinci (2003, p. 35). Relacionam os pedidos constantes

nos relatórios do G7 acerca da Sociedade de Informação e as propostas de

substituir – ou pelo menos desenvolver em paralelo – os diplomas por um

sistema de creditação internacional, em que a finalidade é permitir que a

creditação seja feita sem recorrer ao (lento) sistema de diplomas nacionais,

passando a iniciativa da creditação do público para o privado, com a mais

recente legislação Europeia, incluindo o “acordo de Bolonha”. Deverá permitir

no futuro a validação da formação dos trabalhadores diretamente a partir das

empresas formadoras, sem ter que passar pelo cunho do Estado, através de

uma Universidade ou de outra Instituição de Formação Superior. Ilustram

também (2003, p. 43) com exemplos de empresas como Bosch, Ford e

Siemens na Alemanha, na Suíça ou nos Estados Unidos da América, como se

passa a formação profissional da esfera pública ou empresarial para a esfera da

família ou da pessoa: quem se quer atualizar, fá-lo-á em casa, através de ligação

a Internet e / ou comprando pacotes de formação43.

Estabelecer a relação entre a cidadania e a sociedade cognitiva ou a sociedade

da informação, dentro do contexto do mercado livre – e como veremos

adiante, relacionar a Educação para a cidadania com aulas em Tecnologia de

Informação e Comunicação (TIC) – , ou como o define Sarmento (2000):

“A ressemantização da educação para a cidadania torna possível o que, de

outro modo, se tornaria incompreensível: a conciliação de uma retórica

cívica com uma agenda educativa dependente de uma lógica contábil ou de

mercado, construída em todo o mundo (com especial ênfase nos países

anglo-saxónicos) em torno de uma orientação política neoliberal”,

permite centrar esta mesma Educação para a cidadania em questões técnicas

que convêm aos grandes grupos económicos.

O problema dos meus alunos cabo-verdianos torna-se assim, de facto, um

pormenor sem importância para o Grande Irmão cidadão.

58 Pascal Paulus

O silenciamento ensurdecedor das crianças

Aliás, às vezes parece que toda a criança é pormenor sem grande importância,

apesar da citada retórica cívica. A política educativa europeia evidencia-se nas

orientações dadas para a área não curricular de “Formação Cívica”, ou antes

pela ausência delas. Percebe-se que a forma extremamente vaga como aparece

a Educação para a Cidadania e a Formação Cívica em todas os textos do

legislador, revele uma tensão. É a tensão existente entre uma orientação

neoliberal de uma economia de mercado muito agressiva, conduzida a partir

das organizações supranacionais e a apresentação, em termos formais, de uma

organização de estado democrático, com delegação de poder através do voto,

que deveria evoluir de Estado Nacional para Estado Europeu. E esta tensão

toma contornos de um mal-estar cada vez menos disfarçado. O Currículo

Nacional publicado pelo DEB (2001) refere nas competências gerais um

conjunto de possibilidades de interpretação do termo Formação Cívica,

globalmente no sentido que chamarei de humanista. Mas não o desenvolve. O

programa do primeiro ciclo publicado pelo DGEBS (1990), anterior à

explicitação da “Educação pela Cidadania”, é, por isso mesmo, ainda menos

claro.

A lacuna que surge assim e que se entende, face a um pedido que cobra, com

as mesmas palavras, conceitos antagónicos, é rapidamente preenchida pelo

conjunto de cadernos e de fichas de trabalho, propostos aos professores, por

várias editoras, às vezes sem explicitar quem são os autores, o que os confunde

com uma qualquer orientação pública. Nunca é explicitado como é que o

aluno poderá ser agente nesta formação cívica, muito menos na transversal

“Educação para a Cidadania”. Na melhor das hipóteses, enumeram-se os

órgãos de gestão dos agrupamentos, indicando qual é neles o papel –

extremamente limitado – dos representantes dos alunos. Lê-se rapidamente

que as crianças do 1º ciclo nem têm acesso direto à organização da sua

aprendizagem. Ou, como salienta Manuel Sarmento (2000):

“Com efeito, o contrabando semântico realizado em torno da educação para

a cidadania exprime-se, desde logo, na atribuição a esta expressão do

significado conservador de "socialização" das crianças e adolescentes nas

normas e valores dominantes, potencialmente postos em causa pela anomia

social ou a "crise de valores". Nesta aceção "educação para a cidadania" é

sinónimo de "disciplinação". Numa outra aceção, ideológica e politicamente

também conservadora, mas mais mitigada, "educação para a cidadania"

significa a (intencionalidade da) inserção social de crianças e adolescentes

pela aquisição da cultura (dos saberes e das normas sociais) dominante.”

Mas alguém quis a escola democrática? 59

Com outras palavras, 350 anos mais tarde, estamos de volta às aulas de bom

comportamento e de educação para a obediência das escolas de Démia e La

Salle. Vale a pena referir uma das páginas eletrónicas do Sítio do Instituto da

Defesa Nacional (1999), onde lemos:

“[...] A Cidadania engloba três áreas de intervenção escolar:

Curricular - Projeto educativo, programa interdisciplinar, objetivos,

competências e conteúdos, metodologias de ensino-aprendizagem,

avaliação e apoios educativos;

Organizativa - Regulamento da escola, cooperação nos órgãos de

gestão, na organização de espaços e serviços, em atividades de

enriquecimento, na orientação vocacional;

Comunitária - Participação de Pais e Comunidade, parcerias com

instituições e associações locais e/ou nacionais e/internacionais,

intercâmbio com escolas.”

Refere que no, Ensino Básico - 1º Ciclo, a gestão e planificação é feita no

conselho de Docentes e que a operacionalização é feita pelo professor titular

da turma. As crianças não existem aqui...

Aprendemos também que:

“O GC agregou a si membros do Gabinete de Assuntos Externos e Relações

Internacionais, do Instituto da Inovação Educacional, da Comissão Nacional

da UNESCO, do Secretariado Interculturas; da Marinha, Exército e Força

Aérea bem como Guarda Nacional Republicana e Polícia de Segurança

Pública; e ainda Professores do Ensino Secundário e Superior, e organizações

de segurança e defesa.” (realçado é meu) Trata-se do grupo encarregado

para: “promover a educação cívica das crianças e jovens, numa perspetiva

transcurricular, “considerando que a adesão aos valores e princípios

constantes da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da

Constituição da República Portuguesa implica o reconhecimento e o

exercício de direitos e deveres que dão expressão ao conceito de cidadania

ativa e responsável”.”

Refere o Despacho conjunto n.º 267/99, de 11 de Março de 1999 do

ministério da Educação e do Ministério da Defesa Nacional, que será

completado, uma vez que o Grupo de Contacto tornou-se Comissão de

Cidadania tendo entre outras tarefas que tratar da:

“Formação Contínua de Professores Prevê-se o estabelecimento de um

currículo de Cidadania destinado aos professores dos Ensinos Básico e

Secundário; está projetada a realização de Jornadas Cidadania e Tecnologias

60 Pascal Paulus

da Informação e Comunicação (TIC), de 15 horas, iniciando-se uma nova fase

de formação com recurso às novas tecnologias e tendo em vista a

implementação de projetos on-line (antevê-se a conjugação da Educação

para a Cidadania com a utilização das Novas Tecnologias da Informação e

Comunicação).”

Estas jornadas enquadram-se perfeitamente no pedido feito pelas associações

empresariais à Comunidade Europeia. É de fácil perceção que o papel das

crianças é visto como mero recetor. Recetor em múltiplas situações, que estes

dois exemplos entre imensos, publicados em variadíssimos Sítios da Internet44,

ilustram:

Dia dos namorados; Objetivos específicos: Promover a amizade;

Conteúdos a que se subordina: Educação cívica; Destinatários: Alunos 2º

ano Recursos: Cartolinas, papel A4 cavalinho, lápis de cor, marcadores…

Proponente(s): Professoras 2º ano.

Atividade: Torneio de Futebol; Destinatários: Alunos da EB2/3; Docentes

Responsáveis: Professores de Educação Cívica; Recursos

Humanos/Materiais Professores, Alunos, Bolas.

A programação passa ao lado das crianças. Nem o Manifesto para o Futuro da

Educação em Portugal da Confap (2005) nos traz garantias que as crianças se

possam tornar os protagonistas. Trabalha se “para”, não “com”: à partida, as

crianças passam a ser “protegidas”:

“Subordinação das políticas de educação e dos procedimentos

administrativos decorrentes, ao superior interesse da criança, com a criação

do Provedor da Criança com competências de âmbito alargado”45

E depois, tudo sob o título esclarecedor Instrução e Educação (sublinhado é

meu):

“7- Garantia de que a Formação Cívica passe a funcionar como a área

disciplinar não curricular, em que as questões da educação para a cidadania

são abordadas, com carácter obrigatório, nomeadamente as referentes à

educação para a participação cívica, para a prevenção rodoviária, para a

educação sexual, segurança e promoção da saúde;”

Acaba, dando a mão aos professores das crianças rotuladas como mais difíceis

(?):

“Reconhecimento da CONFAP como Entidade Certificadora da Formação

Parental, permitindo-lhe concorrer a programas europeus integrados de

formação, para que implemente através das suas estruturas concelhias e

Mas alguém quis a escola democrática? 61

regionais, garantindo a qualificação dos pais como educadores e

intervenientes cívicos.”

Educação “para” ou “na” cidadania e consciencialização

A escola, onde, não raras vezes, o poder executivo e a presidência do Conselho

Pedagógico se concentram numa só pessoa, onde há situações de Conselhos

de Docentes que trabalham caoticamente, libertando pouco tempo para

assuntos pedagógicos e trocas de experiências, onde demasiadas vezes um

Conselho colegial como é o pedagógico ou o de docentes se organiza em salas

que só permitam colocar as cadeiras em filas viradas para a (mesa do)

presidente, não terá grandes dificuldades em aceitar a Instrução e a Educação

proposta pela Confap.

Terá talvez mais dificuldades em perceber como se pode gerir, em cooperação

e democraticamente, seja entre adultos, seja entre crianças e adultos.

E mesmo quando se evolui para um tipo de gestão em cooperação, ainda

existem grandes variações no “conteúdo” gerido – desde uma consciência

assistencialista, que continua no espírito de trabalhar para e não com as pessoas,

até uma gestão participada de projetos de intervenção, passando pela gestão

em conjunto do currículo.

Podemos exemplificar com um plano de atividades de uma escola secundária46

onde destacamos as atividades e os objetivos dos intervenientes do Clube de

Educação para a cidadania, o potencial perigo de uma intervenção paternalista:

Atividade: Peditório Nacional da AMI; Objetivo: Desenvolver o espírito

comunitário e solidário.

Atividade: Campanha de recolha de roupas e brinquedos; Objetivo:

Desenvolver o espírito comunitário e solidário; manter relações com

instituições de carácter cívico e de solidariedade social; desenvolver

comportamentos de cooperação e respeito pelos outros.

Atividade: Estudo da possibilidade da criação de duas bolsas de mérito para

alunos; Objetivo: Desenvolver o espírito comunitário e solidário.

Tenho alguma dificuldade em aceitar que recolher restos, fundos, coisas que se

deixou de usar e estimular a concorrência através de prémios se podem

considerar atividades de desenvolvimento humano, mesmo numa sociedade

onde os bancos se publicitam como o paradigma de Instituição de

Solidariedade Social. Receio que se queira aproveitar as desigualdades

instaladas, para “comprar” consciência, o que é diferente de promover uma

consciencialização. João Paraskeva (2004, p. 26) lembra que

62 Pascal Paulus

“Em primeiro lugar, será de bom-tom não nos esquecermos das razões pela

qual numa determinada sociedade se vão perpetuando indivíduos com

menos oportunidades. Em segundo lugar, os que ‘têm menos

oportunidades’ são cidadãs e cidadãos com Direitos e não se têm de sujeitar

ao ‘sabor’ da solidariedade dos que não têm menos oportunidades” Quando

não se distingue a diferença entre, por um lado, trabalhar para um Estado

solidário e, por outro lado, a solidariedade dos ricos com os pobres, torna-se

difícil interiorizar o conceito de equidade, subjacente a qualquer Estado que

queira promover um desenvolvimento sustentável fazendo da redistribuição

da riqueza um ponto de honra.

Outras atividades que se enquadram igualmente nas vagas indicações acerca da

formação cívica, provenientes do Ministério, ficam por conta de outros.

