memória e sensibilidade imagética no primeiro século ... · imbricou as fontes imagéticas com o...

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Memória e Sensibilidade Imagética no Primeiro Século Franciscano: a multiplicação de sentidos nas imagens do episódio da pregação aos pássaros ANDRÉ LUIZ MARCONDES PELEGRINELLI Eu já mencionei a necessidade, para o historiador, de tomar como ponto de partida a maneira como as pessoas que se estuda representavam-se, e de entender a coerência de suas representações. Você reparou como a quase totalidade das revistas que se encontram nas bancas tratam da mesma trilogia: sentimento, paixão, emoção? E quando você consulta os trabalhos dos historiadores, há bem poucos estudos sobre a emoção, o sentimento e a paixão [...]. (Alain de Corbin em entrevista para a Revista Brasileira de História. CORBIN, 2005, p. 17) As últimas décadas têm permitido aos historiadores se voltar a problemas que pouca atenção tiveram antes da segunda metade do século XX. Amor, tristeza, cheiro, desejo, são sensibilidades que têm, saídos da psicologia e das ciências naturais, invadido o campo de preocupações do profissional da História. Mais: pensar sensibilidades implica pensar como figurar a si e a ao outro, como figurar o movimento, a atenção. Envolve pensar como se sente e se percebe o mundo imagético ao nosso redor, outro campo que, saído dos historiadores da arte, encontrou terreno fértil entre os historiadores, principalmente a partir do século passado. Produzir imagens e vê-las é uma prática sensível. Ancorado na busca da História das Sensibilidades, buscamos nessa investigação pensar as imagens do episódio em que Francisco de Assis (1182-1226) pregou aos pássaros na iconografia do primeiro século franciscano, percebendo nessas imagens, painéis e afrescos com forte caráter narrativo e memorial, a sensibilidade das aves figuradas e a sua implicação no papel de Francisco enquanto pregador. Se Corbin têm militado pela História das Sensibilidades, principalmente após o sucesso e repercussão de Le miasme et la jonquille: l’odorat et l’imaginaire social, XVIIIe- XIXe siècles (em português Saberes e Odores: o olfato e o imaginário social nos séculos XVIII e XIX. Paris, 1982. São Paulo, 1987), é verdade que, como afirmado pelo próprio Corbin (CORBIN, 2015, p. 16) há rastros de preocupação com o sensível na produção historiográfica antes mesmo de Lucien Febvre (1878-1956). Johan Huizinga (1872-1945), no clássico O Outono da Idade Média (1919), realizou um dos primeiros trabalhos a entrecruzar imagem e sensibilidade para pensar o medievo. Influenciado por Emile Malê e seu L’art religieux de la fin du Moyen Âge en France (1908), Mestrando em História Social pelo Programa de Pós Graduação em História Social, da Universidade Estadual de Londrina. Bolsista CAPES. Contato: [email protected].

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Page 1: Memória e Sensibilidade Imagética no Primeiro Século ... · imbricou as fontes imagéticas com o estudo do homem e ... de perder a beleza com a morte influenciou o homem do século

Memória e Sensibilidade Imagética no Primeiro Século Franciscano: a multiplicação de

sentidos nas imagens do episódio da pregação aos pássaros

ANDRÉ LUIZ MARCONDES PELEGRINELLI

Eu já mencionei a necessidade, para o historiador, de tomar como ponto de partida a

maneira como as pessoas que se estuda representavam-se, e de entender a coerência

de suas representações. Você reparou como a quase totalidade das revistas que se

encontram nas bancas tratam da mesma trilogia: sentimento, paixão, emoção? E

quando você consulta os trabalhos dos historiadores, há bem poucos estudos sobre a

emoção, o sentimento e a paixão [...]. (Alain de Corbin em entrevista para a Revista

Brasileira de História. CORBIN, 2005, p. 17)

As últimas décadas têm permitido aos historiadores se voltar a problemas que pouca

atenção tiveram antes da segunda metade do século XX. Amor, tristeza, cheiro, desejo, são

sensibilidades que têm, saídos da psicologia e das ciências naturais, invadido o campo de

preocupações do profissional da História. Mais: pensar sensibilidades implica pensar como

figurar a si e a ao outro, como figurar o movimento, a atenção. Envolve pensar como se sente

e se percebe o mundo imagético ao nosso redor, outro campo que, saído dos historiadores da

arte, encontrou terreno fértil entre os historiadores, principalmente a partir do século passado.

