sandrogreco carga nuclear efetiva

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22 QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 17, MAIO 2003 A seção ‘Conceitos científicos em destaque’ tem por objetivo abordar, de maneira crítica e/ou inovadora, conceitos científicos de interesse dos professores de Química. Carga nuclear efetiva e estrutura eletrônica dos átomos Recebido em 28/11/02; aceito em 27/3/03 CONCEITOS CIENTÍFICOS EM DESTAQUE N o curso introdutório sobre estrutura eletrônica dos átomos e propriedades periódicas, geralmente utilizamos os conceitos fator de blindagem e carga nuclear efetiva. Estes conceitos surgem ao se utilizar a solução exata da equação de Schrödinger para o átomo de hidrogê- nio para descrever os átomos polieletrôni- cos. De outra forma, o professor indubita- velmente teria de apresentar conceitos bem mais abstratos e exigir dos alunos co- nhecimentos avan- çados de alguns tó- picos da Física e da Matemática. Obvia- mente, isto não faz sentido em um curso introdutório de Química para estudantes do primeiro ano universitário. Apresentar conceitos de grande abstração e difícil analogia, como os da Química Quântica, sem discutir as suas bases matemáticas e físicas, parece um tanto pretensioso e corre- se o risco do ensino tornar-se mais informativo, em detrimento da aprendi- zagem. Geralmente, nos livros de Quí- mica Geral, a estrutura eletrônica dos átomos polieletrônicos é tratada de for- ma superficial, relacionando a carga nuclear efetiva, obtida de forma empírica, com as propriedades periódicas, tais como raio atômico, potencial de ionização e afini- dade eletrônica. O in- centivo à crítica cientí- fica (que nunca deve faltar) é substancial- mente prejudicado por falta de dados experi- mentais que possibili- tem aos alunos assimilarem os con- ceitos de carga nuclear efetiva e suas conseqüências para a compreensão da periodicidade. Para uma introdução às equações de Schrödinger e à estrutura eletrônica dos átomos e moléculas, indicamos artigo do caderno temático Estrutura da matéria: uma visão molecular (Almeida et al., 2001) . O conceito de blindagem eletrostática é muito bem apresentado por Huheey (1983) , em seu livro de Química Inorgânica. Torna-se, no entanto, necessário lembrar que a so- lução exata das equações de Schrödinger só é factível para sistemas simples, tais como uma partícula em uma caixa, rotor rígido e para os áto- mos hidrogenóides (aquelas espécies monoatômicas que possuem apenas um elétron) (McQuarrie, 1983). Em áto- mos polieletrônicos, a interação entre os elétrons impossibilita a separação de variáveis e, conseqüentemente, a solução exata das equações de Schrödinger. O método de Hartree- Fock utiliza funções de onda de um elé- tron e a aproximação do campo auto- consistente para descrever o movimen- to dos elétrons no campo coulombiano definido pelos núcleos dos átomos. De acordo com Slater (1951), em seu arti- go intitulado “Uma simplificação do método de Hartree-Fock”, esse méto- do pode ser visto como um modelo no qual o elétron se movimenta em um Hélio Anderson Duarte Os conceitos de fator de blindagem e carga nuclear efetiva são geralmente evocados para explicar a estrutura eletrônica dos átomos e as propriedades periódicas em cursos introdutórios de Química nas universidades. As regras de Slater e, mais recentemente, a idéia de percentagem de blindagem, têm sido usadas de forma semi-quantitativa para estimar o fator de blindagem e relacioná-lo com as propriedades periódicas. Dados experimentais como sucessivos potenciais de ionização e os dados de espectroscopia fotoeletrônica de raios X (XPS) permitem avanços no entendimento do fator de blindagem. Neste artigo mostra-se que esses dados correlacionam-se muito bem com Z 2 , como previsto pelo modelo atômico de Bohr. No entanto, os dados demonstram que elétrons de camadas mais externas são capazes de blindarem os elétrons mais internos em relação ao núcleo, em desacordo com a 2 a regra de Slater. Ressalta-se assim o caráter probabilístico da Química Quântica e a interpenetração das funções de onda. Usando-se o modelo de Bohr, é possível estimar a carga nuclear efetiva a partir de dados experimentais. As conseqüências de uma abordagem com ênfase no conceito de átomo e de sua estrutura eletrônica para a compreensão de novas técnicas e tecnologias são brevemente discutidas. carga nuclear efetiva, fator de blindagem, estrutura eletrônica É necessário lembrar que a solução exata das equações de Schrödinger só é factível para sistemas simples, como uma partícula em uma caixa, rotor rígido e átomos hidrogenóides (espécies monoatômicas que possuem apenas um elétron)