Enumeram assim:

Atividade: Declaração Universal dos Direitos Humanos; Objetivo:

Consciencializar para a defesa e promoção dos Direitos Humanos

Atividade: X Olimpíadas do Ambiente; Objetivo: Promover o interesse pela

temática ambiental; aprofundar os conhecimentos sobre a situação

ambiental portuguesa; desenvolver valores de proteção do meio ambiente

Atividade: Atelier "Vamos Reciclar papel"; Objetivo: Sensibilizar para a

importância da reciclagem de papel na sociedade de consuma atual.

Atividade: Água "Poupar para não faltar" - Campanha de sensibilização para

a redução do consumo de água; Objetivo: Promover a redução do consumo

de água

Atividade: Dia do Consumidor - Palestra interativa sobre Consumo

Sustentável; Objetivo: Refletir/encontrar formas sustentáveis de consumo.

É óbvio que não se consegue tirar ilações a partir destas propostas, sobre o

grau de intervenção que estas atividades geram entre os alunos. Pelo benefício

da dúvida, podemos esperar que, atividades deste tipo numa escola pública,

levam a alguma consciencialização, pelo facto de – em princípio – existir uma

maior diversidade de públicos, do que numa escola resultante de uma privativa

liberdade de escolha de ensino – reservado a quem tem posses ou, não tendo, a

quem tem comportamento considerado bom – que segrega e torna o outro um

objeto de falsa solidariedade.

A partilha pública, aliás, é estimulada de várias formas, como pelo Ministério

de Educação (2000) ao promover o Fórum Cívico: “O Fórum [...], pode

funcionar como um poderoso recurso educativo capaz de ativar inter-

activamente estes domínios da transdisciplinaridade. Aberto a profissionais de

educação e a todos os intervenientes na escola, o Fórum virtual permite o

Mas alguém quis a escola democrática? 63

debate aberto, franco e refletido.” Quero pressupor que se abra também aos

alunos. Neste fórum encontramos entre outras propostas a sugestão da

organização de uma Assembleia de Turma, no formato de tertúlia escolarizada.

São atividades para:

“Debater a importância do diálogo democrático na tomada de decisões

conjunta sobre assuntos da turma e/ou na resolução de situações

problemáticas.

Constituir a turma em assembleia de forma organizacional para o debate

de assuntos de interesse do grupo, [...].

Eleger uma mesa de assembleia (rotativa) e atribuir-lhes as respetivas

competências:

Elaborar a ordem dos temas a tratar, definir conjuntamente as regras de

funcionamento da assembleia de turma, conduzir a discussão na

assembleia, escrever a ata com resumo do que se discutiu e concluiu”.

Explicita que se visa promover a tolerância, o respeito pelo outro, a

solidariedade, a defesa da paz, dos direitos humanos, o espírito democrático, a

democracia participativa, entre outros, e que permite o processo de

interiorização da ideia de representatividade.

Os temas que podem ser tratados, são os que vêm referidos em todos os

manuais para a condução das atividades na área curricular não disciplinar de

Formação Cívica: Educação Ambiental, Educação sexual, Prevenção rodoviária,

Solidariedade, Educação para o Consumidor”

Acredito que, num contexto em que os alunos, por norma, não são convidados

a falarem, estas tertúlias sejam uma mais-valia. Duvido que eduquem para a

consciencialização, já que raramente apelam a uma intervenção ativa como

cidadão. Podem sim, gerar discussões na Internet, entre pares, como este47:

“O ensino só poderia ser totalmente imparcial se fosse ministrado por

máquinas e recebido por máquinas. E ainda tínhamos que contar com os

valores e opiniões do fulano que programasse a máquina... Não há pessoas

sem opinião, pois não? A menos que sejam completamente mentecaptas e

essas, esperemo-lo, não são professores. [...] Podemos sempre, em vez de

transmitir valores como "a tolerância, a solidariedade, a igualdade e a

democracia", informar apenas as crianças de que eles existem e continuar,

informando-os de que também existem a intolerância, o vale-tudo-

incluindo-tirar-olhos, o racismo, os totalitarismos vários e a filha-de-putice

em geral e depois dizer a miúdos de seis, sete ou doze anos que, de posse

das informações, escolham. Mas gostavas que os teus filhos andassem numa

escola assim?” A cidadania como ela é encarada pelos Alpha-mais, está

64 Pascal Paulus

salvaguardada: aqui, entre jovens, a escola é vista como um lugar onde

existem professores com ideias próprios – mas que vão ao encontro dos

“grandes valores” – que transmitem. A simples suposição que as crianças

poderiam estar dentro do processo, serem protagonistas, estarem na

cidadania, não ocorre.

É exatamente esta distinção entre “educar na cidadania” e “educar para a

cidadania” que é realçada no artigo Educar na Cidadania. Diz o autor não

identificado no Sítio Educare (2005):

“A educação será para a cidadania ou na cidadania? Não se trata de uma

subtil diferença entre a palavra na e a palavra para. [...]. Importante é o

espírito da coisa, pelo que prefiro a expressão "educar na cidadania", no hic

et nunc do drama escolar. Fazemo-nos no que fazemos. Aprendemos

cidadania, como tudo o resto, no devir que já somos no aqui e agora.”

E exemplifica:

“Há escolas onde a cidadania acontece. Numa reunião de Assembleia, um

miúdo, que fora transferido para a nova escola há menos de um mês, pediu

a palavra pela primeira vez. E disse:

"Para que é que estamos para aqui a discutir? Na outra escola, as

professoras diziam o que devíamos fazer… e pronto!"

O miúdo já tinha feito cinco anos de "educação para a cidadania", mas não

sabia que ainda estava a começar a tirar o curso de "educação na

cidadania". A "lição" seguinte foi-lhe ministrada por um colega mais antigo

na escola, quando contestou uma decisão dos professores:

"Eu não gostei nada de o professor ter feito as equipas. Ainda por cima

deu barraca, só houve zaragata e não houve futebol mesmo nenhum.".”

Esta reunião identificada como Assembleia, que me parece ocorrer no 2º ou

no 3º ciclo, vai de certa forma ao encontro de uma possível interpretação das

Orientações Curriculares para a Educação Pré-escolar publicadas pelo DEB (2002, p.

20):

“No sentido da educação para a cidadania, as orientações curriculares dão

particular importância à organização do ambiente educativo como um

contexto de vida democrática em que as crianças participam [...]. É nesta

vivência que se inscreve a área de formação pessoal e social, considerada

como área integradora de todo o processo de educação pré-escolar.”

Mas alguém quis a escola democrática? 65

Uma prática fundada na pedagogia institucional

É nesta vivência também que inscrevo, desde há muito, a minha prática com as

crianças com quem trabalho, e que exemplificarei aqui a partir dum grupo, na

Outurela, com quem trabalhei três anos consecutivos. Aposto na construção

participada de um cenário pedagógico – um espaço cultural facilitador – onde

o Conselho de cooperação48 é uma peça-chave. Aqui, procuro conciliar a

integração na sociedade existente com a crítica democrática, participativa e de

intervenção nela, a partir da análise da própria vivência, abordando de maneira

integrada muitos dos temas tão focadas na Formação Cívica e que, para mim,

não passam de assuntos de possíveis projetos de trabalho individuais ou

coletivas, no âmbito dos programas do 1º ciclo.

Mas trata-se sobretudo de continuar onde o manual pára, legitimado pelo

legado humanista da escola e sustentado pela liberdade metodológica na

abordagem do currículo e no estudo dos conteúdos do programa com as

crianças, como descrevi em vários artigos49.

Saliento aqui os aspetos da gestão participada da sala. Começo sempre por

apresentar aos alunos, o programa referente ao seu ano de trabalho, adaptando

a linguagem à sua capacidade de interpretação. Atualmente, trabalho a partir

do esboço do que será o Projeto Curricular de Turma do grupo envolvido. Em

conjunto pormenorizamos as linhas de ação deste Projeto, definindo campos

de intervenção. Contei, no artigo “Será que isto é cidadania?”, que prevemos –

caso se trate da continuação de um ano letivo para outro – tempo no fim do

ano letivo que termina, para, a partir de um balanço exaustivo, começar a

preparar as linhas de ação do ano seguinte. O balanço e a preparação incluem

sempre a análise das contas da turma e o orçamento das atividades do ano a

seguir. Normalmente, gerimos a compra do material didático e de desgaste – e

que não provém da escola (como o material MAB ou Cuisenaire, os mapas, o

material disponibilizado para a utilização do computador, etc.) – necessário

para a boa execução do projeto de turma em conjunto, havendo um controle

direto da parte dos pais. Organizo-me com as crianças, criando simples

instrumentos de registo e de análise (ver anexos 2 e 3) e com os pais,

apresentando balanços mensais (ver anexo 1) para que todos saibamos com o

que podemos contar. Implica discutir prioridades, reavaliar custos, entre alunos

e professor e pontualmente pedir adiamentos, reforços, ou justificar o dinheiro

que sobra aos pais e às mães, que continuam a ser nossos financiadores,

mesmo se recebem um subsídio camarário para compra de material escolar. Os

momentos de balanço com os pais servem também para apresentar o resultado

de projetos e de intervenções, o que torna gradualmente mais fácil a

66 Pascal Paulus

canalização de dinheiro previsto para manuais completamente supérfluos para

material bem mais necessário: boas tintas, bons pincéis, papel de vários

tamanhos e espessuras para o canto permanente da pintura, algum reforço para

a biblioteca da turma, material para produzir jornais, cadernos, exposições que

relatam o trabalho feito. Rapidamente, todos percebem que o custo do suposto

ensino gratuito se torne muito menor, se a gestão e a compra do material de

desgaste é feito em conjunto. Anos de orçamentos participativos e

cooperativos o comprovam facilmente.

Como já referi, a democratização da gestão implica a criação dum órgão de

moderação, o Conselho de cooperação. É nele que discutimos os planos de

trabalho coletivos, nos ajudamos mutuamente no ajustamento dos planos

individuais de trabalho, é nele que discutimos as dificuldades organizacionais, é

nele que elaboramos e modificamos leis, regras, rotinas, dentro do contexto

onde temos legitimidade: o espaço-tempo da turma, 25 horas por semana, 180

dias por ano letivo, de ano em ano, sempre em democracia direta, em que cada

um se representa a si próprio, dentro do coletivo. Esta interpretação da

cidadania na escola está amplamente descrita e comentada, por Sérgio Niza,

entre outros textos, nos editoriais da revista Escola Moderna.

Obrigo-me a não confundir a cidadania e a democracia, objetos de uma ou

várias lições, com a educação na cidadania e a democracia, como meio de

trabalho, fruto de um processo civilizacional, para conseguir com que as

crianças consigam intervir ativamente no meio, melhorando assim as suas

aprendizagens. Chamo a atenção pela mais recente proposta de definição dada

por Jean Oury (1999) da pedagogia institucional:

“La Pédagogie Institutionnelle est un ensemble non clos de réponses

possibles aux questions qui, même si elles ne sont pas posées, se posent

quotidiennement à quiconque prétend faire œuvre d'éducation et

d'apprentissage. Il ne s'agit pas d'une méthode... Elle se caractérise autant

par les questions qu'elle pose que par les réponses qu'elle élabore.

Comment la mettre en œuvre?

S'il suffisait d'expliquer la pédagogie institutionnelle, ça se saurait. La classe

coopérative ne se livre pas en kit et ne peut exister sans un maître, sujet et

praticien.

Ne nous voilons pas la face, ce qu'on appelle la citoyenneté, la démocratie à

l'école ne sont pas des buts mais un préalable a des apprentissages scolaires

performants. Ça passe par l'apprentissage de la loi, du groupe et de la

maîtrise de certaines institutions. Ça passe par le Désir, le désir de chacun

d'être dans la classe, de la classe. Alors, les enfants apprennent ou

Mas alguém quis a escola democrática? 67

réapprennent. Pas aussi bien, mieux. Mais pour cela, il faut des maîtres et

donc une véritable formation à cette maîtrise, continue, en groupes, avec

d'autres : une transformation personnelle et professionnelle.

