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NO CALVÁRIO DE BALASAR Mariano Pinho, SJ.

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Mariano Pinho - No Calvário de Balasar

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NO CALVÁRIO DE BALASAR

Mariano Pinho, SJ.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO

1 FLOR DO CAMPO

2 NA ESCOLA PRIMÁRIA E PRIMEIRA COMUNHÃO

3 ORAÇÃO E TRABALHO

4 ADOECE GRAVEMENTE

5 ENCONTRANDO O SEU DESTINO

6 NA ESCOLA DA EUCARISTIA

7 AS LIÇÕES

8 A DISCÍPULA

9 NO CADINHO DA PURIFICAÇÃO

10 O DIA DA SANTÍSSIMA TRINDADE DE 1936

11 ENTRE A VIDA E A MORTE

12 PRIMEIRO EXAME POR ORDEM DA SANTA SÉ

13 LUTAS COM O INFERNO

14 TREVAS DENSAS COM INTERMITÊNCIAS DE LUZ

15 ÊXTASES DA PAIXÃO

16 SEGUNDO EXAME POR ORDEM DA SANTA SÉ

17 A VÍTIMA NO HOLOCAUSTO

18SENTINDO MISTERIOSAMENTE AS MÁS DISPOSIÇÕES DO PECADOR

19 SOB A IRA DE DEUS

20 A MORTE TOTAL

21 DORES DO INFERNO

22COMPLETANDO O QUE FALTA AOS SOFRIMENTOS DE CRISTO

23 OS MÉDICOS EM CENA

24 SEM DIRECTOR ESPIRITUAL

25 OS DOIS DERRADEIROS ÊXTASES DA PAIXÃO

26 O MUNDO CONSAGRADO AO CORAÇÃO DE MARIA

27 NO JEJUM PERPÉTUO

28 NOVOS ESPINHOS

29 AMPARO INESPERADO

30 DOR E AMOR

31 NA UNIÃO CONSUMADA

32 ALMAS, DÁ-ME ALMAS!

33 NÃO CHOREM, QUE EU VOU PARA O CÉU!

EPÍLOGO

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INTRODUÇÃO

A presente biografia pretende desempenhar-se de um propósito formulado na primeira notícia biográfica, aparecida poucos meses após a morte de Alexandrina Maria da Costa com o título Uma Vitima da Eucaristia, já esgotada hoje na primeira, segunda e terceira edição portuguesa e na tradução francesa, correndo actualmente a tradução alemã.

Aí se dizia :

"Vamos tentar, em breve resumo, fornecer desde já os traços mais vincados dessa fisionomia de escol, deixando para mais tarde, após estudo sério dos documentos, obra quanto possível completa."

Mas nem agora podemos lisonjear-nos de apresentar obra completa. Não é fácil escrever sobre a Alexandrina de modo a esgotar o assunto. Antes de mais nada, pela profusão e riqueza de material que possuímos: sobem a milhares de páginas os escritos legados por ela à posteridade.

No propósito de que, neste livro, fale quanto possível e sobretudo a própria Alexandrina — ante tão imenso material, forçoso se torna seleccionar. Fica-nos, porém, o escrúpulo, ao olharmos para o material deixado de parte, de que ele vale tanto como o escolhido e daria para outro volume igual ou maior que o presente.

Resignemo-nos e, firmados no conhecimento pessoal haurido durante nove anos (1933-1942) na direcção espiritual de Alexandrina e nos seus numerosos escritos, vamos tentar a presente biografia.

Sobre o valor desses escritos, escrevia-nos um venerando Prelado português, ao agradecer-nos a primeira biografia que lhe enviámos:

"O que traz publicado das cartas da Alexandrina é do mais sublime. Nenhum artista soube dizer coisas tão belas. Já nos colóquios tinha lido coisas verdadeiramente admiráveis. Os poetas, mesmo os mais ilustres, teriam gostado de atingir aquelas alturas de intensidade, de emoção, de simplicidade e de beleza".

Não há dúvida: a gente pasma, ao ver uma donzela do campo, quase analfabeta, sem nunca ter frequentado agremiações nem lido obras de alta espiritualidade e literatura, entrevada mais de trinta anos e em absoluto jejum nos últimos treze anos e meio da sua existência, escrever ou ditar, sem prévio rascunho, tantos documentos de autêntico valor literário, ascético e até teológico, de uma tal interioridade que não é fácil igualar, e, sobretudo, manancial de luz abundante a revelar-nos eloquentemente o que é em concreto a vida mística da verdadeira alma vítima.

E agora surge outra dificuldade. Da abundância do coração falam os lábios. Foi da abundância do coração, do seu intenso viver íntimo que brotaram todas essas páginas da Alexandrina e elas revelam-nos tantas coisas extraordinárias. Apesar da sua feição tão angelical, tão simples, tão verdadeira, tão serena, tão sem complicações: aprouve à divina Providência levá-la por vias nada vulgares e de autênticas maravilhas.

Quem se arrogará, portanto, competência criteriosa e perspicácia para interpretar, na sua verdade, o que foram esses caminhos percorridos pela Alexandrina? Todas as vezes que ela declara, por exemplo, que "Nosso Senhor lhe disse", "Nosso Senhor se lhe mostrou", "Nosso Senhor se queixa" etc., etc., havemos de tomar todas as passagens como autênticas

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comunicações extraordinárias, ou como simples inspirações ou bons pensamentos que lhe ocorrem?

Sabemos, é certo, que Deus, segundo São Paulo, falou e fala às almas de muitos e variados modos: "multifarium multisque modis" (Hebr 1,1) e que as suas familiaridades são com as almas rectas, sem dobrez: "cum simplicibus sermocinatio ejus".(Prov 3,32) Como nota o Padre Monier-Vinard (no belo livro Cum Clamore Valido, Appel du Rédempteur aux âmes consacrées, pág. 34), Deus geralmente fala por luzes íntimas que deslumbram a alma e a transportam a um mundo desconhecido, do qual ao voltarem a si, não sabem dizer nem comunicar nada. Tudo o que dizem lhes parece mentira.

Outras vezes, Nosso Senhor, por meio de ideias e imagens acomodadas à inteligência humana, mas que Ele escolhe e infunde por si mesmo, segundo as circunstâncias, comunica-se ao íntimo da alma; e ela tem então a impressão que Deus lhe fala distintamente e por vezes até lhe dita o que deseja transmitir.

O mais ordinário é Deus manifestar luminosamente o que pretende fazer compreender e a alma o traduz na sua linguagem pessoal, tendo a certeza que reproduz exactamente o pensamento divino, parecendo-lhe que não faz mais do que transmiti-lo.

Cremos que foi este o modo mais habitual das comunicações de Deus com a Alexandrina. Mas qual a garantia da sua origem divina?

