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O HOMEM AÇORIANO E A AÇORIANIDADE
AUTEUR: António Machado Pires
A história do homem açoriano começa nos meados do século XV. A das ilhas que habita perde-
se num passado de dúvidas e lendas, que interessa à cartografia, à pré-história das navegações
atlânticas ou mesmo a um mítico continente perdido, de improváveis fundamentos. Não são nem os
mistérios insolúveis da lenda platónica da Atlântida, nem as complexas teorias geomorfológicas da
crista médio-atlântica que nos preocupam agora. O homem açoriano sem antepassados só existe no
mito nemesiano de M. Queimado, quando, numa conferência em Nice em 1940, Vitorino Nemésio
brincou com a figura de Mateus Queimado, seu alter ego e estabeleceu uma mitogenia que desse
consistência à identidade açoriana que, essa sim, o preocupava.
Mas o homem histórico dos Açores de raiz quatrocentista, é pela sua provável diversidade de
origens e pouca informação sobre ele, quase um desconhecido
O homem e a mulher açorianos são, basicamente, o homem e a mulher da mundividência de
princípios do século XV, i. é, influenciados pela atmosfera do Outono da Idade Média e pelos alvores
do Renascimento – uma época de tristezas e incertezas de que fala Huizinga e de que dá testemunho o
nosso Rei D. Duarte no Leal Conselheiro (1437-8), ao falar do "humor merencório" dele e da tristeza
de tantos outros do seu tempo. Estava-se em plena história das navegações atlânticas e os mistérios do
Bojador haviam sido desvendados (1434). As crises cerealíferas e a peste, este horrível espectro de
mortes quase colectivas e súbitas, haviam ajudado a empurrar os portugueses para o Atlântico,
primeiro a caminho de Ceuta em 1415, depois para a costa de África e para o meio do mar –
encontrando (pelo menos oficialmente) a Madeira em 1419-21 e os Açores em 1427.
Pouco interessam agora os pormenores dos achamentos e a sua vasta problemática, das razões
político-económicas às « razões de estado » e aos segredos diplomáticos. O homem continental é
prudente para com ilhas. Fez-se às ilhas não sem as ensaiar primeiro com coelhos no Porto Santo
(descoberto em 1419) e com gado nas sete ilhas dos Açores, nas quais, ou em parte das quais, por carta
Régia (1439) se afirma que o Infante D. Henrique lá mandara lançar ovelhas e as poderia mandar
povoar. Foi o que se veio a fazer.
Os Açores constituem um arquipélago cuja extensão geográfica é igual em comprimento
praticamente à do continente português, posto transversalmente, nos cerca de seiscentos quilómetros
que separam o Minho do Algarve e Santa Maria do Corvo... Um Portugal histórico começado em
quatrocentos e mais de meio milénio adaptado a nuvens baixas, ventos húmidos e salinos, provações
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do mar e do vulcanismo imprevisível e aterrador, humidades relativas do ar de 70 a 100%, atmosfera
pesada, a que visitantes ingleses mal humorados chamaram azorean torpor... Mas não faltam a
amenidade do clima, a vegetação luxuriante, a paisagem azulada e verde, onde o próprio verde, no
dizer de Pedro da Silveira, é feito de vários verdes, e o mar enquadra o perfil de vulcões adormecidos,
que não são só ameaças mas ricas encostas cheias de gado e de tranquilidade.
Numa paisagem vulcano-oceânica, preferentemente nublada mas amena e de férteis pastagens e
densas matas, se estabeleceram populações um pouco por toda a parte, preferindo para « capitais » de
ilha os litorais das costas Sul mais soalheiras e dividindo a sua actividade entre a terra e o mar,
certamente mais àquela que a este, cujos rigores são frequentes.