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Page 1: Sandrogreco Carga Nuclear Efetiva

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 17, MAIO 2003

A seção ‘Conceitos científicos em destaque’ tem por objetivo abordar, de maneira crítica e/ou inovadora, conceitoscientíficos de interesse dos professores de Química.

Carga nuclear efetiva e estrutura eletrônica dos átomos

Recebido em 28/11/02; aceito em 27/3/03

CONCEITOS CIENTÍFICOS EM DESTAQUE

N o curso introdutório sobreestrutura eletrônica dos átomose propriedades periódicas,

geralmente utilizamos os conceitosfator de blindagem e carga nuclearefetiva. Estes conceitos surgem ao seutilizar a solução exata da equação deSchrödinger para o átomo de hidrogê-nio para descrever osátomos polieletrôni-cos. De outra forma, oprofessor indubita-velmente teria deapresentar conceitosbem mais abstratos eexigir dos alunos co-nhecimentos avan-çados de alguns tó-picos da Física e daMatemática. Obvia-mente, isto não fazsentido em um curso introdutório deQuímica para estudantes do primeiroano universitário.

Apresentar conceitos de grandeabstração e difícil analogia, como osda Química Quântica, sem discutir as

suas bases matemáticas e físicas,parece um tanto pretensioso e corre-se o risco do ensino tornar-se maisinformativo, em detrimento da aprendi-zagem. Geralmente, nos livros de Quí-mica Geral, a estrutura eletrônica dosátomos polieletrônicos é tratada de for-ma superficial, relacionando a carga

nuclear efetiva, obtidade forma empírica,com as propriedadesperiódicas, tais comoraio atômico, potencialde ionização e afini-dade eletrônica. O in-centivo à crítica cientí-fica (que nunca devefaltar) é substancial-mente prejudicado porfalta de dados experi-mentais que possibili-

tem aos alunos assimilarem os con-ceitos de carga nuclear efetiva e suasconseqüências para a compreensãoda periodicidade.

Para uma introdução às equaçõesde Schrödinger e à estrutura eletrônica

dos átomos e moléculas, indicamosartigo do caderno temático Estrutura damatéria: uma visão molecular (Almeidaet al., 2001) . O conceito de blindagemeletrostática é muito bem apresentadopor Huheey (1983) , em seu livro deQuímica Inorgânica. Torna-se, noentanto, necessário lembrar que a so-lução exata das equações deSchrödinger só é factível para sistemassimples, tais como uma partícula emuma caixa, rotor rígido e para os áto-mos hidrogenóides (aquelas espéciesmonoatômicas que possuem apenasum elétron) (McQuarrie, 1983). Em áto-mos polieletrônicos, a interação entreos elétrons impossibilita a separaçãode variáveis e, conseqüentemente, asolução exata das equações deSchrödinger. O método de Hartree-Fock utiliza funções de onda de um elé-tron e a aproximação do campo auto-consistente para descrever o movimen-to dos elétrons no campo coulombianodefinido pelos núcleos dos átomos. Deacordo com Slater (1951), em seu arti-go intitulado “Uma simplificação dométodo de Hartree-Fock”, esse méto-do pode ser visto como um modelo noqual o elétron se movimenta em um

Hélio Anderson Duarte

Os conceitos de fator de blindagem e carga nuclear efetiva são geralmente evocados para explicar a estrutura eletrônica dos átomos e aspropriedades periódicas em cursos introdutórios de Química nas universidades. As regras de Slater e, mais recentemente, a idéia de percentagemde blindagem, têm sido usadas de forma semi-quantitativa para estimar o fator de blindagem e relacioná-lo com as propriedades periódicas.Dados experimentais como sucessivos potenciais de ionização e os dados de espectroscopia fotoeletrônica de raios X (XPS) permitemavanços no entendimento do fator de blindagem. Neste artigo mostra-se que esses dados correlacionam-se muito bem com Z2, como previstopelo modelo atômico de Bohr. No entanto, os dados demonstram que elétrons de camadas mais externas são capazes de blindarem oselétrons mais internos em relação ao núcleo, em desacordo com a 2a regra de Slater. Ressalta-se assim o caráter probabilístico da QuímicaQuântica e a interpenetração das funções de onda. Usando-se o modelo de Bohr, é possível estimar a carga nuclear efetiva a partir de dadosexperimentais. As conseqüências de uma abordagem com ênfase no conceito de átomo e de sua estrutura eletrônica para a compreensão denovas técnicas e tecnologias são brevemente discutidas.

