mills, wright. sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

47
Nova Biblioteca de Ciências Sociais diretor: Celso Castro Forças armadas e política no Brasil José Murilo de Carvalho 0 Brasil antes dos brasileiros André Prous Jango e o golpe de 1964 na caricatura Rodrigo Parto Motta Questões fundamentais da sociologia Georg Simmel Segredos e truques da pesquisa Howard S. Becker Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios C. Wright Mills C. WRIGHT MILLS SOBRE O ARTESANATO INTELECTUAL E OUTROS ENSAIOS Seleção e introdução CELSO CASTRO Tradução: MARIA LUIZA X. DE A. BORGES Revisão técnica: CELSO CASTRO ^ZAHAR Rio de Janeiro

Upload: marcos

Post on 05-Feb-2016

130 views

Category:

Documents


27 download

DESCRIPTION

MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios.

TRANSCRIPT

Page 1: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

Nova Biblioteca de Ciências Sociais

diretor: Ce lso Castro

Forças armadas e política no Brasil José Murilo de Carvalho

0 Brasil antes dos brasileiros André Prous

Jango e o golpe de 1964 na caricatura Rodrigo Parto S á Motta

Questões fundamentais da sociologia Georg Simmel

Segredos e truques da pesquisa Howard S. Becker

Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios C. Wright Mills

C . W R I G H T M I L L S

SOBRE O ARTESANATO INTELECTUAL E OUTROS ENSAIOS

S e l e ç ã o e i n t r o d u ç ã o

CELSO CASTRO

T r a d u ç ã o : MARIA LUIZA X. DE A. BORGES

R e v i s ã o t é c n i c a : CELSO CASTRO

^ Z A H A R Rio de Janeiro

Page 2: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

Obras originais dos textos que c o m p õ e m esta coletânea:

The Sociological Imagination; © 1959, 2000, Oxford University Press: "On Intelectual Craftmanship" ("Sobre o artesanato intelectual"), a p ê n d i c e (p.195-226) & "The Promise" ("A promessa"), parte do cap.1 [introd.; item 1 (p.3-8)]

White Collar, © 1951, Oxford University Press: "The Ideal of Craftsmanship" ("O ideal do artesanato"), cap.10 [item 2 (p.220-24)]

Power, Politics and People; © 1939-40, 1942-46, 1952-55, 1958-60, 1963, espólio de C. Wright Mills: "Man in the Middle: The designer" ("O homem no centro: o designer"), cap.10 [parte 3 (p.374-86)]

T r a d u ç ã o autorizada. (This translation is published by arrangement with Oxford University Press.)

Letters and Autobiographical Writings; © 2000, espólio de C. Wright Mills: "What Dois it Mean to be an Intellectual?" ("O que significa ser um intelectual?"), (p.276-281) publicado por University of California Press

Copyright da e d i ç ã o brasileira © 2009: Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel.: (21) 2108-0808 / fax: (21) 2108-0800 e-mail: [email protected] site: www.zahar.com.br

Todos os direitos reservados. A r e p r o d u ç ã o n ã o - a u t o r i z a d a desta p u b l i c a ç ã o , no todo ou em parte, constitui v i o l a ç ã o de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

Projeto gráfico: Bruna Benvegnu

CIP-Brasil. C a t a l o g a ç ã o - n a - f o n t e Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Mills, C. Wright (Charles Wright), 1916-1962 M596s Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios / C. Wright

Mills; s e l e ç ã o e i n t r o d u ç ã o Celso Castro; t r a d u ç ã o Maria Luiza X. de A. Borges; rev isão técnica Celso Castro. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

(Nova biblioteca de c i ê n c i a s sociais)

ISBN 978-85-378-0114-7

1. Sociologia. I. Título. II. Série

08-5471 CDD: 301 CDU: 316

Sumário

I n t r o d u ç ã o

' l o u j a e a a r t e d a m a n u t e n ç ã o d e m o t o c i c l e t a s 7

por Celso Castro

Sobre o artesanato intelectual 21 « Ç\ [xj^Q

O Ideal do artesanato M GbhÁs

0 homem no centro: o designer 60 / $^vv0~

ApromtMt 11 tW/>nrvvMi

1 i i | in< MI|IHIII .1 M I u m i n t e l e c t u a l ? 8 9

Page 3: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

I n t r o d u ç ã o

Sociologia e a arte da manu tenção de motocicletas por Celso Castro1

"O conhecimento é uma escolha tanto de um modo de vida quanto de uma carreira; quer o saiba ou não, o trabalhador intelectual forma-se a si próprio à medida que trabalha para o aperfeiçoamento de seu ofício."

C. WRIGHT MILLS

"O Buda, a Divindade, mora tão confortavelmente nos circuitos de um computador digital ou nas engrenagens de uma trans­missão de motocicleta quanto no pico de uma montanha ou nas pétalas de uma flor. Pensar de outra maneira é aviltar o Buda - o que significa aviltar-se a si mesmo.... Rejeitar a parte do Buda relacionada à análise das motocicletas é omitir o Buda."

ROBERT M. PIRSIC, em Zen e a arte da manutenção de motocicletas (1974)

Um aborígine norte-americano2

Charles Wright Mills nasceu em Waco, Texas, em 28 cio agosto de 1916. Cursou a graduação em sociologia e o mestrado em filosofia na Universidade do Texas em Austin. Em seguida, tentou fa/t i M U

1 Professor e pesquisador do Centro de Pesquisa e I ><K iiiiu-ntaçlo de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas. Agradeço .i leitura que Howard S. Becker, Karina Kuschnir e I Ú< ia I ippi fizeram deite texto. 2 É assim que Mills se auto-refere numa carta a um amigo em i 1.4.1957, publicada em C. Wright MiWs, Letters andAutobiographical Writings. Kathryn Mills c Pamela

Page 4: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

doutorado em sociologia na Universidade de Chicago, mas desistiu por não ter conseguido uma bolsa de estudos. Foi então, em 1939, estudar na Universidade de Wisconsin, onde defendeu, em 1942, sua tese de doutorado, "A Sociological Account of Pragmatism: An Essay on the Sociology of Knowledge".

Mills transferiu-se em 1941 para a Universidade de Maryland (College Park), onde deu aulas de sociologia. Nos três anos seguin­tes, colaborou com Hans H . Gerth em dois livros: uma coletânea de textos de Max Weber, From Max Weber: Essays in Sociology, publicado em 1946 - seu maior best-seller, ainda reimpresso mais de 60 anos após sua publ icação 3 - e Character and Social Structure, que viria a ser publicado em 1953.4

Em 1945, Mills mudou-se para Nova York, indo trabalhar no Bureau of Applied Social Research a convite de seu fundador e diretor, Paul Lazarsfeld (1901-76). A l i , teve acesso a farto material empírico, trabalhou coordenando equipes de investigadores e pôde adquirir habilidades em métodos e técnicas de pesquisa quantita­tiva. No entanto, apesar da admiração que inicialmente sentia por Lazarsfeld, aos poucos as relações entre os dois se deterioraram, até o rompimento completo, em 1952.5

Concomitantemente ao trabalho no Bureau, Mills começou a lecionar na Universidade de Columbia em 1947, nela permane­cendo até sua morte, em 1962. Ao longo desses 15 anos, Mills foi

Mills (eds.). Introd. Dan Wakefield, Califórnia, University of California Press, 2000, p.205. A maior parte das informações biográficas sobre Mills provém deste livro, que reúne aproximadamente 150 dentre mais de 600 cartas (além de outros escritos inéditos) de Mills, selecionadas, editadas e comentadas por duas de suas filhas. Foi também consultado Irving Louis Horowitz, C. Wright Mills: An American Utopian, Free Press, 1983. 3 Publicado no Brasil como Ensaios de Sociologia, em 1971, pela Zahar Editores. 4 A edição brasileira, Caráter e estrutura social, foi publicada em 1973 pela editora Civilização Brasileira. s Sobre a experiência de Mills no Bureau, ver Jonathan Sterne, "C. Wright Mills, the Bureau of Applied Social Research, and the Meaning of Critical Scholarship", em Cultural Studies, Critical Methodologies, vol. 5, n . l , 2005, p.65-94.

Introdução

uma figura relativamente marginal no ambiente de Columbia. As relações pessoais com alguns colegas foram difíceis; como uma das conseqüências, Mills não dava aulas na pós-graduação. No entanto, essa situação t a m b é m tinha como vantagem o maior tempo para dedicar-se à pesquisa e à escrita.

Foi em Nova York que Mills publicou o núcleo de sua con-Iribuição para as ciências sociais, uma trilogia sobre a sociedade 11< iite americana contemporânea, na qual analisava seus três estratos principais: os líderes sindicais, em NewMen of Power (1948); as clas­ses médias, em White Collar: The American Middle Classes (1951), seu I 'M11 u i ro sucesso para além dos muros acadêmicos; e a elite, em The 1'xwri Elite (1956).6 Estes dois últ imos livros tiveram várias edições e lorain publicados em mais de uma dezena de línguas.

No ano acadêmico de 1956-57 Mills foi professor visitante ii.i l Iniversidade de Copenhague, financiado pela Fullbright. Não

la nenhum motivo especial para ir à Dinamarca, como expli-i ou numa carta a Hans Gerth: "Bem, porque eles pediram por

l i . n inguém mais o fez. Segundo, eu gosto da idéia de ir a esse pequeno país."

N.i Europa, Mills loniplelou boa parte do manuscrito de The Sói iologii,// liiniyjinitton, que vil I.I .i ser publii ado em 1959, livro no qual I.I/I.I uma analise . n iu . i d.is "escolas" que dominavam

0 • iimpo • Icifiin ile sua época, atacando principalmente as li " I " i " " MI. 11H.i111. respectivamente, Lazarsfeld e 1 .1. . . i i I n ...ir. i r u i : /•»). l u o u famosa a " t radução abreviada"

qui M111 -. I r / , i i . ' i ,i|>iiiilo2 ("Grande teoria"), de extensos trechos ii In.hl,.-. ,l.r. i i i paginas de The Social System (1951) de Parsons,

111 ii i I.I i ido que o livro poderia ser reduzido, sem perda de conteúdo, .i I >ii páginas de "inglês direto". Mesmo assim, continuava Mills, o resultado não seria muito impressionante.

11 Os dois últimos livros foram publicados no Brasil por Jorge Zahar Editores com os títulos A nova classe média, em 1980, e A elite do poder, em 1981. 7 K. Mills e P. Mills (eds.), op. cit., p.203.

Page 5: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

10 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

A o longo do livro, Mills buscou fazer a defesa da "tradição clássi­ca" das ciências sociais, inspirado nas maiores influências intelectuais de sua vida - os alemães Karl Marx, Max Weber e Karl Mannheim, além dos norte-americanos Will iam lames, Thorstein Veblen e John Dewey. A imaginação sociológica, no entanto, foi um livro escrito por um insider para outsiders, causando escândalo nos círculos acadêmi­cos pelo ataque contundente que fez a seus pares. Por volta de 1960, Mills chegou a pensar em trocar Columbia por alguma universidade britânica - provavelmente fruto do bom relacionamento que esta­beleceu com pensadores de esquerda como E.P. Thompson, Tom Bottomore e Ralph Miliband - , mas depois desistiu.

À medida que aumentava o afastamento de seus pares acadê­micos norte-americanos, Mills buscava escrever mais e mais para o grande público. Além de artigos em revistas como New Leader, Politics, New York Times Magazine e Dissent, escreveu "livros-pan-fletos" que lhe deram grande exposição na mídia americana - algo comparável apenas, talvez, à que teria a an t ropóloga Margaret Mead. Em The Causes of World War Three (1958), Mills tratou da corrida nuclear; em Listen, Yankee: The Revolution in Cuba (1960), da fase inicial da revolução cubana.8

Este livro, escrito em apenas seis semanas após uma curta visita que Mills fizera a Cuba em agosto de 1960, foi um enorme sucesso de vendas e, ao mesmo tempo, colocou o FBI à sua espreita. O livro baseou-se em extensas entrevistas gravadas com Fidel Castro, Che Guevara e outros líderes da revolução, além de jornalistas, militares e intelectuais. Fidel teria então contado a Mills que lera The Power Elite durante o per íodo da guerrilha. 9

Mills acreditara que os revolucionários cubanos pudessem seguir por uma via socialista independente. No entanto, em I a de dezembro de 1961, Fidel fez um discurso de cinco horas no qual se declarava marxista-leninista e elogiava as conquistas da União Sovié-

* Publicados no Brasil por Jorge Zahar Editor, respectivamente, como As causas da próxima guerra mundial e A verdade sobre Cuba, ambos em 1961. 9 K. Mills e P. Mills (eds.), op. cit., p.312.

Introdução

liça. Diante disso, Mills se v iu cada vez mais em maus lençóis com I público e as autoridades americanas e recebeu pelo menos uma ameaça de morte pela defesa que fizera da revolução cubana."1

Apesar da atração pelas idéias marxistas, Mills sempre manteve uma posição crítica a respeito de muitos de seus fundamentos, como pode ser visto em The Marxists, livro que seria publicado postuma­mente, em 1962." Em abril de 1960 Mills foi à Rússia pela primeira vez, país pelo qual teve sentimentos ambivalentes. Em Moscou, horrorizou seus hóspedes durante um jantar ao erguer u m brinde ao dia em que as obras completas do proscrito Trotsky seriam pu­blicadas e amplamente distribuídas na União Soviética - nesse dia, acrescentou Mills, "a URSS terá se tornado uma democracia".12

Ao longo de sua vida, Mills sempre manteve-se politicamen­te independente, evitando aderir a qualquer grupo. Seus heróis políticos eram os Wobblies (Industrial Workers of the World), os radicais americanos do início do século que se opunham a quase tudo e todos, e prezavam acima de tudo sua independência .

Mills esteve no Rio de Janeiro no final de outubro de 1959, con­vidado para participar do Seminário Internacional "Resistências à mudança: fatores que impedem ou dificultam o desenvolvimento", realizado no Museu Nacional e promovido pelo CLAPCS (Centro Latino-Americano de Pesquisa em Ciências Sociais),13 dirigido pelo

"' Ver artigo de Ricardo Alarcon, "Waiting for C. Wright Mills", publicado em The Nation em 20.3.2007. " A edição brasileira, da Zahar Editores, é de 1968. 1 2 K. Mills e P. Mills (eds.), op. cit, p.335. 1 3 Em 1957, acolhendo uma recomendação da 9a sessão da Conferência Geral da Unesco (índia, 1956), os estados-membros estabeleceram duas unidades conduzidas por um mesmo Comitê Diretivo: uma especializada em docência de pós-graduação - a FLACSO, em Santiago, no Chile; e outra dedicada à pesquisa social comparativa, o Centro Latino-Americano de Pesquisas em (Ciências Sociais (CLAPCS), no Rio de Janeiro. Sobre o contexto intelectual de criação do (!1.AP( IS, ver Oliveira, Lúcia Lippi, "Diálogos intermitentes: Relações enlre Brasil e Anni u .i Latina", em Sociologias n.14, Porto Alegre, jul-dez 2005. Sobre o seminário, ver a dissertação de mestrado de Janaina Ferreira, Resistências n mudança. í hn debate dos cientistas sociais na década de 50, PPGSA/UFKI, 1999.

Page 6: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

12 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

sociólogo Luiz Costa Pinto (1920-2002). Neste seminário, Mills apresentou o trabalho "Remarks on the Problem of Industrial De­velopment",14 que foi criticado pelos marxistas brasileiros Florestan Fernandes, Octávio Ianni e Paschoal Leme, presentes ao evento.

Durante sua estada no Rio, Mills escreveu uma carta a To-varich, um colega russo imaginário (em russo, a palavra significa camarada) com o qual começara a se "corresponder" (sem ter nunca publicado esse material em vida) entre 1956 e 1957, em sua primeira longa temporada na Europa. A carta,"What does it mean to be an intellectual?", foi publicada postumamente e encontra-se aqui traduzida pela primeira vez para o por tuguês .

Em dezembro de 1960, às vésperas de participar de um debate em cadeia nacional de televisão com Adolf A. Berle Jr. (que fora embaixador no Brasil entre 1945 e 1946) sobre a política externa norte-americana para a América Latina, Mills sofreu u m sério infarto do miocárdio. Sobreviveu, mas por apenas mais 15 meses. Em 20 de março de 1962, morreu em sua casa, de outro ataque cardíaco, aos 45 anos de idade.

O artesanato intelectual

Durante sua estada na Europa, Mil ls completou boa parte do manuscrito de The Sociological Imagination, pois na primavera de 1957 apresentou as primeiras versões do livro num seminár io em Copenhague. Neste ano, Mills mencionou, numa carta a um amigo, que os manuscritos incluíam "uma [versão] completamente rees­crita e, acredito, de primeira linha, de um ensaio nunca publicado Sobre o artesanato intelectual" (On Intellectual Craftsmanship).15 O

1 4 Publicado em 1960 nos anais do seminário, p.281-7. Nas páginas 297 e 298 encontra-se um resumo dos debates. 1 5 Cf. K. Mills e P. Mills (eds.), op. cit., p.230. A primeira versão do texto foi escrita em abril de 1952, segundo anotação de Mills no manuscrito, e distribuída para uso em sala de aula em 1955.0 texto completo foi publicado em Society, vol 17, n. 2,jan 1980, p.63-70.

Introdução

d Aio acabou sendo publicado como apêndice de The Sociological knagination e tornou-se a parte mais universalmente conhecida

• elogiada do livro. E em torno da idéia de "artesanato intelectual" que a presente

• oletánea de textos de C. Wright Mills foi organizada. Além do l.inioso apêndice, foram aqui reunidos quatro outros textos cur­tos que nos ajudam a melhor compreender essa idéia: um trecho de White Collar que explica o tipo ideal do artesanato, algo que tornou-se um anacronismo na experiência moderna do trabalho (Capítulo 2); uma palestra, inédita em por tuguês , feita por Mills numa convenção para designers, na qual defende o modelo do ar-Manato como um valor central para seres humanos não alienados (Capítulo 3); a seção inicial de A imaginação sociológica, na qual apresenta aquilo que a imaginação sociológica pode nos oferecer, ao esclarecer a inter-relação entre biografia e história (Capítulo 4); e um texto sobre a posição do intelectual e de seu ofício diante das questões públicas (Capítulo 5).

Mills faz, em "Sobre o artesanato intelectual", um relato pessoal, dirigido aos que se iniciam nas ciências sociais, de como procede em seu ofício. A imagem de um "ofício" - e sua associação com as idéias de "artesanato" e "oficina" - se contrapõe à visão do trabalho do cientista social como alguém que testa hipóteses construídas a partir de leis gerais e aplicadas através de mé todos controláveis. No trabalho do cientista social não haveria fórmulas, leis, receitas, e sim méthodos, no sentido original grego da palavra: via, caminho, rota para se chegar a um fim.

O "artesão intelectual" de que trata Mills deve ser visto como um "tipo ideal", no sentido weberiano do termo - algo que não é en­contrado em forma "pura" na realidade social, mas que, construído pelo pesquisador a partir do exagero de algumas propriedades de determinado fenômeno, nos ajuda a compreendê-lo. Nesse sentido, ver o trabalho de pesquisa como um ofício ressalta a importância da d imensão existencial na formação do pesquisador. Isso não quer dizer que se devam explicar os resultados do trabalho a partir

Page 7: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

14 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

da biografia; não estamos falando de fenômenos psicanalíticos ou coisas do gênero. Trata-se, como Mills aponta, de enfatizar a indissociabilidade, para o "artesão intelectual", entre sua vida e seu trabalho - idéia próxima à que um autor como Georg Simmel chamaria de "autocultivo" através da prática de seu ofício.

Temos aqui, como disse Howard S. Becker num texto sobre Mills, uma questão de "quantas horas por dia se é sociólogo". 1 6

Esta não é uma questão meramente quantitativa - como se fôsse­mos tomar, por exemplo, quantas horas alguém se dedica ao seu trabalho como uma "variável" para testar alguma hipótese. Estão em jogo, aqui, diferentes orientações do sociólogo em relação ao seu trabalho: se ele m a n t é m dentro de limites estritos o impacto da perspectiva sociológica sobre sua vida - um "sociólogo de oito horas por dia" - ou se a deixa tomar conta de sua vida interior - um "sociólogo 24 horas por dia". Não que este "trabalhe o tempo todo": o importante, na visão de Mills , é que ele, como bom artesão, não dissocie sua vida de seu trabalho, e a perspectiva sociológica está presente não apenas na forma pela qual ele vive no mundo, mas no modo pelo.qual ele vê o mundo.