Changer de métier ou changer le mener.”50

A gestão do poder no seio do grupo não é fácil. Tem avanços e recuos, implica

negociação, mas também a gestão de conflitos, que – no meu caso, neste grupo

da Outurela – eram às vezes violentos. Irene Santos (2004: 165) que foi

observadora envolvida durante seis meses, relata de forma clara como as

tensões desembocam em escolhas às vezes difíceis: “... quando o professor saía

da sala, estava em causa um conflito, cuja resolução imediata, com a saída da

figura de autoridade, era repentinamente posta nas «mãos» das crianças. [Uma]

reclamação [registada acerca disso] revela o incómodo que as crianças sentiram

nesta situação em que eram obrigados a reagir. Situação, aliás, integrada num

modo de autoridade próprio que o professor Pascal pretendeu desenvolver,

caracterizado nomeadamente pela negociação; pela possibilidade de acatar

decisões tomadas [...] Uma autoridade que não deixa de ser penosa para as

crianças, na medida em que as confronta frequentemente com os

compromissos que assumem pontual ou globalmente, e de que o professor é o

principal gestor, animador, provocador.”

Enquanto se vai construindo a teia complexa da gestão das atividades, do

espaço, do tempo, do dinheiro e dos projetos, enquanto se vai negociando

colaborações entre pares, responsabilidades e tarefas, surge também a

necessidade de intervir ativamente no meio, a partir de provocações internas

ou externas.

A publicação mensal do jornal da turma, a manutenção do Sítio da turma na

Internet, a preparação de exposições interativas com a comunidade e com os

pais e as mães, que relatei em “Os pais na escola” são atividades que permitam

esta intervenção.

Surgem projetos. “As máquinas de lavar roupa”, na altura da mudança de casa da

“barraca” para o apartamento de baixo custo no “bairro social”51, como para

tomar posse de uma nova realidade. “As mães-criança”, na altura em que

falamos sobre mais uma adolescente que engravidou e que arrisca a ser posta

fora de casa, pelo que as meninas da turma, então com 8 – 9 anos queiram

saber se os pais podem “botar fora” as crianças grávidas, procurando resposta

para as amigas em causa e saber o que existe em termos de linhas de apoio. E

sobretudo, aprender como evitar chegar a tal ponto. O estudo sobre o racismo,

68 Pascal Paulus

procurando saber como as crianças, colegas da escola sentem o racismo na

pele e porque é que isto acontece.

Mas também surgem projetos que intervêm diretamente com o meio: o

trabalho de fundo para conseguir a melhoria dos passeios e das passagens de

peões, o trabalho acerca de Lisboa, que serve também para consultar com

mães analfabetas a planta do metro e dos transportes públicos, um grande

projeto de solidariedade com as mulheres do Afeganistão, a partir da

correspondência com um grupo de mulheres que lutam contra os Taliban, que

lançou a turma durante três meses numa retrospetiva que relacionou a sua

própria ação e intervenção com a carta dos Direitos das Crianças, descrito em

“Uma questão de opção ... curricular” Tão ou mais importante do que a publicação

de um caderno especial dedicado às mulheres opositoras aos Taliban, foi o

trabalho de consciencialização das próprias crianças, que se tornaram

sabedoras confiantes da sua própria capacidade útil e possível de intervir

ativamente. Deixaram de ser as crianças que precisam de apoios, de

intervenções, de especialistas em bairros complicados, para se tornar políticos,

intervindo na polis.

O último grande projeto do grupo durou vários meses e consistiu em trabalhar

em conjunto e com os correspondentes para tornar possível um encontro de

trabalho de uma semana, servindo de base para um conjunto de projetos

relacionados, abordando conteúdos do programa de 4º ano de escolaridade. A

dificuldade residia no facto de os correspondentes serem Belgas e viverem em

Leuven, na Bélgica. Implicou a gestão de um projeto bem ambicioso,

orçamentado em aproximadamente 8000 euros. Projeto que consolidou o

saber-fazer intervencional das crianças envolvidas; geriram todos os aspetos

burocráticos e fizeram as intervenções necessárias à sua realização.

Nos três anos que trabalhámos juntos, houve intervenções conduzidas com

sucesso junto à Câmara, ao bairro, à embaixada da Suíça, aos sindicatos de

professores, a deputados, dirigentes partidários e candidatos presidenciais. Em

mais do que uma ocasião, as crianças aprenderam a perceber a diferença entre

a retórica oca e as reais possibilidades de intervenção. Intervieram para e por si

próprio e ajudaram outros para também intervir para si próprios. Recusaram

categoricamente, numa reunião de Conselho de “pedir esmola”, mesmo que

seja para oferecer a outros, mas aceitaram partilhar o lucro do seu esforço de

trabalho com outros.

Mas alguém quis a escola democrática? 69

Uma questão de opção ...

Tracei aqui, em poucas palavras, o caminho percorrido pelas crianças com

quem trabalho, ciente que o poder instituído na turma, no seio do Conselho de

Cooperação, incentivando a gestão participada, como atrás ilustrei, o foi,

apenas porque assim o quis como professor e que o legislador me dá o direito

à escolha metodológica.

Parece-me claro que a escolha pelo tipo de interpretação dada à Formação

Cívica também depende do legislador, unicamente no sentido de que é ele que

decide se temos escolha ou não. É a ténue diferença entre o Grande Irmão

cidadão que fica pelas tipologias de Alpha até Epsilão, e o Grande Irmão que,

uma vez terminado o Dicionário da Novilíngua, formula um sentido único

para todos os conceitos também para o de Formação Cívica, não aceitando a

partir daí alternativas, simplesmente porque sentenciou que não existem

palavras sequer para as conceptualizar. Apesar de todos os defeitos que

podemos apontar à democracia formal que este Grande Irmão do primeiro

tipo nos propõe, é nela ainda possível ganhar espaço para construir alternativas

viáveis de intervenção na cidadania, com as pessoas com quem trabalhamos,

crianças ou adultos. Mas também não tenho dúvidas de que obrigá-lo a manter

a possibilidade de escolha, depende da capacidade mobilizadora de quem está

criticamente atento aos significados implícitos.

Faço este balanço a partir do que me foi dado a ver em termos de orientações,

publicações e realizações que, na sua maioria, interpretam a cidadania e a

subsequente instalação da “Educação para cidadania” e da “formação cívica”

no sentido de calar as crianças. Em todo o lado impera o modelo de formação

descrito por Paulo Freire como modelo bancário, com um conteúdo

moralizador de educação para o bom comportamento. Esta corrente principal

pode levar o Grande Irmão a deslizar em direção ao controlo do poder, no

sentido imaginado pelo seu criador. Questiono, com Ariana Cosme e Rui

Trindade (2000), quando falam do aparecimento da área curricular não

disciplinar e constatam que:

“a decisão atual pode corresponder, tanto a um exercício de legitimação

pública da política educativa do M.E. como à cedência a "lobbies"

organizados que visam conquistar um espaço de influência no âmbito das

escolas [...]”

Como democrata laico e ateu defendo o direito, para quem o quiser, à

instalação de escolas religiosas, sem condições. Como democrata autorizo-me

ter dúvidas acerca da universalidade dos progressos da cultura e da ciência à

70 Pascal Paulus

luz da mensagem cristã católica. A ciência matemática parece-me ter ganho

imenso com a matemática Hindu, com o trabalho de Al-Kwoharizmi, que

levou séculos a ser aceite pelo poder no seio da igreja católica, que nem deu

grande ouvido a divulgação a este respeito, feita pelo papa Silvestre II em 998.

Também tenho dúvidas que a Inquisição tenha sido garante pelo progresso da

ciência, quando queimou Giordano Bruno. Como democrata, considero

imprescindível estudar a história nacional, necessário para perceber melhor a

minha condição de cidadão. O contributo das forças de segurança pode ser

útil. Os meus alunos da Outurela mantiveram uma troca de correspondência e

de informação com o comissário da PSP local, acerca da história das bandeiras,

acerca de aspetos de segurança, e convidaram-no para a peça de teatro que

montaram a partir do texto de Daniel Pennac “O olho do Lobo”, convite que

foi aceite. Como democrata, não consigo estudar, com os meus alunos, os

descobrimentos, sem olhar para eles como Europeu, mas também como

Africano, como descendente dos povos escravizados, oprimidos pelo poder,

que controla as forças de segurança. Como democrata, desconfio criticamente,

sempre que alguém se concede um poder absoluto, maioritário ou prolongado,

seja em que nível de decisão. Os excessos do pequeno poder são-nos bem

conhecidos.

Ariana Cosme e Rui Trindade (2000) concluem:

“Os alunos das nossas escolas, do 1º Ciclo ao Ensino Superior, necessitam

indubitavelmente de viver, experimentar e refletir sobre experiências cívicas

relevantes, o que não significa, contudo, que necessitem para isso de uma

disciplina de Educação Cívica nos seus programas de estudo.”

A disciplina de Educação ou Formação Cívica não faz necessariamente mal.

Mas estou convencido que é ilusão pensar que ela forma cidadãos

intervenientes. E isto, os Alpha-mais-mais sabem-no muito bem. Na minha

perspetiva, a promoção da intervenção cívica passa pelos projetos de

intervenção, pela construção de documentação de referência a partir daí, com

crianças, desde o Jardim de Infância. Quero promover a intervenção cívica por

parte das pessoas com quem trabalho, por ter a obrigação democrática de o

fazer e por considerar ser necessário haver novas gerações capazes de

continuar a obrigar o Grande Irmão, seja ele qual for, a respeitar este direito

democrático.

Referências bibliográficas

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Mas alguém quis a escola democrática? 73

Anexos

Balanço ano lectivo 1999 – 2000 (em escudos)

Receitas set out nov dec jan feb mar apr maio jun total

Jornal 2100 2500 500 1500 1500 2000 10100

Vendas 4800 4800

Subsídio 62500 62500

Oferta 1000 1000

0

Total 0 0 2100 2500 63000 6300 2500 2000 0 0 78400

Despesas set out nov dec jan feb mar apr maio jun total

fotocopias 7305 3240 2800 2898 1800 3000 21043

material 3935 3729 420 8960 1730 2845 984 22603

livros 9122 12368 21490

cadernos 2200 3100 5300

vários 4800 1505 6305

0

0

Total 11240 0 16091 3220 14058 23798 4350 3984 0 0 76741

diferença Set Out Nov Dez Jan Feb Mar Apr maio

-11240 0 -13991 -720 48942 -17498 -1850 -1984 0

Anexo 1: Contabilidade do 2º ano de escolaridade como é discutida e apresentada em reuniões bi-mensais às mães e aos pais

Registo de compras e vendas. Mês de:

Dia Tínhamos Recebemos Gastámos Temos

Totais

Anexo 2: Modelo do registo de compras e vendas

74 Pascal Paulus

Anexo 3: Análise da contabilidade da sala

Mas alguém quis a escola democrática? 75

Leituras acerca da organização do trabalho no primeiro ciclo.

Ofício ou profissão?

A Ministra de Educação despachou, em Agosto de 2005, que os Conselhos

Executivos das escolas têm que incluir, no horário da escola, as horas da

componente não letiva ao nível de estabelecimento de cada um dos

professores. Que é já, entretanto, do conhecimento geral.

Desde 1990 que está definido o horário de estabelecimento, consagrado no

artigo 82º do estatuto da carreira docente (ECD52), mas só esporadicamente

estava anotado em horário, quantas horas representavam das ditas não letivas,

e o que os professores faziam neste tempo. Existem tempos mais visíveis,

como aqueles definidos pela alínea d) do ponto 3 do referido artigo, que fala

da formação contínua, dos congressos, dos seminários, etc. Este trabalho já

fazia parte da profissão, como é normal numa profissão intelectual, e continua

a estar contemplado no horário de estabelecimento, mas tem que estar

anotado.

Mas havia outras atividades da profissão que eram menos visíveis: como é que

um grupo de professores de uma escola desenvolve a integração dos alunos na

comunidade educativa? (alínea a)) Como organiza o recreio e as pausas de

meio-dia para quem almoça na escola? Também era menos visível como

organiza os contactos com a comunidade (alínea b)), com as famílias, a não ser

pela calendarização das reuniões de grupo e do atendimento individual, que é

só a parte mais evidente deste trabalho. Não era tão visível como se

desenvolve o trabalho pedagógico que sustenta o projeto educativo da escola, a

partir de reuniões e grupos de trabalho. Nem era sempre claro que tipo de

estudos ou de investigação eles faziam, que intervenção eles preparavam

(alínea f)). A substituição de docentes ausentes não é grande problema no 1º

ciclo em monodocência, já que normalmente as crianças da turma sem

professor são distribuídas pelas outras.

Todas estas vertentes fazem parte do trabalho de estabelecimento, definido

pelo artigo 82º e a ministra achou por bem lembrar que existem, talvez porque

o trabalho era pouco visível.