carga nuclear efetiva, fator de blindagem, estrutura eletrônica

É necessário lembrar que asolução exata das

equações de Schrödingersó é factível para sistemas

simples, como umapartícula em uma caixa,rotor rígido e átomos

hidrogenóides (espéciesmonoatômicas quepossuem apenas um

elétron)

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 17, MAIO 2003Carga nuclear efetiva e estrutura eletrônica dos átomos

campo médio repulsivo devido aosoutros elétrons. Ou seja, na teoria deHartree-Fock, o elétron não sente a re-pulsão dos outros elétrons de formaexplícita, mas sim como uma nuvemde elétrons blindando parte da carganuclear. Dessa forma, o elétron senteuma carga nuclear efetiva resultante dablindagem parcial da carga nuclearpelo campo médio repulsivo devidoaos outros elétrons.

Os níveis de energia dos átomoshidrogenóides são determinados por:

(1)

A partir desta equação, pode-secalcular a energia do orbital 1s, que éexatamente a energia de ionização doátomo de hidrogênio. Observa-se quea energia de ionização está relacionadacom o fator Z2/n2. Como a carga nuclear(ou seja, o número atômico Z) aumentamais rapidamente que o número quân-tico principal (n), esperaríamos um au-mento contínuo do potencial de ioniza-ção, ou seja, a energia necessária pararetirar um elétron do átomo. Entretanto,se observarmos a energia de ionizaçãodos átomos de hidrogênio e lítio(1312 kJ/mol e 520 kJ/mol, respectiva-mente), verificaremos ocorrer a diminui-ção da energia. As razões para essadiminuição da energia de ionização éatribuída ao fato da distância média doelétron 2s ao núcleo ser maior que a do1s e da repulsão do elétron 2s pelos elé-trons 1s da camada mais interna do lítio.Dessa forma, a energia de ionizaçãoestá relacionada à razão Zef

2/n2, onde Zefé a carga nuclear efetiva sentida peloelétron 2s.

Qual o valor de Zef para o caso dolítio? Alguém poderia supor que setrataria apenas de uma conta simplesZef = 3 - 2 = 1, isto é, os elétrons 1sestariam blindando completamente acarga nuclear. No entanto, esse valoré aproximadamente igual a 1,30,mostrando que os elétrons 1s não sãoeficientes na blindagem. A compreen-são desse fato é a base para se expli-car a periodicidade ao longo da TabelaPeriódica e as anomalias observadaspara alguns grupos.

A dificuldade de compreender essefato aparece no modelo de átomo quenormalmente os alunos tendem a fixar -

o modelo de cebola. Nesse modelo, oselétrons que estão em orbitais de nú-mero quântico maior estariam na regiãodo espaço mais externo. Conseqüen-temente, esperaríamos que os elétronsmais internos contribuíssem com umfator de 100% para a blindagem. Porém,no átomo quântico, isto não se verifica:os elétrons dos orbitais de maior númeroquântico principal apresentam maiorprobabilidade de serem encontrados naregião mais externa. Mas há uma pro-babilidade, ainda que pequena, desseselétrons serem encontrados em regiõesmais internas do que elétrons de númeroquântico menor. Esse conceito de pro-babilidade advém da natureza ondula-tória dos elétrons. A análise da funçãoradial da equação de Schrödinger paraos átomos é normalmente a forma en-contrada pelos professores para explicaro porquê dos elétrons das camadasinternas não serem efetivos na blinda-gem dos elétrons da camada de valên-cia. Estudantes universitários iniciantestêm dificuldade para compreender a par-tir da análise das funções de onda ra-diais como elas podem se interpenetrar,o que aparentemente significa queesses elétrons estariam ocupando omesmo espaço. Trata-se de uma dificul-dade enorme para o professor argu-mentar sem entrar nos conceitos maiscomplexos da Matemática e da Mecâ-nica Quântica.

