memórias vivas do mcp

7
 1 MESA-REDONDA: HISTÓRIA E MEMÓRIA VIVA A PARTIR DO MOVIMENTO DE CULTURA POPULAR (MCP) EIXO TEMATICO: EDUCAÇÃO POPULAR E MOVIMENTOS SOCIAIS MEMÓRIA VIV A DOS TEMPOS DO MCP: REMINISCÊNCIAS OU FICÇÃO? ZAÍRA ARY Professora Adjunta Aposentada da Universidade Federal do Ceará (UFC) Doutor a pela Universit é Paris VII (França) Orientadora: Mme. Michelle Perrot INTRODUÇÃO: MEMÓRIA OU FICÇÃO Escrever sobre o nosso passado não seria construir certa ficção na medida em que nossas lembranças, nossas palavras e nossos escritos não dão conta literalmente do vivido humano em sua riqueza e em sua complexidade dramática? Quantos caminhos sinuosos e quantas artimanhas mentais embaralham a memória sobre nossa história passada, acentuando certas reminiscências e encobrindo outras, como já dizia FREUD? Dizendo ainda de outra maneira: devido à precariedade de nossa constituição subjetiva  pois (...) Não somos senhores em nossa própria casa” [FREUD], nossas reminiscências não estariam um tanto desbotadas ou desfocadas com a superposição de tantas experiências vividas cumulativamente, com a sucessão de muitos acontecimentos suportados e recalcados, enfim, com tantas mutações ocorridas em nossas vidas? Portanto, considero este meu escrito um texto até certo ponto ficcional.

Upload: nosdebambu

Post on 05-Nov-2015

220 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Memórias Vivas do MCP

TRANSCRIPT

  • 1

    MESA-REDONDA: HISTRIA E MEMRIA VIVA A PARTIR DO

    MOVIMENTO DE CULTURA POPULAR (MCP)

    EIXO TEMATICO: EDUCAO POPULAR E MOVIMENTOS

    SOCIAIS

    MEMRIA VIVA DOS TEMPOS DO MCP: REMINISCNCIAS

    OU FICO?

    ZARA ARY

    Professora Adjunta

    Aposentada da Universidade Federal do Cear (UFC)

    Doutora pela Universit Paris VII (Frana)

    Orientadora: Mme. Michelle Perrot

    INTRODUO: MEMRIA OU FICO

    Escrever sobre o nosso passado no seria construir certa fico na medida

    em que nossas lembranas, nossas palavras e nossos escritos no do conta

    literalmente do vivido humano em sua riqueza e em sua complexidade

    dramtica? Quantos caminhos sinuosos e quantas artimanhas mentais

    embaralham a memria sobre nossa histria passada, acentuando certas

    reminiscncias e encobrindo outras, como j dizia FREUD? Dizendo ainda

    de outra maneira: devido precariedade de nossa constituio subjetiva

    pois (...) No somos senhores em nossa prpria casa [FREUD], nossas

    reminiscncias no estariam um tanto desbotadas ou desfocadas com a

    superposio de tantas experincias vividas cumulativamente, com a

    sucesso de muitos acontecimentos suportados e recalcados, enfim, com

    tantas mutaes ocorridas em nossas vidas? Portanto, considero este meu

    escrito um texto at certo ponto ficcional.

  • 2

    UM POUCO DE MINHA BIOGRAFIA: SERVIO SOCIAL E JUC

    Com vinte e um anos eu j fazia o primeiro ano de estudos universitrios na

    Escola de Servio Social de Fortaleza (onde era presidente do Centro

    Acadmico e tambm j freqentava a Juventude Universitria Catlica),

    quando fui convidada, em 1960, a compor a Equipe Regional da JUC do

    Nordeste, com sede em Recife. Esta era uma promoo inesperada!

    Migrei de Fortaleza para a chamada Veneza Brasileira Recife - na mais

    pura inocncia, minha e de meu pai , quando ele orgulhosamente

    concordou com este honroso convite da JUC que ele, alis, deveria

    financiar. Que cidade era esta, para onde eu iria morar temporariamente e

    continuar meus estudos? Que belezas ela exibia e que surpresas ela me

    escondia? Seria parecida com a pacata e ingnua Fortaleza onde eu

    morava at ento? Que perigos ela abrigaria para uma cearense talvez

    despreparada para aquela inesperada e profunda mudana? E que ventos

    novos sopravam na regio e no pas? L eu deveria continuar meu Curso de

    Servio Social (2 ano) e tambm integrar a Equipe Regional da JUC do

    Nordeste que era composta de um sacerdote, dois militantes cearenses e

    dois militantes pernambucanos. Certamente com esta mudana - nova

    cidade, nova Escola, nova experincia jucista - tive um tremendo choque

    cultural: muitas surpresas, muito aprendizado, certo deslumbramento e

    uma experincia de vida estudantil, religiosa e citadina nunca antes por

    mim imaginada. Contudo, este enriquecimento cultural no amenizava a

    saudade que eu sentia de minha famlia que ficara em Fortaleza.