Quanto a nós, temo-la na virtude heróica e nunca desmentida da nossa biografada — sem evidentemente querermos com isto antecipar juízos que só competem à autoridade eclesiástica — e além disso, no valor intrínseco desses documentos, como já dissemos e que o leitor irá mais demoradamente apreciando e saboreando ao longo deste livro. São belas de mais, são preciosas de mais essas inúmeras páginas, para as julgarmos simples fruto da imaginação e afectividade de uma pobre filha do campo, quase analfabeta, entrevada, vivendo ininterruptamente em dores contínuas, mais de trinta anos.

Poderíamos ainda lembrar desde agora, outra dificuldade: a oposição erguida contra este caso singular. Como escreveu o Rev. Dr. Molho de Faria, no seu livrinho de esclarecida orientação: "Tal qual surgiu o Caso de Balasar, a modos de explosão sobrenatural, não qualquer, mas de veras extraordinária, multi-facetada, tinha de provocar violentas reacções. E provocou-as. Houve-as fortes durante a vida da Alexandrina. Continuaram após a sua morte..." (A Devoção aos Servos de Deus acerca do Caso de Balasar, 1959, pág. 8; ed. do Pároco de Balasar)

Valha-nos isto — e importa declará-lo desde já: essas dificuldades não vieram de parte dos que com competência, serenidade e sem juízos preconcebidos, foram às fontes, estudaram o caso de perto, tratando pessoalmente, demoradamente com a Doente de Balasar. Esses não provocaram oposições; são os seus melhores apologistas.

Apesar de tudo, vamos tentar. Confiamos em Deus, de quem desce toda a luz, que nestas páginas só apresentaremos a verdade. Se assim for, o livro contribuirá de certo, para a solução das possíveis objecções: veritas te liberabit – a verdade te libertará.

S. S. Pio XI, na encíclica Miserentissimus Redemptor de 1928, depois de mostrar "quanto é urgente, especialmente neste século, a necessidade da expiação e reparação", afirma categoricamente:

"Enquanto sobe sem cessar a malícia dos homens, o sopro do Espírito Santo multiplica maravilhosamente o número dos fiéis de um e outro sexo que generosamente procuram reparar

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tantas injúrias feitas ao Divina Coração e até não hesitam em se oferecerem a si mesmo como vítimas."

Alexandrina Maria da Costa, nascida em plena "Era da reparação", como chamou ao nosso tempo o R. Padre Raul Plus, S.J.— é incontestavelmente uma dessas almas que não hesitou em se oferecer a si mesma como vítima de reparação e expiação.

Eis o que sobretudo querem demonstrar as páginas que vão seguir-se.

CAPÍTULO 1

FLOR DO CAMPO

1904-1911

Ano Santo de 1904. 50.º aniversário da definição dogmática da Imaculada Conceição. A 30 de Março, quarta-feira de trevas, nascia em Gresufes, lugar da freguesia de Santa Eulália de Balasar, a 20 quilómetros da Póvoa de Varzim, a privilegiada filha de Maria Imaculada, Alexandrina Maria da Costa.

Foram seus pais António Gonçalves Xavier, falecido a 5 de Outubro de 1944, com 69 anos de idade, e Maria Ana da Costa, nascida a 22 de Janeiro de 1877, que descansou no Senhor a 24 de Janeiro de 1961.

Baptizaram-na a 2 de Abril, Sábado Aleluia, sendo padrinhos um tio materno do nome Joaquim da Costa e uma senhora de Gondifelos, chamada Alexandrina.

Em Gresufes viveu com sua mãe é irmã mais velha Deolinda Maria, em casa dos tios, todo o tempo da infância e alvores da adolescência, até que, adquirindo sua mãe casa própria, no lugar do Calvário da mesma freguesia de Balasar, para aí se transladaram.

Calvário se denomina o pequeno morro onde se encontra a dita casa: segundo tradição relativamente recente, teria aparecido aí desenhada no chão uma Cruz, em 21.6.1832, Corpus Christi, no que levou a piedade do bom povo de Balasar a erguer-lhe uma capela com confraria própria, encarregada de celebrar cada ano a festa da Santa Cruz.

Dir-se-ia que esta Cruz misteriosa prenunciava a vítima que mais tarde havia de vir para esse Calvário.

Até aos três anos — escreve a Alexandrina, nas notas autobiográficas que, por obediência ao director espiritual redigiu, — não me recordo de nada, a não ser alguns carinhos que dos meus recebia. Com os meus três anos recebi o primeiro miminho de Nosso Senhor. Como era desinquieta, enquanto minha mãe descansava um pouco, tendo-me deitado junto dela, eu não quis dormir e levantando-me, subi à parte de cima da cama para chegar a uma malga que continha gordura de aplicar no cabelo, conforme era uso da terra e, por ter visto alguém fazê-lo, principiei também a aplicá-lo nos meus cabelos. Minha mãe deu por isto; falou e eu assustei-me. Com o susto deitei a malga ao chão, caí em cima dela e feri-me muito no rosto... Minha mãe levou-me a Viatodos a um farmacêutico de grande fama, que me tratou, embora com muito custo, porque foi preciso coser a cara por três vezes e

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levou bastante tempo a cicatrizar a ferida. O sofrimento foi doloroso.

Ah! se nesta idade eu soubesse já aproveitar-me dele! Mas não: depois de um curativo, fiquei muito zangada com o farmacêutico; este ofereceu-me alguns biscoitos que depois de amolecidos no vinho queria que eu comesse. Eu tinha fome e às vezes até chegava a chorar, porque não podia mexer os queixos. Não aceitei a oferta e ainda maltratei o farmacêutico. Ora aqui está a minha primeira maldade.

Na autobiografia nota-se como primeira preocupação da redactora, deixar-nos bem patentes os seus defeitos.

Encontro em ruim desde a mais tenra idade, tantos defeitos; tantas maldades, que, como as de hoje (escreve em 1940), me fazem tremer. Era meu desejo ver a minha vida, logo desde o princípio, cheia de encantos e de amor para com Nosso Senhor.

Se depois os procuramos, a pouco se reduzem esses chamados defeitos e maldades. Em notas escritas a nosso pedido em 1934, por sua irmã Deolinda e a professora da terra, D. Conceição Proença — a Sãozinha — muito íntima amiga das duas, assim lemos:

Durante este período manifestou sempre a sua principal qualidade, a bondade. Era muito travessa, viva, não parava nada com ela, punha tudo em movimento. Trepava às árvores com uma ligeireza que parecia um gatinho. Foi sempre obediente. Brincava muito com as companheiras da sua idade e exercia preponderância sobre elas, porque desde pequenina era muito forçosa. Entretinha-se muito com flores fazendo com elas rosários . Já nesse tempo empregava-se nos trabalhinhos domésticos, preferindo os de lavar roupa num tanue da casa onde vivia. Aos domingos vinha sempre à catequese com sua irmã Deolinda e primas. Durante o trajecto, cantava vários cantos da Igreja.