Produzir imagens e vê-las é uma prática sensível. Ancorado na busca da História das

Sensibilidades, buscamos nessa investigação pensar as imagens do episódio em que Francisco

de Assis (1182-1226) pregou aos pássaros na iconografia do primeiro século franciscano,

percebendo nessas imagens, painéis e afrescos com forte caráter narrativo e memorial, a

sensibilidade das aves figuradas e a sua implicação no papel de Francisco enquanto pregador.

Se Corbin têm militado pela História das Sensibilidades, principalmente após o

sucesso e repercussão de Le miasme et la jonquille: l’odorat et l’imaginaire social, XVIIIe-

XIXe siècles (em português Saberes e Odores: o olfato e o imaginário social nos séculos

XVIII e XIX. Paris, 1982. São Paulo, 1987), é verdade que, como afirmado pelo próprio

Corbin (CORBIN, 2015, p. 16) há rastros de preocupação com o sensível na produção

historiográfica antes mesmo de Lucien Febvre (1878-1956).

Johan Huizinga (1872-1945), no clássico O Outono da Idade Média (1919), realizou

um dos primeiros trabalhos a entrecruzar imagem e sensibilidade para pensar o medievo.

Influenciado por Emile Malê e seu L’art religieux de la fin du Moyen Âge en France (1908), Mestrando em História Social pelo Programa de Pós Graduação em História Social, da Universidade Estadual

de Londrina. Bolsista CAPES. Contato: [email protected].

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imbricou as fontes imagéticas com o estudo do homem e suas relações. Ainda que passível a

uma série de críticas, o historiador neerlandês bem demonstrou, por exemplo, como o medo

de perder a beleza com a morte influenciou o homem do século XV:

[...] Na ânsia por uma imagem concreta da morte, que implicava abandonar tudo o

que não era tangível, somente os aspectos mais grosseiros da morte penetraram na

consciência. Na visão macabra da morte faltam praticamente toda a ternura, todo o

elegíaco. E no fundo trata-se de uma visão muito terrena e egoísta da morte. Não se

trata do luto pela falta de entes queridos, mas do pesar pela proximidade da morte,

que não trazia nada além de desgraça e horror. Não se pensa na morte como um

consolo, o final do sofrimento, o descanso desejado, a tarefa concluída ou

interrompida, nenhuma lembrança terna, nenhuma resignação. [...] (HUIZINGA,

2013, p. 241. Grifo nosso).

Didi-Huberman, filósofo, historiador da arte e crítico de arte, ao estudar um afresco de

Fra Angelico (1395-1455) na parede do convento de San Marco, em Florença (1440), bem

demonstrou como a integralidade da imagem, seu suporte, espaço, disposição e luz

influenciavam e influenciam na sensibilidade daquele que a observa, redirecionando seu

sentido. O espaço em branco, abundante na imagem, ofuscava o olhar do observador e

impunha-se enquanto paradoxo e mistério da cena da Anunciação ao se misturar com a página

figurada na cena e com a veste branca dominicana. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 34).

Para pensar os sentidos é importante pensar as intenções. Os painéis e afrescos

narrativos tem grande importância no conjunto de figurações cristãs uma vez que

reapresentam o santo ou história homenageada. Religião de memória e de sua atualização, o

cristianismo existe em função de um passado que se mantém presente e segue em direção a

um futuro profetizado. O pensar e produzir História no medievo, marcado e inserido na

teologia cristã, confundia passado e presente ao pregar a constante permanência do Mistério

(GOETZ, 2012, p. 128). A história e a produção sobre ela eram revelação divina, basta nos

perguntarmos, por exemplo, sobre a autoria do cânon cristão. Direcionando-se constantemente

ao passado, aos profetas, aos discípulos – mesmo na história laica, que se remete

constantemente aos grande reis, é reinterpretada e revivida na atualização da Paixão através

das imagens e da Eucaristia que presentifica o sacrifício de Cristo (SCHMITT, 2002, p. 595).