Como fazer isso? A resposta de Mills é clara e direta: organizar um arquivo, manter um diário. No arquivo unem-se experiência pessoal e reflexão profissional. Ao continuamente revisitar e rear-ranjar o arquivo, o artesão intelectual estimula a imaginação so­ciológica. Esta consiste, em grande parte, na "capacidade de passar de uma perspectiva para outra, e, nesse processo, consolidar uma visão adequada de uma sociedade total e de seus componentes" (p.41). É essa imaginação que, na visão de Mills, distingue o cien­tista social do simples técnico:

A imaginação sociológica... consiste em parte considerável na capacidade

de passar de uma perspectiva para outra, e, nesse processo, consolidar

1 6 Howard S., Becker, "Professional sociology: The case of C. Wright Mills" em Ray Rist (oi g.), The I democratic Imagination: Dialogues on the Work of Irving Louis Horowitz. New Brunswick, Transaction Books, 1994, p. 175-87. Becker atribui essa idéia anu m i ..i mm I luniwitz, que não a teria publicado.

Introdução

uma visão adequada de uma sociedade total e de seus componentes.

É essa imaginação, é claro, que distingue o cientista social do mero

técnico. Técnicos adequados podem ser instruídos em poucos anos.

A imaginação sociológica t ambém pode ser cultivada; por certo ela

raramente ocorre sem muito de trabalho, muitas vezes rotineiro. Há

no entanto uma qualidade inesperada em relação a ela, talvez porque

sua essência seja a combinação de idéias que ninguém supunha que

fossem combináveis - digamos, uma mistura de idéias da filosofia

alemã e da economia britânica. Há um estado de espírito lúdico por

trás desse tipo de combinação, bem como um esforço verdadeiramente

intenso para compreender o mundo, que em geral falta ao técnico

como tal (p. 41).

Como um artista "bricoleur", o artesão intelectual está atento para combinações não-previstas de elementos, evitando normas de procedimento rígidas que levem a um "fetichismo do mé todo e da técnica":

Estimule a reabilitação do artesão intelectual despretensioso, e tente se

tornar você mesmo tal artesão. Deixe que cada homem seja seu próprio

metodologista; deixe que cada homem seja seu próprio teorizador; deixe

que teoria e método se tornem parte da prática de um ofício (p. 56).

A manu tenção de um arqyivo como o proposto por Mills -tarefa que ele realizava com lápis e papel, mas que hoje pode igualmente ser realizada com um computador - gera o hábito da auto-reflexão sistemática, através da qual o cientista social aprendi' como manter seu mundo interior desperto, relacionando aquilo que está fazendo intelectualmente e o que está experimentando como pessoa. Como disse Gláucio Soares,"arquivos deste t iposão, essencialmente, uma conversa íntima e solitária". 1 7

1 7 Gláucio Ary Dillon Soares,"Pesquisa rica em países pobres?" Revista Brasileira de Ciências Sociais, n.16, ano 6, jul 1991, p.70.

Page 8: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

Mills procura, nos textos aqui reunidos, seguir sua própr ia exortação de que a apresentação do trabalho do sociólogo deve ser feita em linguagem o mais clara e simples possível, evitando ao m á x i m o o jargão e o hermetismo - "para superar a prosa acadêmica, temos de superar primeiro a pose acadêmica" (p.50). Em "Sobre o artesanato intelectual", dá vários exemplos concre­tos a seus leitores daquilo que defende, a partir de sua própr ia prática, em particular com a pesquisa que levou à redação de A elite do poder. Como um mest re-ar tesão que procura passar aos aprendizes de seu ofício aquilo que aprendeu ao longo de seu caminho.

Um sociólogo numa motocicleta

Dan Wakefield relembra um episódio ocorrido quando trabalhava como assistente de pesquisa de Mi l l s . 1 8 U m homem que pertencia a um pequeno grupo socialista veio pedir sua assinatura numa petição para que a organização deixasse de ser classificada como "subversiva" pelo governo. Mills assinou, mas passou a debater criticamente as idéias políticas de seu interlocutor, que, exaspera­do, perguntou, afinal, em que Mills acreditava. Ele, que naquele momento estava consertando sua motocicleta, respondeu sem hesitar: "motores alemães". 1 9

Talvez essa resposta seja mais do que uma simples brincadeira, e que o ideal do artesanato tenha ocupado uma dimensão mais plena na vida de Mills e em seu ofício de sociólogo. Ele começou a pilotar uma motocicleta B M W modelo R69 (a mesma que

" Essa informação e as seguintes encontram-se na introdução que Dan Wakefield escreveu ao livro com as cartas e escritos de Mills (K. Mills e P. Mills (eds.), op. nf., p.1-18). " Cf. K. Mills e P. Mills (eds.), op. cit., p.14. Apesar dessa resposta, nas eleições de c 1948 Mills votou para presidente no candidato do Partido Socialista, Nui in.in Thomas (ibid., p. 120).

Introdução

aparece na capa deste livro) devido à dificuldade em estacionar em Morningside Heights, onde fica a Universidade de Columbia. Três vezes por semana, vestindo jeans e camiseta, Mills cobria de (Roto, em uma hora, os 50km entre sua casa em Pomona (NY) e I Columbia.20

Quando Mills viajou para a Europa pela primeira vez, em ja-n r 11 o de 1956, o fez não para compromissos acadêmicos, mas para um curso de manu tenção de motocicletas durante duas semanas na fabrica da B M W em Munique. Ao final, recebeu o diploma de mecânico de I a classe, que orgulhosamente mandou emoldurar. Neste mesmo ano, fez um grande tour pela Europa numa BMW. I'm carta a um amigo, escrita no verão de 1956, descreveu seu estado de espírito: "Buda numa motocicleta".2 1

Em 1948, Mills e Ruth Harper, sua segunda esposa, fizeram Ulia viagem de cerca de 32 mi l k m de carro, saindo de Nova York até I ()s Angeles, onde compraram um trailer. Dali seguiram lentamente para o norte, pela costa, até São Francisco, e de lá para a Columbia Britânica. Ziguezaguearam pelo Canadá até chegarem a Montreal, de onde retornaram a Nova York. No caminho, compraram por 175 dólares duas ilhotas às margens do lago Temagami, situado numa reserva florestal em Ontár io , Canadá, a cerca de 1.300km ile NYC. Para chegar às ilhas era preciso sair da rodovia e viajar de barco por cerca de 50km. Mills passou as férias de 1949 na ilha, acompanhado de sua primeira filha, Pamela, então com seis anos. Ele e Ruth trabalhavam de m a n h ã em White Collar e const ru íam a casa à tarde. A descrição de sua rotina, que Mills faz em carta .i um amigo, lembra Walden, de Henry Thoreau - com a grande dilerença de que Mills não estava só:

I Dl 1959 Mills mudou-se para uma casa que ajudou a projetar e construir em Rockland County (West Nyack, NY), a cerca de 40km de Nova York. Continuou indo trabalhar de motocicleta. " K. Mills e P. Mills (eds.), op. cit., p.212.

Page 9: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

Eis a maneira pela qual vivemos: levantamos por volta de 7h30 ou 8h e

comemos, após mergulhar no lago. Pamela está aqui há cerca de cinco

semanas e nada vestida com um pequeno colete de cortiça. Trabalhamos

em seguida em nossas escrivaninhas até cerca de 12h30. Pamela brinca

sozinha esse tempo, e está aparentemente muito feliz. Depois do almoço

trabalhamos na casa até irmos nadar por volta de 16h30, quando

Pamela tem sua aula de natação. Após isso, nos deixamos levar pela

correnteza. Pode ser que vá de caiaque com Pamela colher nenúfares;

ou, talvez, sigamos seis milhas pelo lago no barco a motor até a ilha do

Urso pegar correspondência... isto, duas ou três vezes por semana. Ou,

talvez, fiquemos apenas sentados olhando a casa e fazendo planos para

as construções do próximo ano. (Uma ponte sobre o pequeno canal até

a outra ilha. Uma casa de hóspedes ali. Outra doca lá naquele ponto.)

Bem, é mais ou menos assim que vamos indo. 2 2

Segundo Dan Wakefield, Mills proclamava em suas aulas que cada um deveria construir sua p rópr ia casa - como ele mesmo o fizera - e, com o estudo adequado, construir seu p r ó p r i o carro. Além de motores alemães e de construir casas, Mi l l s gostava t a m b é m de fotografar, de tocar violão e de cozinhar. Wakefield lembra que, em sua primeira visita à casa de Mil ls , após este lhe servir uma refeição que havia preparado, perguntou com incredulidade: "Meu Deus, homem, você quer dizer que não faz seu p r ó p r i o pão?" Três dias após o nascimento de seu filho Nikolas, Mil ls escreveu a um amigo contando que "ele tem mãos exatamente como as de meu pai (e minhas) e quase tão grandes! Verdadeiras luvas de beisebol. Espero que ele se torne u m honesto carpinteiro ou um mecânico de corridas, se ainda tiverem restado carros decentes quando ele tiver dez ou 12 anos e puder chegar perto de u m motor". 2 3

2 2 K. Mills e P. Mills (eds.), op. cit., p.142. 2 1 Carta de 22.6.1960 a Ralph Miliband (K. Mills e P. Mills (eds.), op. cit., p.290).

Introdução

Esses indícios, presentes na biografia de Mills , parecem su-que o modo de vida do artesão tenha sido, para ele, mais

que apenas um tipo ideal sociológico. Nada mais apropriado para quem, como poucos, defendeu que vida e obra devem se alimentar mutuamente.

A propósito, muitos anos após a morte de seu pai, Nikolas Mills apaixonou-se por reformar carros antigos e tornou-se um ai tisia e designer.24

Ver www.nikmills.com.

Page 10: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

Sobre o artesanato intelectual

l'ara o cientista social individual que se sente parte da tradição Clássica, a ciência social é a prát ica de um ofício. Homem de­dicado a questões importantes, ele está entre aqueles que ficam rapidamente impacientes e entediados com discussões complica­das sobre m é t o d o e teoria em geral; muito disso interrompe seus verdadeiros estudos. É melhor, ele acredita, que um estudioso ativo relate como está se saindo em seu trabalho do que ter uma dúzia de "codificações de procedimento" estabelecidas por especialistas que, o mais das vezes, nunca fizeram muitos trabalhos importan­tes. Somente através de conversas em que pensadores experientes I roçam informações sobre suas maneiras efetivas de trabalhar é possível comunicar uma noção útil de método e teoria ao estudioso iniciante. Parece-me válido, portanto, relatar com algum detalhe como procedo em meu ofício. Este é necessariamente um relato pessoal, mas escrito na esperança de que outros, em especial aqueles que estão iniciando u m trabalho independente, o tornem menos pessoal através dos fatos de sua própr ia experiência.

É melhor começar, acredito, lembrando a você, o estudioso inician­te, que os mais admiráveis pensadores da comunidade acadêmica em que decidiu ingressar não separam seu trabalho de suas vidas. Parecem levá-los ambos a sério demais para admitir tal dissociação, e querem usar uma coisa para o enriquecimento da outra. Essa se

21

Page 11: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

22 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

paração, é claro, é a convenção predominante entre os homens em geral, originando-se, suponho, do vazio do trabalho que os homens em geral fazem hoje. Mas você reconhecerá que, como intelectual, tem a oportunidade excepcional de planejar um modo de vida que encorajará os hábitos da boa produção . O conhecimento é uma escolha tanto de um modo de vida quanto de uma carreira; quer o saiba ou não, o trabalhador intelectual forma-se a si p rópr io à medida que trabalha para o aperfeiçoamento de seu ofício; para realizar suas próprias potencialidades, e quaisquer oportunidades que surjam em seu caminho, ele constrói um caráter que tem como

múcleo as qualidades do bom trabalhador.

Isto significa que deve aprender a usar sua experiência de vida em seu trabalho intelectual: examiná-la e interpretá-la continua-mente. Neste sentido, o artesanato é o centro de você mesmo, e você está pessoalmente envolvido em cada produto intelectual em que possa trabalhar. Dizer que você pode "ter experiência" significa, por exemplo, que seu passado influencia e afeta seu presente, e que ele define sua capacidade de experiência futura. Como cientista social, é preciso controlar esta ação recíproca bastante complexa, apreender o que experiência e classificá-lo; somente dessa maneira pode esperar usá-lo para guiar e testar sua reflexão e, nesse processo, moldar a si mesmo como u m ar­tesão intelectual. Mas como fazer isso? Uma resposta é que você deve organizar um arquivo, o que é, suponho, a maneira de um sociólogo dizer: mantenha um diário. Muitos escritores criativos m a n t ê m diários; a necessidade de reflexão sistemática em que o sociólogo se vê exige isso.

Num arquivo como o que vou descrever, há uma combinação de experiência pessoal e atividades profissionais, estudos em curso e estudos planejados. Nesse arquivo, você, como um artesão, tentará reunir o que está fazendo intelectualmente e o que está experimen­tando como pessoa. Aqui, não terá receio de usar sua experiência e relacioná-la diretamente a vários trabalhos em andamento. Ser­vindo como um controle ao trabalho repetitivo, seu arquivo lhe

Sobre o artesanato intelectual 23

permite conservar sua energia. Estimula-o t a m b é m a apreender "pensamentos marginais": várias idéias que podem ser subprodutos d* vida cotidiana, fragmentos de conversas entreouvidas na rua, «tu mesmo sonhos. Uma vez anotadas, essas coisas podem levar a pensamentos mais sistemáticos, bem como emprestar relevância Intelectual a experiências mais diretas.

Você deve ter notado muitas vezes com que cuidado pen­sadores bem-sucedidos tratam suas própr ias mentes, com que • i. tição observam seu própr io desenvolvimento e organizam sua

I \ i Hi iência. A razão por que valorizam suas menores experiências e que, no curso de uma vida, o homem moderno tem tão pouca ptperiência pessoal, e não obstante a experiência é tão importante , orno fonte de trabalho intelectual original. Ser capaz de confiar na ifópria experiência, sendo ao mesmo tempo cético em relação a m 6, acredito, uma marca do trabalhador maduro. Essa confiança ambígua é indispensável para a originalidade em qualquer busca intelectual, e o arquivo é uma maneira pela qual você pode desen­volver e justificar essa confiança.

Mantendo um arquivo adequado e desenvolvendo assim hábi­tos auto-reflexivos, você aprende como manter seu mundo interior desperto. Sempre que tiver sentimentos fortes sobre eventos ou idéias, deve tentar impedir que se dissipem de sua mente, tratando ao contrár io de formulá-los em seus arquivos e, ao fazê-lo, extrair suas implicações, mostrar para si mesmo como esses sentimentos ou idéias são tolos, ou como poderiam ser articulados de maneira produtiva. O arquivo o ajuda t ambém a formar o hábito de escrever. Você não poderá adquirir esse hábi to se não escrever alguma coisa pelo menos uma vez por semana. Ao desenvolver o arquivo, pode fazer experiências como escritor e assim, como se diz, desenvolver sua capacidade de expressão. Manter um arquivo é empenhar-se na experiência controlada.

Uma das piores coisas que acontecem com cientistas sociais é que só sentem necessidade de escrever sobre seus "planos" numa única

Page 12: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

ocasião: quando vão pedir dinheiro para uma pesquisa específica, ou "um projeto". É na forma de um pedido de recursos que se faz a maior parte do "planejamento", ou pelo menos se escreve cui­dadosamente sobre ele. Embora esta seja a prática usual, penso que é muito ru im: está fadada em algum grau a ser publicidade de vendedor e, dadas as expectativas prevalecentes, resul tará muito provavelmente em pretensões meticulosas; é provável que o projeto seja "apresentado" de uma maneira arbitrariamente "arredondada" muito antes do que deveria; é muitas vezes algo maquinado, destinado a obter o dinheiro para propósi tos velados, por valiosos que sejam, bem como para a pesquisa apresentada. U m cientista social praticante deveria rever periodicamente "o estado de meus problemas e planos". U m jovem, desde o início de seu trabalho independente, deve refletir sobre isso, mas não se pode esperar - e ele p rópr io não deveria fazê-lo - que vá muito longe com nenhum plano único, e decerto não deveria ficar r ig i ­damente comprometido com ele. Quase tudo o que pode fazer é organizar sua tese, que infelizmente é muitas vezes seu primeiro trabalho de alguma extensão supostamente independente. É quando você está mais ou menos na metade do tempo de que dispõe para o trabalho, ou já fez cerca de um terço, que esse tipo de revisão tem maior probabilidade de ser frutífero - e talvez até de interesse para outros.

Qualquer cientista social ativo que já avançou bastante em seu caminho deve ter tantos planos, isto é, idéias, que a questão é sempre: com qual deles vou, ou devo, trabalhar em seguida? E deveria manter um pequeno arquivo especial para sua agenda principal, que escreve e reescreve apenas para si mesmo e talvez para discutir com amigos. De tempos em tempos, deve rever isso de maneira muito cuidadosa e determinada, e por vezes, t a m b é m , quando está relaxado.

Esse tipo de procedimento é um dos meios indispensáveis pelo qual seu empreendimento intelectual é mantido orientado e sob controle. Um intercâmbio corrente, informal, dessas revisões

Sobre o artesanato intelectual 25

do "estado de meus problemas" entre cientistas sociais ativos é, eu uri lo, a única base para uma descrição adequada dos "principais

I >i (>Mcmas da ciência social". É improvável que em qualquer comuni­dade intelectual livre haja, e certamente não deveria haver, nenhuma ••posição "monolít ica" de problemas. Numa comunidade assim, i aso ela estivesse florescendo de maneira vigorosa, haveria inter-lúdios de discussão entre indivíduos sobre o trabalho futuro. Três t ipos de interlúdios - sobre problemas, métodos, teorias - deveriam i Imitar do trabalho de cientistas sociais, e conduzir a ele novamente; deveriam ser moldados por trabalho em andamento e, em alguma medida, guiar esse trabalho. É para interlúdios como esses que uma associação profissional encontra sua razão intelectual de ser. E é para eles t ambém que seu própr io arquivo é necessário.

Sob vários tópicos em seu arquivo há idéias, anotações pessoais, excertos de livros, itens bibliográficos e esboços de projetos. Isto é, suponho, uma questão de hábi to arbitrário, mas penso que você julgará conveniente classificar todos esses itens num arquivo pr in­cipal de "projetos", com muitas subdivisões. Os tópicos mudam, é claro, por vezes com grande freqüência. Por exemplo, como u m estudante que se prepara para o exame de qualificação escreve uma tese e, ao mesmo tempo, faz alguns trabalhos de f im de curso, seus arquivos serão arranjados nessas três áreas de esforço. Mas, após um ou dois anos de pós-graduação, você começará a reorganizar todo o arquivo em relação ao projeto principal de sua tese. Depois, à medida que desenvolver seu trabalho, notará que nenhum projeto único jamais o domina, ou estabelece as categorias principais em que ele é arranjado. De fato, o uso do arquivo estimula a expansão das categorias que você usa em seu raciocínio. E o modo como essas categorias mudam, algumas sendo abandonadas e outras sendo acrescentadas, é um indicador de seu progresso e amplitu­de intelectual. Finalmente, os arquivos passarão a ser arranjados segundo vários grandes projetos, tendo muitos subprojetos que mudam de ano para ano.

Page 13: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

Tudo isto envolve a tomada de notas. Você terá de adquirir o hábito de tomar u m grande volume de notas de qualquer livro de valor que leia - embora, devo dizer, talvez seja inspirado a um trabalho melhor quando lê livros realmente ruins. O primeiro passo na t radução de experiências, seja da escrita de outra pessoa ou de sua própria vida, para a esfera intelectual é dar-lhe forma. A mera nomeação de u m item de experiência muitas vezes o convida a ex­plicá-lo; a mera anotação feita a partir de um livro é muitas vezes um estímulo à reflexão. Ao mesmo tempo, é claro, fazer uma anotação é de grande ajuda para sua compreensão do que está lendo.

Suas anotações podem vir a ser, como as minhas, de dois tipos: ao ler certos livros muito importantes, você tenta apreender a estrutura da argumentação do autor, e toma notas de acordo com isso; com maior freqüência, po rém, e depois de alguns anos de trabalho independente, em vez de ler livros inteiros, você lê muitas vezes partes de muitos livros do ponto de vista de algum tema ou tópico particular em que está interessado e com relação ao qual tem planos em seu arquivo. Portanto, tomará notas que não representam propriamente os livros que lê. Estará usando tal idéia particular, tal fato particular, para a realização de seus própr ios projetos.

Como esse arquivo - que até agora você deve achar mais parecido com uma curiosa espécie de diário "literário" - é usado na produção intelectual? A manu tenção de u m arquivo assim é p rodução inte­lectual. É u m repertór io sempre crescente de fatos e idéias, desde os mais vagos aos mais acabados. Por exemplo, a primeira coisa que fiz após decidir iniciar u m estudo sobre a elite foi elaborar um esquema tosco baseado numa lista de tipos de pessoas que eu queria compreender.

