eficácia da lista suja no combate ao trabalho escravo

Upload: giovani-de-morais

Post on 16-Jul-2015

1.282 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR CENTRO DE CINCIAS JURDICAS Curso de Direito

IDA ANDRADE FERNANDES

EFICCIA DA LISTA SUJA NO COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO

Belm 2006

2

IDA ANDRADE FERNANDES

EFICCIA DA LISTA SUJA NO COMBATE AO TRABALHO ESCRAVOTrabalho de Concluso de Curso apresentado para obteno do grau de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. Jos Claudio Monteiro de Brito Filho.

Belm 2006

3

F363e

Fernandes, Ida Andrade. Eficcia da lista suja no combate ao trabalho escravo./ Ida Andrade Fernandes. Belm: Universidade Federal do Par, 2006.

Monografia (graduao). Curso de Direito.

1. TRABALHO ESCRAVO. 2. Trabalho forado. 3 Trabalho degradante. 4. Lista suja do trabalho escravo. 5. Direitos humanos. 6. Dignidade humana. I. Fernandes, Ieda Andrade. II. Universidade Federal do Par. III.Ttulo. CDDir: 341.1512.098115

4

IDA ANDRADE FERNANDES

EFICCIA DA LISTA SUJA NO COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO

Trabalho de Concluso de Curso apresentado para obteno do grau de Bacharel em Direito.

Data de aprovao: Banca examinadora:

_____ / _____ / _____

__________________________________ - Orientador __________________________________ Membro: Titulao: Instituio: __________________________________ Membro: Titulao: Instituio: __________________________________ Membro: Titulao: Instituio:

5

AGRADECIMENTOS

Universidade Federal do Par por abrigar sonhos de toda uma vida. Coordenao do Curso de Direito, em especial ao Professor Francisco de Freitas, pela sempiterna compreenso. Ao doutor Jos Claudio pelo crdito proposta inicial, levada a cabo graas a sua competente orientao. Aos mestres Paulo Juaci, Sandoval Alves e Jorge Alex Athias pela excelncia ao longo do curso. Vocs verdadeiramente dignificam o ato de ensinar. Ao Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amaznia pela indescritvel oportunidade, com destaque para as orientaes de Paulo Barreto e Brenda Brito. A Henrique Jenne pela reviso textual, sugestes quanto a estilo e competente traduo. minha me pelo comeo de todas as lies, em especial, aquelas ligadas a persistncia. Seu exemplo trouxe-me aqui e, creio, levar mais adiante, pois alm do sopro da vida voc soube dar asas aos meus sonhos. Maria Izabel Alves por todo companheirismo, amor e incentivo. Agora, alm de irms, seremos colegas. Nossas vidas sempre cruzadas. A todos os colegas e amigos do curso. Nossa turma foi verdadeiramente um espao democrtico e palco de excelentes momentos. Aos diletos amigos Odoaldo Vasconcelos, Cludia Rosa e Elizabete Pereira, meu agradecimento por sempre comprarem meus sonhos. Afinal, sonho que se sonha junto vira realidade.

6

O nico modo de proteger a liberdade proteger a liberdade do prximo. Voc s ser livre se eu for livre. Clarence Darrow A fora do direito deve superar o direito da fora. Rui Barbosa.

7

RESUMO

A violncia contra o trabalhador rural no Brasil e, mais especificamente, nas regies Sul e Sudeste do Par, caracterstica da estrutura agrria brasileira, pautada em relaes econmicas, polticas e culturais intimamente atreladas m distribuio de terra, renda e oportunidades. Herana de um passado a todo custo escondido e ignorado, a escravido ecoa no sculo XXI como reflexo de questes jamais enfrentadas com a devida responsabilidade. Em busca de solues, o Governo Federal lana o Plano Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, e cria a lista suja do trabalho escravo fundamentada na penalizao tica mas que, no obstante seus devidos mritos, surge como um amlgama, dada sua criao por legislao interna, o que tem propiciado ataque frontal e constante sua legalidade via suspenso liminar de nomes. A proposta do presente estudo traar um perfil do trabalhador escravo, sua origem e seu destino no territrio nacional, e analisar a lista suja do trabalho escravo que, aps dois anos, possibilita as primeiras excluses de nomes listados. Por outro lado, considerando a insuficincia da reprovao moral para coibir condutas ilcitas, o estudo tambm avalia as iniciativas legislativas do Congresso Nacional o que, alm de discorrer sobre como o Direito pode, e deve, contribuir para a extino de prticas escravagistas, denota esperana na construo de uma nao mais justa e digna. Os desdobramentos a partir da lista suja tambm mereceram destaque, e, nesse particular, em funo dos xitos obtidos pelo engajamento de empresas, bancos e sociedade. Encarar, discutir e sugerir, eis a proposta deste trabalho que, se no pode debelar o acinte dignidade humana que a escravido, pelo menos prope-se a descortinar o cenrio desse grave crime perpetrado por algemas invisveis pela anlise da eficcia de seu maior instrumento de represso na atualidade: a lista suja do trabalho escravo.

PALAVRAS-CHAVE: Trabalho escravo. Trabalho forado. Trabalho degradante. Lista suja do trabalho escravo. Dignidade humana.

8

ABSTRACT

Violence against rural laborers in Brazil, and, more specifically, within both South and Southeast areas of Para State, is a characteristic of Brazilian agricultural structures which are based on economic, political and cultural relations, closely linked to the improper distribution of land, income, and opportunities. As an inheritance from a past hidden and ignored at any cost, slavery in the 21st century presents questions never before tackled in a responsible manner. In search of solutions, Brazil's Federal Government has launched the National Plan for Combatting Slave Labor, and has produced a slave labor black list founded on ethical castigation, but notwithstanding its due merits, it has emerged with an amalgam, it was established by internal legislation, being thus prone to frontal and constant attacks against its legality via a threshold suspension of names listed.The main purpose of this study is to outline a slave laborer's profile, his origins and destination as related to migratory flows within Brazilian territory, as well as to analyze the slave labor black list which, after two years, has facilitated the first exclusions by time lapse. Furthermore, considering the inadequacy of moral reprobation for the hampering of illicit behavior, legislative initiatives by the Brazilian Congress are also evaluated, which, while revealing the dynamic aspects of this study by analyzing how the Law may - and it should contribute towards the suppression of slavery practices, it denotes hope in the building of a fairer and worthier nation. The developments that took place after the black list was introduced have also been stressed, particularly with regard to the headway made by pledges extended by companies, banks, and society as a whole. To confront, to discuss, and to resolve are, then, the main goals of this study, which, if unable to abolish this affront against human dignity, it aims at exposing the scene of this grave crime, perpetrated by means of invisible handcuffs, by gauging the efficacy of its main instrument for repression, the slave labor black list.

KEYWORDS: Slave labor. Forced labor. Degraded labor. Slave labor black list. Human dignity.

9

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Origem dos trabalhadores resgatados entre 1997 e 2002 Figura 2: Trabalhadores resgatados entre 1997-2002 por faixa etria Figura 3: Comparativo entre os Estados na ltima dcada Figura 4: Trabalhadores resgatados no Par, na ltima dcada Figura 5: Listas divulgadas pelo MTE de 2003 a 2005 Figura 6: Encaminhamento da lista suja Figura 7: Cadeia produtiva dos listados Figura 8: Atual delimitao de trabalho escravo no Cdigo Penal

26 28 35 35 37 40 43 65

10

LISTA DE TABELAS Tabela 1: Comparativo entre escravido antiga e contempornea Tabela 2: IDH dos Estados de origem de mo de obra escrava, em 2000 Tabela 3: Balano das fiscalizaes do MTE na ltima dcada Tabela 4: Anlise da primeira lista divulgada pelo MTE Tabela 5: Imveis analisados pelo Incra, via Portaria 835/2004 Tabela 6: rea analisada pelo Incra, via Portaria 835/2004 Tabela 7: Iniciativas da Presidncia da Repblica Tabela 8: Iniciativas do Senado Federal Tabela 9: Iniciativas da Cmara dos Deputados 24 29 34 38 42 42 61 62 66

11

LISTA DE SIGLAS ADIn Asica CEI CIDH Ao Direta de Inconstitucionalidade Associao das Siderrgicas de Carajs Cadastro Especial do INSS Comisso Interamericana de Direitos Humanos da Organizao dos Estados Americanos CNA Confederao Nacional da Agricultura e Pecuria do Brasil CNPJ Cadastro Nacional de Pessoa Jurdica Codefat Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador Conatrae Comisso Nacional para a Erradicao do Trabalho Escravo Cosipar Companhia Siderrgica do Par Cosima Compahina Siderrgica Vale do Pindar CPF Cadastro de Pessoa Fsica Detrae Diviso de Fiscalizao para Erradicao do Trabalho Escravo DRT Delegacia Regional do Trabalho FAT Fundo de Amparo ao Trabalhador Febraban Federao Brasileira de Bancos Fergumar Ferro Gusa do Maranho GPTEC Grupo de Pesquisa do Trabalho Escravo Contemporneo Ibama Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis ICC Instituto Carvo Cidado Incra Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria INSS Instituto Nacional de Seguridade Social IPEA Instituto de Pesquisas Econmicas Aplicada Margusa Maranho Gusa S.A. MPT Ministrio Pblico do Trabalho MTE Ministrio do Trabalho e Emprego OIT Organizao Internacional do Trabalho OMC Organizao Mundial de Comrcio ONG Organizao no-governamental ONU Organizao das Naes Unidas PEC Proposta de Emenda Constituio PNCF Programa Nacional de Crdito Fundirio PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento SDTT Diviso de Ordenamento Territorial Sidepar Siderrgica do Par Simara Siderrgica Marab S.A. Simasa Siderrgica do Maranho S.A. STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justia TRT Tribunal Regional do Trabalho TST Tribunal Superior do Trabalho UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

12

SUMRIO 1 2 3 4 4.1 4.1.1 4.1.2 4.1.3 4.1.4 4.1.5 4.1.6 4.1.7 4.1.8 4.1.9 INTRODUO ........................................................................................ 13 A QUESTO TERMINOLGICA ........................................................... 16 TRABALHO ESCRAVO: REALIDADE NACIONAL E REGIONAL ....... 22 A LISTA SUJA COMO INSTRUMENTO DE COMBATE ....................... 33 RESULTADOS ........................................................................................ 37 Reincidncia .......................................................................................... 38 Divulgao ............................................................................................. 40 Checagem da cadeia dominial ............................................................. 41 Identificao de cadeias produtivas .................................................... 42 Linha de crdito especfica .................................................................. 44 Apoios Estaduais .................................................................................. 44 Seguro desemprego ............................................................................. 45 Restrio a crdito pblico e fundos constitucionais ....................... 45 Restrio a crdito privado .................................................................. 46

4.1.10 Acordos privados .................................................................................. 46 4.1.11 Atuao de organizaes no-governamentais ................................. 47 5 6 6.1 7 8 PRINCIPAIS CONTESTAES E OBJEES .................................... 49 ATUAO DO JUDICIRIO .................................................................. 54 A QUESTO DA COMPETNCIA .......................................................... 57 INICIATIVAS LEGISLATIVAS ................................................................ 61 CONSIDERAES FINAIS .................................................................... 70

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ......................................................................... 74 ANEXOS .............................................................................................................. 78