    ARES DO TEMPO

    O que se passaria ento em Recife? A JUC abrindo nossos horizontes em

    termos de cristandade, de cultura e de cidadania [evangelizar e salvar os

    pobres, a cidade, a regio, o pas (?)]; a arquidiocese de Recife e Olinda

    com novo bispo - Dom Helder Cmara trazendo uma esperana de

    renovao na Igreja; o governo de Pernambuco com o novo governador

    Miguel Arraes, sinalizando mudanas progressistas; a fundao da

    SUDENE, com Celso Furtado, prometendo uma nova situao para o

    Nordeste; a implementao da educao e da cultura popular com o

    Movimento de Cultura Popular (da prefeitura de Recife), com o MEB e

  • 3

    com outros movimentos similares; para o pas as expectativas das reformas

    de base. Seriam tempos de trabalho, de solidariedade e de muitas

    esperanas? Ganhei assim minha nova cidade: vibrao juvenil e

    liberdade! Como Recife parecia moderna e culturalmente mais

    movimentada se comparada Fortaleza da poca.

    CURSO DE SERVIO SOCIAL, JUC E EDUCAO POPULAR

    Durante trs anos foi muito intensa e muito interessante minha

    movimentao em Recife por causa do curso e da JUC. Por causa do curso

    de Servio Social, fiz, por exemplo, um estgio de atendimento no morro

    de Vasco da Gama, em Casa Amarela. Por causa da JUC, viajei por todo o

    Nordeste, supervisionando os encontros dos militantes em vrias cidades.

    Na JUC, nos encontrvamos com outros militantes na sede do movimento

    (Rua da Conceio), nas missas (Igreja de Santo Antonio e Igreja do

    Espinheiro) e nas festinhas depois da missa. Isso a era bom! Sobretudo,

    no d para esquecer os inmeros encontros coletivos da JUC (encontros

    locais, regionais e nacionais). Vejam algumas fotos da poca:

  • 4

    Vejam ainda abaixo uma foto que d uma idia de como foi o Encontro

    dos Dez Anos da JUC, no Rio de janeiro, em 1960. Conforme os

    depoimentos que colhi para minha tese de doutorado sobre o que foi a

    experincia da JUC para alguns jovens dos anos 50 e 60 no Brasil, estes

    foram momentos inesquecveis e muito marcantes para suas vidas.

    Para concluir meu Curso de Servio Social, no quarto ano deste, eu deveria

    escolher um estgio que me permitisse escrever meu Trabalho de

    Concluso de Curso (TCC). Encaminhada por minha orientadora, a

    assistente social Dolores Cruz Coelho - e com a aprovao da direo da

    Escola de Servio Social de Pernambuco (D. Lourdes Morais), no sem

    receio, fui Prefeitura de Recife para falar com um senhor de nome Paulo

    Freire (que eu no conhecia ainda, pois eu no era pernambucana e no

    tinha sido aluna dele na Escola). Ele precisava de algum para realizar seu

    primeiro Centro de Cultura do Projeto de Educao de adultos, do

    Movimento de Cultura Popular. De imediato aceitei a proposta de trabalho:

    gostei daquele projeto e gostei daquele homem! Comecei logo a trabalhar

    com ele e assim, no ano todo de 1962, aconteceu minha experincia de

    trabalho noturno, como estagiria de Servio Social, no Centro de Cultura

  • 5

    Dona Olegarinha, do Movimento de Cultura Popular, no Poo da Panela,

    em Casa Forte. Contando esta rica e interessante experincia, escrevi o meu

    TCC que se intitulou: UMA EXPERINCIA DE EDUCAO

    POPULAR: CENTRO DE CULTURA DONA OLEGARINHA -

    MOVIMENTO DE CULTURA POPULAR -, que foi aprovado pela minha

    Escola e assim me tornei assistente social naquela poca.

    PAULO FREIRE E A ALFABETIZAO DE ADULTOS

    L, no Cento de Cultura Dona Olegarinha, Paulo Freire praticou suas

    primeiras experincias em alfabetizar adultos pelo mtodo que ele estava

    criando (sem cartilha) com a participao efetiva de um estudante de

    medicina - Carlos Augusto Nicas, que tambm era militante da JUC de

    Recife. Assim, conheci e trabalhei com o educador PAULO FREIRE, um

    intelectual cristo (o que na poca me tranqilizava) simples, afetuoso e

    criativo que nos acolhia em sua casa quando passvamos no jeep do MCP

    para receber suas instrues a caminho do trabalho noturno no Poo.

    Nessas ocasies, alm de encontrarmos seus filhos, Dona Elza, esposa de

    Paulo Freire, tambm educadora, nos recebia carinhosamente com uma

    gostosa sopa que nos fortalecia para enfrentar aquela labuta noturna.