Exatamente como e por que eu decidi fazer esse estudo pode sugerir uma maneira pela qual nossas experiências de vida alimen­tam nosso trabalho intelectual. N ã o me lembro quando passei a me interessar tecnicamente por "estratificação", mas creio que deve

Sobre o artesanato intelectual

ter sido ao ler Veblen pela primeira vez. Ele sempre me parecera muito impreciso, até vago, acerca de sua utilização dos termos "comercial" e "industrial", que são uma espécie de t radução de Marx para o público acadêmico americano. De todo modo, escrevi um livro sobre organizações trabalhistas e líderes trabalhistas - um empreendimento politicamente motivado; depois u m livro sobre as classes médias - , um empreendimento motivado principalmen­te pelo desejo de expressar minha própr ia experiência na cidade de Nova York desde 1945. Logo a seguir, amigos sugeriram que eu completasse uma trilogia escrevendo u m livro sobre as classes superiores. Creio que a possibilidade estivera em minha mente; eu havia lido Balzac de maneira esporádica, especialmente durante os anos 1940, e ficara muito seduzido pela tarefa que ele se atri­buíra de "cobrir" todas as classes e tipos principais da sociedade de sua época. Eu t a m b é m havia escrito u m artigo sobre "A elite comercial" e colhido e organizado estatísticas sobre as carreiras dos homens mais eminentes na política norte-americana desde a Const i tuição. Estas duas tarefas foram inspiradas principalmente por um seminár io sobre história americana.

Ao redigir esses vários artigos e livros e preparar cursos sobre estratificação, houve, é claro, u m resíduo de idéias e fatos a respeito das classes superiores. Especialmente no estudo da estratificação social, é difícil evitar ir além do nosso assunto imediato, porque "a realidade" de qualquer um dos estratos consiste em grande parte em suas relações com os outros. Assim, comecei a pensar em um livro sobre a elite.

No entanto, não foi "realmente" assim que "o projeto" surgiu; o que realmente aconteceu foi (1) que a idéia e o plano saíram de meus arquivos, pois comigo todos os projetos começam e terminam com eles, e livros são simplesmente resultados organizados a partir do trabalho cont ínuo que os integra; (2) que após algum tempo, todo o conjunto de problemas envolvidos passou a me dominar.

Após fazer meu esquema tosco, examinei todo o meu arquivo, não apenas aquelas partes que obviamente t inham relação com

Page 14: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

28 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

meu tópico, mas t ambém as que pareciam não ter absolutamen­te nenhuma relevância. Muitas vezes conseguimos estimular a imaginação reunindo itens antes isolados, encontrando conexões insuspeitadas. Fiz novas unidades no arquivo para esse âmbi to particular de problemas, o que, é claro, levou a novos arranjos de outras partes do arquivo.

Ao rearranjar um sistema de arquivamento, você muitas vezes descobre que está, por assim dizer, alargando sua imaginação. Aparentemente isso ocorre por meio de sua tentativa de combi­nar várias idéias e notas sobre diferentes tópicos. É uma espécie de lógica de combinação, e o "acaso" por vezes desempenha um papel curiosamente grande nela. De uma maneira relaxada, você tenta enredar seus recursos intelectuais, como exemplificados no arquivo, com os novos temas.

No presente caso, comecei t ambém a usar minhas observações e experiências diárias. Pensei primeiro em minhas experiências anteriores relacionadas a problemas da elite, depois fui conversar com aqueles que, a meu ver, podiam ter experimentado ou con­siderado tais questões. De fato, comecei nessa altura a alterar o caráter de minha rotina de maneira a incluir nela (1) pessoas que estavam entre aqueles que eu queria estudar, (2) pessoas em estreito contato com eles e (3) pessoas usualmente interessadas neles de alguma maneira profissional.

Não sei quais são as plenas condições sociais para a melhor produção intelectual, mas certamente cercar-se de u m círculo de pessoas dispostas a ouvir e falar - e por vezes elas terão de ser per­sonagens imaginários - é uma delas. De qualquer modo, tento me cercar de todo o ambiente pertinente - social e intelectual - que suponho ser capaz de me levar a pensar bem ao longo das linhas de meu trabalho. Esse é um sentido das observações que fiz acima sobre a fusão de vida pessoal e intelectual.

Um bom trabalho em ciência social hoje não é, e usualmente n.io p< »de ser, composto de uma "pesquisa" empírica bem delineada. Ele se lonipoe antes de um grande n ú m e r o de estudos que, em

Sobre o artesanato intelectual 29

pontos-chave, ancoram afirmações sobre a forma e a direção do assunto. Assim a decisão - quais são esses pontos de ancoragem? -nâo pode ser tomada até que os materiais existentes sejam retra-lulhados e formulações hipotéticas gerais construídas.

Ora, entre os "materiais existentes" encontro nos arquivos três tipos relevantes para meu estudo da elite: várias teorias que tém a ver com o tópico; materiais já trabalhados por outros como evidências para aquelas teorias; e materiais já reunidos e em d i ­versos estágios de centralização acessível, mas ainda não tornados teoricamente pertinentes. Somente após concluir um primeiro rascunho de uma teoria com a ajuda de materiais existentes como esses é que posso situar eficientemente minhas própr ias afirma­ções e palpites principais e projetar pesquisas para testá-los - e talvez não tenha de fazê-lo, embora saiba, é claro, que terei mais tarde de me mover oscilando entre materiais existentes e minha própria pesquisa. Qualquer formulação final deve não somente "cobrir os dados" até onde eles estão disponíveis e são do meu conhecimento, como t a m b é m , de alguma maneira, positiva ou negativamente, levar em conta as teorias disponíveis. Por vezes é fácil "levar em conta" uma idéia mediante sua simples confrontação com um fato que a subverte ou apoia; por vezes uma análise ou delimitação detalhada é necessária. Por vezes posso sistematica­mente organizar as teorias disponíveis, como uma série de escolhas, e assim permitir a seu âmbi to organizar o p róp r io problema. 1

Por vezes, po rém, só permito que tais teorias venham à baila em meu p róp r io arranjo, em contextos muito diferentes. De todo modo, no livro sobre a elite tive de levar em conta o trabalho de homens como Mosca, Schumpeter, Veblen, Marx, Lasswell, Michels, Weber e Pareto.

1 Ver, por exemplo, C.W. Mills, White Collar, Nova York, Oxford University Press, 1951, Capítulo 13. Fiz o mesmo tipo de coisa, em minhas notas, com Lederer e Gasset vs. "teóricos da elite" como duas reações à doutrina democrática dos séculos XVIII e XIX.

Page 15: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

30 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

Examinando algumas das notas sobre esses autores, constato

que elas oferecem três tipos de formulações: (a) a partir de algu­

mas, aprendemos diretamente, repetindo sistematicamente o que

o autor diz sobre certos pontos ou sobre um todo; (b) há algumas

que aceitamos ou refutamos, dando razões e argumentos; (c) há

outras que usamos como uma fonte de sugestões para nossas pró­

prias elaborações e projetos. Isso envolve apreender um ponto e em

seguida perguntar: como posso pôr isso numa forma passível de

teste e como posso testá-lo? Como posso usar isso como um centro a

partir do qual me estender - como uma perspectiva da qual detalhes

descritivos emergem como pertinentes? É nessa manipulação de

idéias existentes, é claro, que nos sentimos em continuidade com

trabalhos anteriores. Aqui estão dois excertos de notas preliminares

sobre Mosca, que podem ilustrar o que tentei descrever:

Além de suas anedotas históricas, Mosca apoia sua tese com esta

asserção: é o poder de organização que permite à minoria sempre

prevalecer. Há minorias organizadas e elas governam coisas e homens.

Há maiorias desorganizadas e elas são governadas.2 Mas: por que não

considerar também (1) a minoria organizada, (2) a maioria organizada,

(3) a minoria desorganizada, (4) a maioria desorganizada? Isto merece

exploração completa. A primeira coisa que deve ser elucidada: qual é

exatamente o sentido de "organizada"? Penso que Mosca quer dizer:

capaz de políticas e ações mais ou menos contínuas e coordenadas. Nesse

caso, sua tese está correta por definição. Ele diria também, acredito, que

uma "maioria organizada" é impossível porque isso significaria apenas

que novos líderes, novas elites, estariam no comando dessas organizações

majoritárias, e ele imediatamente recolheria esses líderes em sua "Classe

Dominante". Ele as chama de "minorias dirigentes", e tudo isso é material

bastante superficial comparado à sua grande formulação.

1 Há também afirmações em Mosca sobre leis psicológicas que supostamente apoiam seu ponto de vista. Observe seu uso da palavra "natural". Mas isto não é c entrai e, ademais, não merece ser considerado.

Sobre o artesanato intelectual 31

Algo que me ocorre (penso que é o cerne dos problemas de definição

que Mosca nos apresenta) é isto: entre o século XIX e o século XX,

testemunhamos uma mudança de uma sociedade organizada como 1

e 4 para uma sociedade estabelecida mais em termos de 3 e 2. Passamos

de um Estado de elite para um Estado de organização, em que a elite

não é mais tão organizada nem tão unilateralmente poderosa, e a massa

é mais organizada e mais poderosa. Algum poder foi criado nas ruas, e

em torno dele giraram todas as estruturas sociais e suas "elites". E que

seção da classe dominante é mais organizada que o bloco ruralista?

Esta não é uma pergunta retórica: posso respondê-la de uma e de outra

maneira neste momento; é uma questão de grau. Tudo o que desejo

agora é colocar a questão.

Mosca defende uma idéia que me parece excelente e merecedora de

desenvolvimento: segundo ele, há freqüentemente na "classe dominante"

uma clique mais elevada e há esse segundo estrato, mais amplo, com

o qual (a) o topo está em contato contínuo e imediato, e com o qual

(b) partilha idéias e sentimentos, e portanto, acredita ele, planos de

ação (p.430). Verificar se em alguma outra parte do livro ele estabelece

outros pontos de conexão. É a clique recrutada em grande parte a partir

do segundo nível? É o topo, de alguma maneira, responsável por esse

segundo estrato, ou pelo menos sensível a ele?

Agora esqueçamos Mosca: em outro vocabulário, temos, (a) a elite, a

que nos referimos aqui como essa clique mais elevada, (b) os que contam

e (c) todos os outros. O pertencimento ao segundo e ao terceiro grupo,

neste esquema, é definido pelo primeiro.^ o segundo pode ser bastante

variado em seu tamanho, composição e relações com o primeiro e o

terceiro. (Qual é, aliás, a extensão das variações das relações de (b) com

(a) e com (c)? Examinar Mosca em busca de indicações, e desenvolver

isto considerando-o sistematicamente.)

Este esquema pode me permitir levar em conta de maneira mais

ordenada as diferentes elites, que são elites de acordo com as várias

dimensões da estratificação. Também, é claro, captar de uma maneira

nítida e significativa a distinção paretiana entre elites governantes e não-

governantes, de uma maneira menos formal que Pareto. Certamente

Page 16: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

muitas pessoas do status mais alto estariam pelo menos no segundo.

Esse seria o caso dos muito ricos. A Clique ou A Elite se referiria a poder,

ou a autoridade, segundo o caso. A elite neste vocabulário significaria

sempre a elite do poder. As outras pessoas do estrato superior seriam

as classes superiores ou os círculos superiores.

Assim, de certa maneira, talvez, possamos usar isto em conexão com

dois problemas principais: a estrutura da elite; e as relações conceituais -

mais tarde, talvez, as relações substantivas - entre estratificação e teorias

da elite. (Desenvolver isto.)

Do ponto de vista do poder, é mais fácil distinguir aqueles que

contam daqueles que governam. Quando tentamos fazer a primeira

coisa, escolhemos os níveis mais elevados como uma espécie de

agregado frouxo e somos guiados por posição. Mas quando tentamos

a segunda, devemos indicar clara e detalhadamente como eles exercem

poder e como exatamente se relacionam com as instrumentalidades

sociais através das quais o poder é exercido. Lidamos t ambém mais

com pessoas que com posições, ou pelo menos temos de levar pessoas

em conta.

Ora, o poder nos Estados Unidos envolve mais do que uma elite.

Como podemos julgar as posições relativas dessas várias elites? Isso

depende do ponto em debate e das decisões tomadas. Uma elite vê outra

como constituída por aqueles que contam. Há reconhecimento m ú t u o

entre a elite de que outras elites contam; de uma maneira ou de outra

elas são pessoas importantes umas para as outras. Projeto: escolher três

ou quatro decisões-chave da última década - lançar a bomba atômica,

reduzir ou aumentar a produção de aço, a greve da G.M. de 1945 - e

desvendar em detalhe o pessoal envolvido em cada uma delas. Poderia

usar "decisões" e tomada de decisões como pretextos para entrevistas

quando sair para as [pesquisas] intensivas.

Chega um momento no curso do seu trabalho em que você não quer mais saber de outros livros. Tudo que queria deles está registrado em suas notas e resumos; e nas margens dessas notas, bem como, num arquivo separado, estão idéias para estudos empíricos.

Sobre o artesanato intelectual 33

Ora, não gosto de fazer trabalho empír ico a menos que isso seja inevitável. Quando não se tem uma equipe de assistentes, é muito trabalhoso; quando se emprega uma equipe, esta muitas vezes dá ainda mais trabalho.

Na condição intelectual das ciências sociais hoje, há tanto a fazer em matér ia de "es t ru turação" inicial (deixemos que a pa­lavra represente o tipo de trabalho que estou descrevendo) que muita "pesquisa empír ica" está fadada a ser rala e desinteressante. Cirande parte dela, de fato, é um exercício formal para estudantes iniciantes, e por vezes uma atividade útil para aqueles que não são capazes de lidar com os problemas substantivos mais difíceis da ciência social. Não há mais virtude na investigação empírica que na leitura. O objetivo da investigação empírica é d i r imi r discor­dâncias e dúvidas acerca de fatos, e assim tornar discussões mais frutíferas ao basear todos os lados de maneira mais substantiva. Fatos disciplinam a razão; mas a razão é vanguarda em qualquer campo do saber.

Embora você nunca vá conseguir obter o dinheiro para fazer muitos dos estudos empíricos que planeja, é necessário que con­tinue a planejá-los. Porque depois que você planeja u m estudo empírico, mesmo que não o realize por completo, ele o leva a uma nova busca por dados, que muitas vezes resulta uma insuspeitada relevância para seus problemas. Assim como é tolice projetar um estudo de campo se for possível encontrar a resposta numa biblio­teca, é tolice pensar que esgotamos os livros antes que os tenhamos traduzido em estudos empíricos apropriados, o que significa, sim­plesmente, em questões de fato.

Os projetos empíricos necessários para meu tipo de trabalho devem prometer, em primeiro lugar, relevância para o esboço inicial, sobre o qual escrevi acima; eles têm de confirmá-lo em sua forma original ou provocar sua modificação. Ou, para expressar isto de maneira mais pretensiosa, devem ter implicações para constru­ções teóricas. Em segundo lugar, os projetos devem ser eficientes e bem-feitos e, se possível, engenhosos. Quero dizer com isto que

Page 17: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

devem prometer produzir uma grande quantidade de material em comparação ao tempo e ao esforço que envolvem.

Mas como isso deve ser feito? A maneira mais econômica de formular u m problema é fazê-lo de forma a resolvê-lo tanto quanto possível unicamente por raciocínio. Mediante raciocínio nós tentamos (a) isolar cada questão que de fato resta; (b) fazer essas perguntas de modo que as respostas prometam nos ajudar a resolver mais problemas por meio de mais raciocínio. 3

Para considerar problemas desta maneira, você tem de prestar atenção a quatro estágios; mas geralmente é melhor passar por todos os quatro muitas vezes do que ficar preso em qualquer u m deles por tempo demais. Os passos são: (1) os elementos e definições que, com base em sua percepção geral do tópico, questão, ou área de interesse, você pensa que terá de levar em conta; (2) as relações lógicas entre essas definições e elementos; a const rução desses pequenos modelos preliminares, diga-se de passagem, fornece a melhor oportunidade para o exercício da imaginação sociológica;

(3) a eliminação de idéias falsas devido a omissões de elementos necessários, a definições de termos imprópr ias ou obscuras, ou a ênfase indevida em alguma parte da série e suas extensões lógicas; (4) formulação e reformulação das questões que de fato restam.

O terceiro passo, aliás, é uma parte muito necessária, mas freqüentemente negligenciada de qualquer formulação adequada

3 Talvez eu deva dizer as mesmas coisas numa linguagem mais pretensiosa, a fim de tornar evidente para os que não sabem como tudo isto pode ser importante, a saber: Situações problemáticas têm de ser formuladas com a devida atenção a suas implicações teóricas e conceituais, e também aos paradigmas apropriados de pesquisa empírica e modelos adequados de verificação. Esses paradigmas e modelos, por sua vez, devem ser construídos de maneira a permitir que mais implicações teóricas e conceituais sejam extraídas de seu emprego. As implicações teóricas e conceituais de implicações conceituais deveriam ser primeiro inteiramente exploradas. Isso requer que o cientista social especifique cada uma dessas implicações e as considere em relação a cada uma das outras, mas também de tal maneira que ela se ajuste ao paradigma de pesquisa empírica e aos modelos de verificação.

Sobre o artesanato intelectual

de um problema. A consciência popular do problema - o problema como uma questão e como uma dificuldade - deve ser cuidado­samente levada em conta: ela é parte do problema. Formulações eruditas, é claro, devem ser examinadas com especial atenção e/ou esgotadas na reformulação que está sendo feita, ou rejeitadas.

Antes de decidir quanto aos estudos empíricos necessários para o trabalho prestes a se realizar, começo a esboçar u m projeto mais amplo dentro do qual vários estudos de pequena escala começam a surgir. Novamente, seleciono um trecho dos arquivos:

Ainda não estou em condições de estudar os círculos superiores como

um todo de uma maneira sistemática e empírica. O que faço então é

expor algumas definições e procedimentos que formam uma espécie

de projeto ideal para um estudo como esse. Em seguida posso tentar,

primeiro, colher materiais existentes que se aproximam desse projeto;

segundo, pensar em maneiras convenientes de colher materiais, dados

os índices existentes, que o satisfaçam em pontos decisivos; e terceiro,

à medida que avanço, tornar mais específicas as pesquisas empíricas

completas que seriam afinal necessárias.

Os círculos superiores deveriam, é claro, ser definidos em termos

de variáveis específicas. Formalmente - esse é mais ou menos o modo de

Pareto - eles são as pessoas que "têm" a maior parte de tudo que está

disponível de qualquer valor ou conjunto de valores dado. Tenho portanto

de tomar duas decisões: que variáveis devo tomar como critérios, e o que

entendo por "a maior parte"? Depois que tiver decidido quanto às minhas

variáveis, devo construir os melhores indicadores que puder, se possível

indicadores quantificáveis, para distribuir a população em termos deles;

somente então posso começar a decidir o que entendo por "a maior parte".

Pois isso deveria, em parte, ser deixado para determinação mediante

inspeção empírica das várias distribuições, e suas superposições.

Minhas variáveis-chave deveriam, de início, ser gerais o bastante

para me dar alguma amplitude na escolha de indicadores, mas específicas

o bastante para incitar a busca por indicadores empíricos. À medida que

Page 18: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

prossigo, terei de ir e vir entre concepções e indicadores, guiado pelo

desejo de não perder significados pretendidos, sendo porém bastante

específico com relação a eles. Aqui estão as quatro variáveis weberianas

com que começarei:

I . Classe refere-se a fontes e montantes de renda. Assim, precisarei

de distribuições de propriedade e de renda. O material ideal aqui (que é

muito escasso, e infelizmente desatualizado) é uma tabulação cruzada de

fonte e montante de renda anual. Assim, sabemos que X % da população

recebeu durante 1936 Y milhões oumais.eque Z% de todo esse dinheiro

era de bens imóveis, W % de dividendos, Q% de proventos e salários. Ao

longo dessa dimensão de classe, posso definir os círculos superiores - os

que têm a maior parte - ou como aqueles que recebem certos montantes

de renda durante um dado tempo - ou como aqueles que compõem os

2% mais elevados da pirâmide de renda. Examinar registros do Tesouro

e listas de grandes contribuintes do imposto de renda. Ver se as tabelas

do T N E O sobre fontes e montante de rendas podem ser atualizadas.

//. Status refere-se aos graus de deferência recebidos. Para isto, não

há indicadores simples ou quantificáveis. Os indicadores existentes

exigem entrevistas pessoais para sua aplicação, estão limitados até

agora a estudos de comunidades locais e, de qualquer maneira, não são

bons. Há o problema adicional de que, diferentemente de classe, status

envolve relações sociais: há pelo menos alguém para receber e alguém

para prestar a deferência.

É fácil confundir publicidade com deferência - ou melhor, ainda não

sabemos se o volume de publicidade deveria ou não ser usado como um

indicador da posição de status, embora seja o mais facilmente disponível.

(Por exemplo: em um ou dois dias sucessivos de meados de março de 1952,

as seguintes categorias de pessoas foram nominalmente mencionadas no

New York Times - ou em páginas selecionadas - desenvolver isto.)

' Temporary National Economic Committee: comitê conjunto do Poder I w Utivo e do Congresso norte-americanos que funcionou entre 1938 e 1941 pau estudar os monopólios e a concentração de poder econômico, bem como l.i/ci us omcndaçòes para legislação sobre o assunto. (N.O.)