Além desta vivacidade de carácter, a Alexandrina enumera ainda, entre os seus defeitos, certa teimosice de criança e os primeiros prenúncios de vaidade feminina em gostar de parecer bem.

Mas o que mais ressalta destas notas singelas é o suave perfume dessa florinha do campo que o Espírito Santo predestinara para Si.

Já pelos quatro anos amava a oração e deliciava-se a contemplar o céu estrelado.

Não sei o que me atraía para lá. Se nesta idade manifestava os meus defeitos, também mostrava o meu amor para com a Mãe do Céu e lembro-me com que entusiasmo cantava os versinhos a Nossa Senhora e até recordo o primeiro cântico que entoei na Igreja que foi: Virgem pura, tua ternura, etc. Gostava muito de levar flores às zeladoras que compunham o altar da Mãezinha.

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Deu-lhe Deus desde tamanina um coração cheio de bondade, para com todos, sobretudo para com os que sofrem.

Lembro-me que nesta idade — escreve ela — tinha em casa uma tia doente que morreu de um cancro e chamava-me para ir embalar um filhinho, primeiro fruto do seu matrimónio, serviço que fazia com toda, a prontidão, quer de dia quer de noite.

Algumas páginas mais adiante, escreve ainda:

Era muito amiga dos velhinhos, pobrezinhos e enfermos e quando sabia que algum não tinha roupinha para ser cobrir, pedia à minha mãe e ia levar-lhe, ficando por vezes a fazer-lhe companhia.

Já mais crescidinha assisti à morte de alguns, rezando o que sabia e por fim ajudava a vestir os defuntos, o que me custava imenso. Fazia-o por caridade: não tinha coração para deixar sozinha a família dos mortos e, por serem pobrezinhos, fazia-o com multo gosto. Dava esmolas aos pobres e sentia grande alegria em fazer obras de caridade. Algumas vezes chorava com pena deles e por não lhes poder valer em todas as suas necessidades. A minha maior satisfação era dar-lhes daquilo que tinha para comer, privando-me assim do meu alimento. Quantas vezes fiz isto!

Apesar de muito criança, ainda dei muitas vezes conselhos a pessoas de bastante idade, evitando que praticassem até crimes horrendos e de tudo guardava absoluto segredo. Vinham ter comigo e faziam-me conversas que não eram próprias da minha idade e eu confortava-as e dizia-lhes o que entendia. Presenciei e soube de vários casos que por caridade não contei. Quanto me julgo reconhecida a Nosso Senhor por ter procedido assim; era a sua graça e não a minha virtude.

CAPÍTULO 2

NA ESCOLA PRIMÁRIA E PRIMEIRA COMUNHÃO

1911-1912

Em Janeiro de 1911, fui com minha irmã Deolinda para a Póvoa de Varzim para frequentarmos a escola — porque na sua terra natal, como adverte a irmã, não havia escola feminina. — Não quero pensar quanto sofri com a separação da minha família. Chorei multo e durante multo tempo. Distraíam-me, acariciavam-me, faziam-me todas as vontades e depois de algum tempo, resignei-me.

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Dezoito meses permaneceu na Póvoa. Ao princípio, "era pouco dedicada ao estudo — escreve a sua irmã Deolinda. — Mais tarde aplicou-se e aprendeu a ler e escrever" Não chegou porém a fazer nenhum exame primário, reduzindo-se a isso toda a sua instrução.

Continuei a ser muito traquinas — confessa ela e narra logo uma dessas traquinices perigosas — agarrava-me aos americanos (condução puxada a éguas) e deixava-me ir um pouco e depois atirava-me ao chão e caía. Atravessava a rua quando eles iam a passar, sendo preciso o condutor acusar-me à patroa (a pessoa em cuja casa morava e a quem fora confiada por sua mãe). Muitas vezes fugia de casa e ia apanhar sargaço para a praia metendo-me ao mar, como fazem os pescadores; trazia-o para casa e dava-o à patroa que o vendia aos lavradores. Com isso afligia-se a patroa, pois fazia isto às escondidas, embora rapidamente.

Foi na Póvoa de Varzim que fiz a minha primeira Comunhão. Foi o Sr. Padre Álvaro Matos que me perguntou a doutrina, me confessou e me deu pela primeira vez a sagrada Comunhão. Como prémio recebi um lindo terço e uma estampazinha.

Quando comunguei, estava de joelhos, apesar de pequenina; fitei a sagrada Hóstia que ia receber, de tal maneira que me ficou tão gravada na alma, parecendo-me unir a Jesus para nunca mais me separar dele. Parece que me prendeu o coração. A alegria que eu sentia era inexplicável. A todos dava a boa nova.

Assim quis Jesus deixar bem marcado este seu primeiro encontro sacramental com aquela que havia de ser na Terra uma das almas mais eucarísticas, das mais apaixonadas por Jesus Sacramentado!

Desde então começou a comungar diariamente.

Foi em Vila do Conde onde recebi o sacramento da Confirmação, ministrado pelo Ex.mo e Rev.mo Sr. Bispo do Porto. Lembro-me muito bem desta cerimónia e recebi-o com toda a consolação. No momento em que fui crismada não sei o que senti em mim: pareceu-me ser uma graça sobrenatural que me transformou e uniu cada vez mais a Nosso Senhor. Sobre isto queria exprimir-me melhor, mas não sei.

Cedo começa, portanto, a experimentar os efeitos da presença e da acção divina. Daí a contínua lembrança de Deus… "Desde que cheguei ao uso da razão, não me lembro de passar dia nenhum, sem que me lembrasse de Nosso Senhor" — há de escrever ela a 26.12.1935. Já aos quatro anos amava o trato com Deus:

À medida que ia crescendo, ia aumentando em mim o desejo da oração. Tudo queria aprender. Ainda conservo as devoções da minha infância, como: Lembrai-vos, ó puríssima Virgem Maria..., Ó Senhora minha, ó minha Mãe... e o oferecimento das obras do dia: Ofereço-vos, ó meu Deus... a oração ao Anjo da Guarda, oração a São José e várias jaculatórias.

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E continua a mostrar-nos a sua devoção da infância:

Quando ia a passeio com a patroa para o campo, acompanhada com outras meninas, fugia do convívio delas e ia apanhar flores que esfolhava, para fazer tapetes na igreja de Nossa Senhora das Dores. Era em Maio e toda me comprazia em ver o altar da Mãezinha adornado de rosas e cravos e de respirar o perfume dessas flores. Algumas vezes oferecia à Mãezinha muitas flores que minha mãe propositadamente me levava.