Boncompagno da Sina (1165-após 1240), professor de retórica (ars dictaminis) na

Universidade de Bolonha escreveu em 1235, na Rhetorica novissima: “O que é a memória. A

memória é um glorioso e admirável dom da natureza, através do qual reevocamos as coisas

passadas, abraçamos as presentes e contemplamos as futuras, graças à sua semelhança com as

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passadas”. (SIGNA apud LE GOFF, 1984, p. 30). Tomás de Aquino ao tratar sobre a Virtude

da Prudência insiste que o esquecimento pode ser prejudicial à sociedade e que a permanência

da memória é fundamental para que os homens não percam o conhecimento de si mesmos

(OLIVEIRA, 2015, p. 361). Francisco dedica metade de seu Testamento a relembrar seu

chamado e a vida da primeira comunidade, ordenou ainda que o texto fosse lido sempre junto

a regra. (Test, 36).

A memória é viva, portanto transforma-se constantemente. A disputa interna na

Ordem após a morte de Francisco entre espirituais e conventuais revelou-se também uma

disputa pela sua memória. A fim de oferecer uma única interpretação sobre a questão da

pobreza e da clerizalização da Ordem, os dois grupos buscaram moldar um Francisco de

acordo com suas próprias intenções. Como toda imagem religiosa, esvaziada de sentido

implícito, a imago (SCHMITT, 1996) de Francisco se plasma e modifica, em um primeiro

momento através do embate em torno das hagiografias e depois na iconografia.

Ciente do embate, o Capítulo Geral de Paris de 1266, quarenta anos após a morte de

Francisco, impôs uma única versão oficial da história/memória de Francisco de Assis através

da Leggenda Maggiore de Bonaventura da Bagnoregio (1217-1274), ministro-geral de então,

ordenando que todas as outras versões fossem destruídas, incluindo as versões de Tommaso

da Celano (1220-1270), principais hagiografias até aquele momento. O embate entre os dois

grupos seguiu-se até a segunda década do século XIV, quando o Papa João XXII (1294-1334)

condenou o grupo dos fraticelli como herege.

A tradição iconográfica tampouco passou a margem dessa construção de memória. A

cor da túnica, os calçados, o capuz, o cordão, etc., foram figurados de diferentes modos.

Angelita Visalli (2015) bem demonstrou como a escolha em figurar Francisco e seus

seguidores calçados ou descalços implicou na interpretação do movo de vida do fundador e

dos seus. O ciclo da Vita di Francesco na Igreja Superior da Basílica de São Francisco, em

Assis, produzido por Giotto entre 1290-1295 encerra o primeiro século de iconografia ao se

apresentar como imagem-modelo do santo.

Passamos ao episódio da pregação aos pássaros. Assim Celano narra o episódio:

[...] Ele se dirigiu a um lugar perto de Bevagna, em que estava reunida a maior

multidão de aves de diversas espécies, a saber, de pombas, de gralhas e de outras

que vulgarmente se chamam monjinhas. Quando Francisco, o beatíssimo servo de

Deus, as viu, porque era homem de fervor muito grande e tinha grande afeto de

compaixão e doçura também para com as criaturas inferiores e irracionais, correu

alegremente até elas, tendo deixado os companheiros na estrada. E estando já

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bastante perto e vendo que elas o aguardavam, saudou-as do modo habitual. Mas,

admirando-se não pouco de como as aves não tivessem levantado em fuga, como

costumam fazer, repleto de enorme alegria, rogou-lhes humildemente que ouvissem

a palavra de Deus. E entre muitas coisas que lhes falou, acrescentou também: “Meus

irmãos pássaros, muito deveis louvar o vosso Criador e sempre amar aquele que vos

deu penas para vestir, asas para voar e tudo de que necessitais. Deus vos fez nobres

entre as criaturas e concedeu-vos a mansão na pureza do ar, porque, como não

semeais nem colheis, ele, todavia, vos protege e governa sem qualquer preocupação