Sobre o artesanato intelectual 37

III. Poder refere-se à realização da vontade de alguém, mesmo que

outros resistam. Como status, isso não foi bem indexado. Não creio

que possa mantê-lo como uma dimensão única, mas terei de falar (a)

de autoridade formal - definida por direitos e poderes de cargos em

várias instituições, especialmente militares, políticas e econômicas.

E (b) poderes cujo exercício é informalmente reconhecido, mas que

não estão formalmente insti tuídos - líderes de grupos de pressão,

propagandistas com amplos meios de comunicação à sua disposição, e

assim por diante.

IV. Ocupação refere-se a atividades remuneradas. Aqui, novamente,

devo escolher exatamente que característica da ocupação eu deveria

considerar, (a) Se eu usar as rendas médias de várias ocupações para

ordená-las, estarei evidentemente usando a ocupação como um índice

e como a base da classe. De maneira semelhante (b) se usar o status ou

o poder tipicamente associados a diferentes ocupações, estarei então

usando ocupações como indicadores e bases de poder, habilidade ou

talento. Mas essa não é, de forma alguma, uma maneira fácil de classificar

as pessoas. A habilidade - não mais que o status - não é algo homogêneo

do qual há uma quantidade maior ou menor. Tentativas de tratá-la dessa

maneira têm sido usualmente expressas em termos do tempo necessário

para a aquisição de várias habilidades, e talvez tenhamos de nos contentar

com isso, embora eu espere conseguir pensar em algo melhor.

Estes são os tipos de problema que terei de resolver para definir

analítica e empiricamente os círculos superiores, em termos dessas

quatro variáveis-chave. Para fins de planejamento, suponhamos que

as tenha resolvido de maneira satisfatória e que tenha distribuído a

população em termos de cada uma delas. Eu teria então quatro conjuntos

de pessoas: aquelas no ponto mais alto em classe, status, poder e

habilidade. Suponhamos ademais que distingui os 2% mais elevados de

cada distribuição como um círculo superior. Defronto-me então com

esta questão passível de resposta empírica: quanta superposição, se é

que há alguma, existe entre cada uma dessas quatro distribuições? Uma

gama de possibilidades pode ser situada dentro deste simples diagrama:

(+ = 2% mais elevados; - = 98% mais baixos).

Page 19: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

classe

+ status status

1 + 1 B B B poder

+ habilidade 1 2 3 4

poder

+ habilidade

B I 5 6 7 8 poder

- habilidade + 9 10 11 12

- habilidade - 13 14 15 16

Este diagrama, se eu tivesse os materiais para preenchê-lo, conteria

dados fundamentais e muitos problemas importantes para um estudo

dos círculos superiores. Forneceria chaves para muitas questões de

definição e substantivas.

Não tenho os dados, e não serei capaz de obtê-los - o que torna

ainda mais importante que eu especule sobre eles, pois no curso de

semelhante reflexão, se ela for guiada pelo desejo de me aproximar das

exigências empíricas de um projeto ideal, encontrarei áreas importantes,

em que talvez seja capaz de colher materiais pertinentes como pontos

de ancoragem e guias para reflexão posterior.

Há dois pontos adicionais que devo acrescentar a este modelo

geral para torná-lo formalmente acabado. Concepções completas de

estratos superiores requerem atenção a duração e mobilidade. A tarefa

aqui é determinar posições (1-16) entre as quais há típico movimento

de indivíduos e grupos - dentro da geração presente e entre as últimas

duas ou três gerações.

Isto introduz a dimensão temporal de biografia (ou trajetórias de

carreira) e de história no esquema. Estas não são meramente questões

empíricas adicionais: são também pertinentes no tocante a definições.

Pois (a) queremos deixar em aberto se, ao classificar pessoas em termos

de qualquer uma das quatro variáveis-chave, devemos ou não definir

nossas categorias em termos do tempo pelo qual elas, ou suas famílias,

ocuparam a posição em questão. Por exemplo, eu poderia querer decidir

que os 2% superiores de status - ou pelo menos que um tipo importante

Sobre o artesanato intelectual 39

de nível de status - consiste naqueles que estão nessa posição há pelo

menos duas gerações. Também (b) quero deixar em aberto a questão de se

eu deveria ou não construir "um estrato" não somente em termos de uma

interseção de diversas variáveis, mas também, em conformidade com

a negligenciada definição de "classe social" de Weber, como composto

por aquelas posições entre as quais há "mobilidade típica e fácil". Assim,

as ocupações inferiores de colarinho-branco5 e os empregos médios e

superiores dos trabalhadores assalariados em certas indústrias parecem

formar um estrato nesse sentido.

No curso da leitura e análise das teorias de outros, proje­tando a pesquisa ideal e examinando atentamente os arquivos, você começará a redigir uma lista de estudos específicos. Alguns deles são grandes demais, difíceis de manejar, e acabarão por ser pesarosamente abandonados; alguns te rminarão como materiais para um parágrafo, uma seção, uma frase, um capítulo; alguns se tornarão temas que permearão u m livro inteiro. Aqui estão mais uma vez as notas iniciais para vários desses projetos:

(1) Uma análise do gerenciamento do tempo de um típico dia de trabalho

de dez executivos de alto nível de grandes corporações, e o mesmo para

dez administradores federais. Essas observações serão combinadas com

entrevistas detalhadas de "história de vida". O objetivo aqui é descrever as

principais rotinas e decisões, pelo menos em parte em termos do tempo

dedicado a elas, e obter uma compreensão dos fatores relevantes para

as decisões tomadas. O procedimento variará naturalmente segundo o

grau de cooperação obtido, mas idealmente envolverá, primeiro, uma

entrevista em que a história de vida e a situação atual do indivíduo são

elucidadas; segundo, observações do dia, sentando-nos realmente num

canto do escritório do entrevistado, e acompanhado-o de um lado para

outro; terceiro, uma entrevista mais prolongada naquela noite ou no dia

5 No original, "white-collarpeople", que pode ser aproximadamente traduzido por "trabalhadores assalariados de classe média". (N.O.)

Page 20: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

seguinte em que examinamos todo o dia e investigamos os processos

subjetivos envolvidos no comportamento externo que observamos.

(2) Uma análise de fins de semana da classe mais alta, em que as

rotinas são atentamente observadas e acompanhadas por entrevistas

investigativas com o indivíduo e outros membros de sua família na

segunda-feira seguinte.

Para ambas as tarefas, tenho contatos bastante bons e, é claro, bons

contatos, se adequadamente tratados, levam a contatos ainda melhores.

[Acrescentado em 1957: isto se revelou uma ilusão.]

(3) Um estudo das verbas de representação e outros privilégios que,

juntamente com salários e outros rendimentos, formam o padrão e o

estilo de vida dos níveis superiores. A idéia aqui é obter algo concreto

sobre "a burocrat ização do consumo", a transferência de despesas

privadas para contas empresariais.

(4) Atualizar o tipo de informação contido em livros como Américas

Sixty Families, de Lundberg, que diz respeito às declarações do imposto

de renda para 1923.

(5) Colher e sistematizar, a partir de registros do Tesouro e outras

fontes governamentais, a distribuição de vários tipos de propriedade

privada por montantes possuídos.

(6) Um estudo da trajetória de carreira dos presidentes, de todos

os ministros e de todos os membros da Suprema Corte. Já tenho isto

em cartões IBM desde o período constitucional até o segundo mandato

de Truman, mas quero expandir os itens usados e analisar novamente

o material.

Há outros - cerca de 35 - "projetos" deste tipo (por exemplo, comparação das quantias gastas nas eleições presidenciais de 1896 e 1952, comparação detalhada de Morgan de 1910 e Kaiser de 1950,6

e algo concreto sobre as carreiras de "almirantes e generais"). Mas,

6 Provavelmente Mills refere-se a uma comparação entre capitalistas norte-americanos de dois períodos: o banqueiro J.P. Morgan, em 1919, e o industrial Henry J. Kaiser, em 1950. (N.O.)

Sobre o artesanato intelectual 41

à medida que avançamos, temos, é claro, de ajustar nossa meta ao

que é acessível. Depois que esses projetos foram anotados, comecei a ler obras

históricas sobre grupos de cúpula, tomando notas aleatórias (e não arquivadas) e interpretando a leitura. Você não precisa realmente estudar o tópico em que está trabalhando; pois, como disse, de­pois que o escolhe, ele está em toda parte. Você se torna sensível a seus temas; passa a vê-los e ouvi-los sempre em sua experiência, sobretudo, segundo uma impressão que sempre tenho, em áreas aparentemente não relacionadas. Até os meios de comunicação de massa, especialmente filmes ruins, romances baratos, revistas ilustradas e programas noturnos de rádio, revestem-se de uma nova impor tânc ia para você.

Mas, você pode perguntar, como surgem as idéias? Como a ima­ginação é estimulada a reunir todas as imagens e fatos, tornar as imagens pertinentes e emprestar sentido aos fatos? Não creio que possa realmente responder a isto; posso apenas falar sobre as con­dições gerais e algumas técnicas simples que pareceram aumentar minhas chances de produzir alguma coisa.

A imaginação sociológica, quero lhe lembrar, consiste em parte considerável na capacidade de passar de uma perspectiva para outra, e, nesse processo, consolidar uma visão adequada de uma sociedade total e de seus componentes. É essa imaginação, é claro, que distingue o cientista social do mero técnico. Técnicos adequados podem ser instruídos em poucos anos. A imaginação sociológica t a m b é m pode ser cultivada; por certo ela raramente ocorre sem grande quantidade de trabalho, muitas vezes rotineiro. 7

Há no entanto uma qualidade inesperada em relação a ela, talvez porque sua essência seja a combinação de idéias que n inguém supunha que fossem combináveis - digamos, uma mistura de

7 Ver os excelentes artigos de Hutchinson sobre "insight" e "esforço criativo" em Study of Interpersonal Relations, organizado por Patrick Mullahy, Nova York, Nelson, 1949.

Page 21: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

42 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

idéias da filosofia alemã e da economia britânica. Há um estado de espírito lúdico por trás desse tipo de combinação, bem como um esforço verdadeiramente intenso para compreender o mundo, que em geral falta ao técnico como tal. Talvez ele seja bem treinado demais, de maneira precisa demais. Como só se pode ser treinado no que já é sabido, o treinamento por vezes incapacita uma pessoa para aprender novos modos; torna-a rebelde contra o que está fadado a ser de início frouxo e até desleixado. Mas você deve se apegar a essas imagens e noções vagas, se elas forem suas, e deve elaborá-las. Pois é nessas formas que idéias originais quase sempre aparecem pela primeira vez, quando aparecem.

Há maneiras definidas, creio eu, de estimular a imaginação socio­lógica:

1. No nível mais concreto, o rearranjo do arquivo, como já disse, é uma maneira de estimular a imaginação. Você simplesmente junta pastas até então separadas, misturando seus conteúdos, depois os reorganiza. Tente fazer isso de uma maneira mais ou menos rela­xada. A freqüência com que e a extensão em que você rearranja os arquivos dependerão, é claro, dos diferentes problemas e de quão bem eles estão se desenvolvendo. Mas a mecânica do procedimento é simples assim. Você terá em mente, é claro, os vários problemas em que está trabalhando ativamente, mas tentará t a m b é m ser passivamente receptivo a conexões imprevistas e não planejadas.

2. Uma atitude lúdica em relação às expressões e palavras com que várias questões são definidas freqüentemente libera a imaginação. Procure s inônimos para cada um de seus termos-chave em dicioná­rios, bem como em livros técnicos, para conhecer a plena extensão de suas conotações. Este hábito simples o estimulará a elaborar os termos do problema e, em conseqüência, a defini-los com menos palavras e mais precisão. Pois somente se conhecer os vários sentidos que poderiam ser dados a termos ou expressões, você poderá selecio-

Sobre o artesanato intelectual 43

nar os termos exatos com que quer trabalhar. Mas esse interesse pelas palavras vai ainda mais longe. Em todo trabalho, mas especialmente no exame de formulações teóricas, você tentará prestar rigorosa atenção ao nível de generalidade de cada termo-chave, e muitas vezes considerará útil fracionar uma formulação de alto nível em significados mais concretos. Quando isso é feito, a formulação mui­tas vezes se divide em dois ou três componentes, todos situados ao longo de diferentes dimensões. Você tentará t ambém subir no nível de generalidade: eliminar os qualificadores específicos e examinar a formulação ou a inferência reformadas de maneira mais abstrata, para ver se pode estendê-las ou elaborá-las. Assim, a partir de cima e a partir de baixo, você tentará investigar, em busca de significado mais claro, cada aspecto e implicação da idéia.

3. Muitas das noções gerais que você encontra, quando reflete sobre elas, serão dispostas em tipos. Uma nova classificação é o início usual de desenvolvimentos frutíferos. A habilidade para criar tipos e depois procurar as condições e conseqüências de cada tipo irá, em suma, tornar-se u m procedimento automát ico para você. Em vez de contentar-se com classificações existentes, em particular aquelas de senso comum, você procurará por seus denominadores comuns e por fatores diferenciadores dentro delas e entre elas. Bons tipos requerem que os critérios de classificação sejam explícitos e sistemáticos. Para torná-los assim você precisa desenvolver o hábito da classificação cruzada.8

A técnica da classificação cruzada não é, evidentemente, limita­da a materiais quantitativos; de fato, é a melhor maneira de imaginar e encontrar novos tipos, bem como para criticar e elucidar antigos. Gráficos, tabelas e diagramas de tipo qualitativo não são apenas maneiras de expor o trabalho já feito; são muitas vezes instrumentos genuínos de produção. Eles elucidam as "dimensões" dos tipos, que

8 Toda classificação que considera pelo menos dois atributos ao mesmo tempo. (N.O.)

Page 22: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

44 Sobre o artesanato Intelectual e outros ensaios

t ambém o ajudam a imaginar e construir. 1 )c lato, nos últimos 15 anos, não acredito que tenha escrito mais de uma dúzia de páginas de um rascunho sem um pouco de classificação cruzada - embora, é claro, nem sempre e nem mesmo usualmente exiba esses diagra­mas. A maioria deles fracassa por completo, caso em que você ainda aprende alguma coisa. Quando eles funcionam, ajudam-no a pensar mais claramente e a escrever mais explicitamente. Eles lhe permitem descobrir a extensão e as relações completas dos próprios termos com que está pensando e dos fatos com que está lidando.

Para um sociólogo ativo, a classificação cruzada é o mesmo que analisar uma frase para um gramático diligente. De muitas maneiras, a classificação cruzada é a própr ia gramática da imagi­nação sociológica. Como toda gramática, é preciso controlá-la e não permitir que fuja aos seus propósi tos.

4. Muitas vezes você ob tém os melhores insights ao considerar ex­tremos - pensando no oposto daquilo que o interessa diretamente. Se você pensa sobre desespero, pense t ambém sobre entusiasmo; se estuda os avarentos, estude t a m b é m os perdulários. A coisa mais difícil no mundo é estudar um único objeto; quando você tenta contrastar objetos, ob tém uma melhor compreensão deles e pode então discriminar as dimensões em cujos termos as comparações são feitas. Você descobrirá que mover-se em vaivém entre a atenção a essas dimensões e aos tipos concretos é muito esclarecedor. Essa técnica é t a m b é m logicamente segura, pois sem uma amostra, afinal, você pode apenas conjecturar sobre freqüências estatísticas: o que pode fazer é dar a extensão e os tipos principais de algum fe­nômeno , e para isso é mais econômico começar construindo "tipos polares", opostos ao longo de várias dimensões. Isto não significa, é claro, que você não vá se esforçar para adquirir e manter u m senso de proporção - procurar alguma chave para freqüências de tipos dados. Tentamos continuamente, de fato, combinar essa procura com a busca de indicadores para os quais poder íamos encontrar ou coletar estatísticas.

Sobre o artesanato Intelectual 45

A idéia é usar uma variedade de pontos de vista: você per­guntara a si mesmo, por exemplo, como um cientista político que leu recentemente abordaria isso, e como o faria aquele psicólogo experimental, ou aquele historiador? Tentará pensar em termos de uma variedade de pontos de vista e, desse modo, deixar sua mente se transformar n u m prisma móvel que capta luz do maior n ú m e r o de ângulos possível. Neste contexto, escrever diálogos é freqüentemente muito útil.

Muitas vezes você se verá pensando contra alguma coisa, e ao tentar compreender um novo campo intelectual, uma das primeiras coisas que certamente pode fazer é expor os principais argumentos. Um dos significados de "estar imerso na literatura" é ser capaz de localizar os adversários e os amigos de cada ponto de vista dis­ponível. Aliás, não é bom estar imerso demais na literatura; você pode se afogar nela, como Mort imer Adler. Talvez o importante seja saber quando deve e quando não deve ler.

5. O fato de que na classificação cruzada, para efeito de simplici­dade, você trabalha de início em termos de s im-ou-não o estimula a pensar em opostos extremos. Isso em geral é bom, pois a análise qualitativa não pode, evidentemente, lhe fornecer freqüências ou magnitudes. Sua técnica e seu objetivo são lhe dar a escala de tipos. Para muitos fins, você não precisa de mais que isso, embora para alguns, é claro, tenha de alcançar uma idéia mais precisa das proporções envolvidas.

A l iberação da imag inação pode por vezes ser a lcançada mediante a inversão deliberada de seu senso de proporção . 9 Se alguma coisa parece muito pequena, imagine que é simplesmente enorme, e pergunte a si mesmo: que diferença isso poderia fazer? E vice-versa para fenômenos gigantescos. Que aspecto teriam as

9 Parte disto, aliás, é o que Kenneth Burk, ao discutir Nietzsche, chamou de "perspectiva pela incongruência". Não deixe de ver Burke, Permanence and Change, Nova York, New Republic Books, 1936.

Page 23: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

•li) Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

aldeias pré-históricas com populações de 30 milhões? Hoje em dia, pelo menos, eu nunca pensaria em realmente contar ou medir coisa alguma antes de ter jogado com cada u m de seus elemen­tos, condições e conseqüências num mundo imaginár io em que pudesse controlar a escala de tudo. Provavelmente é isto o que os estatísticos querem dizer, embora nunca parecem fazê-lo, com aquela frasezinha horrível sobre "conhecer o universo antes de fazer a amostragem".

6. Seja qual for o problema em que está interessado, você descobrirá que é útil obter uma compreensão comparativa dos materiais. A procura de casos comparáveis, seja numa civilização e num período histórico ou em vários, lhe dá direcionamentos. Você nunca pen­saria em descrever uma instituição nos Estados Unidos no século XX sem tentar ter em mente instituições similares em outros tipos de estruturas e períodos. Isto, mesmo que não faça comparações explícitas. Com o tempo, você passará a orientar sua reflexão his­toricamente de maneira quase automática. Uma razão para isso é que muitas vezes o que está examinando é limitado em número : para obter uma compreensão comparativa do fenômeno, tem de situá-lo numa moldura histórica. Em outras palavras, a abordagem de tipos contrastantes requer muitas vezes o exame de materiais históricos. Isto por vezes resulta em pontos úteis para uma análise de tendências, ou conduz a uma tipologia de fases. Você usará ma­teriais históricos, portanto, em razão do desejo de uma extensão mais completa, ou de uma extensão mais conveniente de algum fenômeno - com o que me refiro a uma extensão que inclua as variações ao longo de algum conjunto conhecido de dimensões. Algum conhecimento da história mundial é indispensável para o sociólogo; sem ele, por mais que saiba outras coisas, estará sim­plesmente incapacitado.

7. Finalmente, há u m ponto que tem mais a ver com o ofício de compor um livro do que com a liberação da imaginação. Mas estas

Sobre o artesanato intelectual 47

duas coisas são muitas vezes uma só: o modo como você arranja os materiais para apresentação sempre afeta o conteúdo de seu trabalho. Aprendi a idéia que tenho em mente de um grande editor, Lambert Davis, que, suponho, depois de ver o que fiz com ela, não a quereria reconhecer como sua filha, p a distinção entre tema e tópico.

U m tópico é u m assunto, como "as carreiras dos executivos de corporações" ou "o poder fortalecido das autoridades militares" ou "o declínio das matriarcas da sociedade". Em geral, a maior parte do que temos a dizer sobre u m tópico pode ser facilmente incluída num capítulo ou numa seção de um capítulo. Mas a ordem em que todos os seus tópicos são arranjados muitas vezes o conduz para a esfera dos temas.

Um tema é uma idéia, em geral de uma tendência notável, uma concepção fundamental, ou uma distinção-chave, como racionali­dade e razão, por exemplo. Ao trabalhar na construção de um livro, quando chega a perceber os dois ou três, ou, conforme o caso, os seis ou sete temas, você saberá que está no controle do trabalho. Reconhecerá esses temas porque eles ficarão insistindo em ser in ­troduzidos em todos os tipos de tópicos, e terá talvez a impressão de que são meras repetições. E por vezes é isso que todos eles são! Certamente muitas vezes serão encontrados nas partes mais obs­curas e confusas, as mais mal escritas, de seu manuscrito.