Uma população dispersa por nove ilhas e por pontos muito diversos dessas ilhas (ainda que com
um clima e uma orografia semelhantes), tem de ser ela própria também diversa. O isolamento fixa
hábitos e cria « fidelidades » afectivas ao local da família e dos antepassados. Nem sempre é fácil
comunicar entre ilhas nem mesmo na mesma ilha. De origens diversas, as populações dos Açores
ainda se dispersaram e fixaram por muitos pontos. Esta já é uma condicionante idiossincrática
importante.
Não sabemos muito sobre donde vêm e quem foram os povoadores do Arquipélago.
Fica-nos em mente uma relativa certeza que os povoadores vieram um pouco de todas as partes
de Portugal, a princípio e principalmente para Santa Maria e S. Miguel mais do Sul do País, depois um
pouco de todo o País e um contingente importante de flamengos. Carreiro da Costa, no Esboço
Histórico dos Açores, diz que « Santa Maria, como primeira terra açoriana a ser povoada, teve gente
do Algarve e do Alentejo. S. Miguel, a seguir, beneficiou de famílias norte-alentejanas, estremenhas e
já madeirenses » (p. 250). Razões de natureza gregária terão levado a que pessoas da mesma origem,
por grupos, se fixariam predominantemente neste ou naquele lugar ou parte da ilha. Também parece
lógico que os homens da confiança do Infante viessem chefiar a colonização. À resistência física
ligaremos outros factores, como o amor ao risco e à aventura compensadora, outros na esperança de
tranquilidade maior, outros afastados discretamente.
Sabe-se também que para a ilha de S. Jorge foi um contingente de degredados. Gaspar Frutuoso
refere a importância de mouros no povoamento de S. Miguel, perfeitamente separados dos cristãos. A
par dos mouros, os negros, os escravos. Pela importância do trabalho a realizar, os criados de lavoura
devem ter abundado. Fugidos às perseguições religiosas, os judeus encontraram nas ilhas tranquilidade
social.
Está assim esboçado um pré-açoriano, que «entronca em nobre e em plebeu » e esse pré-
açoriano « foi o português dos Descobrimentos » – como explica Vitorino Nemésio em « O Açoriano
e os Açores » (1932), texto a que teremos de voltar.1
Cedo houve também emigração da Madeira para os Açores, nestes da Terceira para o Pico e
para as Flores, terras onde, por pequenez territorial, se começou a casar entre parentes próximos nas
classes mais pobres e por conservação de riqueza e preconceito entre as classes nobres e possidentes.
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Esta endogamia agravou problemas, nomeadamente genéticos, a cuja categoria deve pertencer, lato
sensu, a « doença dos Machados », hoje a ser investigada.
A importância dos Flamengos, sobretudo no Pico e Faial (também um pouco na Terceira e S.
Jorge) e dos espanhóis exclusivamente na Terceira deve ser posta em destaque. Na toponímia a cultura
flamenga deixou nomes significativos (Ribeira dos Flamengos, Espalamaca), na Antroponímia (Terra,
Goulart, Silveira, Brum); Jos Van Huertere deu Horta; na tipologia, homens e mulheres com uma
estatura, uma cor de olhos e pele e um somatismo característicos. Dos espanhóis é clara a origem da
palatalização do 1 na Terceira: família (1 junto de i semi-vogal), i. é, ouvindo-se família.
As teses linguísticas sobre os falares dos Açores poderão ser uma importante contra prova
acerca do povoamento.