13

1

INTRODUO Nas ltimas dcadas o Brasil tem confirmado uma tendncia histrica de

aprofundamento da desigualdade social, m distribuio de renda e elevados ndices de pobreza, reforando a imagem de um pas marcado pelo desafio de enfrentar uma herana histrica de injustias que sempre excluram parte da populao de condies mnimas de dignidade. Com milhares de pessoas abaixo das linhas de indigncia e pobreza, o que pode ser entendido como uma espcie de eufemismo para trabalho escravo, preciso ter em mente que, ultrapassada a fronteira do sculo XXI, extirpar essa mcula da sociedade brasileira torna-se verdadeiro imperativo. Entre os mecanismos voltados a esse desiderato, destaca-se a lista suja do trabalho escravo, organizada e mantida pelo Governo Federal, via Ministrio do Trabalho e Emprego (MTE), com o fito de forar mudanas no direcionamento das relaes humanas de trabalho e produo. Criada em 2003 sob o ttulo Cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condies anlogas de escravo, a experincia tem tido desdobramentos positivos no setor pblico, mas sua repercusso na esfera privada tem surpreendido pelo envolvimento de bancos e empresas. Nesse contexto, o presente trabalho analisar funcionamento e resultados obtidos desde a criao da lista suja do trabalho escravo, pautado no entendimento de que, avaliar avanos em determinada rea pela anlise de desempenho de seus instrumentos pode contribuir significativamente para seu aperfeioamento. Partindo da pergunta orientadora acerca da legalidade e eficcia da lista suja do trabalho escravo, sero apresentados elementos que, alm de justificar o questionamento, procuraro demonstrar sua pertinncia. Ao definir a terminologia a ser utilizada, qual seja, trabalho escravo, o estudo procurar encarar o problema de frente, deixando de tratar a questo como reduo condio anloga de escravo, termo legalmente prefervel, para, alm do choque pelo mero apelo terminolgico, sinalizar como eco da triste realidade ainda hoje experimentada por milhares de brasileiros: a escravizao indigna e desumana. Assim, tendo em vista a abolio da escravido no Brasil em 1888, o termo trabalho escravo ser utilizado por questes prticas, sem olvidar todas as

14

formas alcanadas pelo tipo penal, o qual, vale acrescentar, desde 2003 passou a superpor varivel liberdade a varivel dignidade, efetivamente propiciando a atuao do Judicirio na construo do verdadeiro Estado democrtico de direito. Ao atentar para essa ampliao de foco, desloca-se a questo do plano pessoal para o plano universal por considerar que todos so iguais em seu valor mais ntimo e indevassvel: a condio de ser humano. No por acaso, ao apresentar um perfil dos atuais escravos, observar-se- que suas algemas so mais sutis, invisveis, por assim dizer, ao retirar-lhes no apenas a liberdade de ir e vir, como outrora, mas todo e qualquer senso de cidadania, solapando-lhes, conseqentemente, o que h de mais caro, a dignidade. No se perder de vista, entretanto, que a criao de listas sujas movimento tpico de pases em desenvolvimento/subdesenvolvidos, nos quais o direito positivado no apresenta fora cogente suficiente para banir as condutas que tipifica, enquanto nos pases desenvolvidos, quando existe, pensado sob a tica de ir alm do que a lei preceitua, como um plus na punio dos culpados. Nestes, avanam sobre a lei vigente, enquanto nos primeiros tentam empurr-la, antecipando-se to somente no af de coibir, pela via administrativa, condutas socialmente reprochveis para as quais a legislao necessita dar respostas urgentes e eficazes. Para complicar, na nsia de atender aos anseios da sociedade muitas vezes criam-se mais problemas como a paradoxal instituio de poderosos instrumentos fundados sobre frgil base legal, propiciando, como no caso da lista suja do trabalho escravo, questionamento judicial acerca de sua validade. Nesse sentido, a pesquisa no deixar de abordar os constantes ataques lista, sistematizando posicionamentos pr e contra, alm de abordar a reao local dos escravagistas que, enfurecidos, probem at mesmo comentar o assunto. Por outro lado, preciso ressaltar, a criao de tais mecanismos apia-se na penalizao tica fundada na reprovao e repdio sociais, o que bastante salutar pelo crdito conferido sociedade de validar, ou no, suas prprias condutas, ainda que historicamente o elemento tico de modo isolado nunca tenha sido suficiente para coibir prticas ilcitas, a ele devendo ser aliadas medidas concretas de penalizao. Nesse sentido, o envolvimento da sociedade, como se ver, representou avano significativo eficcia da lista, efetivamente forando a aplicao do mnimo

15

tico que se espera da lei, principalmente ao atacar o epicentro da questo: o bolso dos escravagistas. Ao analisar os resultados alcanados pela lista suja do trabalho escravo no Brasil, este estudo procurar avaliar seus desdobramentos oficiais e privados. Entre os primeiros sero avaliados: a) forma de divulgao; b) vedao a crdito pblico; c) impedimento de acesso a fundos constitucionais; d) anlise de cadeia dominial; e) identificao de cadeias produtivas; f) ajuizamento de aes individuais e coletivas por dano moral; g) criao de linha de crdito; h) acordos oficiais; i) proibio de contratao com governo; j) pagamento de seguro-desemprego. Entre os avanos obtidos na esfera privada sero analisados: a) compromisso do setor financeiro, via Federao Brasileira de Bancos (Febraban); b) atuao de organizaes no-governamentais (Ong); c) compromisso de grandes empresas de suspender contratos com escravagistas, mediante acordos privados; d) criao do Instituto Carvo Cidado (ICC). Pela anlise desses itens o estudo pretender demonstrar a eficcia da lista suja no combate ao trabalho escravo sob a perspectiva de seus desdobramentos, pautado no entendimento de que eles podem traduzir na prtica o dever ser que a lei, em 118 anos, no consegue transplantar em aes. Tambm ser abordada a atuao do Judicirio, com a problemtica que at recentemente circundou a questo da competncia, se federal ou trabalhista. Nessa ltima esfera sero apresentados julgados de primeira e segunda instncias e acompanhamento de concesso de liminares em momentos distintos. A metodologia utilizada contar com reviso bibliogrfica do tema, entrevistas e contatos com fontes diretamente ligadas aos rgos envolvidos na questo. Acerca da produo legislativa federal, a pesquisa contar ainda com levantamento das principais iniciativas relacionadas ao tema na ltima dcada. Por fim, cumpre acrescentar, a explorao do trabalho escravo no Brasil no se deve omisso legal, uma vez que essa afronta aos direitos humanos formalmente repudiada desde 1888, mas lamentavelmente, em pleno sculo XXI, observa-se que parcela da populao, forjada na escravido, nunca chegou a ver no Estado seu defensor, na lei sua proteo, nem tampouco no direito seu cajado, pois essas sempre foram armas manejadas com maestria pelos senhores da casa grande para manter seus privilgios.

16

2

A QUESTO TERMINOLGICA O trabalho, to antigo quanto o homem, assumiu diversos contornos ao

longo da histria da humanidade nas mais diversas civilizaes que se pretendam analisar. Tomando como base as sociedades ocidentais, pode-se constatar que, ora repudiado, ora exaltado, oscilando entre forado e livre conforme o conjunto de regras legais e culturais que norteavam o momento histrico, o trabalho sempre condicionou os contornos de importante aspecto da vida humana, a sobrevivncia. Souza, apud Brito Filho (2004, p.21), salienta que, na antiguidade predominou o trabalho escravo, contribuindo para emprestar ao labor uma conotao de desvalor infamante. Avanando a passos largos na histria, observa-se durante a Idade Mdia a predominncia da servido que, embora to indigna quanto a escravido, de algum modo conferiu individualidade ao trabalhador. Ainda nesse perodo, vale destacar, surgiram as corporaes de ofcio, segundo Brito Filho (2004), embries do atual trabalho subordinado ainda que de forma incipiente, pois de modo geral o trabalho, como concebido hodiernamente, comeou a delinear-se a partir da Revoluo Industrial, no sculo XVIII, com o xodo campesino para a cidade, e com o Estado tomando para si o nus de regular e proteger as relaes trabalhistas da advindas. Paralelamente s mudanas ocorridas no campo trabalhista, e sem perder de vista a Revoluo Francesa como marco de reconhecimento dos direitos inerentes personalidade humana, diversos Estados passaram a coibir a escravido dada a ampla profuso de defensores de causas humanistas. Importante notar, todavia, que, independentemente do momento histrico, uma caracterstica perene acompanhou o trabalho: a subordinao como determinante da relao de dependncia, quer em grau extremado, como na escravido, quer de modo regulamentado, como atualmente com as regras do contrato de trabalho (BRITO FILHO, 2004). O Brasil, como sabido, foi um dos ltimos pases a conceder liberdade a seus cativos, com a tardia promulgao da Lei urea em 13.05.1888, poca em que comeou a surgir um cenrio que, em tese, no mais admitiu a escravizao humana.

17

Fala-se em tese, pois at os dias atuais recorrente existirem pessoas que, para sobreviver, submetem-se no apenas a trabalhos forados, mas a indignas condies de trabalho, transmudando as antigas algemas visveis em modernos grilhes invisveis. Abrindo um parntese, seria coerente nesse ponto questionar o que efetivamente mudou para o negro que, de escravo miservel passou ao status de miservel liberto, somando-se a milhares de outros espoliados brancos das classes menos privilegiadas, para formar uma grande massa de excludos fadados a conviver com o mais completo descaso e abandonados prpria sorte. Pois bem, retomando o fio de raciocnio, o surgimento da Organizao Internacional do Trabalho (OIT), com o Tratado de Versalhes de 1919, e sua solidificao com o reconhecimento da Organizao das Naes Unidas, em 1946 (NASCIMENTO, 2004), emprestou nova face luta pela abolio das formas indignas de trabalho mundo afora em funo da sua prerrogativa de votar decises1 para obrigar Estados-membros. Voltando realidade brasileira, mas avanando 115 anos na histria para no perder o foco jurdico, de 1888 chega-se a 2003, ano em que a Lei 10.803 alterou o artigo 149 do Cdigo Penal para delinear com maior preciso a conduta de reduzir algum condio anloga de escravo, englobando as seguintes possibilidades: a) trabalho forado, b) jornada exaustiva, c) condies degradantes de trabalho e c) restrio locomoo, esta ltima, pela privao de c.1) transporte, c.2) coero fsica ou c.3) restrio de documentos e/ou objetos.Art. 149. Reduzir algum a condio anloga de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condies degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoo em razo de dvida contrada com o empregador ou preposto: Pena recluso, de dois a oito anos, e multa, alm da pena correspondente violncia. 1 Nas mesmas penas incorre quem: I cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de ret-lo no local de trabalho; II mantm vigilncia ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de ret-lo no local de trabalho. 2 A pena aumentada de metade, se o crime cometido:1

Convenes internacionais.

18

I contra criana ou adolescente; II por motivo de preconceito de raa, cor, etnia, religio ou origem. (BRASIL. Cdigo Penal, 2005, artigo 149).