    IMPORTNCIA HISTRICA DO POO DA PANELA

    O Centro de Cultura D. Olegarinha funcionou numa grande casa, que mais

    parecia uma casa de antiga fazenda. Nesta casa que pertencia parquia

    local antes de ser cedida prefeitura para a realizao do Centro,

    funcionava uma escola paroquial para crianas. Antes da inaugurao,

    visitei e entrevistei quarenta famlias moradoras da beira do rio para

    convid-las para freqentar o Centro. Um dos moradores do Poo que

    entrevistei me falou da importncia histrica do Poo da Panela. Este

    senhor, que tinha aproximadamente uns noventa anos, e era um dos

    moradores mais antigos do Poo (ali passou a residir em 1890) me contou

    que: (...) nesse tempo s havia trs casas, numa das quais residia o lder

    abolicionista Jos Mariano, e sua esposa D. Olegarinha, que protegiam os

    escravos fugitivos de seus senhores e que, muitas vezes, ali chegavam

    quase s portas da morte devido aos maltratos sofridos. Narrou que D.

    Olegarinha tratava os ferimentos dos escravos e os embarcava em canoas

    cobertas de capim no rio Capibaribe que passava atrs de sua casa; assim

  • 6

    eles fugiam para o Cear e para outras provncias do Norte que primeiro

    aboliram a escravido. Jos Mariano foi preso em 1893 e pouco depois D.

    Olegarinha morreu. Encontramos ainda, em um texto sobre o Clube do

    Cupim,as informaes que se seguem abaixo:

    (...) Aqui no Recife, os carregamentos e envios de escravos

    clandestinos para outros locais, passaram a ser mais numerosos e

    freqentes. Os escravos eram enviados tambm para Camocim, Natal,

    Macau, Macaba, Belm, Manaus, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e at

    Montevidu, no Uruguai. A ltima faanha do Clube do Cupim foi o

    embarque de 119 escravos, realizado no dia 23 de abril de 1888. Desceram

    noite, do Poo da Panela, da casa de Jose Mariano em uma canoa de

    capim at a Capunga, sendo depois rebocados por dois botes que

    fundearam em frente casa de banhos, passando da para o barco Flor de

    Liz e, na manh seguinte, para um rebocador que os levou para a liberdade.

    No dia 13 de maio, a princesa Isabel assinou a Lei urea. [TEXTO SOBRE O CLUBE DO CUPIM]

    NOVA ETAPA EM MINHA VIDA

    Numa noite, trabalhando no Poo da Panela, recebi minha aliana de

    noivado. Incio de Sousa Farias (estudante de Direito e Sub-Delegado

    Regional do Trabalho), que tambm havia assinado a ata de fundao do

    MCP, se tornou meu noivo e me ajudou na datilografia do meu TCC. Papai,

    na poca, brincava dizendo que tinha sido enganado, pois, essa tal de JUC

    era na verdade Juventude Universitria Casamenteira. Casamos, em

    Fortaleza, em maro de 1963 e, depois, por estar grvida de meu primeiro

    filho (fato que me impedia de continuar o trabalho noturno) passei a

    compor a equipe das Praas de Cultura, outro projeto do MCP, idealizado

    e implementado por Paulo Rosas e, naquela ocasio, coordenado por Silke

    Weber. Por esse motivo, passei a freqentar mais a sede do MCP O Stio

    da Trindade onde ficava a coordenao das Praas e de todos os

    inmeros projetos do MCP. Grande era a movimentao cultural na sede do

    movimento. Lembro especialmente de ter assistido a uma palestra do

    socilogo francs Dumazedier, entre outros acontecimentos desta natureza.

    Nesse tempo, a direo do MCP j havia passado de Germano Coelho para

    Miguel Newton Arraes de Alencar. Devido a problemas na gravidez, e com

    a recomendao mdica de fazer repouso absoluto, tive que me afastar

  • 7

    tambm do projeto Praas de Cultura.

    Um dia (...) tudo isso repentinamente desmoronou e doeu bastante! Fico

    por aqui: quem quiser que conte mais...

    Palavras chave: Escola de Servio Social de Pernambuco,

    Alfabetizao de Adultos (MCP), Juventude Universitria Catlica

    Bibliografia mnima:

    ARY, Zara - Monografia (TCC): Uma experincia de educao popular: Centro de Cultura D. Olegarinha" (MCP).

    Poo da Panela, Recife, 1962. Movimento de Cultura Popular: Projeto "Centros de Cultura", [Coordenador: Paulo Freire], Recife, 1962.

    FARIAS, Zara Ary - Domesticidade: Cativeiro Feminino? Rio de Janeiro: Achiam, 1983, (150 pp.) (Mestrado na Universidade Federal do Cear)

    ARY, Zara - Masculino e feminino no imaginrio catlico. Da Ao Catlica Teologia da Libertao, Fortaleza: Secult/ So Paulo: Annablume, 2000 (Doutorado na Universidade de Paris VII, FRANA)