De uma forma geral, os falares dos Açores e Madeira devem ser agrupados como falares do
Português Meridional. Não se verificam nos Açores (nem na Madeira) dois traços fundamentais
caracterizadores do Português Setentrional:
troca do v pelo b v=b binho (vinho)
s apical s saber (saber)
Também nos Açores (e Madeira) não se encontram vestígios de africada
tsorar (chorar < pl - ...) (Plorare)
tsamar (chamar < cl - ...) (clamare)
tsave (chave < cl - ...) (clave-)
Pelo contrário, no caso do falar de S. Miguel (Açores), muito característico, verificam-se traços
importantes do Português Meridional:
monotongação ei > e Leite > lete (Alentejo)
a > o casa > cosa (Alentejo)
u > ü tudo > tüdo (Algarve)
ou > o pouco > pok ( Algarve e Alto Alentejo, Castelo Branco)
No falar da Terceira, a vizinhança das palatais contamina « para a frente » (assimilação
progressiva)
i > consoante + i + vogal
u > consoante + u + vogal
Estas vogais « extremas » (i e u) como que « infectam » a sílaba seguinte, introduzindo-lhe uma
semi-vogal (correspondente: i > i u > u):
Assim:
Campo Casa Kampo Kaza
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i>i u<u
em Campo > ei Kiampo no Campo > nu Kuampo
em Casa > ei Kiaza por casa > por Kuaza
escola >s >i = Skiola (caso de uma forte palatalização)
Também se nota na Terceira, especialmente, um 1 fortemente palatizado: família > Familia, o
que deriva muito provavelmente da influência espanhola naquela ilha, onde Castela dominou (lembre-
se o Castelo de S. João Baptista, antigo Castelo filipino). De resto, a influência espanhola deve ter-se
feito sentir sobre o carácter do povo, dado às touradas (de praça e à corda) e muito festeiro.
Os falares das ilhas centrais têm semelhanças e alguns particularismos (de entoação, por
exemplo). Quando, em Mau Tempo no Canal, Vitorino Nemésio põe a falar o trancador de baleias
picoense, o Ti Amaro de Mirateca, temos largamente a impressão de ouvir um rural terceirense de há
cinquenta ou sessenta anos atrás. O que se passa com o Matesinho de S. Mateus do conto « Quatro
Prisões debaixo de Armas », do mesmo autor, é já nitidamente um caso humano muito peculiar,
incarnando linguisticamente, com profusão e pitoresco, o falar da Terceira. São páginas « exemplares
» do falar terceirense na obra de Nemésio, constituindo quase um exagero de escrita « fonética » com
grafia vulgar.
Além das variantes fonéticas, há algumas variantes lexicais, não muito abundantes (uma burra
de milho na Terceira chama-se em S. Miguel uma cafua; uma clarabóia na Terceira chama-se em S.
Miguel um alboio, termo de provável origem árabe.
Sobre a influência francesa em S. Miguel, convirá lembrar que não será muito crível que ela se
tenha exercido directamente, em termos de ter abarcado toda a ilha. Os topónimos Bretanha e João
Bom (Jambon) não explicariam, como indícios, um fenómeno tão marcado como todo o quadro do
vocalismo dialectal micaelense, quanto a nós. A influência mais provável é a indirecta, por via de
povoadores do Centro-Sul do Continente, onde a influência francesa já se fizera sentir e está atestada
(lembrem-se os topónimos Vila Velha de Rodão, Proença, Nisa, Tolosa e a zona de influência dos
Templários).
Em estudo recente sobre o falar da Bretanha, Maria Clara Rolão Bernardo, docente da
Universidade dos Açores, em tese de Mestrado (Provas A.P.C.C. correspondentes ao Mestrado),
orientada pelo falecido e eminente Professor e linguista, Luis Filipe Lindley Cintra, reafirma esta
convicção. Lacerda Machado confirma que o fundo étnico da população micaelense é originário do
território meridional, com predomínio do Alto-Alentejo. Fundamenta-se em elementos linguísticos e
antropológicos (nomeadamente cefalométricos).
Leite de Vasconcelos encontrara, na ilha do Corvo, na sua visita em 1924, um ü (u francês)
semelhante ao de S. Miguel. João Saramago, em tese de doutoramento sobre «Le Parler de l’Ile de
Corvo »2, confirma este ü, embora não apresente uma posição tão avançada como o de S. Miguel.