Tal alterao foi salutar porque a legislao penal passou a apontar claramente diversas condutas passveis de punio, limitando a margem de liberdade de julgadores tendenciosos pois, como bem acentua Brito Filho (2004), diversas eram as formas de superexplorao do trabalho no contempladas at ento, com destaque para: trabalho forado, trabalho em condies degradantes e trabalho com discriminao e/ou excluso. A doutrina farta em apresentar significado para essas e muitas outras terminologias, ora classificando-as em gnero e espcies, ora apresentando um perfil particularizado a respeito de cada uma. No presente trabalho, entretanto, no se pretende aprofundar tais discusses, optando-se por eleger um termo e definir a idia de seu contedo, guisa de simplificao. Desse modo, ser utilizada a terminologia em sua forma reduzida, qual seja, trabalho escravo, desde j ressalvando que a escravido propriamente dita foi abolida em nosso Pas, como dito, desde a promulgao da Lei urea, em 1888. Partindo desse pressuposto, ser adotada como definio para trabalho escravo aquela estabelecida pela OIT em sua Conveno n 29/19322 sobre trabalho forado, que, em seu artigo 2, 1, define-o como sendo todo trabalho ou servio exigido a um indivduo, sob a ameaa de uma pena qualquer, e para o qual esse indivduo no se oferece voluntariamente (SSSEKIND, 1994). Nesse ponto, merece ateno redobrada o termo voluntariamente, pois, como sabido, o contrato de trabalho abriga uma relao hipossuficiente3 em que uma parte est em flagrante desvantagem pela exposio de sua posio s fragilidades da subordinao (NASCIMENTO, 2004), o que faz com que as condies impostas pelo empregador sejam limitadas, a despeito da livre e espontnea vontade das partes no momento da adeso. Assim, mesmo havendo previso de concordncia como excludente do trabalho escravo pela leitura fria da Conveno n 29/1932, tal entendimento alargado para fazer com que o elemento volitivo no descaracterize, ou exclua, as

2 3

Aprovada em 1930, mas em vigor a partir de 1932. Entendimento que remonta a Aristteles e seu conceito de igualdade proporcional, fortemente imbricado idia de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.

19

punies cabveis ao empregador pelos excessos perpetrados. Nesse sentido, em 1956 a Organizao das Naes Unidas (ONU) implementou a Conveno suplementar sobre abolio da escravatura, do trfico de escravos e das instituies e prticas anlogas, aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n 66/1965, e promulgada pelo Decreto Legislativo n 58.563/1966. Em seu artigo 1, referida Conveno passou a ampliar o conceito de escravido para incluir a servido e contrapor ao elemento volitivo a impossibilidade de mudana das condies de trabalho. O texto legal assim declarou:1. A servido por dvidas, isto , o estado ou a condio resultante do fato de que um devedor se haja comprometido a fornecer, em garantia de uma dvida, seus servios pessoais o os de algum sobre o qual tenha autoridade, se o valor desses servios no for eqitativamente avaliado no ato da liquidao da dvida ou se a durao desses servios no for limitada nem sua natureza definida; 2. A servido, isto , a condio de qualquer um que seja obrigado pela lei, pelo costume ou por um acordo, a viver e trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa e a fornecer a essa outra pessoa, contra remunerao ou gratuitamente, determinados servios, sem poder mudar sua condio. (SSSEKIND, 1994).

Nessa mesma conveno tambm foi salutar a apresentao de definies claras a alguns termos, quando no artigo 7 disps:1. Escravido, tal como foi definida na Conveno sobre a Escravido de 1926, o estado ou a condio de um indivduo sobre o qual se exercem todos ou parte dos poderes atribudos ao direito de propriedade, e escravo o indivduo em tal estado ou condio; 2. Pessoa de condio servil a que se encontra no estado ou condio que resulta de alguma das instituies ou prticas mencionadas no artigo primeiro da presente conveno; 3. Trfico de escravos significa e compreende todo ato de captura, aquisio ou cesso de uma pessoa com a inteno de escraviz-la; todo ato de aquisio de um escravo para vend-lo ou troc-lo; todo ato de cesso, por venda ou troca, de uma pessoa adquirida para ser vendida ou trocada, assim como, em geral, todo ato de comrcio ou transporte de escravos, seja qual for o meio de transporte empregado (SSSEKIND, 1994).

Como visto, a legislao internacional e nacionais por fora de ratificaes passou a aliar escravido a servido e o trfico, com entendimento

20

respaldado na Declarao Universal dos Direitos Humanos que, em seu artigo 4, preceitua que: Ningum ser mantido em escravido ou servido; a escravido e o trfico de escravos sero proibidos em todas as suas formas (DOTTI, 1998). Recrudescendo ainda mais no trato da questo, em 1957 a OIT editou a Conveno n 105 sobre Abolio do Trabalho Forado, passando a vedar a prtica at como medida disciplinar em penitencirias (SSSEKIND, 1994). Nascimento (2004) sustenta que no Brasil, alm das amarras legais internacionais, alguns princpios sinalizadores da dignidade humana no campo trabalhista tambm tendem a equilibrar a j citada relao hipossuficiente: a) Liberdade de trabalho: considerando injurdicas as formas coativas destinadas a provocar o constrangimento do trabalhador e repudiando o trabalho forado; b) Garantias mnimas: impondo direitos trabalhistas mnimos e impostergveis como vantagens fundamentais; c) Justa remunerao: pelo qual funo do Estado promover medidas assecuratrias da adequada retribuio dos trabalhadores; d) Direito ao descanso: impondo a obrigatoriedade de descansos dirios, semanais e anuais; e) Protetor: subdividido em: e.1) In dubio pro operrio: havendo dvida na interpretao de texto legal, orienta a decidir pelo empregado; e.2) Prevalncia da norma favorvel: observado no momento da elaborao, aplicao e interpretao da norma jurdica em benefcio do trabalhador; e.3) Condio mais benfica: objetivando resguardar vantagens adquiridas pelo trabalhador; f) Realidade: segundo o qual independentemente do que est escrito no contrato de trabalho, vale a realidade praticada; g) Razoabilidade: obrigando a agir com bom senso quando da interpretao dos fatos e da lei trabalhista. No obstante todo o regramento esculpido no bojo das diversas legislaes, internacional e nacionais, ainda h muito por fazer e longe se est de uma condio favorvel ao trabalhador que alie, sobrevivncia e ao sustento familiar, melhores condies de vida e dignidade.

21

Lamentavelmente, segundo a OIT (2006a), grande o nmero de pases americanos que enfrentam problemas relacionados ao respeito (ou desrespeito) ao trabalhador e aplicao efetiva dos princpios e direitos fundamentais do trabalho. A prova do alegado que, apesar da alta taxa de ratificao de convenes internacionais h fortes evidncias de violaes freqentes aos direitos fundamentais dos trabalhadores, como no caso do trabalho infantil4, cujos relatos em documentos oficiais do conta da existncia de 5,7 milhes de crianas, entre 5 e 14 anos, trabalhando (OIT, 2006a, p11). Por fim, mesmo com a prxis destoando da retrica acerca da liberdade humana, preciso ter em mente que a ratificao de instrumentos internacionais vital para o desencadeamento de processos de sensibilizao e conseqente erradicao do trabalho escravo em definitivo, como uma espcie de primeiro passo rumo a uma realidade mais justa que contemple toda a humanidade.

4

O conceito de trabalho infantil baseia-se na Conveno n 138/1973 da OIT sobre Idade Mnima.

22

3

TRABALHO ESCRAVO: REALIDADE NACIONAL E REGIONAL Pois bem, vencida a questo terminolgica, preciso ter em mente que

falar em trabalho escravo situar a discusso no campo da dignidade da pessoa humana, cujo princpio norteador est assegurado na Constituio brasileira logo em seu artigo 1, inciso III, e constitui um de seus fundamentos. A dignidade, portanto, intimamente atrelada ao Princpio da Legalidade, convalida um dos valores mais importantes da Magna Carta ao destinar ao ser humano a mais ampla proteo no resguardo de sua integridade fsico-psquica. Para Sarlet (2002) a dignidade qualidade integrante e irrenuncivel da condio humana, devendo ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida por constituir valor fundamental da ordem jurdica constitucional dos Estados democrticos de direito. No por acaso, o mesmo Sarlet (2002, p.42) afirma que todos so iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos como pessoas, ressaltando que tal atributo engloba respeito e proteo s integridades fsica e emocional, no que complementado por Larenz, apud Nobre Jnior (2000), para quem a dignidade a prerrogativa que todo ser humano tem de ser respeitado como pessoa, no podendo ser prejudicado em sua existncia. Nascimento (2004, p.357), a seu tempo, defende que a dignidade tem sido uma constante nas diversas legislaes justamente por considerar que o homem no um meio, mas um fim em si mesmo. O respeito vida humana , pois, uma das idias fundamentais da maioria das civilizaes, remontando ao primeiro de todos os princpios, o da dignidade da pessoa humana que, ao expressar seu valor absoluto, no pode desconsiderar a dignidade de um nico homem (SARLET, 2002). No por acaso, na base desse entendimento est a Declarao Universal dos Direitos do Homem, de 1948, segundo a qual, todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, o que faz da dignidade atributo inerente aos membros da famlia humana, cujos direitos so iguais e inalienveis, constituindo os fundamentos da liberdade, justia e paz mundiais (NASCIMENTO, 2004). Por outro lado, como bem adverte Sady (2005), apesar da secular abolio da escravatura no Brasil, so comuns situaes em que o trabalhador impedido de desligar-se do empregador. Diversamente do modelo antigo, em que o

23

Estado conferia legalidade prtica, o atual regime, embora situado margem da lei, conta com adeso voluntria dos que, para fugir da misria, submetem-se a condies degradantes de trabalho, sendo to perversa quanto antes por aviltar a dignidade humana. Ademais, a atual escravido mais vantajosa do ponto de vista financeiro e operacional, visto que antigamente era mais caro comprar um escravo geralmente importado - do que faz-lo em pleno sculo XXI, com custo quase zero, s vezes envolvendo apenas transporte e, no mximo, uma ou outra dvida que o aliciado tenha em algum comrcio ou penso5 (SADY, 2005). A escravido contempornea tambm indiferente cor da pele, uma vez que seu principal trao caracterstico a misria em que os aliciados vivem (ver adiante), fazendo com que o elo entre passado e presente para manuteno da ordem escravocrata revele-se por meio de ameaas, coeres, punies e assassinatos perpetrados contra todos, brancos e negros. Fruto da globalizao, fenmeno mundial de integrao econmica e social do final do sculo XX que favoreceu o aprofundamento da desigualdade social, a m distribuio de renda e elevados ndices de pobreza, a escravido atual encontra guarida nas regies em que a agricultura d a tnica da economia. Nesse contexto, para Santana apud Santo-S (2001, p.79), as "relaes de trabalho arcaicas e desumanas persistem e at so incrementadas com base no modelo de desenvolvimento fundado no neoliberalismo econmico, acumulao de divisas pelo supervit da balana comercial e livre concorrncia. Complementando esse entendimento, Soares (2003) aduz que a globalizao foi extremamente generosa ao distribuir mazelas e mesquinha ao compartilhar benefcios aos menos favorecidos, acrescentando que a explorao do trabalho em condies degradantes tem como causa principal a concentrao de pobreza e misria em determinadas regies. A OIT estima que existem aproximadamente 12,3 milhes de pessoas vtimas de trabalho escravo no mundo. Na Amrica Latina o nmero estimado fica na casa dos 1,32 milhes de pessoas, correspondendo a 10,7% do total mundial, enquanto no Brasil a estimativa varia entre 25 mil a 40 mil pessoas (OIT, 2006a). Ainda de acordo com a OIT (2006a), o setor rural concentra 1/3 da

5

Pequeno hotel familiar onde trabalhadores oriundos de outros Estados ficam espera de contratao.

