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M E M Ó R I A S D E U M A G U E R R A S U J A E A P A R T I C I P A Ç Ã O D A M Í D I A N O A P O I O À D I T A D U R A m a i o 2 2 , 2 0 1 2 A F o l h a d a M a n h ã , d o G r u p o F o l h a , a p o i o u a d i t a d u r a O l i v r o M e m ó r i a s d e u m a g u e r r a s u j a , d e p o i m e n t o d o e x - d e l e g a d o d o D O P S , C l a u d i o G u e r r a , a M a r c e l o N e t t o e R o g é r i o M e d e i r o s , f o i r e c e b i d o i n i c i a l m e n t e c o m c e r t a i n c r e d u l i d a d e a t é p o r s e t o r e s p r o g r e s s i s t a s . H á r e v e l a ç õ e s a l i q u e c a u s a m u m a r e j e i ç ã o v i s c e r a l d e a u t o - d e f e s a . R e p u g n a i m a g i n a r q u e e m t r o c a d e c r é d i t o s e f a c i l i d a d e s j u n t o à d i t a d u r a , u m a u s i n a d e a ç ú c a r d o R i o d e J a n e i r o t e n h a c e d i d o s e u f o r n o p a r a i n c i n e r a r c a d á v e r e s d e p r e s o s p o l í t i c o s m o r t o s n a s m ã o s d o a p a r a t o r e p r e s s i v o . O a c o r d o q u e t e r i a s i d o f e i t o n o f i n a l d e 1 9 7 3 , s e c o m p r o v a d o , p o d e s e t o r n a r o s í m b o l o m a i s a b j e t o d e u m a f a c e t a s e m p r e o m i t i d a n a s i n v e s t i g a ç õ e s s o b r e a d i t a d u r a : a c o l a b o r a ç ã o f u n c i o n a l , d i r e t a , n ã o a p e n a s c u m p l i c i d a d e i d e o l ó g i c a e p o l í t i c a , m a s o p e r a c i o n a l , e n t r e c o r p o r a ç õ e s p r i v a d a s , e m p r e s á r i o s e a r e p r e s s ã o p o l í t i c a . U m c a s o c o n h e c i d o é o d a F o l h a d a T a r d e , j o r n a l d a f a m í l i a F r i a s , q u e c e d e u v i a t u r a s a o a p a r a t o r e p r e s s i v o p a r a c a m u f l a r o p e r a ç õ e s p o l i c i a i s . T o d a v i a , o d e p o i m e n t o d e G u e r r a m o s t r a q u e n e m o c a s o d a u s i n a d a n t e s c a , n e m o r e p a s s e d e v i a t u r a s d a F o l h a f o r a m e x c e ç ã o . E s s e é o a s p e c t o d o r e l a t o q u e m a i s i m p r e s s i o n o u a o e s c r i t o r e j o r n a l i s t a B e r n a r d o K u c i n s k i , q u e a c a b a d e l e r o l i v r o . S u a i r m ã , A n a R o s a K u c i n s k i , e o c u n h a d o , W i l s o n S i l v a , f o r a m s e q u e s t r a d o s e m 1 9 7 4 e d e s d e e n t ã o i n t e g r a m a l i s t a d o s d e s a p a r e c i d o s p o l í t i c o s b r a s i l e i r o s . B e r n a r d o a t e s t a : E s t a t u d o l á : e m p r e s a s i m p o r t a n t e s c o m o a G a s b r a s , a W h i t e M a r t i n s , a I t a p e m i r i m , o g r u p o F o l h a e o b a n c o S u d a m e r i s , q u e e r a o b a n c o d a r e p r e s s ã o ; o d i n h e i r o d o s e m p r e s á r i o s j o r r a v a p a r a c u s t e a r a s o p e r a ç õ e s c l a n d e s t i n a s e p r e m i a r o s b a n d i d o s c o m b o n i f i c a ç õ e s g e n e r o s a s . N o l i v r o , C l a u d i o G u e r r a a f i r m a q u e A n a R o s a e W i l s o n C a m p o s a e x e m p l o d o q u e t e r i a o c o r r i d o c o m m a i s o u t r o s o i t o o u n o v e p r e s o s p o l í t i c o s t i v e r a m s e u s c o r p o s i n c i n e r a d o s n o i m e n s o f o r n o d a U s i n a C a m b a h y b a , l o c a l i z a d a n o m u n i c í p i o f l u m i n e n s e d e C a m p o s . A i n c r e d u l i d a d e i n i c i a l c o m e ç a a c a i r p o r t e r r a . F a m i l i a r e s d e d e s a p a r e c i d o s p o l í t i c o s t e m f e i t o a l g u m a s c h e c a g e n s d e d a d o s e d e s c r i ç õ e s c o n t i d a s n o l i v r o . B a t e m c o m i n f o r m a ç õ e s e p i s t a s a n t e r i o r e s . C o n s t a a i n d a q u e o p r ó p r i o g o v e r n o t e v e a c e s s o a n t e c i p a d o a o s r e l a t o s e t e r i a c o n f e r i d o a l g u m a s v e r s õ e s , c o n f i r m a n d o - a s . T a m p o u c o o l i v r o s e r i a p r o p r i a m e n t e u m a n o v i d a d e p a r a m i l i t a n t e s d o s d i r e i t o s h u m a n o s q u e t r a b a l h a m j u n t o a o g o v e r n o . O d e p o i m e n t o d e G u e r r a , d e a c o r d o c o m a l g u n s d e s s e s m i l i t a n t e s , t e r i a s i d o n e g o c i a d o h á m a i s d e d o i s