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Nemésio (citando artigo sobre « O Açoriano e os Açores ») pensa mesmo haver uma correlação
entre as modalidades dos falares e as origens e o carácter das populações dispersas pelo Arquipélago –
o que, sendo um juízo de alguma subjectividade, não deixa de corresponder ao puzzle da própria
diversidade humana e social das Ilhas. « As modalidades de índole, costumes, maneiras, acompanham
esses matizes com uma precisão magnífica ... »3. Pelo menos nada de mais diferenciado, ao ouvido de
um visitante, que os falares de S. Miguel e da Terceira, que correspondem a populações com
comportamentos muito diferentes no modo de ser predominante, na religiosidade (mais festeira na
Terceira), nos divertimentos (touradas, arraiais muito frequentes).
E justamente essa diversidade que levara Nemésio, bastante jovem (cerca de 27 anos) a fazer
uma conferência em Coimbra sobre « O Açoriano e os Açores », que depois publica em Sob os Signos
de Agora (Coimbra, 1932) e que, no seu generalismo e « impressionismo » revela dados intuitivos e
notas históricas muito significativas. Nemésio quer dar apaixonadamente a conhecer as suas ilhas,
porque delas distanciado, « desterrado » – sentimento dele e de todos aqueles ilhéus que a vida obriga
a viver longe do Arquipélago. Só isso justifica que o jovem de 27 anos escreva, ao lado dessas notas e
aproximações do rigor caracterológico colectivo possível, uma verificação carregada de sentimento e
lirismo; fala da aproximação quase iniciática do « começar terra à vista » e exclama: « São os Açores.
E, para o comum dos Continentais, a trapalhada geográfica que o nome a Ilha abrevia. Para os
açorianos desterrados é o berço, o amor, são as reminiscências, a família (...).»4
É nesta conferência, transformada depois em artigo, que Nemésio faz uma tipologia do ser-se
açoriano que, « impressionista » e sem pretensões científicas, continua válida pelas intuições do
grande escritor, que conhecia bem as suas ilhas e as queria dar a conhecer.
Assim, considera o micaelense (o mais trabalhador, o mais introvertido e talvez mais rude nos
tipos rurais), o terceirense (bem menos trabalhador, mais festeiro e convivente, com traços de certa
manha rural), que agrupa com um tipo mais genérico de o açoriano das ilhas de baixo », e o picaroto,
que é uma subdivisão do grupo anterior, mas que lhe oferece traços muito distintivos, a ponto de o
considerar a « nata do insulano » (homens do mar, homens de palavra, dando conta da vida com
frontalidade e brio). Em Mau Tempo no Canal há de novo a insinuação da excelência dos homens do
Pico, prontos para o báculo ou para o leme de uma canoa da baleia. O Pico forneceu às altas
hierarquias da Igreja vários nomes e celebrizou-se também pela pesca da baleia, com a sua gesta e até
a sua literatura própria (caso das narrativas do escritor picoense Dias de Melo). « Em verdade,
continua Nemésio sobre o homem do Pico - » nenhum açoriano se lhe avantaja na concepção séria da
vida, temperada embora por uma ingenuidade que é o segredo do seu triunfo nas lides a que se
entrega. (...) O picoense ou picaroto (esta designação é muito mais expressiva) trabalha na vinha e na
horta, poda o pomar, vai à moenda com o seu taleigo de novidade, mas está sempre pronto para saltar
à canoa à saga da baleia ». A imagem que Nemésio guarda do picaroto é sobretudo essa postura
heróica e simples dada pelo pescador de baleias que arrisca a vida e do risco faz o seu timbre de
carácter. « E vê-lo então nessa vida admirável das campanhas (...), sóbrias como a campanha do
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pescador da Galileia, tiram ao mar o óleo do cachalote ou o âmbar raríssimo da baleia. » 5 Alheio –
ele e o pescador – às preocupações com o ambiente e às cruzadas do Green Peace...