24

populao trabalhadora da Amrica Latina e do Caribe. Todavia, devido ausncia de acordos na Organizao Mundial do Comrcio (OMC) relativos a comercializao de produtos agrcolas, esse um dos setores mais seriamente afetados pelos efeitos da globalizao, principalmente em funo dos tratados de livre comrcio. Por outro lado, o atual trabalho escravo no se processa apenas pela violncia aberta, pois, apesar da coero fsica estar presente, a violncia atual apresenta-se, principalmente, sob forma eufemizada. Com efeito, o trabalho escravo do sculo XXI no implica em que os trabalhadores laborem sob coao fsica, mas significa, sobremaneira, que esse labor possua uma dimenso simblica, engendrada especialmente pela dvida, mecanismo utilizado para aliciamento, diferente da escravido antiga, em que o aliciamento utilizava meios violentos de captura e transporte. Outra diferena que, se por um lado a mo de obra escrava era escassa no sculo XIX o mesmo no acontece no atual sculo, e seu precedente, reflexo do desemprego, baixa escolaridade e falta de oportunidades. Segue breve esquema entre escravido antiga e contempornea no Brasil, indicando as principais divergncias da prtica nas duas verses, com destaque para o fato do uso da violncia ser o mais forte ponto de contato.Tabela 1: Comparativo entre escravido antiga e contempornea. Escravido at 1888 Escravido a partir de 1888 Prtica Legal. Ilegal. Aliciamento Violento, via captura de negros africanos. Urdido na confiana por pagar dvidas. Alto, envolvendo negociao com navios Baixo, por vezes incluindo apenas Custos negreiros e trfico internacional, com transporte, ou, no mximo, pagamento riscos de perdas nas viagens. de dvida em penso. Escassa, dependente do trfico, pois o Abundante, devido ao desemprego, Mo-de-obra nascimento de cativos era raro devido s baixa escolaridade, falta de ms condies de vida. oportunidade e acesso informao. A vida inteira do escravo e Durao Dispensa aps trmino do servio. descendentes. Etnia Bastante relevante. Irrelevante. Direta, via ameaa, coeres psicolgica Indireta, via ameaa, coeres Violncia e fsica, castigo fsico e assassinatos. psicolgica e fsica e assassinatos. Fonte: dados baseados em esquema proposto pela Reprter Brasil.

Segundo o Observatrio Social (TRABALHO escravo, 2004, p.7) a primeira denncia documentada sobre trabalho escravo ilegal no Brasil foi registrada no livro Memrias de um colono no Brasil, publicado em 1858, na Sua, sob autoria de Thomaz Davatz que, j naquela poca, preocupou-se em relatar o

25

sistema de servido por dvida na Fazenda Ibicaba6, onde aproximadamente mil imigrantes suos, alemes e portugueses plantavam caf em regime de servido. Por outro lado, a primeira entidade a denunciar a existncia de trabalho escravo contemporneo foi a Comisso Pastoral da Terra (CPT), merecendo destaque o documentrio Feudalismo e Escravido no Norte do Mato Grosso, divulgado em 1970 (TRABALHO escravo, 2004). Ultrapassando esse breve cotejo entre passado e presente, necessrio apenas para situar o tema no espao, sero apresentados os atuais mecanismos para manuteno do sistema escravocrata no Brasil e, mais especificamente, no Sul e Sudeste do Par. Hodiernamente, a forma de trabalho escravo mais recorrente a servido ou peonagem por dvida, pela qual o trabalhador empenha sua capacidade de trabalho, ou da famlia, para saldar uma dvida pr-estabelecida. Por esse mecanismo, o processo de escravizao tem incio com recrutamento e transporte, perpetuando-se com fornecimento de alojamento e alimentao. Em todos esses estgios o endividamento aumentado, conferindo ao empregador direito de lanar mo de mecanismos de vigilncia. Guimares (2005) destaca que a submisso ao processo de peonagem pelas teias do endividamento elemento determinante do carter de negao da identidade do trabalhador, tendo em vista a peonagem ser um movimento contnuo de inculcao de depreciao moral e social, com desdobramentos na manuteno da relao de dominao pela violncia. Martins (1997) esclarece ainda que o sentido da palavra peo herana do seu significado nos sculos XVI e XVII, quando o peo era oposto ao cavaleiro e, por isso mesmo, obrigado a andar descalo, demonstrando claramente quem servia e quem era servido, quem obedecia e quem mandava. Prosseguindo nas anlises acerca da contratao observa-se que, via de regra, os trabalhadores so recrutados longe dos pontos onde o servio ser desenvolvido, tanto que, para Meillassoux (1995, p.28), o escravo sempre o estrangeiro, nesse particular, aquele que no pertence ao Estado onde dever trabalhar, aquele que vem de longe. Segundo a OIT (2005), do total de trabalhadores resgatados no Brasil em

6

Localizada em Cordeirpolis, ento Municpio de Limeira SP.

26

seis anos (1997 2002), a maioria absoluta (91,5%) era migrante, com destaque para maranhenses (39%), piauienses (22%) e Tocantinenses (15,5%), como melhor apresentado na figura 1.

8,5% 0,2% 0,8% 4,2%

39,2%

15,5%

3,8% 1,1% 0,2% 22% 1,5% 1,1%

1,1% 0,6% 0,2%

Figura 1: Origem dos trabalhadores resgatados entre 1997 e 2002. Fonte: OIT, 2005.

Os naturais do Par somaram apenas 8,5%, em sua grande maioria nascidos nas regies Sul e Sudeste (Redeno, Conceio do Araguaia e Marab), oriundos de famlias que migraram para o Estado entre 1970 e 1980. Detalhando a anlise por regio, observa-se que a maioria dos trabalhadores escravos eram oriundos do Nordeste (68,9%). Os provenientes do Norte somavam 24,2%, enquanto do Centro-Oeste representavam 5%. As regies Sudeste e Sul apresentaram os menores ndices, 1,7% e 0,2%, respectivamente, no por acaso apresentando tambm melhores condies de vida, tendo em vista a ntima relao entre pobreza e escravido, como adiante demonstrado. Pois bem, o tornar-se cativo tem incio com a arregimentao de trabalhadores pelo chamado "gato7, momento a partir do qual o trabalhador, sem qualificao e identidade profissional, denominado simplesmente peo, entra em contato com o elemento fundamental que nortear sua condio de escravo, a

7

Aliciador de mo-de-obra contratado pelos fazendeiros.

27

dvida, geralmente nascida na forma de adiantamento em dinheiro, forjando, de antemo, uma relao de dependncia e confiana. Considerando que poucos arregimentados so paraenses (8,5%), observa-se que a grande maioria dos trabalhadores (91,5%) desloca-se voluntariamente dos seus Estados para o Par, onde so recrutados por um procedimento muito simples, que o pagamento das dvidas com hospedagem e alimentao pelo gato (FIGUEIRA, 2003). O Observatrio Social (TRABALHO escravo, 2004) afirma que no Sul e Sudeste paraenses um homem chega a custar R$80,00, ou menos, confirmando a tese de que a dvida um dos pilares da atual prtica escravagista medida que legitima o uso da vigilncia e de outros meios de coero, inclusive moral. Para complicar, em geral os trabalhadores possuem sentimento de responsabilidade exacerbado, sendo iludidos a acreditar que efetivamente possuem uma dvida pela qual devem pagar (Secchin, 2002), formando-se um ciclo vicioso engendrado pela dvida e sustentado por um forte sentimento de probidade, configurando o cenrio ideal para perpetuar a situao de explorao. Mas a arregimentao no o nico elemento caracterizador da escravido moderna, a ela somando-se o no-pagamento de salrios; alojamentos em condies subumanas; inexistncia de instalaes sanitrias adequadas; falta de gua potvel; manuteno de cantina para venda de artigos; ausncia de equipamentos de proteo de trabalho; meio ambiente de trabalho nocivo (selva, cho batido, animais peonhentos, umidade, etc); cerceio liberdade; falta de assistncia mdica e material de primeiros socorros; vigilncia armada e ausncia de registro em Carteira de Trabalho. No por acaso, da chegada fazenda at o resgate os trabalhadores passam por diversas privaes, com os relatos dos grupos mveis do MTE dando conta de que os trabalhadores so alojados em barracas de lona instaladas em regies de mata fechada, sem gua potvel, luz eltrica e com poucos alimentos. A difcil comunicao e o isolamento geogrfico tambm so estratgias sempre presentes para evitar contato externo e fugas. Procurando traar um perfil dos atuais escravos, Secchin (2002) ressalta que, em sua maioria, so analfabetos, no possuem documentos, no lembram suas datas de nascimento e no sabem seus nomes completos, ou seja, sua idia de cidadania praticamente nula.

28

Segundo a OIT (2005), os trabalhadores resgatados das fazendas do Sul e Sudeste paraenses entre 1997 e 2002 eram quase que exclusivamente homens, geralmente jovens, com idade entre 33 e 40 anos, justificvel pela atividade exigir resistncia e fora fsica. A grande maioria (92%) tinha entre 18 e 44 anos. Contudo, as equipes mveis encontraram 6% de trabalhadores com idade entre 55 e 64 e 2% com idade inferior a 18 anos (OIT, 2005). Detalhamento na figura 2.

6%

55 a 64 anos

67%

35 a 44 anos

25%

18 a 24 anos

2%

Menor 16 anos

Figura 2: Trabalhadores resgatados entre 1997-2002 por faixa etria. Fonte: OIT, 2005.

Considerando o ndice de Desenvolvimento Humano (IDH)8, que varia de zero a um, observa-se que regies de baixo desenvolvimento apresentam IDH inferior a 0,500; de mdio desenvolvimento entre 0,500 e 0,799, e regies com alto desenvolvimento apresentam IDH acima de 0,8. Pois bem, analisando os Estados fornecedores de mo de obra escrava sob esse prisma, observa-se que o Maranho apresenta o pior ndice (tab. 2), seguido pelo Piau, o que interessante considerando que justamente esses dois Estados possuem os maiores ndices no fornecimento de mo de obra escrava ao Par, conforme demonstrado anteriormente na figura 1, comprovando a suspeita de que misria e escravido so meras faces da mesma moeda, numa relao diretamente proporcional.

8

Indicador criado pelo Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) usado para medir a qualidade de vida da populao. formado pelos indicadores: a) expectativa de vida; b) educao; e c) renda.

29

Tabela 2: IDH dos Estados de origem de mo de obra escrava, em 2000. IDHMIDHMIDHMEstado IDHM Renda Longevidade Educao Maranho 0,636 0,558 0,612 0,738 Piau 0,656 0,584 0,653 0,73 Paraba 0,661 0,609 0,636 0,737 Bahia 0,688 0,62 0,659 0,785 Acre 0,697 0,64 0,694 0,757 Cear 0,7 0,616 0,713 0,772 Tocantins 0,71 0,633 0,671 0,826 Pernambuco 0,705 0,643 0,705 0,768 Rio Grande do Norte 0,705 0,636 0,7 0,779 Par 0,723 0,629 0,725 0,815 Mato Grosso 0,773 0,718 0,74 0,86 Minas Gerais 0,773 0,711 0,759 0,85 Gois 0,776 0,717 0,745 0,866 Paran 0,787 0,736 0,747 0,879 So Paulo 0,82 0,79 0,77 0,901 Fonte: PNUD, 2000.