Talvez, nalguns casos, o fosse, porque o próprio projeto educativo não era

muito explícito ou muito claro: há professores que continuam a confundi-lo

76 Pascal Paulus

com um projeto temático qualquer que se desenvolve numa turma ou num

conjunto de turmas durante um ano letivo.

Talvez, noutros casos, porque os professores, vindo de longe, não sabiam

muito bem que trabalho havia para fazer, e que ninguém estava disponível para

os integrar.

Talvez, ainda, porque nada do que se fazia era explicitado.

Talvez, e temos que o admitir, porque nalguns casos, o trabalho não existia.

Mas também há aqueles onde era bem claro, este trabalho a nível do

estabelecimento, porque existia um projecto educativo da escola, porque a

equipa que trabalhava na escola sabia muito bem no que cada um estava a

trabalhar. Não estava por ventura formalmente explicitado, mas aí a emenda é

fácil.

Recordo-me da escola do 1º ciclo, onde trabalhei durante 5 anos e onde

desenvolvemos em conjunto quase dois períodos de Projeto Educativo.

Quase, porque no 6º ano de trabalho, a escola foi agrupada, obrigatoriamente,

à outra. Não foi dramático, mas implicou reorganizações que impediram

completar o Projeto Educativo como estava inicialmente previsto. Porém,

nestes 5 anos os professores constituíram, depois de terem construído o

primeiro projeto educativo, a partir de discussões e observações, de e com o

meio em que a escola estava inserida, um conjunto de grupos de trabalho.

Menciono os trabalhos de que me lembro, por ter participado neles:

estudar em pormenor o programa e depois o Currículo Nacional, para o

traduzir para os alunos e permitir-lhes tomar conhecimento do que lhes é

exigido em termos de aprendizagens;

elaborar listas de verificação, permitindo a autoavaliação aos alunos;

organizar a animação do recreio, recorrendo a mediadores;

conceber, experimentar e retificar ficheiros com propostas de trabalho

para que crianças pudessem utilizar autonomamente o canto de ciências

da sala de aula;

organizar pelo menos trimestralmente reuniões de pais por turma, em que

se incluía a apresentação do trabalho realizado pelos alunos;

articular com outros intervenientes no bairro a ocupação dos tempos

livres das crianças que tinham que recorrer a este serviço de apoio;

aplicar – mesmo quando não obrigatório – e estudar os resultados das

provas de aferição, para poder corrigir estratégias propostas no Projeto

Educativo;

Mas alguém quis a escola democrática? 77

debater a partir daí a organização da formação contínua centrada sobre a

escola, para a qual recorreram durante 4 anos ao Centro de Formação à

qual a escola está ligada;

Os professores, na maioria jovens, em início de carreira, e portanto,

contratados, junto com uns poucos professores mais velhos, do quadro,

participavam em muitas ocasiões nas reuniões pedagógicas (alínea c) do ECD)

já envolvidos neste processo, criando-lhes a vontade de construir instrumentos

de trabalho que contribuíssem para melhorar a intervenção junto dos seus

alunos. Tenho a certeza que o tempo não era contabilizado como o Ministério

agora obriga, mas também sei que não teria sido difícil fazê-lo. Não tenho

disso testemunho, porque um corpo docente muito volátil e que assim

desapareceu, impediu este exercício de estilo. A promessa de maior fixação do

corpo docente a partir do próximo ano poderá talvez ajudar a recuperar tempo

perdido. Estou curioso, já que, em princípio voltarei para a mesma escola no

próximo ano letivo.

O exemplo que acabo de descrever é, infelizmente, neste momento

contraditado por práticas, no meu ver, duvidosas. Talvez tenha sido uma ideia

infeliz, conjugar a exigência de maior rigor na explicitação do horário de

estabelecimento e dos professores, com a concretização de duas promessas

eleitorais um tanto demagógicas: abrir as escolas até as 17.30 e ministrar aulas

de inglês aos alunos dos 3º e 4º anos. A urgência para esta concretização,

transformaram estas promessas em dois objetivos que parecem obrigar à sua

implementação a todo o custo. Para o inglês, o custo é claro: abriu-se, para este

tempo não-curricular, a porta da escola pública a um sem número de

instituições privadas, que vendem os seus produtos, parte pago por dinheiros

públicos. Já existem relatos da obrigação da compra de um manual (não

curricular?) de 25 Euros. Para a generalizada abertura das escolas até as 17.30 o

custo é menos claro. O tempo não-curricular que não o inglês, que era

enquadrado por estruturas externas à escola, muitas vezes por organismos

públicas ou semipúblicos, está a desaparecer53. Um empobrecimento do leque

de atividades proporcionadas, talvez. Mas o maior custo, ainda que

provavelmente não intencional, é sem dúvida o facto que a profissão

intelectual de professor de 1º ciclo se está a transformar rapidamente, em

muitos agrupamentos, num ofício meramente técnico. Conhecemos já

múltiplos exemplos em que os professores de 1º ciclo são obrigados pelos

respetivos Conselhos Executivos a trocar o seu tempo de estabelecimento

como previsto no ECD, por um tipo de função de auxiliar de tempos livres.

Esta obrigação surge, muitas vezes, sem tomar em conta o Projeto Educativo

78 Pascal Paulus

– ou caso este não exista, a realidade contextual da escola – e, nalguns casos

sem sequer ouvir as pessoas envolvidas. Numa frenética vontade de responder

à sua própria interpretação do despacho ministerial, estes Conselhos

Executivos provocaram problemas de vária ordem.

Houve situações lamentáveis, em que redes de complementaridade, tecidas ao

longo de anos, nalguns casos entre associações de pais, escolas e / ou

organismos de Atividades de Tempos Livres, ficaram desfeitas sem mais, de

um dia para outro. Houve trabalho, resultado da concretização de objetivos,

contemplados em Projeto Educativo, que ficou sem efeito, de 31 de Agosto

para 1 de Setembro. Existem agrupamentos que deslocam professores de 1º

ciclo da escola onde trabalham para outra escola do agrupamento, para ocupar

as crianças, argumentando que na sua própria escola a associação de pais

organiza o prolongamento não curricular. A flexibilização neoliberal no seu

melhor. Parece que estes Conselhos Executivos, na ânsia de controlar, só

conseguem imaginar este mesmo controlo do trabalho do professor fora do

trabalho letivo, quando ele estiver ocupado a ocupar crianças.

Infelizmente, em muitos estabelecimentos, o trabalho previsto no ponto 3 do

artigo 82º do ECD desapareceu, porque todos os professores foram desviados

para a ocupação das crianças. Esperemos que o tempo reponha ordem na

situação e que se consiga travar o despotismo anárquico que reina nalguns dos

agrupamentos de escolas. Esperemos que haja aqui também um olhar atento

dos decisores que, talvez bem-intencionados, despoletaram repentinamente,

em determinados casos, práticas duvidosas e insustentáveis.

Hipóteses de trabalho para um maior sucesso educativo.

Esperemos. Lembramos também que há um trabalho mais necessário para ser

feito pelos docentes que conduzem um projeto educativo de uma escola.

Acontece, por exemplo, que, no meio de todo este remoinho, poderão bem

passar desapercebidos entre os professores do 1º ciclo, dois documentos, que

com certeza servem de base para muito estudo e reflexão no interior dos

estabelecimentos públicos de educação. Trata-se dos resultados da avaliação de

competências de alunos de 15 anos, publicado pela OCDE, com o nome de

PISA 2003 e do livro Números Chave da Educação na Europa 2005, publicado pela

Eurydice. Os resultados do PISA 2003 referem-se a este ano, enquanto os

dados da Eurydice se referem ao ano letivo 2003-2004.

Mas alguém quis a escola democrática? 79

É de todo o interesse cruzar dados entre estes dois documentos, para tentar

perceber como se poderá trabalhar para uma escola pública de primeiro ciclo,

que promova mais sucesso entre os seus alunos.

Proponho, para exemplificar, uma abordagem em que olhamos uma pequena

escolha de países54 europeus, que participaram na avaliação PISA, e dos quais

os dados, fornecidos pelas suas respetivas estruturas ligadas ao Ministério de

Educação (no caso de Portugal o então GIASE), foram integrados nos

Números Chave.

Na primeira amostra que escolhi (tabela 1), estão contemplados três países que

obtêm, no PISA, resultados entre o primeiro quarto dos 40 países avaliados.

São a Finlândia, os Países Baixos e a Bélgica (neerlandesa quando disponível

por região) que têm em comum a monodocência para pelo menos 6 anos de

escolaridade. A Bélgica tem ainda a particularidade de ser um dos três países da

Europa (e o único contemplado no PISA) em que a formação inicial de

professores que lecionam até ao 9º ano de escolaridade não é universitária nem

do tipo universitário. Isto é, à saída os professores não obtém licenciatura.

Segue a Dinamarca que já teve o sistema de monodocência e que mudou para

um sistema de pluridocência, onde os professores têm um dos melhores

ordenados da Europa, e onde se investe consideravelmente mais per capita do

que em Portugal no ensino dos alunos de 6 até 15 anos. A Dinamarca está

entre os países no terceiro quarto da lista

Os últimos dois países são Itália e Portugal, ambos no último quarto do grupo

de 40, a Itália um pouco à frente de Portugal.

Os números na tabela 1, à seguir ao título “contextos”, retiradas do

documento da Eurydice permitem tecer algumas primeiras hipóteses:

Países Baixos, Finlândia e Bélgica, que têm em comum uma longa mono-

docência55, vêm à cabeça. Entre o grupo estudado, em dois destes países os

alunos têm o menor número de horas de aula por ano. A Itália, com mais

horas de aula por ano do que os Países Baixos, e a Dinamarca com menos do

que a Finlândia mas mais do que a Bélgica, têm em comum terem assumido,

desde o início da escolaridade, um sistema de pluridocência. A diferença entre

os dois tem basicamente a ver com o salário dos professores: são mal pagos na

Itália, bem pagos na Dinamarca, tanto comparativamente entre eles, como em

função do estandarte de poder de compra no próprio país (PPA – Paridade de

Poder de Aquisição).

Uma tendência geral, à qual só a Dinamarca foge, é que existe uma relação

inversamente proporcional entre o número de horas de aula dos alunos e o

resultado obtido no PISA. Juntamos a este dado que a Bélgica e os Países

80 Pascal Paulus

Baixos declaram o menor número de horas contratuais dos professores. Em

contrapartida, os Países Baixos declaram o valor mais alto, embora sem definir

de que tipo de trabalho se trata, por não indicar qual é o tempo obrigatório na

escola. Com esta exceção, pode ler-se que maior número de dias de trabalho

dos professores não influencia positivamente os resultados PISA. A relação

parece antes inversa.

Neste contexto é interessante referir que os dados fornecidos pelo GIASE em

2003 à Eurydice considera o horário de estabelecimento do professor de 35

horas, das quais 25 letivas no 1º ciclo. Isto é, parece ter antecipado alguns

Conselhos Executivos, que fazem desaparecer o tempo de trabalho individual.

Olhando para as despesas anunciadas em USD per capita para os alunos entre 6

e 15 anos e a organização da docência, é claro que mais despesa gera melhor

resultados para a monodocência, mas que a pluridocência custa mais cara e dá

piores resultados.

É difícil relacionar o salário do professor com os resultados obtidos. Não é por

ser melhor pago que os resultados são melhores. Os professores finlandeses

ganham relativamente pouco, os dinamarqueses relativamente muito. Belgas e

holandeses ganham bem, portugueses e italianos ganham mal, quando

comparamos os valores efetivos entre os vários países, mas quando

comparamos em função do PPA, os portugueses aparecem em primeiro lugar.

Pode aqui haver uma distorção, havendo um valor de PPA artificialmente

baixo, devido ao bem conhecido mercado de economia paralela.

Assim, uma primeira leitura parece dar como tendências:

Pluridocência é pior do que monodocência;

mais investimento gera melhores resultados, salvo no caso da

pluridocência;

menos tempo de aula parece beneficiar os alunos e melhorar os resultados

PISA, quando em monodocência;

trabalhar mais tempo na escola não tem relação significativa com

melhores resultados.