Pelos nove anos, quando me levantava cedo para ir trabalhar nos campos e quando me encontrava sozinha, punha--me a contemplar a natureza, o romper da aurora, o nascer do Sol, o gorjeio das avezinhas, o murmúrio das águas: entrava em mim numa contemplação profunda, que quase me esquecia que vivia no mundo.

Chegava a deter os meus passos e ficava embebida neste pensamento: o poder de Deus!

E quando me encontrava à beira-mar, ó como me perdia diante daquela grandeza! À noite, ao contemplar o céu e as estrelas, parecia esconder-me mais ainda para admirar as belezas do Criador!

Quantas vezes no meu jardinzinho, onde hoje é o meu quarto, fitava o céu e escutava o murmúrio das águas, ia contemplando cada vez mais este abismo das grandezas divinas.

Tenho pena não saber aproveitar tudo, para começar nesta idade as minhas meditações.

Referindo-se ainda ao período que esteve na Póvoa de Varzim, fala da sua dedicação pela patroa:

Lembro-me de ir acompanhar a minha patroa a Laundos, cumprir uma promessa a Nossa Senhora da Saúde. Connosco foi uma filha dela e a minha irmã. Esta ajudava-a pegando-lhe pela mão, porque ia de joelhos e eu ia à frente dela: arrumava-lhe todas as pedrinhas que encontrava no caminho. A filha, que era mais velha do que nós, foi para a brincadeira.

Era muito dedicada à mulherzinha e quando me davam qualquer coisa boa, como fruta, doces, etc., repartia com ela que ficava toda satisfeita. Eu procedia assim, porque o meu coração assim mo pedia, apesar de ser muito má.

E logo a seguir, conta uma das suas maldades:

Uma ocasião a minha irmã pediu-lhe licença para ir estudar a casa de uma colega que morava perto de nós e eu também queria ir. Como não me deixasse, chorava e por fim chamei-

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lhe "poveira". Estava zangada. Não me castigou mas disse-me que não podia confessar-me sem lhe pedir perdão. Minha irmã disse-me o mesmo. Isto fez-me muita repugnância e como quisesse confessar-me e comungar, venci o meu orgulho. Ela comoveu-se até às lágrimas e perdoou-me. Senti uma grande alegria, por já poder ir no dia seguinte confessar-me e receber a Jesus

 CAPÍTULO 3

ORAÇÃO E TRABALHO

1912-1918

Passados dezoito meses — narra ela — como minha irmã fizesse exame, viemos embora. Minha mãe queria que eu continuasse a estudar, mas sozinha não quis ficar. Fiquei a saber pouco. Voltámos para o lugar onde nascemos (Gresufes) e aí estivemos quatro meses; depois fomos para perto da Igreja, numa casa de minha mãe.

A vida da Alexandrina agora vai passar-se em trabalhos domésticos e do campo, mas sua piedade não afrouxa nunca, pelo contrário.

Gostava muito de ir à Igreja e chegava-me para junto da minha catequista e rezava tudo quanto ela queria. Não deixava dia nenhum de rezar a estação ao Santíssimo, meditada, quer fosse na Igreja, quer em casa, ou até pelos caminhos, fazendo sempre a comunhão espiritual assim:

— Ó meu Jesus, vinde ao meu pobre coração. Ah, eu desejo-vos, não tardeis. Vinde enriquecer-me das vossas graças; aumentai-me o vosso santo e divino amor. Uni-me a Vós, escondei-me no vosso sagrado Lado. Não quero outro bem senão a Vós. Só a Vós amo, só a Vós quero, só por Vós suspiro. Dou-Vos graças, Eterno Pai, por me haverdes deixado a Jesus no Santíssimo Sacramento. Dou-Vos graças, meu Jesus, e por último peçoVos a vossa santa bênção.

Seja louvado a cada momento o Santíssimo e Diviníssimo Sacramento!

Desde os tenros anos, portanto, vemos bem vincada nesta alma a sua feição espiritual: a devoção à Eucaristia.

Foi aos nove anos que fiz a primeira vez a minha confissão geral e foi com o Sr. Frei Manuel das Chagas. Fomos eu, a Deolinda e a minha prima Olívia a Gondifelos onde Sua Rev.cia se encontrava (em pregação) e lá nos confessámos todas três.

Deve ter dito as suas travessuras e traquinices de menina, as pequeninas partidas pregadas à irmã, de como zangada chamou “poveira” à patroa e até de quando ainda na Póvoa, tendo o capelão de Nossa Senhora das Dores organizado várias comissões de meninas, afim de recolherem esmolas para o culto da mesma capela, foi com algumas à Aguçadoura e — escreve ela — “aceitávamos tudo o que nos dessem, como batatas, cebolas, etc. Por mais que pedíssemos, pouco arranjámos e tivemos a má ideia de saltar a um campo e tirámos batatas, cerca de dois quilogramas. Fui uma das que fiz tal acção, enquanto as outras vigiavam. Entregámos as ofertas, não contando nada do que se tinha passado”.

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Também se confessaria da vaidade que sentiu, quando lhe deram uns soquinhos novos. Mas nem por sombras encontrou nada de matéria grave, graças a Deus.

Não gostava de ouvir conversas maliciosas e, embora não compreendesse o sentido delas, chegava a dizer que me retirava, se não falassem noutra forma. Também me indignava toda, quando presenciava cenas indecentes, entre pessoas adultas. Tinha medo de perder a minha inocência e receio de que Nosso Senhor desse algum castigo.

A sua consciência delicada e timorata preservá-la-á até à morte de mancha grave.

Quando da confissão geral, ouviram um sermão de Fr. Manuel das Chagas:

A pregação dessa tarde foi sobre o inferno. Escutei com toda a atenção todas as palavras de Sua Rev.cia Mas a certa altura convidou-nos a ir ao inferno em espírito. Como não compreendesse o sentido das suas palavras e ouvia dizer que o Sr. Fr. Manuel era santo, julgava que íamos todos ao inferno ver o que por lá ia. Para mim mesmo disse: — ao inferno é que eu não vou! Quando todos se dirigirem para lá, eu vou-me embora. E tratei de pegar nos soquinhos. Como não vi ninguém sair, fiquei também, não largando mais os soquinhos.

À oração juntava desde tenra idade o trabalho:

A mãe — escreve a Deolinda — ocupava-se em tecer, a irmã aprendia costura e ela, com os seus nove anos já trabalhava muito. Cozinhava, lavava e gostava de apanhar lenha. Assim continuou até aos doze anos.