A problemtica relao entre esses dois elementos to sria que, segundo a OIT (2006a, p.7), a pobreza s ser reduzida de maneira permanente se os grandes desequilbrios existentes nos mercados de trabalho forem enfrentados e resolvidos. De acordo com Henriques (2000), nas ltimas dcadas tem sido confirmada uma tendncia ao aprofundamento da desigualdade social, m distribuio de renda e elevados ndices de pobreza no cenrio nacional, deixando expostos os contornos de um pas desigual, marcado pelo desafio histrico de enfrentar uma herana de injustias que exclui relevante parcela da populao de condies mnimas de dignidade e cidadania. Tomando por base o ano de 1999, o autor observa que 14% da populao brasileira pertencia a famlias com renda inferior linha de indigncia9 e 34% a famlias com renda inferior linha de pobreza10, o que corresponde a 22 milhes de brasileiros indigentes e 53 milhes de brasileiros pobres (HENRIQUES, 2000). Contudo, ao analisar o trabalho escravo infantil tomando a liberdade de deslocar as observaes para o trabalho escravo adulto a OIT (2006b) acrescenta que a pobreza em si no constitui explicao suficiente para o trabalho infantil, e certamente incapaz de justificar as piores formas de trabalho infantil evidentes,9

Calculada pelo Instituto de Pesquisas Econmicas Aplicada (IPEA), refere-se aos custos de uma cesta alimentar que contemple as necessidades de consumo calrico mnimo de um indivduo. 10 Tambm estimada pelo IPEA, calculada como mltiplo da linha de indigncia, considerando gastos com alimentao como uma parte dos gastos totais mnimos, referente, entre outros, a vesturio, habitao e transporte.

30

sendo necessrio adotar uma perspectiva em funo dos direitos humanos na medida em que excluso social e discriminao contribuem decisivamente para o fenmeno da explorao do homem pelo homem. Por esse ngulo observa-se que falar em trabalho escravo referir-se especificamente s parcelas mais vulnerveis da sociedade, freqentemente vtimas de preconceito, discriminao e falta de oportunidades como, por exemplo, analfabetos, minorias tnicas, pessoas economicamente miserveis e que vivem em regies isoladas e sem acesso informao. Todavia, ao considerar a movimentao dos trabalhadores em territrio nacional preciso ter em mente a problemtica que permeia as causas do xodo rural e a ausncia de polticas fundirias adequadas, notadamente por sculos de desastrosas tentativas de distribuio de terra no Brasil. Segundo Chiavenato (1996), o funcionamento do sistema scioeconmico brasileiro produz misria social por si s, de modo que, ao lado de uma minoria rica, em que alguns privilegiados sobrenadam nas guas da fortuna, figura uma imensa maioria, composta por algo em torno de 75 milhes de brasileiros (HENRIQUES, 2000) totalmente excludos das benesses da cidadania. O atual modelo brasileiro, portanto, conclui o autor, faz com que 30% da populao consuma a produo por dispor de emprego, enquanto 70% trabalha e morre de fome sem qualquer perspectiva de mudana (CHIAVENATO, 1996). Tal problema tem origem no passado colonial brasileiro, fortemente atrelado ao arqutipo latifundirio das sesmarias que concedia terras a quem tivesse possibilidade de faz-las produzir, consolidado pela Lei de Terras (Lei n 601), em 1850 (CHIAVENATO, 1996). Perpetuado o latifndio, o primeiro movimento poltico a question-lo em busca da justa distribuio de terras desembocou no golpe militar de 1964, cujo estopim foi a discusso iniciada pelo ento presidente Joo Goulart acerca da reforma agrria. Nesse mesmo ano foi promulgado o Estatuto da Terra (Lei n 4.504/1964), numa espcie de reforma agrria s avessas, por privilegiar exportao, culturas extensivas e mecanizao de grandes propriedades, cujos reflexos puderam ser sentidos j a partir da dcada de 70, com a migrao em massa da populao campesina para as cidades e conseqente intensificao dos conflitos no campo e exploso da violncia urbana (CHIAVENATO, 1996).

31

Entre 1970 e 1980 a poltica de ocupao da Amaznia adotada pelo regime militar agravou ainda mais a situao em mbito regional, com imensos incentivos fiscais e creditcios concedidos a grandes projetos que, alm de promover a devastao dos recursos naturais, aprofundou a desigualdade social entre as classes, propiciando o cenrio perfeito para, em menos de 20 anos, tornar a regio o palco perfeito para o imprio da escravido. Nesse contexto histrico, enquanto grandes empresas acorriam para a Amaznia sob o lema integrar para no entregar, os trabalhadores tambm eram seduzidos pela possibilidade de melhorar de vida, mas contando apenas com sua fora de trabalho enxadas, foices e unhas (TRABALHO escravo, 2004, p. 31) e um Estado especialmente ausente. Como visto, desde as sesmarias, o Brasil vtima de uma insacivel elite econmica e poltica (CHIAVENATO, 1996, p.32), com seu desenvolvimento pautado no mandonismo de pequenos grupos, possibilitando, ainda hoje, a existncia de grandes feudos no Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Pas, cujos coronis permanecem impunemente escravizando milhares de pais de famlia. Em pleno sculo XXI, confirmando a herana de um passado marcado por desastrosas polticas de distribuio de terra e renda, a mo-de-obra escrava utilizada para desmatar ilegalmente a Amaznia, o que confirmado por dados oficiais, segundo os quais, grande parte do desmatamento na regio concentra-se ao longo de um Arco que se estende entre Sudeste do Maranho, Norte do Tocantins, Sul do Par, Norte do Mato Grosso, Rondnia, Sul do Amazonas e Sudeste do Acre (BRASIL, 2004, p.9). No por acaso, os Municpios mais devastados, localizados no chamado Arco do Desmatamento, abrigam a maioria dos trabalhadores escravos, numa clara demonstrao de que a ilegalidade da escravido anda de mos dadas com outra ilegalidade, a da degradao ambiental, apoiando-se mutuamente. Segundo Mandarino (2006) a cidade campe em nmero de denncias de trabalho escravo So Flix do Xingu, Municpio que em 2002 alcanou o maior ndice de desmatamento e liderou, entre 2001 e julho de 2004, o ranking de assassinatos de trabalhadores rurais. As causas desse problema, como dito, so complexas, indo desde a expanso da agropecuria, passando pela grilagem de terras pblicas e explorao predatria de madeira, at desembocar na ausncia de controle e fiscalizao da

32

atividade econmica e do uso de recursos naturais, de modo que, para verdadeiramente enfrentar o problema, faz-se necessria uma poltica macro. Enquanto esse planejamento no passa de quimera, resta conviver com situaes incrivelmente contraditrias, pois ao lado de uma Amaznia rica, considerada a maior reserva de diversidade biolgica do mundo, contendo um quinto da gua doce do planeta (VALOIS, 2003, p.14), figura uma outra Amaznia, completamente miservel, marcada por conflitos agrrios, desmatamento desenfreado e escravido. Com isso, conclui-se que, se o Direito toma para si a tarefa de orientar as relaes humanas em funo de uma tica fundada na justia, imprescindvel que comece por fincar suas razes no terreno sobre o qual esto assentados os valores mais caros ao homem, entre os quais a liberdade de ir e vir, primeira e ltima medida da noo de vida com dignidade.

33

4

A LISTA SUJA COMO INSTRUMENTO DE COMBATE Pode at soar estranho, mas apesar da abolio da escravatura nos

estertores do sculo XIX e da adeso do Brasil, no sculo XX, a diversas convenes internacionais de combate escravido e servido por dvida, o Pas s comeou a verdadeiramente delinear mecanismos de combate prtica escravagista a partir da ltima dcada, ou seja, com mais de um sculo de atraso. Aps delinear-se o perfil do trabalhador escravo, sua origem e movimentao rumo ao Par, bem como a ntima relao entre pobreza, xodo e escravido, caminha-se para um segundo momento, relativo anlise das formas de combate prtica no Brasil, com destaque para alguns momentos histricos: a) 1995: o governo federal assume a existncia do problema em mbito internacional, comeando a esboar as linhas de um mecanismo de combate prtica ao instituir os grupos mveis de fiscalizao11, sob coordenao da Secretaria de Inspeo do MTE; b) 2003: lanamento oficial do Plano Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, composio da Comisso Nacional de Erradicao do Trabalho Escravo (Conatrae) e criao do Cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condies anlogas de escravo, ou simplesmente, lista suja do trabalho escravo; c) 2004: reconhecimento pelo governo federal, perante a OIT, da existncia de pelo menos 25 mil pessoas/ano na condio de escravas. Como visto, a admisso do problema e a tomada de iniciativas para combat-lo com a criao dos grupos mveis de fiscalizao, em 1995, configuram marcos do combate escravido contempornea no Brasil, complementado pelo lanamento do Plano Nacional para a Erradicao do Trabalho Escravo e constituio da Conatrae, em 2003. Por outro ngulo, em que pese a lentido da implantao das 76 medidas contidas no plano, pela falta de recursos, pela presso da bancada ruralista no Congresso Nacional e pela incapacidade do governo para recrudescer a fiscalizao, entre as iniciativas de maior destaque desponta a ampla divulgao dos nomes dos escravagistas brasileiros, via lista suja, com fulcro no direito 11

Compostos por fiscais e procuradores do Trabalho, delegados e agentes da Polcia Federal, em colaborao com a Procuradoria da Repblica, Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (Incra) e do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Hdricos (Ibama).

34

informao, postulado bsico do regime democrtico e fundamental ao exerccio da cidadania, objetivamente previsto no artigo 5, XIV e XXXIII, da Magna Carta. Assim, assentada sob princpios constitucionais, a despeito do que afirmam seus desafetos, a famigerada lista suja e suas conseqncias como, por exemplo, anlise de cadeias dominial e produtiva, vedao a crditos pblico e privado e sanes comerciais, significou importante avano, permitindo possa-se em 2006 afirmar que o Brasil superou em definitivo a fase em que ainda discutia a existncia de trabalho escravo e deixava a sociedade, mal informada, sem acesso aos reais contornos da questo por julg-la inacreditvel. Como observado, apesar de conviver com o problema h muito tempo, apenas na ltima dcada aes efetivas foram implementadas. Analisando esse perodo (1995 a 2005) tem-se a seguinte situao:Tabela 3: Balano das fiscalizaes do MTE na ltima dcada. PESSOAS AUTOS DE OPERAES FAZENDAS ANO LIBERTADAS INFRAO REALIZADAS FISCALIZADAS 1995 84 906 11 77 1996 425 1.751 26 219 1997 394 796 20 95 1998 159 282 18 47 1999 725 411 19 56 2000 516 522 25 88 2001 1.305 796 26 149 2002 2.285 621 30 85 2003 5.090 1.418 66 187 2004 2.887 2.477 72 275 2005 4.113 2.224 82 185 TOTAL 17.983 12.204 395 1.463

INDENIZAES EM R$ * * * * * 472.849,69 957.936,46 2.084.406,41 6.085.918,49 4.905.613,13 7.478.400,29 21.985.124,47

Fonte: MTE. Diviso de Fiscalizao para Erradicao do Trabalho Escravo (Detrae). CAMPOS, 2006.

visvel o crescimento das operaes de resgate a partir de 2003, como dito, em funo do claro posicionamento do governo federal no sentido de extirpar esse mal pela elaborao do Plano Nacional e criao da Conatrae e da lista suja, merecendo destaque o fato de que, de 2003 a 2005 o nmero de trabalhadores resgatados aumentou 34% em relao aos trs anos imediatamente anteriores (2000 a 2002), saltando de 4.106 para 12.090 pessoas resgatadas da condio de escravas. A lista suja, como visto, representou significativa alterao de rota, principalmente por surgir inserida em um planejamento macro, representado pelo

35

Plano Nacional que em suas aes prev a atuao sincronizada dos diversos setores governamentais e engajamento da sociedade civil organizada. A principais6.889

seguir, avanos

os na

ltima dcada, conforme apontam as figuras 3 e 4. Ao4.127

detalhar

por

Estado o trabalho do MTE, observa-se que o Par recordista em casos1.524

de

trabalho

escravo, pois de 17.9831.242 1.230 728 457 446 244 139 101 99

trabalhadores libertados registrou82 76 47 35 29 24 2

a

cifra

de

6.889, correspondente a 38% do total de libertos.