Para poder formular algumas hipóteses acerca de o que poderá influenciar

melhores competências na literacia em geral e na literacia matemática e em

ciências, procurei juntar alguns dados, provenientes de um estudo incluído no

documento da Eurydice (PIRLS 2001) baseado em inquéritos a amostras

alargadas feitas a professores que trabalham num 4º ano de escolaridade, num

conjunto de países da Europa. Primeiro fiz uma amostra pequena de países,

que juntei na tabela 2. Além dos Países Baixos (primeiro quarto) e da Itália

Mas alguém quis a escola democrática? 81

(último quarto) únicos participantes presentes na tabela 1 que participaram

neste estudo, juntei dois países do segundo quarto (a França56 e a república

Checa, por ser um antigo país de leste), e 1 país do terceiro quarto, a

Alemanha, que assume a pluridocência a partir da 4ª classe em quase metade

do seu território enquanto a mantém até o 6º ano na outra metade do país. É

de referir que enquanto os Países Baixos estão destacadamente a frente neste

conjunto, a Itália está destacadamente atrás.

Escolhi entre as variáveis recolhidas pelo PIRLS as que têm a ver com a

organização da docência e um conjunto de perguntas que revelam algo sobre

práticas de ensino, sabendo que em todos estes países o ensino frontal (o

docente está em frente dos alunos, sentados em filas), mesmo em

monodocência, é largamente maioritário.

Como se pode deduzir da tabela, os Países Baixos é onde há menos trabalho

de casa (a pergunta incide sobre o trabalho de casa para a disciplina língua

materna), Alemanha é onde há mais, enquanto a Itália mantém uma posição

média. A França é quem mais aposta nas idas à biblioteca, logo seguida pelos

Países Baixos, enquanto na Itália se vai menos vezes à biblioteca com os

alunos. No que se refere à utilização da literatura infantil como meio para

facilitar o processo de aprendizagem, os Países Baixos são quem a utiliza mais,

a Alemanha e a Itália quem utiliza menos.

E o manual? Enquanto os professores dos Países Baixos afirmam menos

utilizar o manual, na república Checa é onde é mais utilizado, logo seguido pela

Itália.

Poder-se-ia formular como hipótese que um país com mais probabilidade para

obter bons resultados no PISA será aquele onde menos trabalho de casa se

propõe, onde menos se utiliza o manual e onde mais se recorre à ida a

biblioteca e à literatura infantil. Esta hipótese continua coerente com a leitura

de que a monodocência facilita a aprendizagem: contrabalança na França e na

República Checa a utilização mais frequente do manual, enquanto a

pluridocência reforça o que parece ser negativo para a obtenção de bons

resultados para os alunos Alemães e Italianos.

Para procurar se de facto esta hipótese tem algum fundamento, para alguém

que queira fazer um estudo académico neste sentido, ofereço ainda uma

terceira “colheita”57.

Esta colheita aparece na tabela 3, e procura ilustrar como é que estas variáveis

se relacionam em todos os países europeus contemplados no PIRLS que

também o são no PISA. Trata-se novamente da organização da docência e de

82 Pascal Paulus

duas variáveis que chamei de indicadores de prática: o trabalho de casa e a

utilização do manual.

Para construir a tabela 4, relacionei os países entre eles para estas três variáveis,

procurando se se delineava alguma tendência. Sendo 12 os países, a relação

também vai de 1 até 12, aparecendo assim uma classificação de três grupos: 1-4

(muito), 5-8 (média), 9-12 (pouco).

Fazendo uma leitura desta tabela continua a aparecer como melhor hipótese de

êxito nas provas PISA o país onde se dá pouco trabalho de casa, onde se

utiliza pouco o manual e onde a monodocência está bem implantada (Países

Baixos continua a ser o único exemplo).

Mais trabalho de casa ou mais utilização do manual é positivamente

influenciado por mais monodocência, embora o ganho diminua à medida que

uma destas variáveis aumenta. Para a Suécia o contrário também é verdade: a

pluridocência já mais fortemente instalada (18%) é positivamente compensado

por menos trabalho de casa e menos uso do manual. Eis a leitura possível para

o segundo grupo.

No terceiro grupo, que só contempla três países, é menos claro esta relação,

talvez porque se encontrem relativamente perto uns dos outros no ranking do

PISA. Em relação com os anteriores mantém se a linha decrescente nos

resultados, inversamente proporcional com a linha crescente da quantidade

trabalhos de casa, do uso do manual e da pluridocência, em que a república da

Eslováquia continua a ter um ligeiro benefício pelo facto de ter uma

pluridocência ainda abaixo dos 40%. Os últimos três países da lista têm em

dois dos casos muito trabalho de casa e muito uso do manual com percen-

tagens de pluridocência que rondam os 50%. Itália, que recorre menos ao

trabalho de casa e ao uso do manual tem aqui uma ligeira compensação para

uma pluridocência generalizada.

Um instrumento possível de trabalho.

Como referi acima, a leitura destes dois documentos permite a construção de

hipóteses de trabalho para estudar o que leva ao sucesso nas provas PISA, que

um estudioso das ciências de educação poderá desenvolver com estudos mais

pormenorizados e complementares.

Quem está na escola e quer trabalhar sobre o projeto educativo desta escola,

poderá para já trocar informação entre colegas que utilizam muito o manual,

com outros que o utilizam pouco, entre quem manda muito trabalho para casa,

quem manda pouco. Poder-se-ão comparar formas de utilizar o manual e tipos

Mas alguém quis a escola democrática? 83

de trabalho de casa se houver. E poder-se-á combinar construir testes de

avaliação formativos, não só para os estudantes mas também para os

professores, testes baseados nas perguntas do PISA ou das provas de aferição,

para assim procurar que estratégias resultam melhor com que grupos.

Poder-se-ia fazer correspondência (internacional – e porque não em inglês –

neste caso) escolar, algo que consta do programa do 1º ciclo, com um grupo de

uma determinada escola com metodologia própria nos Países Baixos ou na

Bélgica58 – países com muitos emigrantes que falam português – para também

poder aproveitar da experiência concreta desta ou daquela metodologia em

relação ao PISA.

A partir daí poder-se-ia procurar envolver mais pessoas no processo educativo,

envolvendo pais e mães, e desenvolver estratégias de complementaridade.

Já agora, poder-se-ia chamar a atenção dos representantes dos sindicatos e dos

professores das escolas superiores para terem algum cuidado quando

defendem por razões que talvez não sejam pedagógicas uma maior implan-

tação da pluridocência mais cedo na escolaridade.

De qualquer forma, este trabalho, que considero trabalho de estabelecimento,

parece me bem mais interessante, produtivo e propício para o

desenvolvimento do sistema educativo português do que a implementação de

medidas duvidosas pelo pequeno poder cego que manda fazer “igual para

todos”, chamando a isso descentralização.

Fernand Oury diria “Impossível? Não, já que existe” Existe em países onde há

escolas organizadas à volta de um projeto pedagógico em monodocência ou

em team-teaching. Sim, porque há exemplos, também aqui em Portugal.

Utópico?

Herman Portocarero, diplomata e poeta Belga, escreveu acerca da utopia:

“O não realizar da utopia é, de facto, a essência dela. Trata-se duma terra

que só pode ser espreitada, da margem oposta. Pisá-la é mortal, seduzir

para o fazer essencial. É a ninfa do pensamento, que deve recusar tornar-se

a prostituta da política.”

84 Pascal Paulus

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Mas alguém quis a escola democrática? 85

Anexos

Tabela 1 Tabela 1 NL FI BE (nl) PT IT DK Observações

Resultados Pisa – pos. média 5,25 1,6 8 29,8 27,6 18,4

PISA 2003

Posição Mat – Variação/Relação 1 3 8 30 31 16 BE (ger) e FI estatisticamente igual

Posição Mat – Quantid. Número 8 1 7 31 29 13 NL e BE (ger) est. Igual – PT e IT também

Posição Mat – Cult. Mat. Geral 4 2 8 30 31 16 NL e BE (ger) est. Igual – PT e IT também

Posição Cultura Científica 8 1 14 32 27 31 BE geral

PISA 2000

Posição Ling. - compr. Escrita - 1 3 26 20 16 BE e FI estatisticamente igual

Posição Relativa entre os seis 2 1 3 6 5 4

Contextos

Relações estruturais

Pib/capita e ranking matemática 2 4 3 6 5 1 DK na mediana, NL, FI e BE (ger) acima

55000 53000 63000 48000 75000 74000 BE geral

3 1 6 25 24 11 BE geral

Tempos (ens. Primário)

Tempo lectivo professores 23 22 25 24 24 Por semana

Duração tempo lectivo em minutos 45 50 60 60 45

Tempo lectivo em horas 23,5 17,25 18,33 25 24 18 Linha 21 x linha 22 / 60

Tempo de escola (contratado) 25 18,33 35 25,1 37 Por semana – inf. PT não respeita o ECD

Tempo de escola (contratado) 200 193 182 180 220 209 Dias por ano Ano

Tempo de trabalho contratado 200 193 182 225 281 Dias por ano Ano

Dias de aula por ano 200 190 182 180 200 200

Horas de aula por ano (média) 940 627 849 910 980 720 Aulas dos alunos

Horas de aula por ano (média) 910 700 Aulas dos professores

Horas de trabalho anuais profs 1659 1575

Posição Relativa entre os seis

Tempo lectivo alunos 3 6 4 1 2 5 De mais para menos

Tempo trabalho anual professores 1 5 6 3 2 4 De mais para menos

Trabalho de casa alunos 15 anos 5 3 5 4 10 5 Média em horas por semana

Posição Relativo entre os seis 2 6 2 5 1 2 De mais para menos

Professores

Faixa etária em %

< 40 anos 39 45 51 40 28 28

40 – 50 anos 36 24 28 40 36 25

> 50 anos 24 28 20 20 34 45 (nunca mais do 65 anos)

Salários anuais aproximados em USD

PIB per capita 1999 24780 24280 25380 10670 20090 33040

PPA 21620 20670 23480 14380 20200 23830

Relação salário de ingresso 103 99 94 139 76 97

Relação salário de fim de carreira 150 125 154 320 112 110

Salário aproximado de ingresso 25523,4 24037,2 23857,2 14831,3 15268,4 32048,8

Salário aproximado de fim de carreira 37170 30350 39085,2 34144 22500,8 36344

Salário aproximado médio 31346,7 27193,6 31471,2 24487,65 18884,6 34196,4

Relação salário médio / PPA 145,0% 131,6% 134,0% 170,3% 93,5% 143,5%

Posição Relativa entre os seis

Valores absolutos 3 4 2 5 6 1

Valores em função do PPA 2 5 4 1 6 3

Idade médio corpo docente 3 5 6 3 1 1 De mais velho para mais novo

Despesa média por aluno de 6 até 15 anos em PPA (USD)

Posição resultados para esta despesa média (em 27)

NL = Países Baixos; FI = Finlândia; BE = Bélgica; PT = Portugal; IT = Itália; DK = Dinamarca

86 Pascal Paulus

Tabela 2

Tabela 2 CZ FR IT NL DE

Pisa resultados

Compreensão escrita 19 14 20 21

Ciências 2003 9 13 26 8 18

Cultura matemática 2003 13 16 31 4 19

Relativo 2 3 5 1 4

Ensino

Trabalho de casa em %

Sem ou 1 vez por semana 2 11 4 70 1

3 / 4 dias 89 66 82 30 57

Mais do 4 dias 8 22 9 0 41

Relativo (de mais para menos) 2 4 3 5 1

Ida a biblioteca + que 1 vez por sem. 32 57 16 41 20

Relativo 3 1 5 2 4

Manual (utilização) em %

Todos os dias 68 28 68 21 43

1 à 2 vezes por semana 30 60 25 54 43

Relativo 1 4 2 5 3

Utilização literatura infantil em % 60 63 52 68 34

Relativo 3 2 4 1 5

Monodocência 54 50 1 60 38

“Teamteaching” (2 em simultâneo) 1 9 10 25 2

Por disciplinas 39 29 85 2 50

Relativo (mono = 1) 3 2 5 1 4

Docência na escola primária (4º ano)

em %

FR = França; CZ = República Checa; DE = Alemanha

Mas alguém quis a escola democrática? 87

Tabela 3

Tabela 3 CZ DE EL FR IT LV HU NL SK SE IS NO

Pisa resultados

Compreensão escrita 19 21 25 14 20 28 23 9 11 11

Cultura matemática 2003 13 19 32 16 31 27 25 4 21 17 14 14

Cultura ciências 2003 9 18 30 13 27 25 17 8 20 15 21 21

Relativo 2 7 12 4 10 11 9 1 8 2 5 5

Ensino

Trabalho de casa em %

Sem ou 1 vez por semana 2 1 2 11 5 0 0 71 20 14 0 1

1 / 4 dias 90 57 52 66 85 53 51 29 73 80 50 59

Todos os dias 8 42 46 23 10 47 49 0 7 6 50 40

Relativo (de mais para menos) 9 6 4 7 8 3 2 12 11 10 1 4

Manual (utilização) em %

Todos os dias 68 43 95 28 68 95 98 28 98 27 68 63

1 à 2 vezes por semana 30 44 2 51 24 5 1 55 2 31 26 34

Relativo 5 9 3 10 5 3 1 11 1 12 5 8

Monodocência 54 38 48 51 2 55 28 59 42 40 80 60

“Teamteaching” (2 em simultâneo) 2 2 0 9 11 0 10 25 3 29 8 16

Por disciplinas 39 50 41 30 85 41 51 2 38 18 8 18

Relativo (mono = 1) 9 10 6 8 12 5 11 2 7 4 1 3

Docência na escola primária (4º ano)

em %

EL = Grécia; LV = Letónia; HU = Hungria; SK = Eslováquia; SE = Suécia; IS = Islândia; NO = Noruega.