vossa”. A estas palavras, aquelas aves, como ele próprio dizia e os irmãos que

estavam com ele, exultando de modo admirável segundo sua natureza, começaram a

esticar os pescoços, a estender as asas, a abrir o bico e a olhar para ele. E ele,

passando pelo meio delas ia e voltava, roçando com sua túnica as cabeças e corpos

delas. Finalmente, abençoou-as e, tendo feito o sinal-da-cruz, deu-lhes a licença para

voarem a outro lugar. E o bem-aventurado pai, alegrando-se, ia com seus

companheiros por seu caminho e rendia graças a Deus, a quem todas as criaturas

veneram com humilde confissão. [...] (1Cel XXI, 2-12)

A descrição de Bonaventura é mais econômica nos detalhes:

Então, ao aproximar-se de Bevagna, dirigiu-se a um lugar em que se reunira a maior

multidão de aves de diversas espécies. Quando o santo de Deus as viu, correu

alegremente ao lugar e saudou-as como se fossem dotadas de razão. Estando todas a

olhar e voltar-se para ele – de modo que as que estavam nos arbustos, inclinando as

cabeças quando ele se aproximava delas, olhava para ele de modo insólito -, ele se

aproximou delas e admoestou a todas solicitamente ouvirem a palavra de Deus,

dizendo: “Minhas irmãs aves, muito deveis louvar o vosso Criador que vos revestiu

com penas e vos deu asas para voar, vos concedeu a pureza do ar e vos governa sem

a vossa preocupação”. E como lhes falasse estas e semelhantes coisas, as avezinhas,

regozijando-se de modo admirável, começaram a estender os pescoços, a esticar as

asas, a abrir os bicos e a olhar atentamente para ele. E ele, passando pelo meio delas

com fervor do espírito, tocava-as com a túnica, e, no entanto, nenhuma se moveu do

lugar até que, feito o sinal-da-cruz e dada a bênção do homem de Deus, todas

voaram ao mesmo tempo. [...] (LM, XII, 3, 1-6)

As duas descrições coincidem com relação a atitude das aves: estavam reunidas juntas,

com a atenção voltada a Francisco e reagiram a pregação do santo movimentando-se com os

pescoços e asas. Na iconografia, ao contrário, há menor mobilidade dos pássaros.

A partir do levantamento de Pietro Scarpellini (1982) das távolas e afrescos que

narram a vida de Francisco, encontramos sete ocorrências da cena da pregação aos pássaros,

num total de onze ciclos ou távolas da vida de Francisco.

Conhecemos a primeira delas unicamente através de uma reprodução do século XVII

de Zaccaria Boverio (1568-1638). Supostamente de Bonaventura Berlinghieri (1210-1287),

foi a primeira távola ilustrada com a história de Francisco, produzida no mesmo ano de sua

canonização (1228). Apresentava Francisco ao centro, com a mão direita em gesto de benção

e a esquerda segurando um livro, ao fundo, seis episódios de sua vida, entre elas, a direita

superior, a pregação aos pássaros. Não podemos precisar se a cópia segue exatamente o

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protótipo e se a posição e gestos dos pássaros nessa reprodução seiscentesca corresponde à

original de 1228.

Segue a essa a távola da Igreja de Pescia, de Berlinghieri (1235); Tavola Bardi, de

mestre desconhecido, de Santa Croce, em Florença (1250-1260); Painel da catedral de Orte,

do Mestre de São João Batista de Siena (1250-1290); Távola da Vida de Francisco, que se

encontra na Pinacoteca de Siena, produzido por um seguidor de Guido de Siena (entre 1275-

180); e os dois ciclos da Vida de Francisco na Basílica de Assis, do Mestre de São Francisco

(1260-1265) e de Giotto di Bondone (1290-1295).

Fig. 01 – Bonaventura Berlinghieri. San Francesco, storia e miracoli. Desenho do século XVII, de Zaccaria

Boverio, da távola de S. Miniato em Tedesco (Pisa) (detalhe). 1228. s/i..