PA MT BA TO MA GO RO RJ ES PI MG AL PR SP MS RS RN AC AM

Figura 3: Comparativo entre os Estados na ltima dcada. Fonte: Diviso de Fiscalizao para Erradicao do Trabalho Escravo (Detrae) do MTE. CAMPOS, 2006.

Mesmo em mbito estadual, mais uma vez observa-se que o pico de libertaes ocorreu em1.128 928 1.392 1.865

2003 (fig. 4), ano em que 1.865 trabalhadores foram libertados total na no (6.889) ltima dcada validando Par, correspondente a 27% do de no a trabalhadores Estado, libertados

527 383 280 132 302005 2004 2003 2002 2001 2000 1999 1998 1997 1996

224 01995

afirmativa de que a lista

Figura 4: Trabalhadores resgatados no Par, na ltima dcada. Fonte: MTE. Diviso de Fiscalizao para Erradicao do Trabalho Escravo (Detrae). CAMPOS, 2006.

suja foi criada para, efetivamente, tornar-se instrumento eficaz no combate a esse mal que a escravido contempornea.

36

De acordo com a agncia de notcias Carta Maior (2006a), referindo-se CPT, a erradicao do trabalho escravo tem avanado a passos largos no Brasil, principalmente em funo da adeso cada vez maior de empresas privadas ao Pacto Nacional (referido adiante). Por outro lado, apesar do real empenho dos grupos mveis de fiscalizao do MTE, h uma forte tendncia reduo da taxa de atendimento s denncias. Segundo a agncia, pelas anlises da CPT, enquanto as delaes aumentam face crescente mobilizao da sociedade, o atendimento s denncias tem cado progressivamente, numa proporo de 57% delas apuradas em 2003, 33% em 2004 e 27% em 2005 (CARTA MAIOR, 2006a), o que fruto de uma estrutura de fiscalizao que no tem conseguido atender as demandas existentes. No obstante, em que pese a importncia de fiscalizaes, multas e prises, importante raciocinar no sentido de que tais mecanismos atacam as conseqncias, deixando as causas em descoberto, fazendo com que aquele trabalhador resgatado no encontre opes para sobreviver e caia novamente na armadilha propiciada pelas teias da misria. Pois bem, ciente da importncia dessas discusses, mas deixando-as de lado por ora, passa-se anlise da lista suja do trabalho escravo, mecanismo implantado em 2003 pelo governo federal para reprimir e prevenir prticas ligadas escravido. Genericamente lista suja uma relao periodicamente divulgada contendo nomes de pessoas jurdicas e fsicas enquadradas em determinada situao que se pretende coibir, de modo que entre seus objetivos esto represso e preveno de condutas ilcitas. A lista suja do trabalho escravo teve sua regulao inicialmente prevista pela Portaria n 1.234/2003, posteriormente substituda pelas regras da Portaria n 540/2004, que criou o Cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condies anlogas de escravo, tal qual hoje conhecido. Pelas regras atuais, a incluso do nome no cadastro acontece aps processo administrativo iniciado pelos autos da fiscalizao. A excluso, por sua vez, depende de monitoramento por dois anos, condicionado a: a) no-reincidncia; b) pagamento de multas; c) quitao de dbitos trabalhistas e previdencirios. A forma mais corriqueira de consulta via internet, tendo em vista a OIT, o Instituto Ethos e a Reprter Brasil terem desenvolvido um sistema de busca cujas

37

informaes podem ser recuperadas pelos seguintes campos: a) Propriedade; b) Atividade; c) Proprietrio; d) Cadastro Nacional de Pessoa Jurdica (CNPJ); e) Cadastro de Pessoa Fsica (CPF); f) Cadastro Especial (CEI) do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS); g) Municpio; h) Estado. Analisando as listas divulgadas pelo MTE em dois anos, o que vai da primeira, em novembro de 2003, quinta lista, divulgada em novembro de 2005, e desconsiderando as suspenses por liminar e uma reincidncia na ltima lista, o cadastro registrou 201 diferentes nomes, como abaixo indicado (fig. 5):13

22

65

49

52

nov/03

jun/04

dez/04

jul/05

nov/05

Figura 5: Listas divulgadas pelo MTE de 2003 a 2005. Fonte: Baseada em dados do MTE.

Tais registros foram distribudos em 9 Estados: Par, Maranho, Piau, Bahia, Mato Grosso, Tocantins, Rondnia, Minas Gerais, Rio de Janeiro.

4.1

RESULTADOS Considerando as metas contidas no Plano Nacional de Erradicao do

Trabalho Escravo e, tomando como ponto de partida a criao da lista suja, sem a qual muitas aes no poderiam ser implantadas, podem ser listados alguns resultados alcanados desde sua implantao. Na esfera governamental so eles: a) Divulgao e formao de base de consulta; b) Anlise da cadeia dominial dos imveis pelo Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (Incra), verificando cadastro, registro e produtividade;

38

c) Identificao das cadeias produtivas do trabalho escravo, redundando no Pacto Nacional pela Erradicao do Trabalho Escravo; d) Restrio do crdito junto a instituies financeiras; e) Impossibilidade de obteno de recursos dos fundos constitucionais; f) Ajuizamento de aes coletivas com indenizao por danos morais (coletivos e individuais) pelo Ministrio Pblico do Trabalho (MPT); g) Criao de linha de crdito especfica; h) Formalizao de acordos oficiais; i) Proibio de contratao com o governo; j) Pagamento de seguro-desemprego. Sem poder olvidar a importncia do engajamento da sociedade nesse verdadeiro processo de mudana de conscincia deflagrado pela divulgao da lista suja, foram elencados os seguintes resultados no mbito privado: a) Acordos no setor privado (Anexos A e B); b) Comprometimento do setor financeiro (Anexo C); c) Atuao de organizaes no-governamentais.

4.1.1

Reincidncia Tomando como ponto de partida a primeira lista, com 52 registros,

observa-se que, aps o decurso de dois anos, 42 nomes foram excludos, o que corresponde a 81% do total de inscritos, registrando-se 1 reincidncia, correspondente a 2%.Tabela 4: Anlise da primeira lista divulgada pelo MTE. % Situao Registros 81 No-reincidentes (excludos) 42 Reincidente (no-excludo) 12 Suspensos por via judicial Total Fonte: Baseada em dados do MTE. 1 9 52 2 17 100

Tais ndices de baixa reincidncia e alta excluso podem sinalizar a eficcia do instrumento, o que deve ser avaliado com a devida cautela, dado o12

Em fevereiro de 2006.

39

pouco tempo de funcionamento do mecanismo. A criao da lista suja por legislao interna, por exemplo, tem ensejado diversos questionamentos judiciais, abrindo precedentes para suspenso de nomes liminarmente, situao que corresponde a 17% dos primeiros inscritos. Somando o ndice dos que obtiveram suspenso liminar (17%) grande potencial para reincidir aos que efetivamente reincidiram (2%), conclui-se que 19% dos inscritos na primeira lista, por uma via ou outra, no procuraram adequar-se ou corrigir falhas, mas, ao contrrio, alm de ignorar a legislao procuraram questionla como ltimo recurso para no abandonar prticas equivocadas. Como o MTE no fornece detalhes relativos ao nmero de processos nos quais foram concedidas liminares, optou-se por realizar levantamentos em datas distintas objetivando avaliar esse meio de ataque lista tendo em vista os rgos de concesso. Pois bem, em consulta realizada ao MTE13

em 15.03.2005 detectou-se a

concesso de 9 liminares (8 pela Justia Federal e 1 pela Justia Trabalhista). Na segunda consulta, em 13.02.2006, data em que a primeira lista j havia completado dois anos, observou-se que o nmero de liminares havia aumentado para 21 (17 pela Justia Federal e 4 pela Justia do Trabalho). De fato, esse tem sido um entrave, e s para que se tenha noo da interferncia da medida no funcionamento da lista suja, desses 21 nomes suspensos, nove integravam justamente a primeira listagem, representando 17% dos casos que, na ocasio, deveriam figurar como reincidentes e no como suspensos. Confirmando a suspeita de intensificao do uso da medida, foi realizada uma terceira pesquisa, em 23.05.2006, data em que 28 listados (21 pela Justia do Trabalho e 7 pela Justia Federal) haviam lanado mo da medida liminar para no figurar na lista suja do trabalho escravo. O crescente uso de liminares preocupante, mas enquanto no se criar a lista suja por lei federal resta contar com o bom senso de magistrados espalhados Brasil fora, o que, como observado, nem sempre ocorre.

13

http://www.mte.gov.br/Noticias/download/lista.pdf

40

4.1.2

Divulgao Objetivando reprimir o trabalho escravo, a proposta 10 do Plano Nacional

de Combate ao Trabalho Escravo estabeleceu a criao e manuteno de uma base de dados integrada com o fito de reunir informaes correlacionadas (BRASIL. Plano Nacional de Erradicao do Trabalho Escravo, 2003). Assim, objetivando aes concretas, alm da divulgao da lista suja via internet ao pblico em geral, do MTE ela encaminhada a alguns rgos, conforme abaixo (fig. 6):Secretaria Especial de Direitos Humanos

Ministrios Meio Ambiente; Desenvolvimento Agrrio; Integrao Nacional; Fazenda

MTE

Ministrios Pblicos Trabalho; Federal.

Banco Central do Brasil

Figura 6: Encaminhamento da lista suja. Fonte: Baseada em BRASIL, 2003.

Integrando a idia de divulgao em maro de 2006 foi promovido o Seminrio Internacional Trabalho Escravo por Dvidas e Direitos Humanos, pelo Ministrio do Desenvolvimento Agrrio, Instituto Ethos e Grupo de Pesquisa do Trabalho Escravo Contemporneo (GPTEC), ligado Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e encarregado de sistematizar documentos sobre o trabalho escravo para alimentar banco de dados. O principal objetivo da divulgao dos nomes expor os listados censura social, partindo do princpio de que possvel alcanar uma penalizao tica fundada na reprovao social.