Tabela 4

Tabela 4 País Trab. casa manual monodocência

1/4 Países baixos pouco pouco muito

2/4 Rep. Checa pouco média pouco

Suécia pouco pouco muito

França média pouco média

Islândia muito média muito

Noruega muito média muito

3/4 Alemanha média pouco pouco

Rep. Eslovénia pouco muito média

Hungria muito muito pouco

4/4 Itália média média pouco

Lituania muito muito média

Grécia muito muito média

88 Pascal Paulus

Horário não letivo

(voltar ao texto)

Horário não-letivo: trabalho a nível do estabelecimento de educação ou de

ensino – princípio geral. (Estatuto da Carreira Docente)

Artigo 82.° Componente não letiva

A componente não letiva do pessoal docente abrange a realização de trabalho a

nível individual e a prestação de trabalho a nível do estabelecimento de

educação ou de ensino.

O trabalho a nível individual pode compreender, para além da preparação das

aulas e da avaliação do processo ensino-aprendizagem, a elaboração de estudos

e de trabalhos de investigação de natureza pedagógica ou científico-pedagógica.

O trabalho a nível do estabelecimento de educação ou de ensino deve integrar-

se nas respetivas estruturas pedagógicas com o objetivo de contribuir para a

realização do projeto educativo da escola, podendo compreender:

a) A colaboração em atividades de complemento curricular que visem promover

o enriquecimento cultural e a inserção dos educandos na comunidade;

b) A informação e orientação educacional dos alunos em colaboração com as

famílias e com as estruturas escolares locais e regionais;

c) A participação em reuniões de natureza pedagógica legalmente convocadas;

d) A participação, promovida nos termos legais ou devidamente autorizada, em

ações de formação contínua ou em congressos, conferências, seminários e

reuniões para estudo e debate de questões e problemas relacionados com a

atividade docente;

e) A substituição de outros docentes do mesmo estabelecimento de educação

ou de ensino, nos termos da alínea m) do n.° 2 e do n.° 3 do artigo 10.° do

presente Estatuto;

(máximo de 5 dias úteis – ver artigo 10º)

f) A realização de estudos e de trabalhos de investigação que entre outros

objetivos visem contribuir para a promoção do sucesso escolar e educativo.

Por portaria do Ministro da Educação serão definidas as condições em que pode

ainda ser determinada uma redução total ou parcial da componente leciva nos

casos previstos nas alíneas a), b) e f) do número anterior.

Mas alguém quis a escola democrática? 89

“A escola é castradora quando utilizada como um instrumento

de dominação”

Ricardo Jorge Costa

Diplomado pela Escola Normal de Gent, na Bélgica, em 1977, onde se formou

como professor do ensino primário, faz uma curta passagem pelo ensino

público laico belga e é convidado a integrar uma equipa cujo objetivo era criar,

na cidade de Leuven, uma escola assente na pedagogia institucional. No início

dos anos 80 trabalha na alfabetização de adultos e participa em projetos de

desenvolvimento local e trabalho com jovens sob contrato de aprendizagem.

Vem para Portugal no final da década de 80, onde trabalha como coordenador

pedagógico numa escola privada. A equivalência parcial do diploma permite-

lhe começar a trabalhar no primeiro ciclo do ensino básico público e,

paralelamente, como formador de formação contínua de professores do 1º

ciclo nas áreas da matemática e do desenvolvimento curricular, função que

exerceu ao longo de 18 anos.

É, desde 2005, professor efetivo da escola básica do primeiro ciclo Amélia

Vieira Luís e integrou a equipa do Laboratório de Aprendizagens, da Câmara

de Cascais, um espaço de reflexão e de experimentação para técnicos ligados

ao ensino. É também sócio do Movimento da Escola Moderna e da

cooperativa Sociedade de Estudos e Intervenção em Engenharia Social, na

qual tem participado em projetos de desenvolvimento local, baseado na

intervenção com mulheres, em zonas urbanas.

Autor dos livros “Histórias de matemática – uma abordagem da didática

experimental da matemática” (publicado em coautoria com Miguel Narciso) e

“A escola faz-se com pessoas – Undi N ta Bai?” e de dezenas de artigos em

diversas publicações periódicas, Pascal Paulus é também colaborador regular

de A Página da Educação na rubrica “Coisas do tempo”.

Conte-nos um pouco acerca do seu percurso pessoal: porquê a opção pelo primeiro ciclo e de

que forma um professor belga acaba por vir dar aulas para Portugal…

Eu sou professor do ensino primário de formação – ou “instituteur”, como se

designa em francês, que considero uma palavra mais adequada por

corresponder melhor à especificidade do trabalho de monodocência,

90 Pascal Paulus

permitindo um trabalho pedagógico continuado com crianças e jovens e a

criação de um espaço cultural de referência.

O contacto com a pedagogia institucional, concretizada através do meu pai,

professor de jovens em contexto de trabalho que haviam sido afastados do

sistema educativo regular, foi determinante na minha opção. Para a minha

decisão contribuiu igualmente o estágio que realizei numa turma organizada

por um professor que fazia parte de um grupo ligado à pedagogia institucional

e que trabalhava com Fernand Oury, “instituteur” francês ligado ao

Movimento da Escola Moderna francesa.

Esta experiência constituiu para mim um encantamento: ver como é possível

pôr os miúdos a organizarem-se por eles próprios, através da mediação do

professor, uma conceptualização de turma que Fernand Oury designava por

“turma cooperativa organizada pela pedagogia institucional”, onde o conselho

de turma é o instituinte de toda a organização da turma.

De que forma veio parar a Portugal?

Depois de alguns anos a trabalhar na Bélgica ligado a vários projetos fundados

na pedagogia institucional, conheci um grupo português num congresso

internacional dos Movimentos da Escola Moderna, realizado em Lovaina. Esse

encontro marcou-me decisivamente, não só pelo teor do debate que propor-

cionou como pelo facto de me ter apercebido que havia pessoas neste país a

implementar aquilo que eu procurava fazer na Flandres.

À paixão pedagógica junta-se uma paixão pessoal, já que conheci a minha

mulher, também ela professora, através do Movimento da Escola Moderna. A

ideia de virmos para Portugal concretizou-se porque naquela altura, em

meados dos anos 80, nos parecia pedagogicamente mais aliciante trabalhar na

escola primária portuguesa do que na flamenga. Além de os desafios serem

maiores, agradava-nos a forma como estava organizado o ensino e pareceu-nos

que o programa do 1º ciclo aprovado em 1989 facilitava a gestão institucional.

A realidade entretanto mudou, mas na altura estes fatores foram determinantes

na nossa escolha.

Trabalha numa escola dos arredores de Lisboa com uma população essencialmente composta

por crianças filhas de pais imigrantes ou pertencentes a minorias. É mais difícil trabalhar

nessas condições?

Penso que é basicamente o mesmo trabalhar com filhos de imigrantes ou

trabalhar com filhos de residentes. Há, no entanto, uma série de condi-

cionantes que complicam a relação com a escola. Uma delas é o facto de estas

crianças serem oriundas de famílias que não têm um estatuto social, ou cujo

Mas alguém quis a escola democrática? 91

estatuto não é reconhecido como o estatuto padrão. Faço minhas as palavras

de um colunista do jornal Público, que se referia recentemente ao facto de hoje

em dia já não existir “proletariado” mas sim “precariado”.

Estas crianças são precisamente filhas desse precariado, pessoas que muitas

vezes estão apenas de passagem no país, em transição para outros países

europeus como a Inglaterra, a Holanda ou a Suíça. Muitos dos meus alunos

chegam mesmo a perguntar-me por que razão eu próprio não emigro…

porque têm noção de que aqui a vida está difícil.

Depois, a escola e os próprios professores são quase vistos como funcionários

das finanças (risos) e a relação entre as duas partes é praticamente reduzida ao

mínimo indispensável. Quando a escola contacta os encarregados de educação

é habitualmente para lhes dar conta do mau comportamento das crianças… A

própria escola cria com estas pessoas uma relação hierárquica, burocra-

ticamente bem definida.

Um dos aspetos que mais me surpreende, por exemplo, é o facto de uma

criança só se poder matricular se tiver o boletim de vacinas em dia, coisa que

eu nunca tinha visto na Bélgica. Eu compreendo os motivos que estão por trás

desta medida, mas ainda assim, na minha opinião, não deixa de ser algo

estranho. Ou seja, há uma estrutura que nada tem a ver com a escola e que

coloca entraves. A relação que a partir daí se estabelece é, naturalmente, uma

relação hierárquica.

Sente que esse contexto socialmente desfavorecido que retratou coloca mais dificuldades na

implementação do trabalho pedagógico dos professores?

Eu costumo dizer que trabalho num bairro de pessoas pobres. Assim é mais

claro. Um bairro que pertence a uma freguesia onde cerca de um terço do total

de fogos é de habitação social (noventa por cento dos quais concentrados aqui)

e onde existem quatro escolas do primeiro ciclo, duas delas pertencentes ao

nosso agrupamento. Estas duas escolas servem cerca de 300 crianças, todas

elas oriundas deste meio. Ou seja, não há outros miúdos na minha escola a não

ser os miúdos do bairro social, havendo portanto, um fenómeno de

“guetização” muito forte.

Recentemente, foi construído em frente ao bairro social um empreendimento

privado, sendo curioso verificar que, à medida que este vai sendo habitado,

aumenta o número de carrinhas de escolas e colégios que vêm buscar os

miúdos. Portanto não há nenhuma interação entre os dois contextos.

Postas as coisas nestes termos, é óbvio que existem dificuldades pedagógicas

acrescidas no nosso trabalho. Eu lido com crianças que muitas vezes não têm

92 Pascal Paulus

sequer um livro em casa e cujos pais têm um tempo limitado para se ocupar

delas. Nos últimos anos, muitas delas tiveram oportunidade de frequentar o

ensino pré-escolar, o que é muito bom. Mas que por si só não é suficiente,

porque não há uma cultura de referência escolar nas respetivas famílias. Neste

sentido, é preciso estar extremamente atento às referências trazidas por estas

crianças e pelos pais para, a partir daí, ter âncoras que possam ajudar a fazer a

transferência da cultura que lhes é própria para uma outra cultura.

Acrescente-se a isso, e este aspeto parece-me muito importante, o facto de a

escola, em muitos sentidos, ter a mesma cultura autoritária, de cima para baixo,

que se vive no bairro. Famílias em que o pai manda na mãe, e a mãe, por sua

vez, manda nos filhos. Quando estes se portam mal, o pai reprime a mãe que

reprime os filhos.

Na escola pública está presente exatamente este género de estrutura vertical, na

qual a criança, situada na base, é alvo de sansões disciplinares ditadas por um

regulamento interno que lhe é imposto por adultos. Ora, para uma criança que

em casa tem como referência a autoridade do adulto, que manda e castiga caso

ela desobedeça, a associação é quase imediata, apenas diverge na forma.

E dado que as crianças nos seus grupos de pertença se revoltam contra a

autoridade dos adultos, acabam por fazer o mesmo revoltando-se contra a

autoridade da escola… Dentro deste contexto, tentar implementar uma

comunidade democrática e pô-la a funcionar é um desafio muito grande.

Como é esse esforço de tentar pôr em prática uma comunidade democrática na escola e na sala

de aula? Os outros professores acompanham-no ou têm uma certa desconfiança dessa atitude?