O que você deve fazer é ordená- los e formulá-los de uma maneira geral, tão clara e brevemente quanto possa. Depois, muito sistematicamente, deve fazer uma classificação cruzada entre eles e a série completa de seus tópicos. Isto quer dizer que você perguntará , a respeito de cada tópico: como ele é afetado por cada u m desses temas? E mais: qual é exatamente o significado, se houver algum, para cada um desses temas de cada um dos tópicos?

Por vezes u m tema requer um capítulo ou uma seção para si, talvez ao ser introduzido pela primeira vez ou talvez numa formu­lação concisa perto do final. Penso que a maioria dos escritores -bem como a maioria dos pensadores sistemáticos - concordaria que, em algum ponto, todos os temas deveriam aparecer juntos,

Page 24: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

48 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

uns relacionados aos outros. Muitas vezes, embora não sempre, é possível fazer isso no início de um livro. Em geral, em qualquer livro bem construído, deve ser feito perto do fim. E, é claro, do início ao fim, você deveria pelo menos tentar relacionar os temas a cada tópico. É mais fácil escrever sobre isto do que fazer, pois em geral não se trata de algo tão mecânico quanto poderia parecer. Mas às vezes é - pelo menos se os temas forem apropriadamente ordenados e elucidados. Mas, é claro, esse é o problema. Pois o que chamei aqui de temas, no contexto do artesanato literário, é chamado de idéias no contexto do trabalho intelectual.

Por vezes, diga-se de passagem, você pode achar que um livro não tem realmente nenhum tema. É apenas uma série de tópicos, cercados, é claro, por int roduções metodológicas à metodologia, e introduções teóricas à teoria. Estas são realmente indispensáveis à escrita de livros por homens sem idéias. Assim como a falta de inteligibilidade.

^ Sei que você concordará que deveria apresentar seu trabalho numa linguagem tão simples e clara quanto seu assunto e seu pensamento sobre ele o permitam. Mas como talvez tenha notado, uma prosa empolada e polissilábica parece prevalecer nas ciências sociais. Suponho que os que a usam acreditam que estão imitando a "ciência física" e não percebem que grande parte dessa prosa não é totalmente necessária. De fato, foi dito, e com razão, que há "uma grave crise na capacidade de ler e escrever" - uma crise com que os cientistas sociais estão muito envolvidos.1" Podemos atribuir essa linguagem peculiar ao fato de que questões, conceitos e métodos

1 0 Por Edmund Wilson, amplamente considerado o "melhor crítico no mundo anglófono", que escreve: "Quanto à minha experiência com artigos de especialistas em antropologia e sociologia, ela me levou a concluir que a exigência, em minha universidade ideal, de ter os trabalhos em todos os departamentos submetidos a um professor de inglês poderia resultar numa revolução dessas matérias - se de fato a segunda delas chegasse a sobreviver." A Piece of My Mind, Nova York, Farrar, Straus and Cudahy, 1956, p. 164.

Sobre o artesanato intelectual

profundos e sutis estão sendo discutidos? Se não, quais são as razões para o que Malcolm Cowley chama apropriadamente de "sociologuês"?" Ele é realmente necessário para seu trabalho? Se for, não há nada que você possa fazer a esse respeito; se não for, como pode evitá-lo?

Essa falta de pronta inteligibilidade, eu acredito, em geral tem pouco ou nada a ver com a complexidade do assunto, e absoluta­mente nada com a profundidade do pensamento. Tem a ver quase inteiramente com certas confusões do escritor acadêmico acerca de seu própr io status.

Hoje, em muitos círculos acadêmicos, qualquer pessoa que tente escrever de uma maneira amplamente inteligível está sujeita a ser condenada como "um mero literato" ou, pior ainda, "um mero jornalista". Talvez você já tenha aprendido que estas expressões, tão comumente usadas, indicam apenas uma inferência espúria: superficial, porque legível. O acadêmico nos Estados Unidos está tentando levar uma vida intelectual séria num contexto social que muitas vezes parece inteiramente contra ela. Seu prestígio deve compensar muitos dos valores dominantes que sacrificou ao escolher uma carreira acadêmica. O prestígio que reivindica fica facilmente ligado à sua auto-imagem como "cientista". Ser chamado de um "mero jornalista" o faz sentir-se indigno e superficial. É essa situação, acredito, que está muitas vezes no fundo do vocabulário rebuscado e da maneira complicada cie falar e escrever. É menos difícil aprender essa maneira que não o fazer. Ela se tornou uma convenção - os que não a usam estão sujeitos a desaprovação moral. Pode ser que ela seja o resultado de um cerramento de fileiras aca­dêmico por parte dos medíocres, que, compreensivelmente, querem excluir aqueles que conquistam a atenção de pessoas inteligentes, acadêmicas ou não.

" Malcolm Cowley,"Sociological Habit Patterns in Linguistic Transmogrifii ation", The Reporter, 20 de set 1956, p.41s.

Page 25: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

Escrever é reivindicar a atenção de leitores. Isso é parte de qualquer estilo. Escrever é t ambém reivindicar para si status suficiente pelo menos para ser lido. O jovem acadêmico está muito envolvido em ambas as reivindicações, e como sente que lhe falta posição pública, muitas vezes põe a reivindicação de seu própr io status na frente da reivindicação da atenção do leitor para o que está dizendo. De fato, nos Estados Unidos, mesmo os mais bem-sucedidos homens de saber não t êm muito status em meio a círculos e públicos amplos. Neste aspecto, a sociologia foi um caso extremo: em grande parte os hábitos sociológicos de estilo originam-se de uma época em que os sociólogos tinham pouco status mesmo junto a outros acadêmicos. Desejo de status é uma razão pela qual acadêmicos escorregam tão facilmente na ininteligibilidade. E esta, por sua vez, é uma das razões por que não têm o status que desejam. U m círculo realmente vicioso -mas que qualquer intelectual pode romper facilmente.

Para superar a prosa acadêmica, temos de superar a pose aca­dêmica. É muito menos importante estudar gramática e radicais anglo-saxões do que elucidar suas próprias respostas a estas três perguntas: 1. Q u ã o difícil e complexo é afinal de contas o meu assunto? 2. Quando escrevo, que status estou reivindicando para mim? 3. Para quem estou tentando escrever?

1. A resposta usual para a primeira pergunta é: não tão difícil e complexo quanto a maneira em que você está escrevendo sobre ele. A prova disso está por toda parte: é revelada pela facilidade com que 95% dos livros de ciência social podem ser traduzidos para o inglês. 1 2

1 2 Para alguns exemplos desse tipo de tradução ver o Capítulo 2 [de The Sociological Imagination, Nova York, Oxford University Press, 1959]. Diga-se de passagem que 0 melhor livro que conheço sobre escrita é de Robert Graves e Alan Hodge, The Reader Over Your Shoulder, Nova York, Macmillan, 1994. Ver também as excelentes discussões de Barzun e Graff, The Modem Researcher, op. cit., G.E. Montague, A Writer's Notes on His Trade, Londres, Pelican Books, 1930-49, e Bonamy Dobrée, Modern Prose Style, Oxford, The Clarendon Press, 1934-50.

Sobre o artesanato intelectual

Mas, você pode perguntar, não precisamos por vezes de termos técnicos? 1 3 Claro que sim, mas "técnico" não significa necessaria­mente difícil, e certamente não significa jargão. Se esses termos técnicos forem realmente necessários, e t a m b é m claros e precisos, não é difícil usá-los num contexto de inglês simples e assim intro­duzi-los de maneira significativa para o leitor.

Você pode objetar que as palavras ordinárias do uso comum estão muitas vezes "carregadas" de sentimentos e valores e que por isso talvez seja melhor evitá-las em favor de novas palavras ou termos técnicos. Aqui está a minha resposta: é verdade que as palavras comuns estão diversas vezes muito carregadas. Mas vários termos técnicos de uso corrente na ciência social estão igualmente carregados. Escrever claramente é controlar essas cargas, dizer exatamente o que queremos de tal modo que esse significado e apenas ele seja compreendido por outros. Suponha que o sentido que você quer transmitir está circunscrito por um círculo de dois metros, no qual você mesmo se coloca; suponha que o sentido compreendido por seu leitor é um outro círculo igual, no qual ele se coloca. O que esperamos é que os círculos se superponham. A extensão dessa superposição é a extensão de sua comunicação. No círculo do leitor, a parte que não se superpõe é uma área de sentido não controlado: ele lhe deu o sentido que quis. Em seu círculo, a parte que não se superpõe é mais um indício de seu fracasso: você não conseguiu transmiti-la. A habilidade de escrever está em fazer o círculo de sentido do leitor coincidir exatamente com o seu,

" Aqueles que entendem de linguagem matemática bem mais que eu dizem que ela é precisa, econômica, clara. É por isso que suspeito tanto de cientistas sociais que invocam o lugar central da matemática entre os métodos do estudo social mas que escrevem prosa de modo impreciso, antieconômico e obscuro. Devem tomar lições com Paul Lazarsfeld, que acredita em matemática, muito de fato, e cuja prosa sempre revela, mesmo nos primeiros rascunhos, as qualidades matemáticas supracitadas. Quando não consigo entender sua matemática, sei que é porque sou muito ignorante; quando não concordo com o que fala em linguagem não-matemática, sei que é porque está errado, porque sempre se sabe o que ele está falando e, portanto, exatamente onde se enganou.

Page 26: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

escrever de tal maneira que ambos se coloquem no mesmo círculo de sentido controlado.

O que quero dizer em primeiro lugar, portanto, é que a maior parte do "sociologuês" não tem nenhuma relação com qualquer complexidade de assunto ou pensamento. É usado - penso que quase inteiramente - para fazer reivindicações acadêmicas para si mesmo; escrever dessa maneira é dizer ao leitor (muitas vezes, estou certo, sem o saber): "Sei alguma coisa que é tão complexa que você só poderá compreendê- la se aprender primeiro minha linguagem. Nesse meio-tempo você é meramente um jornalista, um leigo, ou alguma outra espécie de tipo subdesenvolvido."

2. Para responder à segunda pergunta, devemos distinguir duas maneiras de apresentar o trabalho da ciência social segundo a idéia que o escritor tem de si mesmo e a voz com que ele fala. Uma maneira resulta da idéia de que ele é um homem que pode gritar, sussurrar ou dar risadinhas - mas que está sempre lá. Está claro t a m b é m que tipo de homem ele é: confiante ou neurót ico, direto ou complicado, ele é u m centro de experiência e argumentação; agora ele descobriu alguma coisa, e está nos contando sobre ela, e sobre como a descobriu. Esta é a voz atrás das melhores exposições disponíveis na língua inglesa.

A outra maneira de apresentar u m trabalho não usa nenhuma voz de nenhum homem. Essa escrita não é uma "voz" em absoluto. É um som au tônomo. É uma prosa manufaturada por uma máquina. O mais notável não é que seja cheia de jargão, é que seja fortemente afetada: não é somente impessoal; é pretensiosamente impessoal. Boletins governamentais são por vezes escritos dessa maneira. Cartas comerciais também. E uma boa parte da ciência social. Toda escrita -exceto talvez a de certos estilistas verdadeiramente notáveis - que não seja imaginável como fala humana é má escrita.

3. Mas finalmente há a questão daqueles que devem ouvir a voz -pensar sobre isso t a m b é m leva a características de estilo. É muito

Sobre o artesanato intelectual

importante para todo escritor ter em mente o tipo exato de pessoas para quem está tentando falar - e t a m b é m o que ele realmente pensa delas. Estas não são questões fáceis: respondê-las bem requer decisões sobre si mesmo, bem como conhecimento do público leitor. Escrever é reivindicar ser lido, mas por quem?

Uma resposta foi sugerida por meu colega Lionel Trilling, que me deu permissão para passá-la adiante. Você deve supor que foi convidado para dar uma palestra sobre algum assunto que conhece bem, perante uma audiência de professores e alunos de todos os departamentos de uma importante universidade, bem como para uma variedade de pessoas interessadas de uma cidade próxima. Suponha que tem essa audiência diante de si e que ela tem o direito de ser informada; suponha que quer informá-la. Agora escreva.

Há cerca de quatro possibilidades amplas disponíveis para o cientista social como escritor. Caso ele se reconheça como uma voz e suponha que está falando para um público como o que indiquei, tentará escrever uma prosa legível. Caso admita que é uma voz, mas não esteja plenamente consciente de nenhum público, pode facilmente cair em disparates ininteligíveis. Tal homem deveria tomar cuidado. Caso se considere menos uma voz que o agente de algum som impessoal, então, caso encontre um público, este será mais provavelmente um culto. Se, sem conhecer sua própria voz, não encontrar nenhum público, falando apenas para algum registro que ninguém mantém, acho que temos de admitir que ele é um verdadei­ro fabricante da prosa padronizada: um som a n ô n i m o num grande salão vazio. Tudo isso é bastante apavorante, como num romance de Kafka, e deve ser: estivemos falando sobre o limite da razão.

A linha que separa a profundidade e a verborragia é muitas vezes tênue, até perigosa. Ninguém deveria negar o curioso en­canto daqueles que - como no pequeno poema de Whitman - , ao começar seus estudos, ficam tão satisfeitos e impressionados com o primeiro passo que mal desejam ir mais longe. Por si mesma, a linguagem forma um mundo maravilhoso, mas, enredados nesse mundo, não devemos tomar a confusão de começos com a pro

Page 27: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

54 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

fundidade de resultados acabados. Como membro da comunidade acadêmica, você deveria pensar em si mesmo como representante de uma linguagem verdadeiramente notável, e deveria esperar e exigir de si mesmo, ao falar ou escrever, a tentativa de levar adiante 0 discurso do homem civilizado.

Há um úl t imo ponto, que tem a ver com a ação recíproca de es­crita e pensamento. Se você escreve unicamente com referência ao que Hans Reichenbach chamou de o "contexto da descoberta", será compreendido por poucas pessoas; além disso, tenderá a ser muito subjetivo em suas formulações. Para tornar qualquer coisa que pensa mais objetiva, você tem de trabalhar no contexto da apresentação. A princípio, "apresente" seu pensamento para si mesmo, o que é muitas vezes chamado de "pensar claramente". Depois, quando sentir que o fez corretamente, apresente-o para outros - e muitas vezes descubra que não o tornou claro. Agora você está no "contexto da apresentação". Algumas vezes perceberá que, ao tentar apresentar seu pensamento, você o modifica - não somente em sua forma de expressão, mas muitas vezes t a m b é m em seu conteúdo. Você terá novas idéias à medida que trabalha no contexto da apresentação. Em suma, ele se tornará um novo con­texto da descoberta, diferente do original, num nível mais elevado, acredito, porque mais socialmente objetivo. Aqui, outra vez, você não pode divorciar o que pensa de como escreve. Tem de se mover para trás e para a frente entre esses dois contextos, e sempre que se move convém que saiba para aonde pode estar indo.

A partir do que eu disse você compreenderá que, na prática, nunca "começa a trabalhar num projeto"; já está "trabalhando", quer num caráter pessoal, nos arquivos, tomando notas após folhear livros, quer em esforços dirigidos. Adotando esta maneira de viver e tra­balhar, você terá sempre muitos tópicos que deseja desenvolver.

1 >epois que decidir quanto a algum deles, tentará usar todo o seu .uquivo, suas leituras esparsas em bibliotecas, sua conversa, suas

Sobre o artesanato intelectual

escolhas de pessoas - tudo para esse tópico ou tema. Você está tentando construir um pequeno mundo que contenha todos os elementos-chave que integram o trabalho a ser feito, pôr cada um em seu lugar de uma maneira sistemática, reajustando continua­mente essa estrutura em torno de desenvolvimentos em cada parte dele. Viver num mundo assim construído é simplesmente saber o que é necessário: idéias, fatos, idéias, números , idéias.

Assim você descobrirá e descreverá, construindo tipos para a ordenação do que descobriu, focalizando e organizando experiên­cia mediante a distinção de itens por nome. Essa busca de ordem o levará a procurar padrões e tendências, a encontrar relações que podem ser típicas e causais. Você buscará, em suma, os significados do que encontrou, para o que pode ser interpretado como um sinal visível de alguma outra coisa não visível. Você fará um inventário de tudo que parece envolvido no que quer que esteja tentando compreender; você o reduzirá aos elementos essenciais; depois, de maneira cuidadosa e sistemática, relacionará esses itens entre si de modo a formar uma espécie de modelo operacional. Depois relacionará esse modelo ao que quer que esteja tentando explicar. Por vezes é muito fácil; muitas vezes é simplesmente impossível.

Mas sempre, entre todos os detalhes, você estará procurando indicadores que poderiam apontar para a direção principal, cha­mando atenção para as formas e tendências subjacentes da extensão da sociedade contemporânea. Pois, no fim das contas, é sobre isso -a variedade humana - que você está sempre escrevendo.

O pensamento é uma luta por ordem e ao mesmo tempo por compreensibilidade. Você não deve parar de pensar cedo demais -ou deixará de conhecer tudo o que deveria; não deve deixar que isso prossiga para sempre, ou você mesmo explodirá. É esse dilema, suponho, que faz da reflexão, naquelas raras ocasiões em que é mais ou menos bem-sucedida, o mais apaixonante empreendimento de que o ser humano é capaz.

Talvez eu possa resumir melhor o que estive tentando dizer na forma de alguns preceitos e advertências:

Page 28: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

56 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

1. Seja um bom artesão: evite todo conjunto rígido de procedi­mentos. Acima de tudo, procure desenvolver e usar a imaginação sociológica. Evite o fetichismo de mé todo e técnica. Estimule a reabilitação do artesão intelectual despretensioso, e tente se tornar você mesmo tal artesão. Deixe que cada homem seja seu própr io metodologista; deixe que cada homem seja seu própr io teorizador; deixe que teoria e mé todo se tornem parte da prática de um ofício. Tome o partido do primado do estudioso individual; tome partido contra a ascendência de equipes de pesquisa formadas por técnicos. Seja uma mente independente na confrontação dos problemas do homem e da sociedade.

2. Evite a estranheza bizantina de conceitos associados e desasso-ciados, o maneirismo da verborragia. Encoraje em si mesmo e nos outros a simplicidade da formulação clara. Use termos mais ela­borados apenas quando acreditar firmemente que seu uso amplia o escopo de suas sensibilidades, a precisão de suas referências, a profundidade de seu raciocínio. Evite usar a ininteligibilidade como um meio de escapar à emissão de julgamentos sobre a sociedade - e como um meio de escapar aos julgamentos dos leitores sobre seu própr io trabalho.

3. Faça todas as construções trans-históricas que achar que seu tra­balho requer; investigue também minúcias sub-históricas. Elabore teorias inteiramente formais e construa modelos tão bem quanto puder. Examine em detalhe pequenos fatos e suas relações, e eventos grandes e singulares também. Mas não seja fanático: relacione todo esse trabalho, contínua e estreitamente, ao nível da realidade histó­rica. Não suponha que mais alguém fará isso por você, em algum momento, em algum lugar. Considere tarefa sua a definição dessa realidade; formule seu problema nos termos dela; no nível dela, tente resolver esses problemas e assim resolver as questões e dificuldades que eles incorporam. E nunca escreva mais de três páginas sem ter em mente pelo menos um exemplo concreto.

Sobre o artesanato intelectual 57

4. Não estude meramente um pequeno ambiente após outro; es­tude as estruturas sociais em que os ambientes estão organizados. Em termos desses estudos de estruturas mais amplas, selecione os contextos que precisa estudar em detalhe, e estude-os de maneira a compreender a ação recíproca de contextos com estrutura. Proceda de maneira semelhante no que diz respeito ao intervalo de tempo. Não seja meramente um jornalista, ainda que seja tão preciso quanto. Saiba que o jornalismo pode ser um grande empreen­dimento intelectual, mas saiba t a m b é m que o seu é maior! Não relate meramente pesquisas minuciosas em momentos estáticos bem definidos, ou períodos de tempo muito curtos. Tome como seu intervalo de tempo o curso da história humana, e situe nela as semanas, anos, épocas que você examina.

5. Perceba que seu objetivo é uma compreensão comparativa com­pleta das estruturas sociais que apareceram e que existem agora na história do mundo. Perceba que para cumpri-lo você deve evitar a especialização arbitrária dos departamentos acadêmicos hoje existentes. Especialize seu trabalho de maneira variada, segundo o tópico, e, acima de tudo, segundo problemas significativos. Ao formular e tentar resolver esses problemas, não hesite em, e de fato busque, fazer uso de maneira cont ínua e imaginativa das perspec­tivas e materiais, das idéias e métodos , de todo e qualquer estudo sensato do homem e da sociedade. Eles são seus estudos; são parte daquilo de que você é parte; não deixe que lhe sejam tomados por aqueles que os bloqueariam com um jargão esquisito e pretensões a conhecimento especializado.