Da alma rural à citadina não fica porém por caracterizar a psique do açoriano, cidadão do
mundo como o próprio Nemésio e hospitaleiro por índole e por tradição. Prontos também para a
emigração, por disponibilidade, por necessidade, por amor ao risco, pelo apelo de um parente.
Convém lembrar que devemos considerar três tipos de emigração nos Açores: uma emigração
histórica (a para o Brasil, mormente as regiões de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, em meados do
século XVIII), uma emigração norte-americana e canadense (sobretudo a partir do final do século XIX
e muito numerosa, a tal ponto que há mais açorianos e seus descendentes nos E.U.A. que nos Açores)
e uma « emigração » Continental, i. é, uns milhares de açorianos e seus descendentes que, sobretudo
por razões de carreira e estudos superiores, se fixaram no continente português. Este fenómeno último
só foi contrariado relativamente após o surgimento da Universidade dos Açores e do Governo
Regional, que criaram postos de trabalho mais qualificados, atraindo ou fixando quadros superiores.
Estas verificações genéricas dão aos Açores dos últimos decénios uma configuração social e
cultural diferente, à qual não é alheia a presença da RTP-Açores, com produção própria e, mais
recentemente, o consumo de antenas parabólicas e do Cabo TV.
Não podemos hoje falar do Açoriano e dos Açores sem ter em conta estas realidades e o seu
enquadramento numa época finissecular onde a informação se generaliza e o modelo de homem é o
que temos chamado de tele-homem isto é, o da civilização da informação constante e simultânea e do
comando à distância. Tudo se comanda à distância: o míssil, a sonda médica, a trajectória de um
satélite ou de uma nave. E que mais haverá?
Não obstante, as ténues fronteiras entre o mundo urbano e o mundo rural, a fraca densidade de
população, a importância dos transportes e as suas dificuldades, o isolamento de algumas populações,
a mentalidade tendencialmente bairrista e às vezes quase proselítica, algum cultivado distanciamento
entre classes sociais em algumas ilhas, as estruturais incapacidades de desenvolver a economia e as
fontes de riqueza própria, continuam a caracterizar o viver dos açorianos, apesar de virtualmente
unidos no projecto autonómico, político e institucional, como resposta a um sentimento de
incompreensão histórica que para alguns assume proporções de abandono. O Açoriano do limiar do
século XXI não escapa à evolução rápida das sociedades, nomeadamente as rurais. Felizmente nestas
aumenta uma consciência de preservação das tradições e do folclore – mantendo-se grupos folclóricos,
grupos de teatro, festividades que persistem e são hoje conserváveis pelas facilidades da tecnologia.
Continuamos porém a aguardar uma sistemática e especializada análise dos falares açorianos,
gravados há poucos anos pelo Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, com apoio já da
Universidade dos Açores. Essa análise contribuirá para construir mais uma contraprova das hipóteses
da origem do povoamento dos Açores, região certamente conservadora, como o são todas as regiões
periféricas ou de colonização. Os trabalhos de recolha de tradição oral de Viegas Guerreiro, os estudos
de João David Pinto Correia (ainda há pouco uma Conferência sobre os romances populares feita na
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Universidade dos Açores) provam a riqueza do património cultural do Arquipélago e o seu carácter
conservador.
O « viveiro de Lusitanidade quatrocentista » de que falou Nemésio foi com os séculos sendo
moldado pelas circunstâncias do meio, sedimentando uma sociedade peculiar, diversa e una. À sua
carga histórica experiencial colectiva assumida individualmente se chamou então um dia
Açorianidade, conceito e termo que Vitorino Nemésio criou em 1932 em palavras lapidares:
(...)« Meio milénio de existência sobre tufos vulcânicos, por baixo de nuvens que são asas e de
bicharocos que são nuvens, é já uma carga respeitável de Tempo – e o tempo é espírito em fieri (...) ».
« Como homens estamos soldados historicamente ao povo de onde viemos e enraizados pelo
habitat a uns montes de lava que soltam da própria entranha uma substância que nos penetra. A
geografia, para nós, vale outro tanto como a história (...)».