Fig. 02 – Bonaventura Berlinghieri. San Francesco, storia e miracoli (detalhe). 1235. Têmpera sobre madeira.

s/i. Igreja de São Francisco, Pescia.

Fig. 03 – Maestro del San Francesco Bardi. Tavola Bardi (detalhe). 1250-1260, Têmpera sobre madeira. s/i.

Capela Bardi, Santa Croce, Firenze.

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Fig. 04 – Maestro del paliotto di San Giovanni Battista a Siena. San Francesco tra tre episodi della sua vita e un

miracolo post morten (detalhe). 1250-1290. Têmpera sobre madeira. s/i. Catedral de Orte.

Fig. 05 – Seguidor de Guido de Siena. San Francesco, otto scene della sua vita, Cristo e sette angeli (detalhe).

1275-1280. Têmpera sobre madeira. s/i. Pinacoteca de Siena.

Fig. 06 – Maestro di San Francesco. Predica agli uccelli. 1260-1265. Afresco. s/i. Igreja Inferior da Basílica de

São Francisco, Assis.

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Fig. 07 – Giotto di Bondone. Predica agli uccelli.1290-1295. Afresco. 270x230cm. Igreja Superior da Basílica

de São Francisco, Assis.

Há um padrão bastante evidente nas imagens: Francisco frente as aves, com a mão

direita estendida em sinal de benção e a esquerda segurando um livro, tal como a imagem

central dos painéis, com exceção da cena de Giotto. Parecem vincular o exato momento em

que Francisco se aproxima dos pássaros, esses reagem de modo positivo e o Santo as saudou:

“Como saudação, o Senhor me revelou que disséssemos: o Senhor te dê a paz.” (Test, 23). A

imagem primeira, perdida, não pode ser tomada para pensar de modo detalhado sua

composição uma vez que é imprecisa a exatidão da cópia.

Chiara Frugoni (2009) levanta a tese de que no ciclo de Giotto a função de pregador é

esvaziada em Francisco e preenchida por Antônio. A pregação no baixo medievo era

exclusividade dos clérigos ou de poucos leigos aos quais o direito fosse dado pelo bispo local

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ou autoridade superior. Francisco não foi clérigo, aceitou apenas receber o diaconato para ter

a função de pregação facilitada. O cenário após a morte de Francisco, seguido da ascendente

clericalização da Ordem, projeto conventual, precisou lidar com a figura pregadora de

Francisco. Na cena de Giotto do Presépio de Greccio, por exemplo, Francisco não prega.

Prega apenas ao Papa e aos pássaros. Antônio, por outro lado, prega aos irmãos reunidos no

Capítulo de Arles.

O esvaziamento da função pregadora de Francisco ajuda a compreender a recorrência

da cena da pregação aos pássaros. Irmãos pregando a seres irracionais não deveriam

preocupar o clero, ao contrário das pregações em praça pública.

Com exceção da távola do seguidor de Guido e do afresco de Giotto, as aves estão

estáticas nas outras cenas, enfileiradas, como público atento e que percebe racionalmente a

pregação. Esse modelo de figuração valoriza o ato da pregação, a mesma composição é

utilizada, por exemplo, na cena da Tavola Bardi onde Francisco prega ao Sultão: Francisco a

esquerda, acompanhado por outros irmãos, livro na mão, público enfileirado a direta.

Fig. 08 - Maestro del San Francesco Bardi. Tavola Bardi (detalhe). 1250-1260, Têmpera sobre madeira. s/i.

Capela Bardi, Santa Croce, Firenze.

Na imagem do seguidor de Guido, e com maior destaque em Giotto, alguns pássaros

voam, não estão sincronizados. O detalhe das imagens permite a multiplicação de sentidos da

cena, assim, temos dois grupos: o primeiro, dos dois primeiros terços do século XIII, em que

os pássaros não expressam reação e estão sincronizados, como plateia; e um segundo grupo,

em que, apesar dos pássaros se colocarem de forma ordenada, há certo naturalismo e

dessincronia que diminui a atenção desprendida da suposta plateia.