6. Mantenha os olhos sempre abertos para a imagem do homem -a noção genérica de sua natureza humana - que você está presu­mindo e sugerindo com seu trabalho; e t a m b é m para a imagem da história - sua noção de como a história está sendo feita. Numa palavra, elabore e reveja continuamente suas idéias sobre os pio blemas de história, os problemas de biografia e os problemas de estrutura social em que biografia e história se cruzam. Mantenha

Page 29: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

58 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

os olhos abertos para as variedades da individualidade e para os modos de mudança histórica. Use o que vê e o que imagina como pistas para seu estudo da variedade humana.

7. Saiba que você herda e está levando adiante a tradição da análise ^ social clássica; portanto, tente compreender o homem não como

um fragmento isolado, não como um campo ou sistema inteligível em si e por si mesmo. Tente compreender homens e mulheres como atores históricos e sociais, e os modos como a variedade de ho­mens e mulheres são intricadamente selecionados e formados pela variedade das sociedades humanas. Antes de terminar qualquer trabalho, não importa quão indiretamente por vezes, oriente-o para a tarefa central e cont ínua de compreender a estrutura e a direção, a formação e os significados, de seu própr io per íodo, o terrível e magnífico mundo da sociedade humana contemporânea .

8. N ã o permita que questões públ icas tal como oficialmente formuladas, ou dificuldades tal como privadamente sentidas, de­terminem os problemas que você tomará para estudar. Acima de tudo, não abdique de sua autonomia moral e política aceitando nos termos de alguma outra pessoa a inutilidade limitadora do ethos burocrát ico ou a inutilidade tolerante da dispersão moral. Saiba que muitas dificuldades pessoais não podem ser resolvidas meramente como dificuldades, devendo ser compreendidas como questões públicas - e em termos dos problemas da feitura da história. Saiba que se deve revelar o significado humano de questões públicas relacionando-as com dificuldades pessoais - e com os problemas da vida individual. Saiba que os problemas da ciência social, quando adequadamente formulados, devem incluir tanto dificuldades quanto questões, tanto biografia quanto história e o âmbito de suas relações intricadas. Dentro desse âmbi to ocorre a vida do indivíduo e a feitura de sociedades; e dentro desse âmbi to a imaginação sociológica tem sua chance de fazer uma diferença n.i qualidade da vida humana em nosso tempo.

O ideal do artesanato

O artesanato, como modelo plenamente idealizado de satisfação no trabalho, envolve seis características principais: não há nenhum motivo velado em ação além do produto que está sendo feito e dos processos de sua criação. Os detalhes do trabalho diário são significativos porque não estão dissociados, na mente do trabalha­dor, do produto do trabalho. O trabalhador é livre para controlar sua própr ia ação de trabalho. O artesão é, por conseguinte, livre para aprender com seu trabalho, e para usar e desenvolver suas capacidades e habilidades na execução do mesmo. Não há ruptura entre trabalho e diversão, ou trabalho e cultura. O modo como o artesão ganha seu sustento determina e impregna todo o seu modo de vida.

I. A esperança no bom trabalho, observou Wil l iam Morris, é es­perança de produto e esperança de prazer no própr io trabalho; a suprema preocupação, toda a atenção, é com a qualidade do pro­duto e a maestria de seu fabrico. Há uma relação interna entre o artesão e a coisa que ele faz, desde a imagem que primeiro forma dela até sua conclusão, que vai além das meras relações legais de propriedade e torna a disposição do artesão para trabalhar espon­tânea e até exuberante.

Outros motivos e resultados - dinheiro, reputação ou salvação -são subordinados. Não é essencial à pratica da ética do ofício que

Page 30: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

alguém melhore necessariamente seu status, seja na comunidade religiosa ou na comunidade em geral. A satisfação no trabalho é tal que um homem pode viver numa espécie de paixão tranqüila "por seu trabalho apenas".

II. Na maioria das descrições do artesanato, há uma confusão entre suas condições técnicas e estéticas e a organização legal (propriedade) do trabalhador e do produto. O que é realmente necessário para o trabalho-como-artesanato, contudo, é que o vínculo entre o produto e o produtor seja psicologicamente possível; se o produtor não possui legalmente o produto, deve possuí-lo psicologicamente, no sentido de saber do que ele é feito no que diz respeito a habilidade, suor e materiais, e de sua própria habilidade e suor serem visíveis para ele. Evidentemente, se as condições legais forem tais que o vínculo entre o trabalho e o ganho material do trabalhador seja transparente, esta é uma gratificação adicional, mas ela é subordinada àquela habilidade que persistiria por si só, mesmo se não remunerada.

O artesão tem uma imagem do produto acabado, e mesmo que não o faça inteiro, vê o lugar de sua parte no todo e, por con­seguinte, compreende o significado de seu esforço em termos desse todo. A satisfação que o resultado lhe proporciona inspira os meios de alcançá-lo, e desse modo seu trabalho não é apenas significativo para ele, mas participa da satisfação que ele tem no produto e que o completa. Ainda que o trabalho, em alguma de suas fases, tenha a nódoa da labuta, do aborrecimento e da lida mecânica, o arte­são é transportado através desses momentos críticos por intensa expectativa. Pode até obter satisfação positiva em encontrar uma resistência e vencê-la, sentindo seu trabalho e sua vontade como poderosamente vitoriosos sobre a recalcitrância dos materiais e a malícia das coisas. De fato, sem essa resistência obteria menos sal islã»,ao em ser finalmente vitorioso sobre o que de início resiste obstinadamente à sua vontade.

' ieorge Mead expôs esse tipo de experiência estética como envolvendo a capacidade "de vislumbrar o prazer que pertence à

O ideal do artesanato

consumação, o resultado de u m empreendimento e dar aos i m ­plementos, aos objetos instrumentais no empreendimento, e aos atos que o c o m p õ e m algo da alegria e da satisfação que banham sua realização bem-sucedida".

III. O trabalhador é livre para iniciar seu trabalho segundo seu p ró ­prio plano e, durante a atividade pela qual o trabalho é moldado, é livre para modificar sua forma e a maneira de sua criação. Em ambos os sentidos, observou Henri De Man, "plano e execução são uma só coisa", e o artesão é senhor da atividade e de si no processo. Essa cont ínua un ião de plano e atividade une ainda mais firme­mente a consumação do trabalho e suas atividades instrumentais, infundindo nestas últ imas a alegria da primeira. Significa t a m b é m que sua esfera de ação independente é vasta e racional para ele. Ele é responsável por seu resultado e livre para assumir essa responsa­bilidade. Seus problemas e dificuldades devem ser resolvidos por ele, em termos da forma que deseja que o resultado final assuma.

IV. O trabalho do artesão é assim um meio de desenvolver sua habilidade, bem como u m meio de desenvolver-se a si mesmo como homem. Autodesenvolvimento n ã o é uma meta velada, mas o resultado cumulativo da devoção às suas habilidades e ao exercício delas. À medida que confere a seu trabalho a qualidade de sua própr ia mente e habilidade, está t a m b é m desenvolvendo sua própr ia natureza; nesse sentido simples, vive no seu trabalho e através dele, e esse trabalho o manifesta e revela para o mundo.

V. No padrão do artesão não há ruptura entre trabalho e diversão, entre trabalho e cultura. Caso se entenda que a diversão é uma atividade, exercida por si mesma, sem nenhum objetivo alem da gratificação do ator, então o trabalho seria uma atividade ie,ili/ .i da para criar valor econômico ou algum outro resultado velado. Diversão é algo que fazemos para estar prazerosamente oi upados, mas se o trabalho nos ocupa prazerosamente, é t ambém diversão,

Page 31: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

62 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

ainda que seja t ambém sério, assim como o brincar é para a criança. "O trabalho realmente livre, o trabalho de um compositor, por exemplo", escreveu Marx certa vez acerca das noções de Fourier sobre trabalho e diversão, "é trabalho terrivelmente sério, esforço intenso." A simples auto-expressão da diversão e a criação de valor velado do trabalho estão combinados no trabalho-como-artesana-to. O artesão ou artista se expressa ao mesmo tempo e no mesmo ato em que cria valor. Seu trabalho é u m poema em ação. Trabalha e se diverte no mesmo ato.

"Trabalho" e "cultura" n ã o são, como sustentou Gentile, esferas separadas, a primeira lidando com meios, a segunda com fins em si mesmos; como Tilgher, Sorel e outros indicaram, tanto o trabalho quanto a cultura podem ser fins em si mesmos, meios, ou conter segmentos de fins e meios. No modelo artesanal de ati­vidade, "consumo" e "produção" estão misturados no mesmo ato; o artesanato ativo, que é igualmente diversão e trabalho, é o meio da cultura; e para o artesão não há ruptura entre os mundos da cultura e do trabalho.

VI. O trabalho do artesão é a mola mestra da única vida que ele conhece; ele não foge do trabalho numa esfera separada de lazer; leva para suas horas de ócio os valores e qualidades desenvolvidos e empregados em suas horas de trabalho. Sua conversa em momentos de lazer gira em torno do trabalho; seus amigos seguem as mesmas linhas de trabalho que ele, e partilham uma afinidade de sentimento e pensamento. O lazer que William Morris reclamava era "lazer para pensar sobre nosso trabalho, aquele fiel companheiro diário . . ."

Para dar a seu trabalho o frescor da criatividade, o artesão deve por vezes abrir-se àquelas influências que só nos afetam quando nossas atenções estão relaxadas. Assim, para o artesão, afora o mero repouso animal, o lazer pode ocorrer naqueles per íodos intermitentes necessários para a individualidade em seu trabalho. Assim como leva para seu lazer a capacidade e os problemas de seu trabalho, t a m b é m traz de volta para o trabalho aquelas sensibili-

O ideal do artesanato 63

dades que não atingiria em per íodos de tensão elevada, constante, necessários para o trabalho consistente.

"O mundo da arte", escreveu Paul Bourget, falando dos Estados Unidos, "requer menos autoconsciência - um impulso de vida que se esquece a si mesmo, a alternância de ociosidade sonhadora com férvida execução." A mesma idéia é defendida por Henry James, em seu ensaio sobre Balzac, que observa que praticamente perdemos a faculdade da atenção, referindo-se "àquela espécie de atenção sem esforço, meditativa, necessária para se produzir ou apreciar obras de arte". Mesmo o repouso, que não está tão diretamente ligado ao própr io trabalho como uma condição de criatividade, é repouso animal, tornado seguro e livre de ansiedade em virtude do trabalho feito - nas palavras de Tilgher, "um sentimento de paz e calma que brota de todo trabalho bem regulado, disciplinado, feito com uma mente serena e satisfeita".

Ao construir este modelo do artesanato, não pretendemos sugerir que tenha havido algum dia uma comunidade em que o trabalho se revestia de todos estes significados. Se o artesão me­dieval se aproximava do modelo tão estreitamente quanto alguns escritores parecem supor, não sabemos, mas alimentamos sérias dúvidas de que assim fosse, falta-nos conhecimento psicológico suficiente de populações medievais para julgar apropriadamente. De todo modo, para nossos propósi tos é suficiente saber que, em diferentes momentos e em diferentes ocupações, o trabalho que o homem faz assumiu uma ou mais características do artesanato.

Com tal modelo em mente, uma vista de olhos no mundo ocupacional do trabalhador moderno é suficiente para deixar claro que praticamente nenhum desses aspectos é relevante hoje para a experiência moderna do trabalho. O modelo artesanal tornou-se um anacronismo. Usamos esse modelo como um ideal explícito, em termos do qual podemos resumir as condições de trabalho e o significado pessoal que o labor tem em mundos do trabalho mo­dernos, e especialmente para "colarinhos-brancos".

Page 32: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

O homem no centro: o designer1

O designer norte-americano é ao mesmo tempo uma figura central no que vou chamar de aparato cultural e um importante auxiliar de um tipo muito peculiar de economia. Sua arte é um negócio, mas seu negócio é arte, e coisas curiosas vêm acontecendo tanto para a arte quanto para o negócio - e para ele dessa maneira. Ele foi alcançado por dois grandes desenvolvimentos dos Estados Unidos do século XX: um é o deslocamento da ênfase econômica da produção para a distribuição, e, com ele, a união da luta pela existência com a ânsia por status. O outro foi o processo que colocou a arte, a ciência e o saber numa relação subordinada às instituições dominantes da economia capitalista e do estado nacionalista.

Os designers trabalham na interseção dessas tendências; seus problemas estão entre os problemas-chave da sociedade superde-senvolvida. É o duplo envolvimento neles que explica a grande cisão entre designers e sua culpa freqüente; a confusão enriquecida de ideais que eles variadamente professam e a insegurança que freqüen­temente sentem com relação à prática de seu oficio; sua repugnância muitas vezes grande e sua frustração incapacitante. Eles não podem

1 Palestra proferida na 8 l h International Design Conference, realizada em Aspen, Colorado, junho de 1958.0 título original era "Social Forces and the Frustrations of the Designer" [ Forças sociais e as frustrações do designer]. O texto foi também incluído, com algumas alterações, na coletânea Power, Politics and People, Nova York, Balantine Books, 1963. (N. O.)

Page 33: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

66 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

considerar corretamente sua posição ou formular seu credo sem levar em conta tendências tanto culturais quanto econômicas e a conformação da sociedade total em que estas estão ocorrendo.

Quero, em poucas palavras, (1) definir certos significados e funções do aparato cultural, e (2) indicar o contexto econômico em que o designer realiza atualmente o seu trabalho. Pode então ser útil (3) convidar-lhe a reconsiderar certos ideais que o designer pode representar no tipo de mundo em que os norte-americanos estão passando a viver.

Nossos mundos são de segunda mão

As imagens que temos desse mundo e de nós mesmos nos são dadas por mult idões de testemunhas que nunca conhecemos e nunca iremos conhecer. No entanto, para cada um de nós, essas imagens -fornecidas por estranhos e mortos - são a própr ia base de nossa vida como ser humano. Nenhum de nós se encontra sozinho con­frontando diretamente um mundo de fatos concretos. Nenhum mundo desse tipo é acessível: é quando somos bebês ou quando ficamos loucos que chegamos mais perto dele. Então, numa cena aterrorizante de eventos sem sentido e confusão disparatada, somos muitas vezes tomados pelo pânico da insegurança quase total. Em nossa vida cotidiana, porém, não experimentamos fatos sólidos e imediatos, mas estereótipos de significado. Temos conhecimento de muito mais do que nós mesmos experimentamos, e nossa ex­periência é ela própr ia sempre indireta e guiada. A primeira regra para compreender a condição humana é que os homens vivem em mundos de segunda mão.

A consciência dos homens não determina sua existência; nem sua existência determina sua consciência. Entre a consciência hu­mana e a existência material encontram-se comunicações e planos, padrões e valores que influenciam decisivamente a consciência que possam ter.

O homem no centro: o designer 67

As artes de massa, as artes públicas, as artes de design são importantes veículos dessa consciência. Entre essas artes e a vida i otidiana, entre seus símbolos e o nível da sensibilidade humana, há agora uma contínua e persistente ação recíproca. Eles se refletem tão precisamente que com freqüência é impossível distinguir a imagem de sua fonte. Visões sussurradas muito antes da maioridade sexual, imagens recebidas no descanso da escuridão, slogans reiterados em casa e na sala de aula, determinam a perspectiva em que vemos e dei­xamos de ver os mundos em que vivemos; significados sobre os quais nunca pensamos explicitamente determinam nossos julgamentos sobre quão bem ou quão mal estamos vivendo nesses mundos. Os resultados dessas comunicações são tão decisivos para a própria experiência que muitas vezes os homens não acreditam realmente no que "vêem diante de seus próprios olhos" até que tenham sido "informados" acerca disso pelo anúncio oficial, o rádio, a câmera, a nota distribuída à imprensa. As comunicações não limitam a ex­periência apenas; por vezes elas expropriam as chances de termos experiências que possam ser corretamente chamadas "nossas". Pois nossos padrões de credibilidade, e da própr ia realidade, bem como nossos julgamentos e discernimentos, são determinados muito menos por qualquer experiência totalmente nova que possa­mos ter que por nossa exposição à produção do aparato cultural.

Para a maior parte do que chamamos de fatos concretos, • in te rpre tação segura, apresentações apropriadas, somos cada vez mais dependentes dos postos de observação, dos centros de interpretação, dos depósitos de apresentação do aparato cultural. Nesse aparato, situando-se entre homens e eventos, os significados e imagens, os valores e slogans que definem todos os mundos que os homens conhecem são organizados e comparados, mantidos e revistos, perdidos e encontrados, celebrados e desmascarados.

Por aparato cultural refiro-me a todas aquelas organizações e meios em que o trabalho artístico, intelectual e científico tem lugar. E t ambém a todos os meios pelos quais esse trabalho e tornadi > ai es sível a pequenos círculos, públicos mais amplos e grandes massas.

Page 34: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

68 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

O d o m í n i o mais abrangente e mais especializado da socie­dade moderna, o aparato cultural da arte, da ciência e do saber cumpre o maior n ú m e r o de funções: conquista a natureza e refaz o ambiente; define a natureza cambiante do homem e apreende a direção dos negócios mundiais; revivifica antigas aspirações e molda as novas. Cria modelos de caráter e estilos de sentimento, nuanças de estado de espírito e vocabulários de motivo. Serve aos tomadores de decisão, revelando e obscurecendo as conse­qüências de suas decisões. Transforma poder em autoridade e desmascara a autoridade como mera coerção. Modifica o trabalho que os homens fazem e fornece as ferramentas com que o fazem; preenche seu lazer, com tolice e com prazer. Muda a natureza da guerra; diverte, persuade e manipula; ordena e proíbe; apavora e tranqüiliza; faz homens chorarem e rirem, ficarem inteiramente entorpecidos, depois totalmente animados. Prolonga o tempo de vida e fornece os meios para encerrá-lo subitamente. Prevê o que vai acontecer e explica o que ocorreu; ajuda a moldar e regular a marcha de uma época, e sem ele não haveria consciência de nenhuma época.

O mundo que os homens vão acreditar que compreendem está agora, nesse aparato cultural, sendo definido e construído, transformado num slogan, numa anedota, num diagrama, num comunicado, num sonho, num fato, num projeto, numa música, num esquema, numa fórmula, e apresentado a eles. Essa parte que a razão pode ter em negócios humanos, esse aparato, essa engenhoca construída, cumpre; o papel que a sensibilidade pode desempenhar no drama humano, ele representa; o uso que a técnica pode ter na história e na biografia, ele fornece. Ele é a seita da civilização, que -nas palavras de Matthew Arnold - é "a humanização do homem na sociedade". As únicas verdades são as verdades definidas pelo apa­rato cultural. A única beleza são experiências e objetos criados e indicados por trabalhadores culturais. Os únicos bens são os valores culturais com que os homens são levados a se sentir moralmente tranqüilos ou moralmente inquietos.

O homem no centro: o designer 69

Da produção à distribuição e ao "merchandising"

Como um fato institucional, o aparato cultural assumiu muitas formas. Em algumas sociedades - notavelmente a da Rússia - , ele é estabelecido por uma autoridade posterior ao capitalismo: é portan­to parte de um aparato oficial de dominação psíquica. Em algumas -notavelmente as nações da Europa ocidental - , é estabelecido a partir de uma tradição anterior ao capitalismo, é portanto parte de um establishment em que autoridade social e prestígio cultural se super­põem. Tanto a tradição cultural quanto a autoridade política estão envolvidas em qualquer establishment cultural, mas nos Estados Unidos o aparato cultural é estabelecido comercialmente: é parte de uma economia capitalista ascendente. Este fato é a principal chave para se compreender tanto a qualidade da vida cotidiana quanto a situação da cultura nos Estados Unidos hoje.

A virtual p redominânc ia da cultura comercial é a chave para o escopo, a confusão, a banalização, a animação, a esterilidade cultural dos Estados Unidos. Para compreender o caso dos Estados Unidos hoje, precisamos compreender as tendências econômicas e a mecânica de vendas de um mundo capitalista em que a pro­dução e a venda em massa de mercadorias tornou-se o fetiche da vida humana, o eixo do trabalho e do lazer. Precisamos compre­ender como os mecanismos difusos do mercado penetraram cada aspecto da vida - inclusive arte, ciência e saber - e os tornaram sujeitos à avaliação pecuniária. Precisamos compreender que o que aconteceu com o trabalho em geral nos dois úl t imos séculos tem acontecido no século X X com a esfera do esforço artístico e intelectual; t ambém esta tornou-se agora parte da sociedade como u m salão de vendas. Para compreender a posição ambígua do tra­balhador cultural nos Estados Unidos precisamos ver como ele se encontra na superposição desses dois mundos: o mundo de uma sociedade tão superdesenvolvida com seu ethos de publicidade, e o mundo da cultura como os homens o conheceram e como poderiam conhecê-lo.

Page 35: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

70 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

Por mais severos que sejam seus efeitos sobre a natureza do trabalho, a industrialização dos países subdesenvolvidos deve ser vista como uma enorme bênção: é o homem conquistando a natu­reza, e assim se libertando da penúr ia medonha. Mas à medida que as maquinarias sociais e físicas da industrialização se desenvolvem, novos objetivos e interesses entram em jogo. A ênfase econômica desloca-se da p rodução para a distr ibuição e, na sociedade super-desenvolvida, para o chamado "merchandising". A década central para essa mudança nos EUA foram os anos 1920, mas foi na era iniciada com o t é rmino da Segunda Guerra Mundial que a nova economia floresceu como uma erva daninha. Nessa fase do capita­lismo, o distribuidor ganha ascendência tanto sobre o consumidor quanto sobre o produtor.