41

4.1.3

Checagem da cadeia dominial Na mesma proposta da medida anterior, o Plano Nacional previu o

desdobramento da base de consulta na identificao de empregadores e empregados, locais de aliciamento e ocorrncia do crime (BRASIL. Plano Nacional de Erradicao do Trabalho Escravo, 2003, Proposta 10), com o Incra sendo encarregado de analisar a cadeia dominial dos imveis rurais constantes da lista, no intuito de verificar cadastro14, registro e produtividade. O cadastro imobilirio rural, vale acrescentar, administrado pelo Incra, enquanto o registro imobilirio, rural ou urbano, procedido nos cartrios de registro de imveis, sendo que o foco do primeiro a arrecadao de tributos, enquanto o objetivo do segundo cuidar da realidade jurdica (ALMEIDA, 1982). O direito de propriedade, como sabido, encontra restries na obrigatoriedade de cumprimento da funo social, alcanvel quando atendidos, simultaneamente, requisitos ligados a aproveitamento racional, preservao ambiental, relaes de trabalho e favorecimento do bem-estar de proprietrios e trabalhadores (BRASIL, Constituio Federal, artigo 5, XXIII e artigo 186). Na ocorrncia de irregularidades relacionadas a esses requisitos, os imveis podem ser destinados reforma agrria, tendo em vista a competncia da Unio para desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrria, o imvel rural que no cumpre sua funo social (BRASIL, Constituio Federal, artigo 184). Voltando ao Incra, em 24.01.2006 entrou em vigor a Portaria n 12 que, ao revogar suas antecessoras15, passou a regular o processo de levantamento da cadeia dominial. Pelo texto das Portarias, constatadas irregularidades, o imvel rural pode ter declarada sua inexistncia ou determinado o cancelamento de matrcula e registro por nulidade de pleno direito do ttulo definitivo ou expedio em desacordo com a legislao16, com adoo de medidas judiciais para reincorporao das propriedades ao domnio da Unio. Apesar de revogada, a Portaria 835/2004 interessa particularmente, pois, como dito, at 2006 ela regulou o levantamento da cadeia dominial dos imveis14

O Sistema Nacional de Cadastro Rural foi institudo pelo Estatuto da Terra (Lei 4.504/1964), modificado pela Lei n 5.868/1972 que, regulamentada pelo Decreto n 72.106/1973, foi alterada pela Lei n 10.267/2001, atualmente vigente. 15 558/1999, 596/2001 e 835/2004. 16 Artigo 221 e seguintes da Lei n6.015/1973, com as alteraes introduzidas pela Lei n6.216/1975.

42

constantes da lista suja do trabalho escravo, apontando o seguinte cenrio no Par em 03.05.2006, de acordo com planilha de dados fornecida pela Diviso de Ordenamento Territorial (SDTT) do Incra:Tabela 5: Imveis analisados pelo Incra, via Portaria 835/2004. IMVEIS APRESENTARAM EXISTENTES NOTIFICADOS DOCUMENTAO 110 61 Fonte: Incra. SDTT. (SALES, 2006). 70

Observa-se que, de 110 imveis identificados pelo Incra como integrantes da lista suja do trabalho escravo, 61 (55%) foram notificados para apresentar documentao, Incra.Tabela 6: rea analisada pelo Incra, via Portaria 835/2004. REA (HA) REA (HA) REA (HA) QUE APRESENTOU EXISTENTE NOTIFICADA DOCUMENTAO 261.785 159.763 Fonte: Incra. SDTT. (SALES, 2006). 141.742

sendo

que

7017

efetivamente

atenderam

a

exigncia,

correspondendo a 74% do universo de imveis listados pelo MTE e analisados pelo

Por outro lado, considerando um total de 261.785ha de rea identificada com presena de trabalho escravo, observa-se que 159.763ha foram notificados, o que corresponde a 61%, dos quais 141.742ha apresentaram documentao, correspondendo a 54% da rea total. preciso ressaltar, todavia, que todos esses processos ainda esto pendentes de anlise no Incra e que, apenas aps esse passo, os imveis onde foram flagrados trabalhadores escravos efetivamente podero ter seus registros declarados nulos ou cancelados.

4.1.4

Identificao de cadeias produtivas Outra ao prevista na proposta 10 do Plano Nacional de Erradicao do

Trabalho Escravo foi a identificao das cadeias produtivas dos imveis listados, cujo estudo foi realizado pela Ong Reprter Brasil, a pedido da Secretaria Especial de Direitos Humanos, do governo federal.17

Considerando que alguns proprietrios apresentaram documentao espontaneamente.

43

O levantamento constatou que 80% dos locais autuados eram destinados pecuria, 17% atividade agrcola (algodo:10%; pimenta-do-reino:3%; cana-deacar:3%; caf:1%) e 3% tinham outras destinaes (OIT, 2005). Referido estudo teve incio nas propriedades rurais listadas, passando pelos compradores primrios e intermedirios, at chegar aos mercados consumidores, interno e externo, identificando seis grandes frigorficos exportadores com fornecedores includos na lista suja.3% 17%

O cenrio preocupante considerando que, desde 1999, o Brasil tem despontado no cenrio internacional justamente pela exportao do principal produto da cadeia produtiva da lista suja e em 2003 tornou-se o maior exportador de carne bovina do mundo (ARIMA, 2005, p. 17), como resultado

de80% Pecuria Agricultura

esforos por melhoria gentica do rebanho, modernizao de tcnicas e fiscalizao sanitria.Outras atividades

Figura 7: Cadeia produtiva dos listados. Fonte: OIT, 2005.

Todavia, justamente nesse setor da economia que o pas vivencia seu maior drama, pois a par de um rebanho altamente qualificado, com rao controlada e vacinao garantida, figuram trabalhadores que sequer tm acesso a gua potvel. Detalhando a anlise acerca do crescimento da atividade pecuria, observa-se que a Amaznia Legal foi a principal regio responsvel pelo crescimento do rebanho bovino nacional entre 1990 e 2003, com uma taxa mdia de crescimento anual de 7%, enquanto o restante do Brasil apresentou taxa mdia anual de 0,67% (ARIMA, 2005). Nesse diapaso, comparando a principal atividade identificada pelo levantamento da cadeia produtiva dos listados a pecuria bovina e os investimentos do Banco da Amaznia nessa rea, observa-se que, entre 1989 e 2002, a atividade recebeu do Fundo Constitucional de Financiamento do Norte (FNO) US$ 2,36 bilhes, cabendo ao Par US$ 1,08 bilhes (ARIMA, 2005). O preo pode ser alto, pois grande parte dos concorrentes brasileiros pode ter interesse em divulgar a imagem de um Brasil que cuida melhor de seus animais

44

do que de seus cidados, de modo que a nica soluo aliar qualidade do rebanho a valorizao do trabalhador, dando mostras de uma pecuria responsvel. Pela anlise desse desdobramento, a lista suja pode ser encarada como verdadeiro aliado dos agentes financeiros, pblicos e privados, ao fornecer informaes a respeito das atividades desenvolvidas pelos listados, propiciando, em conseqncia, verdadeiro plus vedao do acesso a financiamentos.

4.1.5

Linha de crdito especfica Ainda como fruto do Plano Nacional de Erradicao do Trabalho Escravo,

o Programa Nacional de Crdito Fundirio (PNCF), desenvolvido pelo Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA), contemplou uma linha de financiamento denominada Terra para a Liberdade, especificamente destinada a trabalhadores libertados em situao de escravido. O objetivo do PNCF, que financia at R$ 40.000,00 por pessoa, ou coletivamente, reduzir a pobreza no campo e melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores rurais pela concesso de crdito para aquisio de imvel e investimentos em infra-estrutura bsica, com prazo de pagamento que chega a 17 anos e juros entre 3,0 e 6,5% ao ano.

4.1.6

Apoios estaduais Na reunio da Conatrae de maro de 2006, o governador do Mato Grosso

assumiu compromisso de interceder junto a associaes e federaes de produtores rurais objetivando estabelecer parceria para erradicar o trabalho escravo na regio. Ficou decidido que os proprietrios de imveis rurais sero convidados a assinar termo de compromisso pelo fim do trabalho escravo e quem no aderir ser rigorosamente fiscalizado pelos grupos especiais de fiscalizao mvel do MTE. Ainda nessa reunio, surgiu a proposta de criao de uma lista branca, a exemplo da lista suja, contemplando proprietrios que no usam trabalho escravo

45

em suas terras, e que por isso receberiam um selo de qualidade. Em 11.04.2006 foi sancionada a Lei n 4.744 no Rio de Janeiro, impedindo o Executivo de contratar e cancelando concesses a quem utiliza mo-de-obra escrava. Em 11.09.2006 o Tocantins promulgou a Lei 1.726, igualmente proibindo contratos e convnios com a administrao pblica estadual aos que, direta ou indiretamente, utilizam mo de obra escrava.

4.1.7

Seguro-Desemprego Depois de resgatados, os trabalhadores recebem por trs meses o seguro-

desemprego, benefcio concedido pelo Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (Codefat) de acordo com a Resoluo n 306/2002.

4.1.8

Restrio a crdito pblico e fundos constitucionais Ainda no Plano Nacional de Erradicao do Trabalho Escravo, o governo

federal previu a criao de clusulas impeditivas para obteno e manuteno de crdito rural, quando comprovada a existncia de trabalho escravo ou degradante (BRASIL. Plano Nacional de Erradicao do Trabalho Escravo, 2003, proposta 9). O Ministrio da Fazenda e Banco Central passaram ento a estudar restries aos listados junto s instituies financeiras que lidam com recursos pblicos, mas o Ministrio da Integrao Nacional deu um passo frente e, com a Portaria n1.150, de 18.11.2003, passou a impedir a obteno de recursos oriundos dos fundos constitucionais pelo encaminhamento da lista suja aos bancos pblicos. De acordo com Arima (2005), entre 1989 e 2002, o Banco da Amaznia investiu no Par, via FNO, US$ 2,8 bilhes, ou seja, 48% do investimento realizado no Norte. Desse total, U$ 1,08 bilhes foram investidos em pecuria bovina e US$ 0,91 bilhes em agropecuria (ARIMA, 2005), atividades que correspondem maior

46

parcela de investimentos da cadeia produtiva dos listados, como visto anteriormente. 4.1.9 Restrio a crdito privado Pela assinatura da Declarao de Intenes pela Erradicao do Trabalho Escravo no Brasil (Anexo C), em 13.12.2005, a Febraban aliou-se ao governo, e passou a recomendar adoo de restries cadastrais a empreendimentos listados a seus 180 associados. A entidade comprometeu-se, ainda, a acompanhar o andamento das aes de apoio reintegrao dos trabalhadores, implementar campanhas e parcerias, e avaliar os avanos aps um ano de assinatura do compromisso. Segundo a federao (APOSTLICO, 2006), apesar de no se tratar de imposio, os bancos costumam acatar suas recomendaes em todos os temas, especialmente trabalhista e social.