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Page 1: Memórias de uma guerra suja e a participação da mídia no apoio à ditadura « Diálogos Políticos

MEMÓRIAS DE UMA GUERRA SUJA E A PARTICIPAÇÃODA MÍDIA NO APOIO À DITADURAmaio 22, 2012

A Folha da Manhã, do Grupo Folha, apoiou a ditadura

O livro Memórias de uma guerra suja, depoimento do ex-delegado do DOPS, Claudio Guerra, a Marcelo Netto e

Rogério Medeiros, foi recebido inicialmente com certa incredulidade até por setores progressistas. Há revelações

ali que causam uma rejeição visceral de auto-defesa. Repugna imaginar que em troca de créditos e facilidades

junto à ditadura, uma usina de açúcar do Rio de Janeiro tenha cedido seu forno para incinerar cadáveres de

presos políticos mortos nas mãos do aparato repressivo.

O acordo que teria sido feito no final de 1973, se comprovado, pode se tornar o símbolo mais abjeto de uma

faceta sempre omitida nas investigações sobre a ditadura: a colaboração funcional, direta, não apenas

cumplicidade ideológica e política, mas operacional, entre corporações privadas, empresários e a repressão

política. Um caso conhecido é o da Folha da Tarde, jornal da família Frias, que cedeu viaturas ao aparato

repressivo para camuflar operações policiais.

Todavia, o depoimento de Guerra mostra que nem o caso da usina dantesca, nem o repasse de viaturas da Folha

foram exceção. Esse é o aspecto do relato que mais impressionou ao escritor e jornalista Bernardo Kucinski,

que acaba de ler o livro. Sua irmã, Ana Rosa Kucinski, e o cunhado, Wilson Silva, foram sequestrados em 1974

e desde então integram a lista dos desaparecidos políticos brasileiros.

Bernardo atesta:’ Esta tudo lá: empresas importantes como a Gasbras, a White Martins, a Itapemirim, o grupo

Folha e o banco Sudameris, que era o banco da repressão; o dinheiro dos empresários jorrava para custear as

operações clandestinas e premiar os bandidos com bonificações generosas’.