« Um dia. se me puder fechar nas minhas quatro paredes da Terceira, sem obrigações para com
o mundo e com a vida civil já cumprida, tentarei um ensaio sobre a minha açorianidade subjacente que
o desterro afina e exacerba. »6
Com estas palavras sem qualquer intenção reivindicativa ou política, apenas ditadas pelo tal
sentimento de desterro, criava Nemésio, possivelmente influenciado pela hispanidad de Unamuno, a
açorianidade, alma do ser-se açoriano, que emerge em quase toda a sua obra de poeta e de romancista
e contista.
Alargado o conceito, ele não só exprime a qualidade e a alma do ser-se açoriano, dentro ou fora
(principalmente fora?) dos Açores, mas o conjunto de condicionantes do viver arquipelágico: a sua
geografia (que « vale tanto como a história »), o seu vulcanismo, as suas limitações económicas, mas
também a sua própria capacidade de uma « economia » tradicional de subsistência, as suas
manifestações da cultura e da religiosidade popular, a sua idiossincrasia, os seus falares, tudo o que
contribui para conferir identidade.
Esta ideia e este termo nemesiano feliz (não existe « madeiridade », embora possa e deva existir
atlanticidade, conceito mais abrangente) prestam-se a utilizações que ultrapassam a sua principal
semântica ontológico-cultural e podem entrar no domínio da utilização político-ideológica, por vezes
até a exageros identitários quase diríamos « fundamentalistas ».
No entanto, tem de dizer-se que a açorianidade é de facto o suporte ontológico-cultural da
autonomia, expressão emergente, ao nível da fenomenologia política e da reivindicação histórica anti-
centralista, daquele outro espírito já velho de mais de quinhentos anos do homem insular
incompreendido.
Assim, na atlanticidade, denominador comum das margens do Atlântico e dos povos que
planeadamente entre elas circularam, inscreve-se a açorianidade, condição peculiar do ser-se e do
viver nos Açores.
A Açorianidade exprime mais que a simples caracterização tipológica do homem açoriano. Ela
implica que se cria um elo com a terra, uma obrigação interior ditada por uma essência histórica
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assumida individualmente, uma « dívida » para com a terra que nos viu nascer. Aquando do Congresso
do Centenário da Autonomia dos Açores (1895 - 1995), Universidade dos Açores, 20-23 Fevereiro de
1995, dissemos, nas palavras de abertura, e retomamos, por não conseguir exprimi-lo melhor: « A
Açorianidade é a alma que se transporta quando se emigra, como também aquilo que de cada um de
nós se espera quando nós vivemos fora. A ilha em que nascemos é um eixo do Cosmos, uma pequena
pátria, um mundo de referencias matriciais. A ilha que somos obrigados a abandonar é um ponto de
referência, um ponto de regresso ideal, uma Ítaca em que cada um é o Ulisses da sua própria e secreta
mitologia ». E acrescentámos: « Este arreigamento, quando exacerbado, pode gerar sublimações como
desesperos, amores ou ódios, « o apego ferrenho às ilhas, a doença do açoriano » , que Teófilo Braga,
citando-a, disse não a ter tido ».
Os açorianos criaram, pelo isolamento e pelas dificuldades e incompreensões de um poder
distante, uma espécie de lenda negra de abandono e incompreensão, uma consciência traumática que
pode levar àquilo a que chamaremos açorianidade traumática. Tal atitude não se verifica só entre
(principalmente) certas ilhas (como S. Miguel) e o Continente, mas entre ilhas. O complexo
traumático de centralismo em relação ao Terreiro do Paço repete-se entre as ilhas do Oeste
(principalmente na Terceira) e a Praça Gonçalo Velho, « Terreiro do Paço » da ilha maior e Boceta de
Pandora de males de um centralismo de capitalidade insular. Sendo S. Miguel e Terceira as duas ilhas
de maior peso económico e com tradições históricas específicas (uma de carácter mais autonómico,
outra de carácter mais nacionalista patriótico, anti-castelhano e pró-liberal), é explicável que polarizem
a maior tensão de bairrismos, que também existem entre outras ilhas e dentro da mesma ilha. Estes
deuses e demónios da dispersão e diversidade açoriana não evitam porém a coesão em horas de perigo
comum, não devendo ser nem subestimados nem dramatizados. Os Açores nasceram sob o signo de
dispersão e da diversidade humana e social, sob a égide e a fatalidade de uma geografia comum e
condicionante. Não adianta ignorá-la, nem a ela nem aos homens que nela vivem.