Mas começa o que a Alexandrina chama nas notas biográficas “o período mais doloroso da minha vida de trabalho”:

Dos doze aos catorze anos vivi com regular saúde. Minha mãe pôs-me a servir em casa de um vizinho, mas ao ajustar-me, pôs certas condições, como confessar-me todos os meses, passar as tardes dos domingos em casa para ir à Igreja e estar sob o domínio dela, não andar de noite, etc. A combinação foi de cinco meses, mas não estive até ao fim. O patrão era um perfeito carrasco. Chamava-me nomes, obrigava-me a trabalhar mais do que as forças que tinha. Tinha mau génio e pouca paciência; até os animais o conheciam, porque batia-lhes e assustava-os, sendo quase impossível chamar o gado, quando ia junto... Envergonhava-me sem causa, fosse diante de quem fosse e eu sentia-me humilhada. Apesar de estar no princípio da minha mocidade, não sentia alegria com aquele triste viver.

Um dia fui à azenha levar a fornada, mas era já noitinha, quando lá cheguei e portanto, muito tarde quando regressei a casa, pois gastava no caminho uma hora. Depois que cheguei a casa, ralhou-me muito. Insultou-me e até me chamou ladra. O pai dele, homem velhinho, revoltou-se contra ele, defendeu-me dizendo que eu não tinha tido tempo para mais.

Todos os dias vinha ficar a casa e naquele dia, como estava melindrada, porque a minha consciência não me acusava a mais pequenina falta, queixei-me à minha mãe, que depois de se informar do caso, não me deixou voltar, apesar de pedir muito para que continuasse a trabalhar lá. Minha mãe vendo que ele não cumpria o contrato, tirou-me de servir.

Uma vez estive das dez da noite às quatro da manhã, na Póvoa de Varzim, a tomar conta de quatro juntas de bois, porque o patrão e um seu amigo ausentaram-se de mim e eu, cheia de medo, lá passei aquelas horas tristíssimas da noite. Enquanto vigiava o gado ia contemplando as estrelas que brilhavam muito e serviam de minhas companheiras.

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Conta-nos ainda a irmã que “pelos doze anos pouco mais ou menos ia passar temporadas a casa de uma tia que morava perto de Barcelos. Aí trabalhava no arranjo da casas quase como uma mulher... Com treze anos trabalhava nos campos, ganhando tanto como sua mãe ou qualquer jornaleira. Os patrões não a distinguiam das outras no ordenado que lhe davam”. Também pela mesma idade lhe “deram o cargo de catequista e cantora; trabalhava com muito gosto, tanto num cargo como noutro, mas pelo canto posso dizer que tinha uma paixão louca”.

 

CAPÍTULO 4

ADOECE GRAVEMENTE

1918-1928

Mas um incidente inesperado veio iniciar o novo rumo que ia tomar seu viver. Fale a Alexandrina:

Uma vez, andava a apanhar hera numa carvalheira, para dar ao gado e caí dela abaixo, ficando algum tempo sem me poder mexer e sem respirar, levantando-me pouco depois para continuar meu serviço...

Aos catorze anos e quatro meses deixei o trabalho para sempre, embora há meses trabalhasse com muito custo. Principiei a consultar médicos, coisa que me custava imenso. Eles tratavam-me de várias doenças.

A princípio tudo corria bem e todos tinham pena de mim e eu só sentia o desgosto dos meus males. Isto durou bem pouco tempo. As minhas melhores amigas, pessoas de família e até o próprio Pároco revoltavam-se contra mim. Chegavam a fazer caçoada de mim, do meu modo de andar, da posição que tinha na Igreja... Mas eu não podia estar doutra forma. O Senhor Abade dizia-me que eu não comia, porque não queria e se morresse que ia para o inferno. Quando me ia confessar, dizia-me também que o maior pecado era o de não comer. Estas palavras fizeram-me sofrer muito sozinha; com Nosso Senhor é que eu desabafava.

Quando ia de casa para a Igreja e desta para casa, olhava os montes em volta e pensava fugir e refugiar-me onde mais ninguém me visse; mas Nosso Senhor nunca me deixava fazer isto. Chorei tanto, tanto ao ver-me na situação em que me encontrava! Não me recordo bem do tempo que durou este sofrimento, mas sei que não chegou a um ano.

Entretanto outro episódio concorreu para lhe agravar ainda mais a doença e pôr em foco o seu amor, à pureza.

Uma ocasião, estando eu, minha irmã e uma pequena mais velha do que nós a trabalhar na costura — narra a Alexandrina — avistámos três homens: o que tinha sido meu patrão, outro casado e um terceiro solteiro. Minha irmã

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percebendo alguma coisa e vendo-os seguir o nosso caminho, mandou-me fechar a porta da sala. Instantes depois, sentimos que eles subiam as escadas que davam para a sala e bateram à porta.

Falou-lhes minha irmã. O que tinha sido meu patrão mandou abrir a porta; mas como não tivessem lá obra, não lhe abrimos a porta. O meu antigo patrão conhecia bem a casa e subiu por umas escadas pelo interior da habitação e os outros ficaram à porta onde tinham batido. Ele, não podendo entrar por um alçapão que estava fechado e resguardado por urna máquina de costura, pegou num maço e deu fortes pancadas nas tábuas até rebentar o alçapão, tentando passar por aí.

Minha irmã, ao ver isto, abriu a porta da sala e conseguiu escapar-se, apesar de a prenderem pela roupa. A outra pequena foi a segunda a fugir, mas essa ficou presa e eu ao ver tudo isto, saltei pela janela que estava aberta e que deitava para o quintal. Sofri um grande abalo, porque a janela distava do chão quatro metros: quis levantar-me logo, mas não podia, com uma forte dor na barriga. Com o salto caiu-me um anel que tinha no dedo sem dar por ele.

Cheia de coragem, peguei num pau e entrei pela porta do quintal para o eirado, onde estava a minha irmã a discutir com os dois casados. A outra pequena estava na sala com o solteiro. Eu aproximei-me deles e chamei-lhes cães! E disse: que ou deixavam vir a pequena ou então gritava contra eles. Aceitaram a proposta e deixaram-na sair. Foi nesta altura que dei falta do anel e disse-lhes de novo: — seus cães! Por vossa causa perdi o meu anel. Um deles que trazia os dedos cheios de anéis disse-me: escolhe daqui. Mas eu, toda zangada, respondi: não quero.

Não lhes demos mais confiança; eles retiraram-se e nós continuámos a trabalhar. De tudo isto não contámos a ninguém mas a minha mãe veio a saber tudo. Pouco depois, comecei a sofrer mais e toda a gente dizia que foi do salto que dei. Os médicos também afirmavam que muito concorreria para a minha doença.

Dêmos aqui a palavra à sua irmã Deolinda e à Sãozinha:

Depois desta aflição ainda foi andando, trabalhando sim, mas com grande sacrifício. O mal foi-se agravando e ela, não podendo já sofrer em silêncio, como o fez durante muito tempo, queixou-se a sua mãe. Esta tratou de a levar a farmacêuticos, julgando que a doença não era de gravidade, mas não colhendo resultados, foi consultar alguns médicos. Estes atribuíram o grande mal ao mau funcionamento do estômago e dos intestinos. Sujeitaram-na a tratamento rigoroso e com a dieta em que esteve, abateu muito, a ponto de ir para a cama e aí esteve umas três semanas.