A proposta deste artigo é apresen-tar alguns argumentos baseados emdados experimentais para ajudar acompreender a natureza da estruturaeletrônica dos átomos, as funções deonda e suas conseqüências para o fa-tor de blindagem. A relação das pro-priedades periódicas e os fatores deblindagem serão discutidos.

Cálculo das constantes de blindagem:Regras de Slater e percentagem deblindagem

Slater (1930) publicou um conjuntode regras para estimar as constantes

de blindagem e, conseqüentemente, acarga nuclear efetiva dos átomos. Eleas aplicou com sucesso para estimaro tamanho dos átomos e íons, os níveisde energia e a suscetibilidade magné-tica. Desde a publicação desse traba-lho, vários autores têm sugerido o usodidático dessas regras em cursos intro-dutórios de Química no nível universi-tário (Brink, 1991). Essas regras foramresumidas por Huheey (1983) e estãodescritas abaixo:

1) Escreva a configuração eletrô-nica dos elementos na seguinte ordeme grupos: (1s) (2s, 2p) (3s, 3p) (3d) (4s,4p) (4d) (4f) (5s, 5p) etc.

2) Elétrons em qualquer grupo à di-reita do grupo (ns, np) não contribuempara a constante de blindagem.

3) Todos os outros elétrons no gru-po (ns, np) blindam o elétron de valên-cia de 0,35 cada.

4) Todos os elétrons na camada (n -1) contribuem com 0,85 cada.

5) Todos os elétrons (n - 2) ou emcamadas mais baixas blindam comple-tamente, ou seja, contribuem com 1para o fator de blindagem.

Quando o elétron que está sendoblindado pertence a um grupo (nd) ou(nf), as regras 2 e 3 são as mesmas,mas as regras 4 e 5 tornam-se:

6) Todos os elétrons nos grupos àesquerda do grupo (nd) ou (nf) contri-buem com 1,0 para o fator de blinda-gem.

A carga nuclear efetiva é estimadaa partir da equação:

Zef = Z - S (2)

onde S é o fator de blindagem.Geralmente, as regras de Slater são

muito úteis para correlacionar a carganuclear efetiva com propriedades taiscomo raio atômico e eletronegatividadeao longo das linhas da Tabela Periódica.No entanto, as regras de Slater falhamnas tendências ao longo das colunas,como pode ser visto na Tabela 1.

Waldron et al. (2001) introduziram o

Tabela 1: Carga nuclear efetiva de Slater para a 2a linha e a 1a coluna da Tabela Periódica.

2a linha Li Be B C N O F Ne

Zef 1,30 1,95 2,60 3,25 3,90 4,55 5,20 5,85

1a coluna H Li Na K Rb Cs - -

Zef 1,0 1,3 2,2 2,2 2,2 2,2 - -

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conceito de percentagem de blinda-gem (PB), juntamente com uma modi-ficação da 4a regra de Slater, comosegue:

4) Para o cálculo dos elétrons s ep, os elétrons d da camada (n - 1) sãocontados como 0.50 cada. Todos oselétrons f são contados como 0.69 ca-da. As regras para calcular os valoresdos elétrons d e f permanecem as mes-mas. Ou seja, elétrons na mesma ca-mada contam 0,35 e os outros contamcomo 1,0.

Nessa nova regra, os elétrons d e fsão menos eficientes para blindarem.A percentagem de blindagem, dadapor

PB = S / Z x 100% (3)

correlaciona-se muito melhor com aspropriedades periódicas, como podeser observado na Tabela 2.

A utilização das percentagens deblindagem permite fazer uma análisemuito mais detalhada das proprie-dades periódicas, incluindo a série doslantanídeos. As similaridades entre oselementos 3p/4p e os elementos 4d/5d podem ser demonstradas.