A medida que a capacidade de produzir vai muito além da demanda existente, que o monopó l io substitui a competição, e que os excedentes se acumulam, o que se torna necessário é criar e manter o mercado nacional e fechá-lo monopolisticamente. O vendedor torna-se então preeminente. Em vez de cultivar e servir uma variedade de públicos, o objetivo do distribuidor é criar um volume maciço de vendas cont ínuas . Produção cont ínua e em expansão requer consumo cont ínuo e em expansão, assim ele deve ser acelerado por todas as técnicas e trapaças do marketing. Além disso, as mercadorias existentes devem se gastar mais rapidamente, pois, como o mercado está saturado, a economia torna-se cada vez mais dependente da chamada substituição. É então que a obsoles­cência passa a ser planejada e o ciclo econômico deliberadamente encurtado.

Projetos tolos para necessidades tolas

Há, suponho, três tipos de obsolescência: (1) tecnológica, como quando algo se desgasta ou algo melhor é produzido; (2) artificial, como quando algo é deliberadamente projetado para se desgastar;

O homem no centro: o designer 71

e (3) obsolescência de status, como quando modas são criadas, de maneira que o consumo traz desfavor ou prestígio segundo se consuma o modelo do ano passado ou o deste ano, e à antiga luta pela existência acrescenta-se a ânsia por status.

É nessa situação econômica que o designer obtém sua "grande chance". Seja qual for sua pretensão estética e sua habilidade técnica, sua tarefa econômica é vender. Nisso ele se junta à fraternidade da publicidade, ao conselho de relações públicas e ao pesquisador de mercado. Esses tipos desenvolveram suas habilidades e pretensões para servir homens cujo "deus é a grande venda". E agora o designer se junta a eles.

A firma e aos seus produtos ele acrescenta o brilho mágico e o deslumbramento do prestígio. Ele planeja a aparência das coisas e sua embalagem muitas vezes fraudulenta. Planeja os interiores e decora os exteriores de empresas corporativas como monumentos à publicidade. E depois, com seus colegas, faz a história da fraude comercial galgar mais um degrau. Com ele, a publicidade não é uma atividade especializada, ainda que central; com seu advento capitalista, as artes, habilidades e manhas do p r ó p r i o aparato cultural se tornam não apenas auxiliares da publicidade, mas, no devido tempo, tornam-se elas mesmas publicidades. Ele projeta o própr io produto como se fosse uma publicidade, pois seu objetivo e sua tarefa - reconhecidos pelos mais francos - não é tanto fazer produtos melhores mas fazer produtos que vendam melhor. Por marca e marca registrada, por slogan e embalagem, por cor e forma, ele dá ao artigo uma individualidade fictícia, transformando um pouco de lanolina e água numa maneira emulsificada de se tornar eroticamente abençoado; ocultando o peso e a qualidade do que está à venda; confundindo a escolha do consumidor e banalizando suas sensibilidades.

As tolas necessidades da arte de vender são assim atendidas pelo tolo planejamento e replanejamento das coisas. O desperdício de trabalho humano e material torna se irracionalmente central para o desempenho do mecanismo capitalista. A própria sociedade

Page 36: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

72 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

torna-se um grande salão de vendas, uma rede de negócios públicos desonestos e uma cont ínua exposição de modas. O segredo do su cesso torna-se a m u d a n ç a anual de modelo, ao mesmo tempo em que a moda é universalizada. E na sociedade de massas, a própria imagem da beleza torna-se identificada com a aceleração e a degra­dação da imaginação, do gosto e da sensibilidade pelo designer.

O crescimento do sistema de estrelato

O própr io trabalhador intelectual, em particular o designer, tende a se tornar parte dos meios de distr ibuição, sobre o qual pode vir a perder o controle. Tendo "criado um mercado" e monopolizado o acesso a ele, o distribuidor - com seu pesquisador de mercado -reivindica "saber o que eles querem". Assim suas ordens - até para os freelancers - tornam-se mais explícitas e detalhadas. O preço que oferece pode ser bastante alto; talvez alto demais, ele começa a pensar, e talvez tenha razão. Assim começa a contratar e gerenciar em grau variado um time de trabalhadores culturais. Aqueles que se permitem ser gerenciados pelo distribuidor de massas são selecio­nados e finalmente formados de maneira a serem completamente proficientes, mas talvez não de todo excelentes. Assim prossegue a busca por "novas idéias", por noções empolgantes, por modelos mais atraentes; em suma, pelo inovador. Mas nesse meio-tempo, no estúdio, no laboratório, no escritório de pesquisas, na fábri­ca do escritor - o distribuidor ganha ascendência sobre muitos produtores, que se tornam os soldados rasos do aparato cultural comercialmente estabelecido.

Nessa situação de crescente burocrat ização, mas ao mesmo tempo de cont ínua necessidade de inovação, o trabalhador cultural tende a se tornar um escritor comercial ou uma estrela comercial. Por estrela, refiro-me a u m produtor para cujas produções há uma demanda tão grande que ele é capaz, pelo menos em alguma medida, de fazer com que os distribuidores sirvam como seus

O homem no centro: o designer 73

auxiliares. Esse papel tem suas própr ias condições e seus própr ios perigos. A estrela tende a cair na armadilha do p rópr io sucesso. Ele pintou tal tipo de coisa e ganha 20 mi l dólares de uma tacada por ela. Esse homem, embora afluente, pode ficar culturalmente entediado com seu estilo e desejar explorar um outro. Mas muitas vezes não pode: está acostumado aos 20 m i l dólares de uma tacada e há uma demanda disso. Como alguém que dita a moda, fica ele própr io submetido à moda. Além disso, seu sucesso como estrela depende da sua manipulação do mercado: não está numa intera­ção educativa com um público que o apoia à medida que ele se desenvolve a si mesmo e, por sua vez, a esse público. Também ele, em virtude de seu sucesso, torna-se um negociante.

O sistema de estrelato da cultura norte-americana - juntamente com os mercenários - tende a matar a chance de u m trabalhador cultural ser um artesão digno. Ou se é um sucesso absoluto ou se está entre os fracassos que não são produzidos; ou se é um campeão de vendas ou se está entre os assalariados e os fracassados; ou se é uma sumidade absoluta ou não se é absolutamente nada.

Como empresário, uma pessoa pode valorizar como quiser esses vários desenvolvimentos; como membro do aparato cultural, porém, ela certamente deve compreender que, não importa o que mais possa estar fazendo, está t a m b é m criando e moldando as sensibilidades culturais de homens e mulheres, e, de fato, a própr ia qualidade de suas vidas cotidianas.

A grande mentira: "Só lhes damos o que eles querem"

O mero p r e d o m í n i o das habilidades do publ ic i tár io e do ofício do designer torna evidente a falsidade do maior dogma da cul­tura do distribuidor. O dogma é que "só lhes damos o que eles querem". Esta é a "grande mentira" da cultura de massas e da arte degradada, e é t a m b é m a desculpa esfarrapada para ,i o m i s s ã o cultural de muitos designers.

Page 37: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

A determinação das "necessidades e gostos do consumidor" é uma marca característica da atual fase do capitalismo nos Esta­dos Unidos - e t a m b é m do que é chamado cultura de massas. E é precisamente nas áreas em que necessidades são determinadas e alteradas que os designers tendem a fazer seu trabalho.

O aparato de merchandising, do qual muitos designers são membros atualmente, opera mais para criar necessidades que para satisfazer necessidades já ativas. Os consumidores são treinados para "precisar" daquilo a que são mais continuamente expostos. Desejos não se originam de vagas esferas da personalidade do consumidor, são formados por um elaborado aparato de jingle e moda, de persuasão e fraude. São moldados pelo aparato cultural e a sociedade de que este é parte. Não se desenvolvem e se modifi­cam à medida que as sensibilidades do consumidor se alargam; são criadas e modificadas pelo processo pelo qual são satisfeitas e pelo qual velhas satisfações são tornadas insatisfatórias. Além disso, os própr ios cânones de gosto e julgamento são t a m b é m manobrados pela obsolescência do status e por moda planejada. A fórmula é: fazer as pessoas terem vergonha do modelo do ano passado; asso­ciar a própr ia auto-estima à compra do modelo deste ano; criar uma ânsia por status, e portanto uma ânsia por auto-estima, e associar sua satisfação ao consumo de mercadorias específicas.

Nesse vasto mecanismo de merchandising de anúnc ios e design, não há nenhum objetivo social inerente para equilibrar seu grande poder social; n ã o há nenhuma responsabilidade incorporada para n inguém, exceto para o homem que aufere o lucro. Há pouca dúvida, contudo, de que esse mecanismo é hoje u m importante definidor dos valores e padrões da sociedade norte-americana, o principal portador da sensibilidade cultural, e bastante comparável em influência à escola, à igreja, ao lar.

Esse aparato é hoje um auxiliar de organizações comerciais que usam a "cultura" para seus própr ios fins não culturais - de fato, anticulturais - , e assim degradam seu própr io significado. Esses usos da cultura estão sendo moldados por homens que

O homem no centro: o designer

transformariam todos os objetos e as qualidades, de fato a própria sensibilidade humana, num fluxo de mercadorias efêmeras, e esses tipos conseguem agora que o designer os ajude; conseguem que ele se transforme no supremo publicitário. Quando pensamos sobre isso - se é que pensamos - , parece realmente espantoso: o velho companheiro do vendedor, o Garoto do Spray, o cabo da venda a varejo [the corporal of retailing] - tornou-se o generalíssimo da obsolescência ansiosa como o modo de vida norte-americano.

O artesanato como um valor

Venho descrevendo, é claro, o papel do designer no que espero que seja sua pior forma. E estou ciente de que não é apenas no campo do design que a ambigüidade norte-americana do esforço cultural é revelada, que não é somente o designer que comete a negligência cultural. Em diferentes graus, todos os trabalhadores culturais são parte de um mundo dominado pelo ethos pecuniár io do homem de negócios excêntrico e t a m b é m de um mundo unificado apenas vagamente pelos ideais de sensibilidade cultural e razão humana. A autonomia de todos os tipos de trabalhadores culturais vem declinando em nosso tempo. Quero t a m b é m deixar claro que estou ciente da grande diversidade entre designers e da enorme dificuldade que qualquer designer enfrenta agora ao tentar escapar da armadilha dos maníacos da p rodução e distr ibuição.

O problema do designer só pode ser resolvido pela conside­

ração radical de valores fundamentais. Mas como a maior parte

das considerações fundamentais, a sua pode começar de maneira

muito simples. A idéia do aparato cultural é uma tentativa de compreender

os negócios humanos do ponto de vista do papel que neles dosem penham a razão, a técnica e a sensibilidade. Como membros desse aparato cultural, é importante que os designers compreendam pie namente o que essa condição significa. Em poucas palavras, sigi lifka

Page 38: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

76 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

que ele representa as sensibilidades do homem como construtor de objetos materiais, do homem como criatura relacionada à própria natureza e à mudança desta mediante u m plano humanamente considerado. O designer é um criador e um crítico da estrutura física da vida privada e pública. Ele representa o homem como constru­tor de seu própr io meio. Ele representa o tipo de sensibilidade que permite aos homens inventar um mundo de objetos diante do qual eles ficam encantados e os quais se sentem encantados em usar. O designer é parte da unidade da arte, da ciência e do saber. Isso, por sua vez, significa que ele partilha um valor fundamental, que é o denominador comum da arte, da ciência e do saber e t a m b é m a própria raiz do desenvolvimento humano. Esse valor, eu acredito, é o artesanato.

Do artesanato, como ideal e como prática, é possível deduzir tudo que o designer deve representar como indivíduo e tudo que ele deve significar social, política e economicamente. Como ideal, o artesanato representa a natureza criativa do trabalho, e o lugar central desse trabalho no desenvolvimento humano como um todo. Como prática, o artesanato representa o papel clássico do artesão independente que faz seu trabalho em estreita interação com o público, que por sua vez participa dele.

As cisões mais fundamentais na vida contemporânea ocorrem por causa da desintegração da antiga unidade de design, p rodução e fruição. Entre a imagem e o objeto, entre o projeto e o trabalho, entre a produção e o consumo, entre trabalho e lazer, há u m grande vácuo cultural, e foi esse vácuo que o distribuidor de massas, e seus acólitos artísticos e intelectuais, preencheram com exaltação, lixo e fraude. Numa frase, o que se perdeu foram o fato e o ethos do homem como artesão.

Por artesanato refiro-me a u m estilo de trabalho e u m modo de vida que t êm as seguintes características:

1. No artesanato não há nenhum motivo ulterior para o trabalho além do produto que está sendo feito e o processo de sua criação.

O homem no centro: o designer 77

O artesão imagina o produto acabado, muitas vezes enquanto o cria e, mesmo que não o fabrique, vê e compreende o sentido de seu pró­prio esforço em termos do processo total de sua produção. Assim, os detalhes do trabalho diário do artesão são significativos porque não estão separados, em sua mente, do produto do trabalho. A satisfação que tem nos resultados impregna os meios para alcançá-los.

Esta é a conexão radical entre trabalho e arte: como experiên­cias estéticas, ambos envolvem o poder "de apreender o gozo que pertence ao consumo, ao resultado, de um empreendimento, e dar aos implementos, aos objetos que são instrumentais no empreen­dimento, e aos atos que o compõem, um pouco da alegria e das satisfações que banham sua realização bem-sucedida".2

Para círculos bem pequenos, o apelo da arte moderna - em especial a pintura e a escultura, mas t a m b é m o artesanato - recai no fato de que, num mundo impessoal, programado, automati­zado, eles representam o pessoal e o espontâneo. São o oposto do estereotipado e do banalizado.

2. No artesanato, plano e execução estão unificados, e em ambos o artesão é mestre da atividade e de si mesmo no processo. O artesão é livre para começar seu trabalho de acordo com o própr io plano, e durante o trabalho é livre para modificar sua forma e modo de sua conformação. A cont ínua união de plano e desempenho une ainda mais firmemente a consumação do trabalho e suas atividades instrumentais, infundindo nestas últ imas a alegria da primeira. O trabalho é uma esfera racional de ação independente.

3. Como trabalha livremente, o artesão é capaz de aprender com seu trabalho, de desenvolver bem como de usar suas capacidades. Seu trabalho é, então, para ele um meio de se desenvolver a si mesmo como homem bem como de desenvolver sua habilidade.

2 Mead, George Herbert. The Philosophy of the Act. < hu . igo , < l m ago I Iniversi ly

Press, 1938,p.454.

Page 39: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

78 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

Esse autodesenvolvimento não é uma meta velada, mas um resul­tado cumulativo da devoção ao seu ofício e do exercício dele. À medida que confere ao trabalho a qualidade de sua própr ia mente e habilidade, está t ambém desenvolvendo sua própr ia natureza; nesse sentido simples, vive no seu trabalho e através dele, e esse trabalho o manifesta e revela para o mundo.

4. O modo como o artesão ganha seu sustento determina e i m ­pregna todo o seu modo de vida. Para ele não há cisão entre tra­balho e diversão, entre trabalho e cultura. Seu trabalho é o motivo principal de sua vida; ele não foge do trabalho para uma esfera separada de lazer; leva para as horas de ócio os valores e qualidades desenvolvidos e empregados em suas horas de trabalho. Expressa a si mesmo no p róp r io ato de criar valor econômico; está traba­lhando e se divertindo no mesmo ato; seu trabalho é u m poema em ação. Para dar ao seu trabalho o frescor da criatividade, deve por vezes se abrir àquelas influências que só nos afetam quando nossas atenções estão relaxadas. Assim, para o artesão, afora o mero repouso animal, o lazer pode ocorrer naqueles per íodos in ­termitentes necessários para a individualidade em seu trabalho.

5. Um estrato assim independente de artesãos não pode florescer a menos que haja públicos que apoiem indivíduos que podem não se revelar de primeira classe. O artesanato requer que esses trabalhadores culturais e esses públicos definam o que é excelên­cia. No bloco comunista, em razão das burocracias oficiais, e no capitalista, em razão do ethos comercial, os padrões não estão hoje nas mãos de tais produtores e públicos culturais. Em ambos o mero distribuidor é a chave tanto para o consumo quanto para a p rodução .

Alguns trabalhadores culturais nos Estados Unidos perma­necem, é claro, independentes. Talvez três ou quatro homens realmente ganhem seu sustento aqui apenas compondo música séria; talvez cerca de 50 o façam escrevendo romances sérios. Mas

O homem no centro: o designer 79

estou menos interessado agora nas exigências econômicas que nas culturais. O papel do artesão sério requer que o trabalhador cultural permaneça um trabalhador cultural, e que produza para outros produtores culturais e para círculos e públicos compostos por pessoas que tenham alguma compreensão do que está envolvi­do em sua produção. Pois não podemos "possuir" arte meramente comprando-a; não podemos apoiar arte meramente alimentando artistas - embora isso ajude. Para possuí-la devemos merecê-la, participando em alguma medida no que é necessário para projetá-la e criá-la. Para apoiá-la, devemos apreender em nosso consumo dela alguma coisa do que está envolvido em sua produção.

É, eu penso, a ausência de tal estrato de trabalhadores culturais, em estreita interação com tal público participante, que é a falha notável da cena cultural norte-americana hoje. Enquanto ela não se desenvolver, a posição do designer conterá todas as ambigüidades e estimulará todas as negligências que indiquei. Os designers tende­rão a ser estrelas comerciais ou assalariados. E o desenvolvimento humano cont inuará a ser banalizado, as sensibilidades humanas embotadas, e a qualidade da vida distorcida e empobrecida.

Como prática, o artesanato nos Estados Unidos foi em grande parte trivializado em hobbies desprezíveis: é parte do lazer, não do trabalho. Como ética, está em grande parte confinado a pequenos grupos de profissionais e intelectuais privilegiados. O que estou su­gerindo é que os designers deveriam assumir o valor do artesanato como o valor central que representam; que em conformidade com ele deveriam fazer seu trabalho; e que deveriam usar suas normas em suas visões sociais, econômicas e políticas do que a sociedade deve se tornar.

O artesanato não pode prevalecer sem uma sociedade que se desenvolva apropriadamente; essa seria, eu acredito, uma so­ciedade em que o fato e o ethos do artesanato estariam em toda parte. Homens e mulheres deveriam ser formados c sela lon.ulos como modelos ascendentes de caráter em termos de suas normas. Instituições deveriam ser construídas e julgadas cm lermos de seu

Page 40: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

80 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

ethos. A sociedade humana, em suma, deveria ser construída em torno do artesanato como a experiência central de um ser humano não alienado e a própria raiz do livre desenvolvimento humano. A maneira mais frutífera de definir o problema social é perguntar como semelhante sociedade pode ser construída. Pois o mais elevado ideal humano é: tornar-se um bom artesão.

A promessa

Hoje os homens sentem muitas vezes que suas vidas privadas são uma série de armadilhas. Sentem que, em seus mundos cotidianos, não conseguem superar suas dificuldades e, com freqüência, estão inteiramente corretos nesse sentimento: aquilo de que os homens comuns estão diretamente conscientes e o que tentam fazer está limitado pelas órbitas privadas em que vivem; suas visões e seus poderes estão limitados às cenas em close-up de trabalho, família, vizinhança; em outros meios, eles se movem à custa de outros e permanecem espectadores. E quanto mais conscientes se tornam, ainda que vagamente, de ambições e ameaças que transcendem seus ambientes imediatos, mais parecem sentir que caíram em armadilhas.

Subjacente a essa sensação de ter caído numa armadilha há m u d a n ç a s aparentemente impessoais na p róp r i a estrutura de sociedades de extensão continental. Os fatos da história contem­porânea são t a m b é m fatos sobre o sucesso e o fracasso de homens e mulheres individuais. Quando uma sociedade é industrializada, um camponês torna-se um operário; um senhor feudal é liquidado ou torna-se um homem de negócios. Quando classes ascendem ou decaem, um homem é empregado ou desempregado; quando a laxa de investimento sobe ou desce, um homem ganha novo ân imo ou vai à falência. Quando guerras acontecem, um vendedoi de seguros torna-se um lançador de foguetes; um almoxarife, um operadoi de

Page 41: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

82 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

radar; uma esposa vive sozinha; uma criança cresce sem pai. Nem a vida de um indivíduo nem a história de uma sociedade podem ser compreendidas sem que entendamos ambos.

No entanto, os homens não costumam definir as dificuldades que enfrentam em termos de m u d a n ç a histórica e contradição institucional. Não costumam atribuir o bem-estar que gozam aos grandes altos e baixos da sociedade em que vivem. Raramente conscientes da intricada conexão entre os padrões de suas próprias vidas e o curso da história mundial, os homens comuns não sabem em geral o que essa conexão significa para os tipos de homens que estão se tornando e para os tipos de feitura da história de que po­deriam fazer parte. Eles não possuem a qualidade mental essencial para apreender a interação de homem e sociedade, de biografia e história, de eu e de mundo. Não são capazes de enfrentar suas dificuldades pessoais de maneira a controlar as t ransformações estruturais que usualmente se encontram atrás delas.