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Depois sempre melhorou um pouquinho e foi para a Póvoa afim de continuar o tratamento. Mas vendo que pouco adiantava, foi ouvir a opinião de outros médicos, entre eles o especialista do Porto, Dr. Abel Pacheco, que a submeteu a um exame rigorosíssimo. Nesta ocasião a Alexandrina chorava muito com dores e com vergonha. O Sr. Dr. Abel Pacheco informou o médico assistente, que nessa ocasião era o Dr. Garcia, de que a doente não tinha cura. Claro que ela não sofreu este desgosto, porque a família soube encobri-lo.

Passado algum tempo, acamou e assim esteve durante cinco meses, sem nunca se levantar para coisa nenhuma. Isto em 1922...

Em Março de 1923, sofreu um desgosto grande: o da morte de sua avó. Nessa ocasião desmaiou muitas vezes; teve muita pena por não a ver depois de morta, mas, como estava doente, resignou-se conforme pôde. Em Abril desse mesmo ano, principiou a levantar-se e chegou a sair de casa. Os seus primeiros passos foram à Igreja. Ainda chegou a cantar, principalmente nas ocasiões das festas. Com grande sacrifício o fazia, mas nessa altura o grupo das cantoras era muito pequeno e a voz dela fazia falta, porque cantava bem e pertencia ao grupo desde novinha.

Andou a pé durante dois anos, sofrendo fisicamente muito. Continuou sempre em tratamento. Sabendo a mãe que não havia esperanças de a curar pelo médico que a tratava, pediu-lhe que consultasse outro que vivia perto da sua aldeia, para evitar despesas que tinha em a levar à Vila (Póvoa de Varzim). Com isto a Alexandrina desgostou-se muito, porque estava habituada com ele. A pedido de sua irmã e pessoas amigas, ela resolveu-se a mudar de médico.

Depois do novo médico a ter examinado várias vezes, aconselhou a mãe a levá-la de novo ao Porto, a outro especialista de nome, Dr. João de Almeida. E aí, depois de a examinar bem, o próprio médico assistente diagnosticou tratar-se de mal na espinha... Por isso é que ela não podia sentar-se nem ajoelhar-se. Em 14 de Abril de 1925, acamou para nunca mais se levantar.

Aos dezanove anos acamei — escreve a própria Alexandrina — e desta vez não tive como da outra, quem me dissesse:

— Deixa passar algum tempo, que ainda virás a levantar-te.

Nesta altura o médico do Porto, Dr. João de Almeida, informou minha mãe de que temia que eu entrevasse.

Esta data, como é natural, ficou bem gravada na memória da Doente: mais tarde, a 13.4.939, em carta ao director espiritual lemos: "é amanhã que faz 14 anos que estou na cama". E daí a um ano torna a lembrar o novo aniversário.

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A partir desta ocasião comecei a ter por enfermeira minha irmã, porque minha mãe ocupava-se em serviços do campo e minha irmã costurava. Tive momentos de desânimo, mas nunca desespero. Nada no mundo me prendia: só tinha saudades do meu jardinzinho, porque amava muito as flores. Algumas vezes fui vê-lo: matar saudades, ao colo de minha irmã...

Cheguei a fazer algumas promessas para ser curada, como cortar rente o meu cabelo, que era para mim um grande sacrifício; dar todo o meu oiro e vestir-me de luto toda a minha vida; ir de joelhos desde a nossa casa até à Igreja. Minha mãe, irmã e primas fizeram também grandes promessas.

Por fim, compreendi que a vontade de Nosso Senhor era que estivesse doente; deixei de pedir a minha cura. No decorrer dos anos estive várias vezes às portas da morte. Preparava-me com os últimos sacramentos; esperava a hora da morte resignada. Na medicina não tinha outro alívio senão uns pedacinhos de morfina que me injectavam.

Mais adiante escreve ainda:

Como me falassem dos milagres de Fátima e sabendo eu, em 1928, que várias pessoas iam à Cova da Iria, nasceram em mim desejos de ir também. O médico assistente e o meu Pároco não me deixaram, dizendo que era impossível ir para tão longe, se eu mal consentia que me tocassem na cama. O Sr. Abade dizia-me que pedisse aqui a minha cura e que depois iria a Nossa Senhora de Fátima agradecer tão grande graça. O médico prometeu passar o atestado, se o milagre se desse.

Nesse ano, o Sr. Abade foi a Fátima e perguntou-me o que queria de lá? Pedi-lhe que me trouxesse uma medalhinha; mas ele ofereceu-me um terço, uma medalha e o Manual do Peregrino e alguma água de Fátima. Sua Rev.cia aconselhou-me a fazer uma novena a Nossa Senhora e a beber a água de Fátima com o fim de ser curada. Não fiz uma, mas muitas. Cantava muito e dizia às pessoas vizinhas que me visitavam, se um dia me vissem pelo caminho e me ouvissem cantar, era eu que ia agradecer a Nossa Senhora o benefício que recebia.

Pensava que seria curada, mas enganei-me: era a minha grande confiança na Mãezinha e em Jesus que assim me fazia falar. Pensava: se for curada, vou logo para religiosa, pois tinha medo de viver no mundo. Queria ser missionária para baptizar pretinhos e salvar almas a Jesus.

Como não consegui nada, morreram os meus desejos de ser curada para sempre, sentindo cada vez mais ânsia e amor ao sofrimento e de só pensar em Jesus.

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Concluamos este capítulo com o que nos relata sua irmã, a propósito das lembranças que recebeu de Fátima:

Naturalmente veio daqui o grande desejo de possuir uma imagem de Nossa Senhora de Fátima. Surgiram-lhe logo as dificuldades: não tinha dinheiro para a comprar. Teve a lembrança de o pedir a pessoas amigas, até que arranjou o preciso para comprar uma imagem de cinquenta centímetros... Quando lha mostraram, ficou tão contente que lhe parecia mentira como a conseguira. Mandou preparar um altarzinho e desde então nunca mais saiu do seu quarto. Nunca lhe faltaram flores, velas e sobretudo as suas orações.

Mais tarde, veremos quanto vai ficar ligada para sempre a vida da Alexandrina à mensagem de Nossa Senhora de Fátima.

CAPÍTULO 5

ENCONTRANDO O SEU DESTINO

1928-1934

Acabámos de ler no capítulo precedente as palavras da Alexandrina: "morreram os meus desejos de ser curada e para sempre". É que compreendeu, como ela mesma afirma, que a vontade de Nosso Senhor era que estivesse doente e, por isso, aceita generosamente essa cruz e começam a crescer nela dia a dia, cada vez mais as ânsias de amor ao sofrimento e de viver em contínua união com Jesus Sacramentado.