Daí que haverá certas tensões entre ilhas, como entre estas e o Continente. Na dialéctica do
homem de ilhas versus o homem de continentes existe um factor de mistério e incompreensão
tradicional e estrutural que convém desdramatizar. Viver em ilhas tem o seu preço : preço no sentido
real, concreto, e preço no sentido moral.
Apreciar a condição de viver em ilhas – o seu clima, a sua paisagem, as vantagens do seu grau
de isolamento, a criatividade já impossível nas grandes cidades, a sua dimensão mais humanizada –
implica também renunciar aos mitos das grandes urbes e o seu consumismo, a sua intensidade de vida,
o seu prestígio para certas carreiras.
O açoriano – « ...um português da segunda metade de Quatrocentos, introduzidos nele os
coeficientes de correcção que o viveiro insular elaborou » – escreveu Nemésio no tão citado artigo « O
açoriano e os Açores ». Um produto geo-humano disperso por uma pequena sociedade insular, hoje
mais aberta ao mundo sem fronteiras. Desconhecida durante muito tempo. Desconhecida porventura
hoje.
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Visitantes como Leite de Vasconcelos, no Mês de Sonho (1926), Raul Brandão nas Ilhas
Desconhecidas (1926), Hipólito Raposo em Descobrindo Ilhas Descobertas são exemplos de
intelectuais portugueses que apreendem a atmosfera física, social e cultural dos Açores. Mas Nemésio
é, por ventura, o maior divulgador dos Açores, não só pela informação de qualidade que emerge nos
seus escritos, como pela expressão estética, lírica e filosófica, da singularidade do viver ilhéu, alçada a
valor universal. O seu exemplo projecta-se nos numerosos escritores que, dentro ou fora dos Açores,
tomam estas ilhas como referência íntima e motivo da sua escrita.
Falando de si quando fala dos outros, permitindo ver a sua conterraneidade quando só quer falar
de si mesmo, Nemésio exprimiu lapidarmente o mistério do desafio de viver em ilhas e o encanto de
as lembrar, pois
« A Esfinge do mar é a ilha, levanta-se no deserto de águas como a pétrea cabeça que afrontava
Édipo na estrada de Tebas (...)». 7
Os açorianos e aqueles que estudam o arquipélago enfrentam há mais de cinco séculos o olhar
esfíngico das suas nove ilhas, com os mistérios do seu passado quatrocentista e agora já às portas do
século XXI.
*********************************
1 . In Sob os Signos de Agora, Coimbra, 1932, apud Maria Margarida Maia Gouveia, Vitorino
Nemésio - Estudo e Antologia, col. Identidade, Lisboa, ICALP, 1986. pp. 317-329
2 . Université de Stendhal-Grenoble/JNIC, Centro de Dialectalogia, 1992.
3 . Id. p. 325
4 . Id.
5. Id., p. 325
6 Revista Insula, n° 8, Ponta Delgada, 1932. Artigo datado de Coimbra, de 19 de Julho desse
ano. É evidente o tom de saudade pelo afastamento da sua ilha, tem Nemésio 30 anos
7 « Da Universal Inquietude », in Sob os Signos de Agora, Coimbra, 1932.
Source:http://www.ceha-madeira.net/canarias/hia33.html