A carga nuclear efetiva calculadapelas regras de Slater ao longo da sériedos lantanídeos não sofre modificação.No entanto, o potencial de ionizaçãodos elementos lantanídicos aumentade 0,83 eV ao longo da série 4f. Alémdisso, o tamanho dos lantanídeos dimi-nui de 11 pm ao longo da série, indi-cando que deve haver alguma pene-tração da densidade do elétron 6s nacamada 4f. Enfim, o potencial de ioni-zação (PI, 1a energia de ionização) aolongo da série dos lantanídeos é inver-samente proporcional à percentagemde blindagem que leva em conta a in-capacidade de blindar dos elétrons (n- 2)f. Discussão detalhada das conse-qüências de se utilizar o conceito depercentagem de blindagem no estudodas propriedades periódicas é apre-sentada por Waldron et al. (2001).

Embora os valores estimados da car-ga nuclear efetiva e da percentagem deblindagem se correlacionem muito bemcom as propriedades dos átomos, argu-mentos tais como penetração dos orbi-tais e blindagem ineficiente dos elétronsd e f devem ser evocados, de forma aexplicar o comportamento periódico.

Na próxima seção, discutiremosuma forma de calcular a carga nuclearefetiva e usaremos dados experimen-tais para demonstrar a capacidade doselétrons em camadas mais externas deefetivamente blindarem os elétronsmais internos. Como exemplo, elétronsem orbitais ns contribuem para o fatorde blindagem dos elétrons nos orbitais1s, contrariando a 2a regra de Slater.

Espectroscopia fotoeletrônica de raiosX (XPS) e a energia do orbital 1s

Nos anos 30, grande parte da Quí-mica Quântica já tinha sido desenvol-vida; porém, as dificuldades em fazercálculos complexos impediam a apli-cação desse conhecimento para es-tudos quantitativos de forma extensiva.Por isso, aproximações eram, muitasvezes, a única forma de se utilizar ateoria para estudar sistemas químicos.As regras de Slater foram propostaspara permitir a utilização de funções deonda simplificadas e sem nós em cál-culos teóricos. Ele decompôs o fatorde blindagem em contribuições dascamadas eletrônicas dos átomos. Tra-tando-se de uma simplificação, o mé-todo de Slater foi posteriormente assi-milado como uma ferramenta didática,para se compreender as propriedadesperiódicas e a estrutura eletrônica dosátomos.

Os níveis eletrônicos no átomo dehidrogênio e dos íons hidrogenóidessão corretamente descritos pela equa-ção de Rydberg:

(4)

onde Rh é a constante de Rydberg,igual a 13,6 eV.

A Figura 1 mostra o modelo para oqual a equação de Rydberg é válida.Observe que a eq. 4 descreve corre-tamente a última energia de ionizaçãode todos os átomos. A última energiade ionização (EIZ) corresponde à retira-da do elétron 1s, depois que todos osoutros foram retirados.

No entanto, se analisarmos a últimae a penúltima energia de ionização doselementos, verificaremos serem elasdiferentes. Esse fato está previsto na3a regra de Slater, ou seja, um elétronblinda o outro mesmo estando no mes-mo orbital. Por isso, a penúltima ener-gia de ionização é sempre menor doque a última. Podemos, então, fazeruma simplificação, modelando o íoncomo um hidrogenóide. Suporíamosque a penúltima energia de ionizaçãopode ser reproduzida pela carga nu-clear desse hidrogenóide (veja Figura2). Baseando-nos nesse argumento,podemos estimar essa carga nuclearefetiva a partir da modificação da equa-ção de Rydberg:

(5)

onde EIZ-1 é a (Z - 1)ésima energia deionização. Observe que n é igual a 1;por isso, ele não aparece na eq. 5. Oíon hidrogenóide tem carga Zef e o elé-tron está na pseudoprimeira camada.Em seguida, serão apresentados argu-mentos validando a utilização da eq. 5para o cálculo de carga nuclear efetiva.

A Tabela 3 apresenta a última e apenúltima energia de ionização doselementos da 2a linha da Tabela Perió-

Tabela 2: Percentagens de blindagem (PB) para os elementos da 2a linha e 1a coluna daTabela Periódica.

2a linha Li Be B C N O F Ne

PB 56,7 51,3 48,0 45,8 44,3 43,1 43,2 41,5

1a coluna H Li Na K Rb Cs - -

PB 0,0 56,7 80,0 88,4 94,0 96,0 - -

Figura 1: Modelo de Bohr para os hidroge-nóides.