Um pouco antes declara:

Sem saber como, ofereci-me a Nosso Senhor como vítima e vinha desde há muito tempo pedindo o amor ao sofrimento. Nosso Senhor concedeu-me tanto esta graça que hoje não a trocaria por tudo quanto há no mundo. Com este amor à dor, toda me consolava em oferecer a Jesus todos os meus sofrimentos. A consolação de Jesus e a salvação das almas era o que mais me preocupava.

Com a perda das forças físicas, fui deixando todas as distracções do mundo; e com o amor que tinha à oração — porque só a orar me sentia bem — habituei-me a viver em união íntima com Nosso Senhor.

Estava definida a sua vocação: vocação de vítima, vocação parecida à de Cristo no Calvário e no Sacrário. E a Alexandrina vai desde já até à morte ser fiel e generosa em seguir o chamamento do Senhor. Nos seus trinta anos de entrevada, não haverá nunca uma hesitação ou uma tentação de voltar atrás.

Ei-la por isso, na sua tarefa: e antes de mais nada cuidadosa em intensificar cada vez mais a união com Jesus, fazendo do seu viver uma continua oração a Jesus Sacramentado. Oiçamo-la:

Pela manhã principiava a fazer as minhas orações, começando pelo sinal da Cruz e logo me lembrava de Jesus

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Sacramentado, fazendo a Comunhão espiritual e dizendo esta jaculatória:

— Sagrado Coração de Jesus, este dia é para Vós.

Repetia-a três vezes e depois continuava:

— A vossa bênção, Jesus; eu quero ser santa. Ó meu Jesus, abençoai a vossa filhinha que quer ser santa.

Dizia também:

— Louvado seja Nosso Senhor... As Três Pessoas da Santíssima Trindade me abençoem, assim como Maria Santíssima, São José e todos os Anjos e Santos e Santas do Céu. Que as bênçãos do Céu desçam sobre mim e nada terei que temer. Serei santa: são esses os meus mais ardentes desejos.

Rezava três Glórias, depois oferecia (como membro do Apostolado da Oração) as obras do dia:

— Ofereço-vos, ó meu Deus etc. P. N. A. M. Gl... Sagrado Coração de Jesus, que tanto nos amais... e o Credo.

Depois continuava:

— Ó meu Jesus, eu me uno em espírito neste momento e desde este momento para sempre a todas as santas Missas que de dia e de noite se celebram na Terra. Jesus, imolai-me convosco ao Eterno Pai pelas mesmas intenções (pelas quais) Vós mesmo Vos ofereceis.

E continua mostrando como unia intensamente as suas devoções mais características, ao Santíssimo Sacramento e a Nossa Senhora, a quem invariavelmente apelidava de Mãezinha:

Voltada para a Mãezinha, dizia-lhe:

— Ave Maria, cheia de graça; eu vos saúdo, ó Cheia de graça! Ó Mãezinha, eu quero ser santa; ó Mãezinha, abençoai-me e pedi a Jesus que me abençoe!

E consagrava-me a Ela assim:

— Mãezinha, eu vos consagro os meus olhos, meus ouvidos, minha boca, meu coração, a minha alma, a minha virgindade, a minha pureza, a minha castidade...

Aceitai, Mãezinha, é vossa; sois Vós o cofre sagrado, o cofre bendito da nossa riqueza. Consagro-Vos o meu presente e o meu futuro, a minha vida e a minha morte, tudo quanto me derem a mim, rezem por mim e oferecerem por mim. Ó Mãezinha, abri-me os vossos santíssimos braços, tomai-me

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sobre eles, estreitai-me ao vosso santíssimo Coração, cobri-me com o vosso santo manto e aceitai-me como vossa filha muito amada, muito querida e consagrai-me toda a Jesus. Fechai-me para sempre em seu santíssimo Coração edizei-lhe que O ajudais a crucificar-me (note-se bem esta passagem), para que não fique no meu corpo nem na minha alma nada por crucificar...

Ó Mãezinha, fazei-me humilde, obediente, pura, casta na alma e no corpo. Fazei-me pura, fazei-me um anjo; transformai-me toda em amor, consumi-me toda nas chamas do amor a Jesus.

Ó Mãezinha, pedi perdão a Jesus por mim: dizei-lhe que é o filho pródigo que volta à casa do seu bom Pai, disposta a segui-Lo, a amá-Lo, a adorá-Lo, a obedecer-Lhe, a imitá-Lo. Dizei-lhe que não quero mais ofendê-lo.

Ó Mãezinha, obtende-me uma dor tão grande dos meus pecados, que seja tal o meu arrependimento, que eu fique pura, que fique um anjo: pura como fiquei depois do meu baptismo, para que pela minha pureza mereça a compaixão de Jesus, de O receber sacramentalmente todos os dias e de possuí-Lo para sempre em mim, até dar o último suspiro.

E continuamos a transcrever como orava a Alexandrina nessa época, porque nos mostra claramente o que era já então a sua oração: simples, afectiva, ardente, sólida, confiante, humilde e perseverante; e além disso, revelam-se-nos, pelo seu conteúdo, as suas aspirações dominantes e a sua feição espiritual.

Mãezinha — continua ela — vinde comigo para os Sacrários, para todos os Sacrários do mundo, para toda a parte e lugar onde Jesus habita sacramentado. Fazei-lhe a minha humilde oferta. O como Jesus ficará contente com a oferta mais pobrezinha, mais miserável, mais indigna, mas oferecida por Vós! Como terá valor junto do vosso e meu querido Jesus!...

Ó Mãezinha, eu quero andar de Sacrário em Sacrário, a pedir favores a Jesus, como a abelhinha de flor em flor a chupar-lhe o néctar.

Ó Mãezinha, eu quero formar um rochedo de amor em todo o lugar onde Jesus habita sacramentado, para que não haja nada que possa intrometer-se entre o amor, para ir ferir o seu santíssimo Coração, renovar as suas santíssimas Chagas e toda a sua Paixão.

Mãezinha, falai no meu coração e nos meus lábios, fazei mais fervorosas as minhas orações e mais valiosos os meus pedidos.

Ó meu querido Jesus, eu me consagro toda a Vós. Abri-me de par em par o vosso santíssimo Coração. Deixai que eu entre nesse Coração bendito, nessa fornalha ardente, nesse fogo

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abrasador. Fechai-o, meu bom Jesus, deixai-me toda dentro do vosso santíssimo Coração; deixai-me dar aí o último suspiro, embriagada no vosso divino amor. Não me deixeis separar de Vós na Terra, senão para me tornar a unir a Vós no Céu, por toda a eternidade.