Não posso falar pelos restantes professores. Felizmente, a liberdade

metodológica do professor está consagrado no Estatuto da Carreira Docente.

Na minha opinião, para as crianças se desenvolverem como cidadãos têm de

ter contacto com uma forma de democracia direta e não delegada, como

habitualmente acontece. E isto tem de ser aprendido e experienciado numa

comunidade pequena. E um bom instrumento para a pôr em prática é o

chamado Conselho de Cooperação.

Que é uma das metodologias defendidas pelo Movimento da Escola Moderna…

Sim, exatamente. Que se inicia pela organização do trabalho na sala de aula, no

qual se apela à cooperação dos alunos, e que num segundo momento se

concretiza num momento formal, que é o Conselho de Cooperação, onde se

tratam os assuntos mais importantes que dizem respeito à vida da turma.

Mas alguém quis a escola democrática? 93

De resto, tudo se resume a uma questão de tempo e de paciência. Não será no

primeiro dia que as crianças vão contar o que lhes vai na alma, mas é uma

forma de construir espaços onde esta abertura se torna possível, e que, pouco a

pouco, vai criando laços mais fortes entre o professor e as crianças.

Que resultados práticos tem colhido da implementação do Conselho de Cooperação?

Ele resulta sobretudo quando é aplicado na resolução de aspetos muito

práticos e concretos do quotidiano da sala de aula, como determinar, por

exemplo, o que fazer quando um pincel utilizado para uma cor fica inutilizado

por ter sido aplicado numa cor diferente. Em primeiro lugar, claro, ter mais

atenção para que isso não volte a acontecer. Depois, comprar outro pincel. É

através destes pequenos mecanismos que os alunos se apercebem de que há

um debate possível sobre a forma de se organizarem na sala de aula.

E isso acaba por ser aplicado a outros contextos, como as relações entre os alunos e entre estes

e a escola?

Sim, mas só com o decorrer do tempo. Este ano, por exemplo, tive miúdos de

5 e 6 anos que iniciavam o ensino primário. E a nossa escola, apesar de ser um

estabelecimento de intervenção prioritário e de no projeto estar contemplado a

reorganização do espaço exterior, não tem qualquer tipo de equipamento

lúdico no recreio, tarefa que compete à autarquia.

Aproveitando uma discussão sobre este tema realizada numa outra turma,

lancei a ideia aos meus alunos de elaborarmos uma proposta à câmara

municipal, que também foi acolhida por outro professor. E isso implicou uma

planificação do trabalho, através da realização de inquéritos, de recolha de

informação, do estabelecimento de contactos, da construção de uma maquete,

etc. No final, produzimos um pequeno filme que mostrava aos responsáveis

autárquicos qual o tipo de recreio que as crianças gostariam de ver

implementado.

Apesar de se tratar de um trabalho eminentemente prático, pelo meio surgem

sempre discussões, que já são de ordem organizacional. Depois, o trabalho

conjunto de duas turmas acaba sempre por originar algum tipo de conflito.

Nesse caso, temos de os discutir e ver qual a melhor forma de os ultrapassar…

Tendo em conta que a metodologia de trabalho do Movimento da Escola Moderna é um

pouco diferente daquele que é habitualmente desenvolvido pela maioria dos professores, sente-

se isolado na sua forma de trabalhar?

Por vezes, mas a necessidade de falar com outros colegas sobre o quotidiano

da escola faz com que procure romper esse isolamento, quando e se ele

94 Pascal Paulus

acontece. Porque há sempre a possibilidade de no interior de uma comunidade

escolar (e a minha não é tão pequena quanto isso) procurar aqueles que, tal

como eu, estão atentos àquilo que acontece na comunidade escolar e no bairro

em que ela se integra. E pensar que há sempre a possibilidade de estabelecer

uma parceria.

Por outro lado, também considero fundamental não interferir no trabalho dos

outros quando isso não é desejado. Nesse sentido, nunca critico nenhum

colega e mantenho-me disponível para o debate. A partir daí é sempre possível

trabalhar em conjunto. O importante, na minha opinião, é não ficar no

isolamento.

O livro que editou sob a chancela da Profedições intitula-se “A Escola Faz-se com Pessoas

– Undi N Tai Bai?”. O título do livro pretende, de alguma forma, ilustrar essa concepção

de escola e de trabalho?

A escola é um espaço cultural e um espaço de humanização. É, ao mesmo

tempo, um espaço de passagem. E nesse sentido é, em si própria, um espaço

artificial. O grupo de trabalho que se encontra nesse espaço é, também ele,

artificial. Ninguém escolheu estar com aquelas crianças. E nenhuma daquelas

crianças escolheu estar naquele espaço, com aqueles adultos. A única condição

que está pré-definida é o facto de a escolaridade obrigatória obrigar à passagem

por um espaço comum. No que esse espaço se converte depende de todos os

elementos que nele interagem. Cada uma das crianças com a sua história de

vida e o professor com a sua história de vida.

Depois, na minha opinião, este espaço só tem sentido se também interagir

com o exterior. Ele é uma espécie de laboratório, onde se aprende o que é ser

cidadão num contexto de participação direta. Todos nós temos hipóteses de

agir sobre o contexto que nos rodeia. Há neste espaço algumas regras

exteriores a ele e uma “encomenda” à qual não podemos, nem devemos,

escapar: os conteúdos programáticos. Enquanto grupo, a nossa tarefa é dar

resposta à encomenda que nos foi proposta, para a qual nos organizamos e

trabalhamos.

Mas isto só faz sentido se o que aprendermos servir para alguma coisa depois

de sairmos daquele espaço cultural. Daí a ideia de que a escola só tem sentido

se a pensarmos como um espaço de construção entre pessoas, sejam elas

crianças ou adultos, num contexto de alfabetização ou de formação

contínua… A ideia continua a ser a mesma. A mais-valia do saber que aí se

gera é construída a partir das pessoas, com as pessoas, para aquelas pessoas.

Mas alguém quis a escola democrática? 95

Num dos seus textos já se referiu à escola como uma instituição “castradora”. Até que ponto

é possível mudar essa perceção?

A escola é castradora quando a sociedade a utiliza como um instrumento de

dominação. Neste sentido, penso que a mudança terá de ir mais além do que a

simples alteração de práticas pedagógicas.

Paulo Freire dizia com insistência que só existe pedagogia quando se trabalha

com as pessoas. A escola, no fundo, é um instrumento político que pode

assumir o seu papel de duas formas totalmente distintas: um em que domina,

reproduzindo socialmente indivíduos que se limitam a executar aquilo que se

lhes ordena; outro no qual assume valores humanistas, formando e dando

possibilidade às pessoas de se deslumbrarem – a “escola dos deslum-

bramentos”. Uma escola em que o aluno está na posse dos instrumentos que

lhe permitem a si próprio evoluir num contexto de democracia participativa.

A escola castradora a que me refiro não corresponde politicamente a esta

última dimensão, refletindo, afinal, aquilo que é a democracia representativa

das nossas sociedades, onde os alunos não têm a palavra, onde aprendem não

a ser cidadãos mas meras entidades.

Foi, durante muitos anos, formador de professores. Que conselho daria a quem se está a

iniciar na profissão?

Um professor é, antes de mais, um ser humano. É precisamente isso que o

qualifica. E como qualquer ser humano ele tem um determinado patamar de

segurança, que só evolui quando ele aceita confrontar-se com os seus pares,

permitindo-lhe questionar-se e ultrapassar os obstáculos que se lhe deparam.

Julgo que a formação inicial de professores, quando conduzida com

inteligência, possui um conjunto de elementos interessantes (como o figurino

de estágios, o ano probatório e a figura de professor cooperante) que

possibilitam a construção desse processo.

Ao novo professor não basta ter muitos conhecimentos científicos, é

indispensável ter esse patamar mínimo de segurança e contar com alguém mais

experiente que, servindo de referente, o ajude a fazer a gestão da sua

aprendizagem de forma que mais tarde possa ser ele o referente na gestão da

aprendizagem dos seus alunos.

Neste sentido, julgo que o ano probatório proposto no novo figurino de

formação inicial pode constituir uma excelente forma de ir ganhando algumas

certezas provisórias em espaços onde o jovem professor ainda não sente muito

à vontade. Acima de tudo, porém, penso que é um processo que passa muito

96 Pascal Paulus

mais pelas pessoas do que por uma mudança radical do processo de formação

em si.

Mas alguém quis a escola democrática? 97

Notas

1 Publicado originalmente em Escola Moderna (2001).

2 A escola estava em autonomia naquela altura. A pequena escala permitia muitas

vezes uma abordagem “no nonsence”. Foi precisamente esta pequena dimensão que a

fez perder a autonomia em 2004. Inseriu-se no agrupamento do qual ainda faz parte

em 2008.

3 Como se verá mais à frente esta prática de cobrança foi importante para interessar

as mães para uma proto-associação de pais. Em 2007 foi reposto a distribuição

seletiva de pães e bebidas, quando, no âmbito do TEIP se reintroduz o estatuto do

“aluno carenciado”.

4 Em 2008 fizemos um vasto trabalho de recolha de informação junto aos

comerciantes do bairro. No fim, fomos cantar-lhes as janeiras de forma original: em

vez de pedir, fizemos questão de oferecer o nosso jornal com todo o que tínhamos

aprendido acerca do bairro. Foram 3 horas de canto e 23 jornais entregues.

5 Ver supra

6 No quadro de uma intervenção maior, paga com dinheiro vindo da Comunidade

Europeia. Tratava-se de um megaprojecto centrada sobre a zona de intervenção

prioritária. 8 anos depois, a zona continua prioritária, não sei se também para

megaprojetos.

7 No sítio http://pascalpaulus.byethost7.com/turmadois/local/intro.htm

8 Para quem quiser saber como o texto ficou, ele encontra-se no jornal da turma nº

15, Abril 2001. E está no sítio já referido (ver nota anterior).

9 O dinheiro nunca estava efetivamente na caixa, obviamente. Mas como sabíamos

quanto dinheiro havia de projetos e subsídios destinados à nossa turma, era fácil

fazer orçamentos e controlar despesas. Era fácil também gerir o material em

comum. Em 2008 é impossível saber quanto dinheiro está destinado à turma. A

gestão deixou de ser transparente para crianças e pais.

10 Naquele ano tínhamos combinado gerir todo o material da turma em conjunto. O

orçamento não ultrapassava o subsídio para material escolar máximo. Os pais que

não eram abrangidos pelo subsídio concordaram em pagar o equivalente. A turma

apresentava em cada reunião de pais as contas. Já não é assim...

11 Na altura a rede era distribuída para todas as salas de aula. Neste momento, só se

tem acesso a Internet numa sala com dez computadores, numa lógica

concentracionária.

12 Tinha-me habituado a conselhos pedagógicos em que o presidente não era o

presidente do executivo. Conselhos que convidavam pessoas para participar no

debate pedagógico e que faziam questão estarem abertos a toda a comunidade

escolar. Todos podiam sempre intervir. E todos intervinham. Só nos atos formais

de votação e de avaliação é que os membros eleitos tinham exclusividade de voto.

98 Pascal Paulus

Discutia-se só assuntos pedagógicos, deixando para comissões o trabalho técnico-

pedagógico.

13 O que não tem nada a ver com os trabalhos de casa. Estes, no primeiro ciclo,

servem, demasiadas vezes, para, de forma cínica, passar a competência letiva dos

professores para os pais.

14 Edwin A. Abbot descreve, no livro “Flatland – o país plano” as relações sociais

entre a população de figuras geométricas que aí habitam. O quadrado ilumina-se

depois da sua viagem com a Esfera, e... arrependa-se depois por ter pregar a boa

palavra.

15 Enquanto o público não tem acesso aos edifícios da Comissão Europeia, nem ao

local de trabalho do Conselho de Ministros, e muito dificilmente tem ao

Parlamento Europeu (só as prisões são mais bem guardadas em Bruxelas), outras

pessoas entrem e saem como em casa deles, são os lobistas. (tradução dos autores).

16 A maneira como se trata os estrangeiros no que é conhecido do texto de Schengen,

contribui para desacreditar a priori os estrangeiros, a assemelhar qualquer

estrangeiro a priori a fonte de insegurança, a cultivar a suspeição e no clima atual,

alimentar uma banalização do racismo do qual se sabe infelizmente até que limites

pode conduzir. (tradução dos autores)

17 O acordo de Schengen prevê, no seu primeiro artigo, a livre circulação das pessoas

no interior das fronteiras dos Estados que fazem parte do acordo. Depois, seguem

145 artigos que definem todas as limitações a esta livre circulação.