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 17, MAIO 2003

dica (Barros, 1995), a energia de ioni-zação calculada pelo modelo de Bohre a carga nuclear efetiva calculada pelaeq. 5. Como era esperado, o modelode Bohr (eq. 4) reproduz corretamentea última energia de ionização dos áto-mos. A carga nuclear efetiva sentidapelos elétrons do orbital 1s aumentaao longo da série e o fator de blinda-gem permanece praticamente cons-tante. Esse resultado evidencia a nãoalteração apreciável da forma dos or-bitais 1s pelo aumento do número atô-mico, justificando assim o fato do fatorde blindagem permanecer constante.

Um estudante poderia então per-guntar: “Qual seria a energia necessá-ria para retirar um elétron do orbital 1sde um átomo polieletrônico mantendotodos os outros elétrons? Nesse caso,qual seria a carga nuclear efetivasentida por esse elétron?” Felizmente,a primeira questão pode ser respondi-da através dos dados obtidos porespectroscopia fotoeletrônica de raiosX (XPS). Em XPS, a energia incidentedo fóton é tão grande que os elétronssão retirados das camadas internasdos átomos. Dessa forma, obtém-se aenergia característica do orbital 1s dosátomos (Cullity, 1978).

Na Tabela 4, são apresentados osdados de XPS, a respectiva carganuclear e a blindagem eletrostáticapara os elementos da 2a linha da TabelaPeriódica. Diferentemente do observa-do com as energias de ionização naTabela 3, o fator de blindagem aumen-tou monotonicamente. Qual a diferençaem relação à energia de ionização? Nocaso dos dados de XPS, a diferençaestá no fato de, ao ser aumentado o

número atômico, ou seja, passar de umátomo para outro, aumenta-se tambémelétrons na camada de valência. Esseselétrons, embora na camada de valên-cia, contribuem para blindar a carganuclear em relação aos elétrons 1s. Es-sa explicação é perfeitamente plausívele está de acordo com os resultadosda equação de Schrödinger, pois háprobabilidade (ainda que pequena)desses elétrons serem encontradosmais próximos do núcleo do que oselétrons do orbital 1s. A Figura 3 mostraa função radial dos orbitais atômicos sdo hidrogênio, exemplificando o racio-

cínio anterior. Esses dados experimen-tais demonstram de forma enfática acapacidade que os orbitais tem de seinterpenetrarem. A distância média doselétrons em diferentes orbitais aumentacom o aumento do número quânticoprincipal e secundário; no entanto, parauma análise correta, mesmo que quali-tativa, é preciso levar-se em conta anatureza probabilística da QuímicaQuântica.

Considerações finaisOs dados de potencial de ionização

sucessivos dos átomos e os dados deXPS consistem em fortes evidências daestrutura de camadas dos átomos eda interpenetração dos orbitais atômi-cos. Mostramos que os orbitais atômi-cos descritos pela equação de Schrö-dinger para o átomo de hidrogênio sãosemelhantes aos dos átomos poliele-trônicos, uma vez que são capazes dedescrever e racionalizar o comporta-mento dos dados de EI e XPS ao longoda Tabela Periódica. A Figura 4 mostrade forma inequívoca que o comporta-mento da energia do orbital 1s comofunção do número atômico segue umaparábola em acordo com o modelo deBohr. A diferença entre os valores

Carga nuclear efetiva e estrutura eletrônica dos átomos

Figura 2: Íons e átomos reduzidos ao modelo de Bohr.

Tabela 3: Última e penúltima energia de ionização da 2a linha da Tabela Periódica. Os dadosestão em eV1.

Elemento Z Modelo Energia de Carga nuclear Fator dede Bohr ionização2 efetiva3 blindagem

Z2 Rh Z - 1 Z S

H 1 13,6 - 13,6 -He 2 54,4 24,6 54,4 1,34 0,67Li 3 122,4 75,6 122,4 2,36 0,64Be 4 217,6 153,8 217,6 3,36 0,64B 5 340,0 259,3 340,1 4,37 0,63C 6 489,6 391,9 489,8 5,37 0,63N 7 666,4 551,9 666,8 6,37 0,63O 8 870,4 739,1 871,1 7,37 0,63F 9 1101,6 953,5 1102,7 8,37 0,63Ne 10 1360,0 1195,9 1362,3 9,38 0,6211 kJ/mol = 1,036 x 10-2 eV. 2Dados reproduzidos de Barros (1995). 3Rh = 13,6 eV.