4.1.10

Acordos privados Em 11.05.2005 foi divulgado simultaneamente em Genebra e Braslia o

relatrio Uma Aliana Global contra o Trabalho Forado18, cuja pesquisa concluiu que o trabalho escravo no alimentado pelo pequeno, mas pelo grande produtor rural, sugerindo a colaborao da sociedade para pressionar o setor empresarial. A partir desse estudo a OIT, em parceria com o Instituto Ethos de Responsabilidade Social, elaborou o Pacto Nacional pela Erradicao do Trabalho Escravo (Anexo B) que, no mesmo ano, obteve a adeso de cerca de 7019 grandes empresas, entre as quais: Coteminas, Votorantim, Petrobrs, Ipiranga, Shell, Carrefour, Po de Acar, Banco do Brasil, Valisre, Texaco Brasil. Entre outros pontos, os signatrios comprometeram-se a: a) Definir metas para regularizar relaes de trabalho; b) Definir restries comerciais aos que utilizam trabalho escravo; c) Apoiar aes de reintegrao dos trabalhadores; d) Apoiar aes de informao aos trabalhadores vulnerveis; e) Apoiar e debater propostas de implementao das aes previstas no18 19

Acessvel em http://www.oitbrasil.org.br/trabalho_forcado/oit/relatorio/relatorio_global.php Em 15.05.2006 o pacto contava com 101 signatrios.

47

Plano Nacional para a Erradicao do Trabalho Escravo; f) Monitorar a implementao das aes e alcance das metas propostas, tornando pblicos os resultados desse esforo conjunto. Referido pacto vem recebendo adeses at mesmo internacionais, como a empresa Wal-Mart20 que no Brasil passou a exigir dos seus fornecedores ateno redobrada com relao a: a) cumprimento da legislao aplicvel; b) remunerao e jornada de trabalho; c) trabalhos forados; d) trabalho infantil; entre outros. No Par, os avanos mais importantes foram: a) Assinatura de carta compromisso (Anexo A), em 13.08.2004, pela Associao das Siderrgicas de Carajs (Asica), comprometendo-se pelos associados21 a adotar restries comerciais a empresas que utilizam mo-de-obra escrava e desenvolver aes de reintegrao social e produtiva voltadas aos aliciados (VERAS, 2005); b) Criao do ICC pela Asica, visando cumprir a carta compromisso, via: b.1) auditorias; b.2) fiscalizaes; b.3) criao de banco de dados de resgatados; b.4) reinsero de trabalhadores no mercado de trabalho; b.5) denncia ao MTE e Ministrio Pblico de associados que no seguirem orientaes (CARNEIRO, 2006).

4.1.11

Atuao de organizaes no-governamentais Tendo como ponto de apoio a lista suja, a Reprter Brasil, associao civil

sem fins lucrativos sediada em So Paulo, passou a desenvolver os projetos: a) Comunicao no Combate Escravido: acompanha fiscalizaes do MTE e as divulga em jornais, revistas, sites e emissoras de rdio, e prev seminrios e textos para o pblico jornalista. Como resultado, a OIT observou que o tema esteve presente na mdia brasileira na proporo: 1995: 72 inseres; 2002: 260 inseres; 2003: 1.541 inseres; 2004: 1.518 inseres (REPRTER BRASIL, 2006d);20 21

www.walmartbrasil.com.br. Companhia Siderrgica do Par (Cosipar), Compahina Siderrgica Vale do Pindar (Cosima), Companhia Siderrgica do Maranho, Ferro Gusa do Maranho (Fergumar), Ferro Gusa Carajs S.A., Gusa Nordeste S.A., Maranho Gusa S.A. (Margusa), Siderrgica do Par (Sidepar), Siderrgica do Maranho S.A. (Simasa), Siderrgica Ibrica do Par S.A., Siderrgica Marab S.A. (Simara), Susa Industrial Ltda., Terra Norte Metais Ltda., Viena Siderrgica do Maranho S.A., Usimar Ltda.

48

b) Escravo, nem Pensar!: estabelece parceria com 20 instituies visando atuar nos 10 principais Municpios22 fornecedores de mo-de-obra escrava com vistas a reduzir o nmero de adolescentes aliciados, via educao e comunicao comunitria. Em 2005 foram capacitadas 300 pessoas (professores, educadores e agentes de cidadania), estando em andamento a capacitao de 750 pessoas (REPRTER BRASIL, 2006a). Nesse particular, observa-se a sociedade chamando para si a responsabilidade de propiciar meios de combate ao trabalho escravo, confirmando a idia inicial de que a lista suja , sim, ameaa casa grande por sua capacidade de extrapolar os limites da lei e envolver segmentos privados em medidas prticas.

22

Distribudos entre Piau, Maranho e Tocantins.

49

5

PRINCIPAIS CONTESTAES E OBJEES Na ltima dcada, por ao do Governo Federal, foram libertadas no Brasil

17.983 pessoas encontradas em condies anlogas de escravo pelas aes do governo federal, redundando no pagamento de indenizaes, vedao a financiamentos e cancelamento de acordos comerciais, dando mostras de que a disposio do Estado e sociedade j no apenas de combater, mas de erradicar o trabalho escravo do Brasil no sculo XXI. Na busca por formas eficazes de combate, a lista suja do trabalho escravo surgiu em 2003 como tentativa de propiciar uma resposta rpida ao problema. No obstante, ao criar um instrumento de to grande projeo por legislao interna, o MTE facilitou aos inscritos a contestao de sua legalidade, favorecendo um movimento contrrio fundado na obteno de liminares para suspenso de nomes. Alm das reaes individuais pode-se apontar uma reao coletiva com o ajuizamento da Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) n 3347/2004 pela Confederao Nacional da Agricultura e Pecuria do Brasil (CNA), cujos autos esto conclusos ao relator, Ministro Carlos Britto, desde 07.06.200623. Segundo a Confederao, a Portaria que criou o cadastro fere o artigo 22, inciso I, da Constituio Federal, que atribui Unio competncia privativa para legislar sobre Direito do Trabalho. O princpio da legalidade e garantias constitucionais tambm estariam sendo violados, segundo essa corrente. Ademais, a entidade sustenta que a presidncia da Repblica teria aprovado Regulamento da Inspeo do Trabalho sem meno ao cadastro, o qual, ao contrrio da Portaria contestada, no admite que os auditores-fiscais do trabalho verifiquem a incidncia de trabalho escravo, tendo em vista a impossibilidade desses profissionais investigar a prtica de crimes, cuja funo da polcia. Todavia, de antemo pode-se prever o fracasso da manobra tendo em vista tendo ser pacfico no STF24 a no-admisso de controle de constitucionalidade contra atos regulamentares, sobre os quais recai ilegalidade e no inconstitucionalidade.23

http://www.stf.gov.br/processos/processo.asp?Classe=ADI&Processo=3347&Origem=AP&Recurso=0&TIP JULGAMENTO=M 24 a) ADI n. 3.383, DJ de 03/06/2005; b) ADI n. 2.207, DJ de 04/09/2000; c) ADI/MC n. 1.383, DJ de 18/10/1996; e d) ADI n. 2.387, DJ de 05/12/2003.

50

Uma terceira forma de resistncia ao instrumento pode ser apontada como a reao in loco dos escravagistas. De acordo com a Reprter Brasil (2006b) a intimidao que os incomodados impem nas proximidades de suas fazendas to grande que a populao de alguns locais da fronteira agrcola amaznica tem medo, at mesmo, de pronunciar a palavra escravo em pblico, temendo falar sobre o tema e enfurecer os donos locais do poder. Ainda segundo a Ong, essa reao foi constatada na regio da rodovia Transamaznica, no Par, e no Norte do Estado do Mato Grosso (REPRTER BRASIL, 2006b), onde a floresta tomba diariamente pelas mos daqueles que esto cruelmente acorrentados a uma vida de exploraes e sofrimentos. Ali, como em todo Brasil, os argumentos dos escravocratas so muito frgeis, como facilmente pode-se constatar pela anlise de apenas uma, entre muitas declaraes colhidas pela Ong:Trabalho escravo uma mentira, no existe. O que h uma tentativa de um governo de esquerda e de ONGs internacionais, interessadas na Amaznia, de impedir o desenvolvimento econmico do pas. Eles trabalham nas minhas terras, mas no so meus empregados, eu no tenho nada a ver com isso. No vou pagar salrios para vagabundo gastar em cachaa. melhor que eu guarde o dinheiro dele, se precisar de algo s me pedir. Ah, mas aquilo no escravo, mas sim o costume da regio. A imprensa inventa uma realidade que no existe. gua tratada, alimentao, alojamento? Para qu? Eles no tm isso nem na casa deles (REPRTER BRASIL, 2006b).

Pois bem, abandonando opinies descabidas, por no ser o foco do presente trabalho, e procurando argumentos jurdicos, de modo geral as opinies a favor e contra a lista suja do trabalho escravo podem ser assim resumidas: a) De um lado, aqueles que entendem cabvel a contestao da legalidade do mecanismo pelos seguintes fundamentos: a.1) direito de propriedade; a.2) princpio da inocncia; 1.3) princpio da reserva legal. Isso tem favorecido um movimento contrrio via suspenso liminar de nomes; b) Em sentido oposto os que sustentam: b.1) competncia da Unio para organizar, manter e executar a inspeo do trabalho; b.2) atribuio dos Ministros para orientar, coordenar, supervisionar e expedir instrues

51

para rgos de suas competncias; b.3) limitao do direito de propriedade pela funo social; b.4) garantia de ampla defesa na esfera administrativa sem impedir que na esfera penal o listado tenha nova oportunidade de defesa; b.5) respaldo nos preceitos constitucionais de acesso informao e publicidade dos atos da administrao pblica. Acerca do direito de propriedade, assegurado pela Constituio em seu artigo 5, inciso XXII, certo que se por um lado trata-se de preceito fundamental, no menos verdade que sobre ele pesam restries quanto sua funo social (BRASIL, Constituio Federal, artigo 5, XXIII). A funo social, pois, alcanvel apenas quando a propriedade atende simultaneamente aos requisitos de "observncia das disposies que regulam as relaes de trabalho", e "explorao que favorea o bem-estar dos trabalhadores" (BRASIL, Constituio Federal, artigo 186, III e IV). Caso contrrio a Constituio autoriza a Unio a desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrria, o imvel rural que deixa de cumprir sua funo social (BRASIL, Constituio Federal, artigo 184). Ora, se a Constituio autoriza edio de decreto declarando o imvel de interesse social para fins de desapropriao, mais lgico ser que, pelos Ministrios, autorize medidas para coibir servido e financiamento das atividades lesivas que pretende reprimir (BRASIL, Constituio Federal, artigo 184, 2). No que tange ao princpio da reserva legal25, no se trata de eventual legitimidade dos Ministros para legislar, mas de competncia administrativa para produo de atos inerentes aos seus Ministrios. Assim, a produo do cadastro administrativo pelo MTE no fere a reserva legal por buscar, to somente, implementar nos planos prtico e tico, os pilares da democracia: dignidade da pessoa humana e valores sociais do trabalho, esculpidos no artigo 1, incisos III e IV da Constituio Federal. At por que, a Carta Magna preceitua:"A ordem econmica, fundada na valorizao do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existncia digna, conforme os ditames da justia social, fundada nos seguintes princpios: (...) III funo social da propriedade; (...) VIII busca do pleno25

No h crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prvia cominao legal (BRASIL, Constituio Federal, artigo 5, XXXIX); No h crime sem lei anterior que o defina. N