18 Pode-se dizer que voltamos para o voto censitário, do tempo em que as pessoas

podiam votar conforme a sua capacidade de possuidor de bens, de fortuna.

Maastricht é um pouco isto, volta-se para os tempos de antes da revolução

Keynesiana, volta-se para o tempo antes da revolução francesa.

19 O inquérito mostra, pelo contrário, que num qualquer país, e isto verifica-se em

toda a parte, na Europa, é-se tão racista numa pequena aldeia, sem um único

imigrante, como num bairro com grande número de estrangeiros. (tradução dos

autores)

20 A explicação da presença dos imigrantes como fator determinante para a

intolerância, não está certa. Não está certa, também não em outras investigações

que conhecemos. Por exemplo, na França, fez-se muita investigação neste sentido.

Não é nos bairros de Paris, Grenoble, Lyon ou nas cidades francesas onde existem

muitos imigrantes, que se encontra taxas de intolerância mais elevadas. Na França,

as taxas de intolerância são muitas vezes resultado de pessoas que não têm nenhum

contacto com imigrantes. […] O patamar de tolerância não tem base lógica nem

científica. (tradução dos autores)

21 M.C.: “Existe a arma da denúncia pública, pode-se por exemplo dizer à pessoa que

tem o assunto em mão: «se é mesmo a atitude que vai assumir, a industria vai tomar

esta ou aquela posição pública, onde as suas opções serão denunciadas».”

Francis Wurtz (acerca da manteiga de cacau): “… então, recebi a visita do

presidente de um consorcio importante de fabricantes de chocolate que tentou

explicar-me que tinha realmente todo o interesse, provavelmente em nome da

Mas alguém quis a escola democrática? 99

solidariedade ocidental, em defender os interesses das companhias de chocolate

europeias, antes do que daqueles pobres diabos de Senegal, Costa de Marfim ou

Benin.” (tradução dos autores)

22 Enquanto o golfista norte-americano Tiger Woods recebe 55.000 dólares diários de

patrocínio da marca Nike, os trabalhadores tailandeses auferem nas fábricas da

marca um salário diário de 4 dólares em médio. (Revista “Pública”, 23.05.2004) É a

promoção da marca e a livre circulação dos bens que convêm aos acionistas, e não

o desenvolvimento sustentado da população operária nas concentrações urbanas a

volta das fábricas.

23 Acho um precedente extremamente gravoso no sentido em que se trate de uma

questão com grande impacto em muitos países dentro e fora da Comunidade e que

foi tratado durante vários anos no segredo mais absoluto, fora do controle de

qualquer parlamento, sem nenhum grande debate. Ninguém foi consultado. E se

não tinha havido a atitude corajosa e justa do governo neerlandês que envolveu o

seu parlamento nesta questão, talvez até hoje ninguém sabia de nada. (tradução dos

autores).

24 Comunidade Europeia de Carvão e Aço.

25 Ver supra, página 32

26 Existe uma relação entre o trabalho de noite e o abandono precoce da escola. Ver

infra, página 59.

27 A revogação desta convenção foi do grande agrado do patronato e de certas

feministas. É interessante a este respeito, lembrar que já no início do século, as

feministas burguesas eram contra a proibição do trabalho de noite, considerado

uma discriminação enquanto as operárias, pelo contrário, estavam a favor da

interdição, porque, para elas, o problema principal não era a discriminação mas

antes a exploração de que eram alvo tanto as mulheres como os homens. (tradução

dos autores)

28 “A Educação não formal está aberta para todos independentemente do seu nível

anterior, enquanto a educação formal é muito selectiva, depende dos sucessos

educativos anteriores, recusando muitos e seleccionando poucos para continuar a

estudar.

Por esta razão, a educação formal está muito organizada. Podemos falar de um

sistema educacional formal. Educação não formal, ao contrário, não obedece a

modelo preciso, não tem estrutura evidente; só podemos falar de programas

educacionais não formais.” (tradução dos autores)

29 Referimos aqui a proposta de Boaventura Sousa Santos em que ele considera 4

fenómenos de globalização, dois de cima para baixo (hegemónicos) que intitula de

localismo globalizado e globalismo localizado, pilares do Sistema Mundial Moderno

(SMM) e dois outros, de baixo para cima (contra-hegemónicos) que intitula de

cosmopolitismo e património comum da humanidade, portadores do Sistema

Mundial Em Transição (SMET)

30 “Algumas pessoas escrevem como se a educação não formal e a educação de

adultos seja a mesma coisa, mas eu penso que não é, por dois motivos:

100 Pascal Paulus

(a) alguma da educação não formal é dirigida a crianças fora da escola. Isto é

claramente formação não dirigida a adultos, não têm métodos de ensino para

adultos, não pode tratar os aprendendos como adultos. Educação não formal, ainda

que inclui muitas variantes da educação de adultos, é mais lato.

(b) Em 2º lugar, há alguma formação dentro do sistema formal, direccionado mais

para adultos do que para jovens, utilizando métodos para adultos. Ainda que não

seja formação não formal, pode-se incluí-la na formação de adultos. (tradução dos

autores)

31 … aceitar estes estrangeiros e instalar estruturas de acolhimento, porque, de uma

certa forma, isto foi sempre a riqueza da Europa. A final de contas, somos os

bastardos dos vários povos que atravessaram a Europa nos 2000 anos que nos

precederam. (tradução dos autores)

32 Segundo problema: as perturbações de humor e de carácter, as perturbações

nervosas, que abrem caminho para sintomas muito precisos de intolerância a uma

data de situações, nomeadamente à família, ao meio envolvente, às relações que

habitualmente se estabelecem no trabalho. (tradução dos autores)

33 Tradução do francês pelos autores.

34 Os historiadores olham hoje com espanto a criação da Comunidade Europeia. Os

historiadores americanos descobrem surpreendidos, nos arquivos governamentais

que se lhes torna acessíveis (a conta-gotas) vinte ou trinta anos depois dos

acontecimentos, que os seus dirigentes não tinham nenhum medo dos soviéticos

nos anos ’40, mas que temiam sobretudo que os seus aliados europeus se iam virar

para o socialismo e os privar desta forma de um mercado que lhes era indispensável

para escoar a sobreprodução e evitar uma grave recessão, agora que a sua economia

já não beneficiava da guerra. (tradução dos autores)

35 Referimo-nos aqui ao “Laboratório de Aprendizagens” implantado pela divisão de

educação de Cascais para apoiar o combate a exclusão e ao insucesso escolar.

36 Em http://blogs.parlamento.pt/casadoscomuns/archive/2005-02-15/2925.aspx

consultado em 8 de Setembro de 2005

37 Numa entrevista publicada em http://demoliberal.com.pt/ convidado.php?ide=35,

consultado em 8 de Setembro de 2005

38 A Convenção dos Direitos da Criança considera como criança todo o ser humano

até aos 18 anos, exceto se nos termos da lei atingir mais cedo a maioridade (art. 1º

da referida Convenção).

39 Aqui o autor também demonstra como a política de cheques-ensino só aceleraram

o processo de degradação da escola pública que continua a ser a única escola

efetivamente possível para a maioria dos pobres, transferindo dinheiro público para

as escolas privadas.

40 Em http://www.cds-pp.pt/cidade19.htm, consultado em 3 de Setembro de 2005

41 A democracia participativa que faz parte da sigla CIDEP é explicitada como a

possibilidade de consultar e dar opinião sobre o que a “sociedade política”

apresenta. Não se vislumbra aqui o orçamento participativo ao nível dos bairros, o

trabalho de “baixo” para “cima”.

Mas alguém quis a escola democrática? 101

42 Realçado pelo autor

43 Depois da reunião do G7 em que são abordados aspetos do e-learning, a Comissão

das Comunidades Europeias (1995) alerta no Livro Branco sobre a educação e a

formação, pelo risco de descida de qualidade de software educativo. Por isso, disse,

insistiu junto ao G7 para que haja incentivos à criação de bom software. De facto,

na mesma altura disponibiliza-se dinheiro público aos privados para desenvolver

produtos (financiamento no quadro do programa Da Vinci) que depois serão

vendidos aos potenciais formandos.

44 Como por exemplo em http://www.eb1-porto-n16.rcts.pt/actividades.htm e em

http://www.basico.maiadigital.pt/MDE/Internet/PT/Basico/Agrupamentos/

LevanteMaia/Escolas/EB23Nogueira/

No segundo exemplo, não cheguei a perceber se o torneio é mesmo da

competência dos professores de educação cívica (?) ou se há uma troca de

significado com os da educação física.

45 Será que é isto o papel pensado para o “sindicato das crianças” por quem o

promoveu? Uma representação pelos adultos, ou por algumas crianças escolhidas a

dedo? É cedo para perceber. Oxalá que não caem na tentação de promover

encontros entre o “sindicato das crianças” e os “pequenos deputados”, outra

iniciativa que os políticos se lembraram lançar com a ideia que assim se promove a

cidadania.

46 Que consultamos em http://www.secundario.maiadigital.pt/ MDE/Internet/-

PT/Secundario/Escolas/Secund.

47 Num blogue do Sítio www.explicações.com com endereço

http://www.explicacoes.com/php_nuke/html/ modules.php?name =News&file=-

article& sid =1196

48 Ver os grupos de Pedagogia institucional e as publicações do Movimento da Escola

Moderna.

49 Ver referências bibliográficas.

50 A pedagogia institucional é um conjunto não fechado de possíveis respostas a

perguntas que, ainda que não tenham sido colocadas, se colocam diariamente a seja

quem for que pretende fazer da educação e da aprendizagem o seu trabalho. Não se

trata de um método... Ela é caracterizada tanto pelas perguntas que lança, como

pelas respostas que elabora. Como a pôr em prática?

Se fosse fácil explicar a pedagogia institucional, sabê-lo-íamos. A classe cooperativa

não se entrega em kit e não pode existir sem um mestre, sujeito e prático.

Não tapamos a cara, o que se chama de cidadania, de democracia na escola não são

fins, mas condição para aprendizagens escolares performantes. Passa pela

aprendizagem da lei, do grupo e da mestria de certas instituições. Passa pelo

Desejo, o desejo de cada um de estar na turma, ser da turma. Então, as crianças

aprendem e reaprendem. Não tão bem, melhor. Mas para isso, precisamos de

mestres, e portanto de uma verdadeira formação para se tornar mestre,

constantemente, em grupo, com outros: uma transformação pessoal e profissional.

Mudar de profissão ou mudar a condução. (Tradução do autor)

102 Pascal Paulus

51 Os miúdos negros e pobres vivem em bairros sociais. Será que os ricos e brancos

vivem em bairros associais?

52 Ver anexo.

53 Talvez para libertar dinheiro para pagar as instituições privadas que fornecem só

uma actividade que é o Inglês?

54 NL = Países Baixos; FI = Finlândia; BE = Bélgica; PT = Portugal; IT = Itália; DK

= Dinamarca

55 A regra é monodocência na escola primária até a 4ª ou a 6ª classe, na Europa.

Alguns países apresentam o team-teaching como alternativa. Trata-se de um

trabalho a dois, em que dois professores se partilham uma turma, trabalhando em

conjunto ou em alternância. A diferença com a pluridocência é que não são

especialistas de uma disciplina e que não trabalham simultaneamente em várias

turmas. Ver Eurydice (2005: 277 e.s.)

56 FR = França; CZ = República Checa; DE = Alemanha.

57 EL = Grécia; LV = Letónia; HU = Hungria; SK = Eslováquia; SE = Suécia; IS =

Islândia; NO = Noruega.

58 Existem nestes dois países uma grande variedade de escolas públicas que adoptam

no seu projeto educativo uma metodologia própria. O sistema de colocação de

docentes facilita a formação de um corpo docente que se obriga a seguir a

metodologia referida no projeto educativo da escola.

Pascal Paulus (1957) formou-se como professor de ensino primário na Bélgica e doutorou em Sociologia de Educação no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, sob a orientação de Rui Canário. Foi cofundador da escola “de Appeltuin”, orientada pela pedagogia institucional de Fernand Oury. Vive e trabalha em Portugal desde 1986, onde tem desenvolvido projetos de trabalho como sócio ativo do Movimento da Escola Moderna.

A escola não é democrática, porque na sociedade muitos não a querem democrática.

Ilustra-se este ponto de vista a partir de alguns relatos de prática que servem de base para uma reflexão acerca do sentido da escola.