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Giotto é reconhecido como responsável por um importante papel de inserção na arte

Ocidental de preocupações miméticas, como a noção de espaço. A tradição imagética da

região de Siena, por outro lado, desde o início do XIII – e com mais evidência na Escola

Sianesa do XIV que, apesar de manter a tradição imagética próxima aos modelos bizantinos,

inseriu certa dinamicidade nas imagens. Ou seja, o movimento de transformação plástica

realizada por Giotto e pelos sianeses que pode ter implicado na dinamicidade e no movimento

proposto aos pássaros pôde multiplicar os sentidos possíveis àqueles pássaros: eles são plateia

da pregação de Francisco, mas nem tanto.

Há ainda outra padronagem em Giotto que merece ser evidenciada: Tomasso narrou

haver diferentes espécies de pássaros, como “pombas, de gralhas e de outras que vulgarmente

se chamam monjinhas”, Bonaventura omite essa informação e Giotto coloca em sua plateia

espécies de pássaros muito parecidas figurativamente, as cores dos pássaros estão bastante

desgastadas, mas parecem oscilar apenas entre claras e escuras e um formato muito parecido

entre eles. Na literatura medieval, as diferentes espécies de pássaros se relacionavam as

diferentes categorias sociais (FRUGONI, 2015, p. 332). Essa característica é exclusividade do

afresco da Basílica. A távola de Giotto realizada, de acordo com Giorgio Vasari, para a Igreja

de São Francisco em Pisa e que hoje se encontra no Louvre, repete a figuração das cenas da

Basílica, provavelmente foi produzida durante a execução dos afrescos em Assis ou alguns

anos depois, tendo como imagem principal a estigmatização, apresenta em sua base a cena da

pregação aos pássaros copiando a imagem de Assis com a exceção do fundo, dourado na

távola, e dos pássaros, que são de pelo menos dez espécies diferentes, ao contrário da

uniformidade da imagem da Basílica, o que reforça a possibilidade de, através do afresco,

buscar uma única imagem da pregação de Francisco, a um único público, de um único modo.

Geralmente encomendada por uma comunidade ou um particular – muito menor que a

influência da direção da Ordem e do papado que se aplicava na Basílica, a távola

provavelmente transmite mais a sensibilidade de Giotto, que sofre menos influências do que

as intenções políticas da Ordem em Assis.

Fig. 09 - Giotto di Bondone. Predica agli uccelli (detalhe).1290-1295. Afresco. 270x230cm. Igreja Superior da

Basílica de São Francisco, Assis.

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Fig. 10 - Giotto di Bondone. Stigmate di San Francesco (detalhe de Predica agli uccelli).1295-1300. Têmpera

sobre madeira. 313x163cm. Museu do Louvre, Paris.

A multiplicidade de sentidos se dá também no detalhe dos pássaros que voam, do céu,

em direção a terra. A tradição do pássaro que desce em vertical possui forte caráter espiritual.

É o Espírito Santo, em formato de pomba desce em vertical para o ventre de Maria na

anunciação; a alma do fiel, desde a arte paleo-cristã é, entre outras imagens, figurada como

pomba: Francisco atrai.

O ciclo de Giotto, enquanto grande projeto conventual de criação da memória

imagética do poverello, não só legou a pregação de Francisco apenas aos pássaros, mas para

uma plateia homogênea e de pouca atenção, o que reforça a tese de Frugoni sobre o

esvaziamento da pregação em Francisco de Assis. A mudança de sensibilidade nessas

imagens, de pássaros-plateia à pássaros-animais não se transformou por mera coincidência

com o maior controle dos conventuais com a Ordem, ao contrário, cremos haver forte ligação

entre o grupo que assume a direção e a nova imagem de Francisco pregador, anti-modelo aos

seus.

Bibliografia: CORBIN, Alain. O prazer de ser historiador. Entrevista concedida a Laurent Vidal. Revista

Brasileira de História. São Paulo. v. 25, no 49, pp-11-31, 2005.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da Imagem. São Paulo, Editora 34, 2013.

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Siglas

Test – Testamento

1Cel – Vita Prima di Tomasso da Celano

LM – Leggenda Maggiore di Bonaventura da Bagnoregio

Crédito das Imagens Fig. 01 – Bonaventura Berlinghieri. San Francesco, storia e miracoli. Desenho do século

XVII, de Zaccaria Boverio, da távola de S. Miniato em Tedesco (Pisa) (detalhe). 1228. s/i.