No livro, Claudio Guerra afirma que Ana Rosa e Wilson Campos — a exemplo do que teria ocorrido com mais

outros oito ou nove presos políticos — tiveram seus corpos incinerados no imenso forno da Usina Cambahyba,

localizada no município fluminense de Campos.

A incredulidade inicial começa a cair por terra. Familiares de desaparecidos políticos tem feito algumas

checagens de dados e descrições contidas no livro. Batem com informações e pistas anteriores. Consta ainda

que o próprio governo teve acesso antecipado aos relatos e teria conferido algumas versões, confirmando-as.

Tampouco o livro seria propriamente uma novidade para militantes dos direitos humanos que trabalham junto ao

governo. O depoimento de Guerra, de acordo com alguns desses militantes, teria sido negociado há mais de dois

Page 2: Memórias de uma guerra suja e a participação da mídia no apoio à ditadura « Diálogos Políticos

anos, com a participação direta de ativistas no Espírito Santo.

A escolha dos jornalistas que assinam o trabalho – um progressista e Marcelo Netto, ex-Globo simpático ao

golpe de 64 – teria sido deliberada para afastar suspeitas de manipulação. Um pedido de proteção para Claudio

Guerra já teria sido encaminhado ao governo. Sem dúvida, o teor de suas revelações, e a lista de envolvimentos

importantes, recomenda que o ex-delegado seja ouvido o mais rapidamente possível pela Comissão da Verdade.

Bernardo Kucinski, autor de um romance, ‘K’, – na segunda edição – que narra a angustiante procura de um pai

pela filha engolida no sumidouro do aparato de repressão, respondeu a quatro perguntas de Carta Maior sobre as

“Memórias de uma Guerra Suja”:

– Depois de ler a obra na íntegra, qual é a sua avaliação sobre a veracidade dos relatos?

– As confissões são congruentes e não contradizem informações isoladas que já possuíamos. Considero o relato

basicamente veraz, embora claramente incompleto e talvez prejudicado pelos mecanismos da rememoração, já

que se trata da confissão de uma pessoa diretamente envolvida nas atrocidades que relata.

– Por que um depoimento com tal gravidade continua a receber uma cobertura tão rala da mídia? Por exemplo,

não mereceu capa em nenhuma revista semanal ‘investigativa’.

– Pelo mesmo motivo de não termos até hoje um Museu da Escravatura , não termos um memorial nacional aos

mortos e desaparecidos da ditadura militar, e ainda ensinarmos nas escolas que os bandeirantes foram heróis;

uma questão de hegemonia de uma elite de formação escravocrata.

– Do conjunto dos relatos contidos no livro, quais lhe chamaram mais a atenção?

– O episódio específico que mais me chamou a atenção foi a participação direta do mesmo grupo de extermínio

no golpe organizado pela CIA para derrubar o governo do MPLA em Angola, com viagem secreta em avião da

FAB.

– O que mais ele revela de novo sobre a natureza da estrutura repressiva montada no país, depois de 64?

– Fica claro que as Forças Armadas montaram grupos de captura e extermínio reunindo matadores de aluguel,

chefes de esquadrões da morte, banqueiros do jogo do bicho, contrabandistas e narcotraficantes. Chamaram

esses bandidos e seus métodos para dentro de si. Esses criminosos, muitos já condenados pela justiça,

dirigidos e controlados por oficiais das Forças Armadas, a partir de uma estratégia traçada em nível de Estado

Maior, executavam operações de liquidação e desaparecimento dos presos políticos, o que talvez explique o

barbarismo das ações. Também me chamou a atenção a participação ampla de empresários no financiamento

dessa repressão, empresas importantes como a Gasbras, a White Martins, a Itapemirim, o grupo Folha – que

emprestou suas peruas de entrega para seqüestro de ativistas políticos -, e o banco Sudameris, que era o banco

da repressão; dinheiro dos empresários jorrava para custear as operações clandestinas e premiar os bandidos

com bonificações generosas. Está tudo lá no livro.

(CORREIO DO BRASIL)