Certamente isso não é de surpreender. Em que per íodo tantos indivíduos foram tão completamente expostos a tamanhos terre­motos de m u d a n ç a num r i tmo tão acelerado? Que os norte-ame­ricanos não tenham conhecido mudanças tão catastróficas quanto as experimentadas pelos homens e mulheres de outras sociedades deve-se a fatos históricos que estão agora se tornando com rapidez "meramente história". A história que afeta agora todos os homens é a história mundial. Nesse cenário e dentro desse per íodo, no curso de uma única geração, um sexto da humanidade é transfor­mado de tudo que é feudal e atrasado em tudo que é moderno, avançado e aterrorizante. Colônias políticas são libertadas; novas formas menos visíveis de imperialismo são instaladas. Revoluções ocorrem; homens sentem a ínt ima dominação de novos tipos de autoridade. Sociedades totalitárias surgem, e são estraçalhadas - ou experimentam fabuloso sucesso. Após dois séculos de ascendência, o capitalismo aparece como apenas uma maneira de transformar a sociedade num aparato industrial. Após dois séculos de esperança, mesmo a democracia formal está restrita a uma porção muito

A promessa

pequena da humanidade. Por toda parte no mundo subdesen­volvido, maneiras de viver antigas são destruídas e expectativas vagas tornam-se exigências urgentes. Por toda parte no mundo superdesenvolvido, os meios de poder e de violência tornam-se totais em escopo e burocrát icos na forma. A própr ia humanidade encontra-se agora diante de nós, a supernação em cada um dos pólos concentrando seus esforços mais coordenados e intensos na preparação da Terceira Guerra Mundial .

A própria conformação da história agora supera a capacidade dos homens para se orientar em conformidade com valores aprecia­dos. E que valores? Mesmo quando não estão tomados de pânico, os homens percebem muitas vezes que maneiras mais antigas de sentir e pensar se desintegraram e que novos começos são ambíguos ao ponto da estase moral. É de espantar que homens comuns sintam que não podem lidar com os mundos mais vastos com que são tão subitamente confrontados? Que não consigam compreender o sentido de sua época para suas próprias vidas? Que - em defesa de sua individualidade - se tornem moralmente insensíveis, tentando permanecer inteiramente homens privados? É de espantar que ve­nham a se sentir possuídos pela impressão da armadilha?

Não é somente de informação que eles precisam - nesta "Idade do Fato", a informação muitas vezes domina sua atenção e esmaga suas capacidades de assimilá-la. Não é somente das habilidades da razão que precisam - embora suas lutas para adquiri-las muitas vezes esgotem sua energia moral limitada.

Aquilo de que precisam, e sentem que precisam, é uma quali­dade mental que os ajude a usar informação e desenvolver a razão de modo a alcançar sínteses inteligíveis do que está acontecendo no mundo e do que pode estar acontecendo dentro deles mesmos. É essa qualidade, vou sustentar, que jornalistas e estudiosos, artistas e públicos, cientistas e editores estão passando a esperar do que pode ser chamado de imaginação sociológica.

Page 42: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

H'1 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

A imaginação sociológica permite ao seu possuidor compreender o cenário histórico mais amplo em termos de seu significado para a vida interior e a carreira exterior de uma variedade de indiví­duos. Ela lhe permite levar em conta de que maneira indivíduos, no tumulto de suas experiências diárias, tornam-se muitas vezes falsamente cônscios de suas posições sociais. Nesse tumul to , busca-se a estrutura da sociedade moderna, e dentro dessa estru­tura formulam-se as psicologias de uma variedade de homens e mulheres. Por esses meios, a inquietação pessoal de indivíduos é concentrada em dificuldades explícitas e a indiferença de públicos é transformada em envolvimento com questões públicas.

O primeiro fruto dessa imaginação - e a primeira lição da ciên­cia social que a corporifica - é a idéia de que o indivíduo só pode compreender sua própr ia experiência e avaliar seu própr io destino situando-se dentro de seu período, de que ele só pode conhecer suas próprias chances na vida tornando-se consciente daquelas de todos os indivíduos em suas circunstâncias. Sob muitos aspectos, é uma lição terrível; mas t ambém, sob muitos aspectos, uma lição magnífica. Não conhecemos os limites das capacidades do homem para esforço supremo ou degradação voluntária, para agonia ou júbilo, para a brutalidade prazerosa ou a doçura da razão. Mas em nosso tempo descobrimos que os limites da "natureza humana" são assustadoramente amplos. Descobrimos que todo indivíduo vive, de uma geração para outra, em alguma sociedade; que ele vive uma biografia, e que ele a vive dentro de uma seqüência histórica. Pelo fato de viver, contribui, ainda que minimamente, para a confor­mação dessa sociedade e para o curso de sua história, mesmo que seja feito pela sociedade e por seu empurra-empurra histórico.

A imaginação sociológica nos permite apreender história e biografia e as relações entre as duas na sociedade. Essa é sua tarefa e sua promessa. Reconhecer essa tarefa e essa promessa é a marca do analista social clássico. É característico de Herbert Spencer -bombást ico , polissilábico, abrangente; de E.A. Ross - elegante, chegado a denúncias de corrupção, honrado; de Auguste Comte e

A promessa

Emile Durkheim; do intricado e sutil Karl Mannheim. É a qualidade de tudo que é intelectualmente excelente em Karl Marx; é a chave para a brilhante e irônica perspicácia de Thorstein Veblen, para as multifacetadas construções de realidade de Joseph Schumpeter; e a base do alcance psicológico de W.E.H. Lecky, não menos que da profundidade e clareza de Max Weber. E é o sinal do que há de melhor em estudos con temporâneos do homem e da sociedade.

Nenhum estudo social que não retorna aos problemas de bio­grafia, de história e de suas interseções numa sociedade completou sua jornada intelectual. Sejam quais forem os problemas específicos dos analistas sociais clássicos, por mais limitados ou por mais amplos que sejam os traços da realidade social que eles examinaram, aqueles que estavam imaginativamente cientes da promessa de seu trabalho fizeram com persistência três tipos de perguntas:

1. Qual é a estrutura dessa sociedade particular como um todo? Quais são seus componentes essenciais, e como eles se relacionam entre si? Como ela difere de outras variedades de ordem social? Dentro dela, qual é o significado de qualquer t raço particular para sua cont inuação e para sua mudança?

2. Onde se situa essa sociedade na história humana? Quais são os mecanismos pelos quais ela está mudando? Qual é seu lugar no desenvolvimento da humanidade como u m todo e qual é seu significado para ela? Como qualquer traço particular que estamos examinando afeta o per íodo histórico em que ela se move, e como é afetado por ele? E sobre esse período, quais são seus traços fun­damentais? Como ele difere de outros períodos? Quais são suas maneiras características de fazer a história?

3. Que variedades de homens e mulheres prevalecem agora nessa sociedade e nesse período? E que variedades estão passando a prevalecer? De que maneiras eles são selecionados e formados, liberados e reprimidos, tornados sensíveis e embotados? Que

Page 43: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

86 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

tipos de "natureza humana" são revelados na conduta e no caráter que observamos nessa sociedade durante esse período? E qual é o significado para a "natureza humana" de cada u m dos traços da sociedade que estamos examinando?

Quer o ponto de interesse seja uma grande potência ou uma tendência literária menor, uma família, uma prisão, u m credo -estes são tipos de perguntas que os melhores analistas sociais fize­ram. Elas são os eixos intelectuais dos estudos clássicos do homem na sociedade - e são as perguntas inevitavelmente suscitadas por qualquer mente dotada da imaginação sociológica. Pois essa imagi­nação é a capacidade de passar de uma perspectiva para outra - do político para o psicológico; do exame de uma única família para a avaliação comparativa dos orçamentos nacionais do mundo; da escola teológica para a organização militar; de considerações sobre uma indústria de petróleo para estudos de poesia contemporânea . É a capacidade de oscilar entre as transformações mais impessoais e remotas e os traços mais ínt imos da pessoa humana - e de ver as relações entre os dois. Por trás de seu uso está sempre o anseio por conhecer o significado social e histórico do indivíduo na sociedade e no per íodo em que ele tem sua qualidade e seu ser.

É por isso, em resumo, que se espera que através da imaginação sociológica os homens possam agora captar o que está acontecendo no mundo, e compreender o que está se passando em si mesmos como minúscu los pontos de interseção de biografia e história dentro da sociedade. Em grande parte, a visão autoconsciente que o homem tem de si mesmo como pelo menos um outsider, se não um estrangeiro permanente, repousa sobre uma percep­ção absorta da relatividade social e do poder transformador da história. A imaginação sociológica é a forma mais frutífera dessa autoconsciência. Mediante seu uso, homens cujas mentalidades abrangeram apenas uma série de órbitas limitadas chegam muitas vezes a se sentir como se tivessem despertado de repente numa casa com que haviam apenas suposto ter familiaridade. Correta ou incorretamente, chegam muitas vezes a sentir que podem agora

A promessa

suprir-se de sínteses adequadas, avaliações coerentes, orientações abrangentes. Decisões mais antigas, que outrora pareciam sólidas, agora lhes parecem produtos de uma mente inexplicavelmente obtusa. Sua capacidade de espanto é revigorada. Eles adquirem uma nova maneira de pensar, experimentam uma transposição de valores: numa palavra, por sua reflexão e por sua sensibilidade, compreendem o significado cultural das ciências sociais.

Page 44: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

O que significa ser um intelectual?

Para Tovarich, do Rio de Janeiro, Brasil, outono de 1959

Transcender por sua compreensão uma variedade de ambientes coti­dianos, mas não ser capaz de modificar, de mudar as forças estruturais em ação dentro e sobre esses ambientes; julgar, mas não ser capaz de impor o julgamento; exigir, mas não ser capaz de sustentar suas exigências - essa é a posição geral da maior parte dos intelectuais políticos, pelo menos nas sociedades ocidentais atualmente. Vendo-se nessa posição, muitos intelectuais pararam de julgar, retiraram suas exigências, engoliram sua presunção, caíram de volta nas rotinas políticas e morais de seus ambientes profissionais e residenciais. Há muitos modos, sociais e pessoais, de fazer isso, e todos estão sendo agora ativamente seguidos. Apesar de tudo isso, há algo nos intelec­tuais e na vida intelectual que os pressiona fortemente a assumir esse papel político de transcendência e julgamento. Há, de fato, muitas coisas, mas a primeira delas é que é simplesmente verdade que pen­sar de uma maneira realmente livre e ampla é, como se diz, "criar problemas", questionar e, no devido tempo, exigir e julgar.

Embora, por vários motivos, possa fingir ser de outro modo, o intelectual não deve ser apenas diligente; deve ser obcecado em sua devoção e, pelo menos por vezes, deve possuir uma suprema confiança em sua própria mente e julgamento, ou melhor, deve sentir que é o mais severo crítico de si mesmo - ninguém poderia conhecer melhor seus própr ios erros.

Page 45: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

90 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

Não acho que é demais dizer que um intelectual político é alguém que exige de si formulações claras de posição política. Ele não pode ser precipitado; quando tem de fazê-lo, isso o cons­trange. Ele leva a sério o que experimenta e o que diz a respeito. Se sua tarefa é formular planos de ação, é t a m b é m lutar por uma compreensão metódica da realidade, pois tal compreensão deve ser obtida para que a qualidade de seus planos de ação corresponda a seus padrões auto-impostos.

No país em que você vive [a União Soviética], há espaço para um uso irrestrito da razão - razão além da mera racionalidade téc­nica a serviço do poder? No país em que vivo, podemos escrever o que quisermos; n inguém nos prende. Ninguém tem de nos prender. Muitos de nós nos prendemos a nós mesmos. Muitos intelectuais nos Estados Unidos estão abdicando voluntariamente da atividade de protestar e do debate de alternativas para as políticas estúpidas ou a falta de políticas da elite no poder. Estão abdicando do papel da razão nos negócios humanos. Estão abdicando de fazer a história.

Tovarich, quero que você saiba que intelectuais do meu gêne­ro, vivendo nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha, enfrentam alguns problemas desanimadores. Como socialistas de um tipo ou de outro, somos uma minoria numa comunidade intelectual que é ela própr ia uma minoria. O problema mais imediato que enfrentamos é a presunção nacionalista e a complacência política em meio aos círculos intelectuais dominantes de nossos própr ios países. Defrontamo-nos com uma apatia realmente profunda acerca da política em geral e acerca dos maiores problemas do mundo atualmente.

I. Usos da alienação

Ser um indivíduo intelectual envolve certas escolhas entre grandes -embora, espero, não grandiosas - alternativas. A primeira delas tem a ver com a vida cotidiana e podemos expressá-la da seguinte

O que significa ser um intelectual? 91

maneira. A maioria das pessoas se acomoda à vida privada e co­tidiana de seu ambiente. Aceitando em geral essa vida e seu lugar dentro dela, consideram seus valores como, afinal de contas, os mais apreciáveis. No fim, a rotina da vida familiar e os rostos de seus filhos, u m emprego estável e agradável, digamos como professor universitário, e mais tarde uma casa bonita, um artigo publicado a cada três anos e quem sabe um livro-texto para enfeixá-los - isso não é mais ou menos tudo que há nela? E, afinal de contas, não é esta uma vida muito boa? Talvez a maioria das pessoas hoje res­ponda de imediato, sim, deve ser.

Aqui está a segunda alternativa, que pode ser expressada na forma de uma pergunta: devo construir minha vida em torno de projetos que transcendem a vida cotidiana e privada? Rejeitando geralmente como supremos os valores dessa vida e meu lugar dentro dela, devo entrar em tensão com ela sempre que necessário? Devo passar a me ver como não só um homem comum, mas tam­bém como de certa maneira representante do discurso da razão?

Uma palavra-chave aqui é "projeto", que tomo de Simone de Beauvoir, uma mulher admirável que escolheu a segunda alter­nativa, e alguém que você tem que ler, especialmente se for uma mulher ou conhecer uma mulher. Outra chave é "padrão", com o que me refiro às exigências que formulamos, aceitamos e fazemos a nós mesmos. N ã o é tanto que vivamos para idéias, é que real­mente não podemos viver sem elas - embora, é claro, possamos existir. Mas não estamos numa servidão involuntária aos poderes do lugar-comum e ao terrível domín io do cotidiano.

A maior parte das pessoas não vai atrás das coisas que estão fora de seu alcance, mas o intelectual, o artista e o cientista fazem exatamente isso. Fazê-lo é u m traço normal de suas vidas de tra­balho. Eles contemplam suas pinturas, pensam sobre seus livros, examinam novamente a fórmula e sabem que aquilo não é bom o suficiente e talvez nunca vá ser.

Estar desgostoso com a maneira como anda o mundo não é necessariamente ser uma pessoa rabugenta. Estar contrafeito

Page 46: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

92 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

com o mundo não é necessariamente estar contrafeito consigo mesmo. Embora uma boa parte de nossa experiência talvez seja necessariamente alienada, a capacidade de experiência de vida não precisa ser expropriada. É inteiramente possível estar adequa­damente isolado e portanto não alienado; é possível viver numa sociedade superdesenvolvida, mas não ser uma pessoa subdesen­volvida. Isso depende em parte das maneiras como escapamos de aspectos desagradáveis de nós mesmos e de nossas condições. Todo mundo com alguma vivacidade se entrega a muitas fugas, e está continuamente planejando futuras fugas, com as quais espera aprender alguma coisa sobre si mesmo e sobre o mundo. Pois o que é importante nas fugas não é evitá-las (ou con t inuar íamos sendo sempre um de nossos velhos eus), mas escolhê-las com cuidado e usá-las bem.

II. O caráter internacional da vida intelectual

Você e eu, Tovarich, somos estudiosos, escritores e leitores; pertencemos a algo maior que qualquer governo; devemos lealdade, se você quiser, a algo mais elevado que qualquer Es­tado. Lealdades políticas são condicionais a nosso raciocínio, e tais lealdades não estão circunscritas por fronteiras nacionais. Este é um ponto mui to importante para nossa tentativa de nos comunicarmos. A vida intelectual, e portanto a vida de trabalho de qualquer intelectual, n ã o está confinada a nenhuma nação. As mentes dos intelectuais foram formadas por um processo essencialmente internacional, e seu trabalho é essencialmente u m tráfego internacional.

O internacionalismo da mente e das sensibilidades não é um internacionalismo abstrato. Nem é inacessível. Está disponível na livraria da esquina, na biblioteca no centro da cidade; é tão sólido quanto a sensação produzida pelo aspecto de uma viga de aço, tão específico quanto a graça de um broto de bambu, tão geral quanto

O que significa ser um intelectual?

a idéia de natureza ou de humanidade. O internacionalismo da mente e das sensibilidades é inerente ao princípio do intelectual de que toda crença deve ser condicional ao raciocínio do indivíduo, e de que todas as suas sensibilidades e preferências de valor moral e estético devem ser produtos de autocultivo consciente. Não há outro sentido para o livre uso da mente humana, para a genuína liberação do eu.

III. Que significa escrever

Como escritor, sempre tentei, ainda que de maneiras diferentes, fazer uma única coisa: definir e dramatizar as características es­senciais de nosso tempo. Quer eu tenha escrito sobre líderes traba­lhistas ou fazendeiros, sobre executivos de empresa ou migrantes porto-riquenhos, sobre empregados de escritório, donas-de-casa ou operários, tentei vê-los como atores no drama do século XX. Muitas vezes falhei nisso, e sem dúvida voltarei a falhar, mas é isso que estou tentando fazer.

O bom escritor tenta unir uma variedade de vidas privadas com questões públicas. Tenta enriquecer a vida privada tornan­do-a publicamente relevante. Ao mesmo tempo, tenta introduzir significado humano no que é hoje chamado de questões públicas, transformando-as para que permitam e estimulem uma variedade mais decente de vidas privadas. Devemos nos recusar a separar as duas coisas, pois embora a medida mais adequada das questões públicas deva ser sempre as vidas privadas que elas permitem, a natureza de uma de nossas muitas armadilhas é que não podemos esperar resolver os problemas da vida privada nem da vida pública separadamente. O que devemos fazer como escritores é começar a transformar todas as nossas armadilhas numa série de tarefas. Pois com freqüência assumimos o hábito do animal preso numa armadilha; esquecemos que não somos meramente animais, e que não caímos numa armadilha.

Page 47: MILLS, Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e Outros Ensaios

Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios

Uma outra coisa que devemos lembrar, que sempre tendo a esquecer, é que não devemos subestimar o que mesmo uma pequena circulação de idéias é capaz de fazer, em especial - se posso dizer isto - idéias cômicas e sem sentido. Os homens de poder são implacáveis, e nossas principais armas em tempos como estes são a audácia e o riso. Gostaria de ter mais senso de humor, Tovarich, mas pareço simplesmente incapaz disso, pessoalmente, ou nas coisas que escrevo.

Escrever, se nos dedicamos a isso por tempo suficiente, é evidentemente u m conjunto de hábitos e de sensibilidades que moldam quase todas as nossas experiências. Escrever é, entre outras coisas, sempre uma maneira de compreender a nós mesmos. Só compreendemos nossos própr ios sentimentos e nossas próprias idéias escrevendo-os.

Não pretendo, Tovarich, conhecer todas as razões, profundas ou superficiais, pelas quais uma variedade de pessoas escreve, mas um motivo, pelo menos para m i m , tem a ver com a sensação de pôr mais uma parte do mundo numa forma ordenada enquanto estou efetivamente empenhado em escrever. Escrever é raciocinar; é lutar contra o caos e a escuridão. Há u m entusiasmo que "toma conta de nós" quando sentimos - não importa agora se é assim ou não - que estamos conquistando mais u m pouco desse caos para e pelo entendimento. É claro que se trata t a m b é m de uma luta contra outras idéias e arranjos de idéias e imagens a que somos contrários, moral, lógica ou factualmente.

Acima de tudo isto, há um elemento estético na escrita que está provavelmente envolvido em qualquer trabalho manual, em qualquer tentativa de impor forma à matéria. É provavelmente similar na pedra, na madeira ou no som, mas, evidentemente, é no meio da linguagem que é mais intricado e mais agradável para m i m .

No fim das contas, suponho, a principal razão por que não sou "alienado" é porque escrevo. Após um longo tempo nisso, pas­samos a saber o quanto podemos ficar totalmente vivos no meio do

O que significa ser um intelectual? 95

grande fluxo. Após quatro ou cinco semanas de trabalho constante, paramos uma m a n h ã para examinar tudo. Mesmo após 20 anos nisso, é sempre espantoso, essas 100 páginas, ou perto disso, onde antes não havia nada. Elas corporificam os minutos, horas e dias mais alertas que jamais tivemos.