Disponível em: <http://www.francescodolciami.it/francescanesimo/francesco-d-assisi/le-

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Fig. 02 – Bonaventura Berlinghieri. San Francesco, storia e miracoli (detalhe). 1235.

Têmpera sobre madeira. s/i. Igreja de São Francisco, Pescia. Disponível em:

<https://pt.wikipedia.org/wiki/Bonaventura_Berlinghieri#/media/File:Bonaventura_Berlinghi

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Fig. 03 – Maestro del San Francesco Bardi. Tavola Bardi (detalhe). 1250-1260, Têmpera

sobre madeira. s/i. Capela Bardi, Santa Croce, Firenze. Disponível em: <

https://it.wikipedia.org/wiki/Maestro_del_San_Francesco_Bardi#/media/File:Maestro_del_sa

n_francesco_Bardi,_la_predica_agli_uccelli.jpg> , acesso em 23/06/2016.

Fig. 04 – Maestro del paliotto di San Giovanni Battista a Siena. San Francesco tra tre episodi

della sua vita e un miracolo post morten (detalhe). 1250-1290. Têmpera sobre madeira. s/i.

Catedral de Orte. Disponível em:

<http://catalogo.fondazionezeri.unibo.it/scheda.jsp?decorator=layout_S2&apply=true&tipo_s

cheda=OA&id=1080&titolo=Istituto+Centrale+per+il+Catalogo+e+la+Documentazione%3A

+Fototeca+Nazionale+%2C+Maestro+del+San+Giovanni+in+trono+-+sec.+XIII+-

+Volto+di+san+Francesco+d%26%23039%3BAssisi>, acesso em 23/06/2016.

Fig. 05 – Seguidor de Guido de Siena. San Francesco, otto scene della sua vita, Cristo e sette

angeli (detalhe). 1275-1280. Têmpera sobre madeira. s/i. Pinacoteca de Siena. Disponível em:

< https://nativita.hypotheses.org/category/duecento/guido-da-siena>, acesso em 23/06/2016.

Fig. 06 – Maestro di San Francesco. Predica agli uccelli. 1260-1265. Afresco. s/i. Igreja

Inferior da Basílica de São Francisco, Assis. Disponível em: <

http://www.wga.hu/art/m/master/francis/francis4.jpg>, acesso em 23/06/2016.

Fig. 07 – Giotto di Bondone. Predica agli uccelli.1290-1295. Afresco. 270x230cm. Igreja

Superior da Basílica de São Francisco, Assis. Disponível em: <

http://www.wga.hu/art/g/giotto/assisi/upper/legend/franc15.jpg>, acesso em 23/06/2016.

Fig. 08 - Maestro del San Francesco Bardi. Tavola Bardi (detalhe). 1250-1260, Têmpera

sobre madeira. s/i. Capela Bardi, Santa Croce, Firenze. Disponível em: <

https://it.wikipedia.org/wiki/Maestro_del_San_Francesco_Bardi#/media/File:Maestro_del_sa

n_francesco_Bardi,_la_predica_agli_uccelli.jpg> , acesso em 23/06/2016.

Fig. 09 - Giotto di Bondone. Predica agli uccelli (detalhe).1290-1295. Afresco. 270x230cm.

Igreja Superior da Basílica de São Francisco, Assis. Disponível em: <

http://www.wga.hu/art/g/giotto/assisi/upper/legend/franc15.jpg>, acesso em 23/06/2016.

Fig. 10 - Giotto di Bondone. Stigmate di San Francesco (detalhe de Predica agli

uccelli).1295-1300. Têmpera sobre madeira. 313x163cm. Museu do Louvre, Paris. Disponível

em: < https://it.wikipedia.org/wiki/Stigmate_di_san_Francesco_(Giotto)#/media/File:Giotto_di_Bon

done_-_Stigmatization_of_St_Francis_-_WGA09329.jpg>, acesso em 23/06/2016.