Tabela 4: Dados de XPS para camada K (em eV), carga nuclear efetiva e fator de blindagemcalculados pelo modelo de Bohr.

Elementos Li Be B C N O F Ne

XPS1 50 110 190 280 400 530 690 850Z 3 4 5 6 7 8 9 10Zef 1,95 2,85 3,75 4,55 5,44 6,26 7,14 7,91S 1,05 1,15 1,25 1,45 1,66 1,74 1,86 2,09

1 Dados obtidos de Cullity (1978).

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 17, MAIO 2003

Abstract: Effective Nuclear Charge and its Consequence for the Comprehension of the Electronic Structure of Atoms – The concepts of screening factor and effective nuclear charge are generally invokedto explain the electronic structure of atoms and periodic properties in chemistry introductory courses at the university level. Slater rules and, more recently, the concept of percent screening have been usedin a semi-quantitative form to estimate the screening factor and to relate it to the periodic properties. Experimental data such as successive ionization potentials and data from X-ray photoelectronspectroscopy (XPS) allow advances in the understanding of the screening factor. In this paper, it is shown that these data correlate very well the atomic number, Z, as predicted by Bohr’s atomic model.Nevertheless, the data demonstrate that electrons in the outermost shells are capable of screening the more internal electrons from the nucleus, in disagreement with Slater’s 2nd rule. Thus, theprobabilistic character of quantum chemistry and the interpenetration of the wave functions are highlighted. From Bohr’s model, it is possible to estimate the effective nuclear charge from the experimentaldata. The consequences of an approach with emphasis on the concept of atom and its electronic structure for the comprehension of new techniques and technologies are briefly discussed.Keywords: effective nuclear charge, screening factor, electronic structure

Carga nuclear efetiva e estrutura eletrônica dos átomos

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demonstra que os elétrons mais exter-nos contribuem para o fator de blinda-gem do elétron no orbital 1s em relaçãoà carga nuclear, contrariando a 2a regrade Slater. Ou seja, o elétron no orbital1s sente uma carga nuclear menor doque o equivalente ao seu número atô-mico pelo fato dos elétrons em cama-das mais externas terem uma proba-bilidade de serem encontrados maispróximos do núcleo. A Figura 4 mostraque a diferença em termos percentuaisentre o modelo de Bohr e os dados de

XPS decresce tendendo a um patamar,demonstrando assim que elétrons emcamadas mais externas blindam menos,por terem uma probabilidade menor deserem encontrados próximos ao núcleo.Enfim, as regras de Slater e suas modi-ficações nos oferecem uma forma quali-tativa e limitada para estimarmos o fatorde blindagem. Entendemos que uma vi-são qualitativa e conceitualmente corretada estrutura eletrônica dos átomos per-mite aos alunos vislumbrarem de formamais ampla as conseqüências do mode-

lo atômico atual pro-porcionado pelaQuímica Quântica.Esse modelo auxiliana descrição de fe-nômenos observa-dos em espectros-copia eletrônica,ressonância mag-nética nuclear e res-sonância paramag-nética eletrônica,espectroscopia deraios X e tantos ou-tros métodos avan-çados de análiseque vêm sendo de-senvolvidos ao lon-go dos últimos anos(como exemplo cita-

Figura 3: Densidade de probabilidade radial dos orbitais atômicos 1s, 2s e 3s.

ríamos as espectroscopias Zeke eEXAFS). O conceito físico e químico bemcompreendido é a base para que pos-samos ser capazes de lidar, apreendere compreender os avanços tecnológicose os utilizarmos de forma eficaz e efi-ciente.

AgradecimentosÀ FAPEMIG, à CAPES e ao CNPq

por apoiar nossas pesquisas com auxí-lios financeiros e bolsas de pós-gra-duação.

Hélio Anderson Duarte ([email protected]), mestre emQuímica pela Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG) e doutor em Química pela Universidade deMontreal (Canadá), é docente do Departamento deQuímica da UFMG.

Figura 4: Energia do orbital 1s como função do número atômicoestimado pelo modelo de Bohr (eq. de Rydberg) e por dados deespectroscopia de raios X. A diferença relativa entre os doismodelos (em %) é mostrada no gráfico.