E agora voltada para Jesus escondido nos Sacrários: quer ser a sua vitimazinha, quer ser a lâmpada, a sentinela das suas prisões de amor. Fale ela:

Ó meu querido Jesus, eu me uno em espírito neste momento e desde este momento para sempre a todos as santas Hóstias da Terra, em cada lugar onde habitais sacramentado. Ai, quero passar todos os momentos da minha vida constantemente, de dia e de noite, alegre ou triste, só ou acompanhada, sempre a consolar-Vos, a adorar-Vos, a amar-Vos, a louvar-Vos e glorificar-Vos.

Ó meu Jesus, eu queria tantos actos de amor meus constantemente a cair sobre Vós de dia e de noite, como chuva miudinha cai do céu para a terra num dia de Inverno; não queria só, mas de todas as criaturas do mundo inteiro!... Oh, como eu Vos queria amar e ver amado por todos! Vede, Jesus, os meus desejos e aceitai-mos já, como se eu Vos amasse.

Ó Jesus, nem um só Sacrário fique no mundo, nem um só lugar onde habitais sacramentado sem que hoje e desde hoje sempre a dizer: Jesus, eu amo-Vos! Jesus, eu sou toda vossa. Sou a vossa vítima, a vítima da Eucaristia, a lampadazinha das vossas prisões de amor, a sentinela dos vossos Sacrários!

Ó Jesus, eu quero ser vítima dos Sacerdotes, a vítima dos pecadores, a vítima do vosso amor, da minha família, da vossa santíssima Paixão, das Dores da Mãezinha, do vosso Coração, da vossa santa Vontade, a vítima do mundo inteiro! Vítima da paz, vítima da Consagração do mundo à Mãezinha!

E como ela é toda de Jesus por Maria, em Maria e com Maria, continua assim:

Jesus, vou convidar a Mãezinha: é Ela quem Vos vai falar por mim. Vou e venho já, sim, meu Jesus?

Ave Maria, cheia de graça! Eu vos saúdo, Cheia de Graça: Mãezinha, vinde comigo para os Sacrários; vinde cobrir o meu Jesus de amor. Oferecei-lhe tudo quanto se passar em mim, tudo quanto tenho costume de oferecer, tudo quanto se possa imaginar como actos de amor para Nosso Senhor Sacramentado!

Dizia três vezes — continua ela — «Graças e louvores se dêem a todo o momento ao Santíssimo e diviníssimo Sacramento…», e fazia a Comunhão espiritual já descrita; nesta altura dizia isto a Nossa Senhora para Ela repetir ao seu amado Filho por mim:

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Ó Jesus, cá está a Mãezinha, escutai-A; é Ela quem vos vai falar por mim.

Ó querida Mãezinha do Céu, ide dar beijinhos aos Sacrários, beijos sem conta, abraços sem conta, mimos sem conta, carícias sem conta, tudo para Jesus Sacramentado, tudo para a Santíssima Trindade, tudo para Vós! Multiplicai-os muito, muito e dai-os de um puro e santo amor que não possa mais amar, cheios de umas santas saudades, por não poder eu já beijar e abraçar a Jesus Sacramentado, a Santíssima Trindade e a Vós, minha Mãe querida, pois não sois Vós a criatura mais amada e mais querida de Jesus? O dai-os então em meu nome, com esse amor com que amais e sois amada!

E agora este canto precioso de louvor que recorda o Canto do Sol de S. Francisco de Assis, ou o Benedicite:

Ó meu Jesus, eu quero que cada dor que sentir, cada palpitação do meu coração, cada vez que respirar, cada segundo das horas que passar,

sejam actos de amor para os vossos Sacrários.

Eu quero que cada movimento dos meus pés, das minhas mãos, dos meus lábios, da minha língua, cada vez que abrir os meus olhos ou fechar; cada lágrima, cada sorriso, cada alegria, cada tristeza, cada tribulação, cada distracção, contrariedades ou desgostos

sejam actos de amor para os vossos Sacrários.

Eu quero que cada letra das orações que rezo, ou oiço rezar; cada palavra que pronuncie ou oiça pronunciar; que leia ou oiça ler; que escreva ou veja escrever; que cante ou oiça cantar

sejam actos de amor para os vossos Sacrários.

Eu quero que cada beijinho que Vos, der nas vossas santas imagens, nas da vossa e minha querida Mãezinha, nas dos vossos Santos e Santas

sejam actos de amor para os vossos Sacrários.

Ó Jesus, eu quero que cada gotinha da chuva que cai do céu para a terra, toda a água que o mundo encerra, oferecida às gotas; todas as areias do mar e tudo o que o mar contém

sejam actos de amor para os vossos Sacrários.

Eu Vos ofereço as folhas das árvores, todas as frutas que elas possam ter, as florezinhas oferecidas folhinha a folhinha (pétala a pétala) todos os grãozinhos e sementes e cereais

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que possa haver no mundo e tudo o que contém os jardins, campos, prados e montes, ofereço tudo

como actos de amor para os vossos Sacrários.

Ó Jesus, eu Vos ofereço as penas das avezinhas, o gorjeio das mesmas, os pêlos e as vozes de todos os animais, como actos de amor para os vossos Sacrários.

Ó Jesus, ofereço-Vos o dia e a noite, o calor e o frio, o vento, a neve, a lua, o luar, o Sol, a escuridão, as estrelas do firmamento, o meu dormir, o meu sonhar,

como actos de amor para os vossos Sacrários.

Ó Jesus, ofereço-Vos tudo o que o mundo encerra, todas as grandezas, riquezas e tesoiros do mundo, tudo quanto se passar em mim, tu do quanto tenho costume de oferecer-Vos, tudo quanto se possa imaginar,

como actos de amor para os vossos Sacrários.

Ó Jesus, aceitai o céu, a terra e o mar, tudo, tudo quanto neles se encerra, como se esse tudo fosse meu e de tudo pudesse dispor e oferecer-vos, como actos de amor para os vossos Sacrários!

O que aí fica deixa bem em evidência que a piedade da Alexandrina era eminentemente mariana e sobretudo eucarística. Com Maria, por Maria e em Maria vivia toda para Jesus Sacramentado, como vítima de imolação. Por isso não nos espanta ver como à oração unia a mortificação. Como se não bastassem os sofrimentos que lhe causava a doença, inventava novas maneiras de se crucificar. Tudo queria fazer por amor de Jesus e Maria "e para provar que os amava, algumas vezes fazia bolinhas de cera e atava-as na ponta de um lencinho (lembremo-nos que ela estava já paralítica: só podia mexer os braços e um pouco a cabeça) e com ele batia no meu corpo escolhendo os lugares onde mais podia sofrer, como fosse, nos joelhos e nos ossos, ficando o meu corpo denegrido das pancadas. Outras vezes atava a trança dos meus cabelos aos ferros da cama e puxava a cabeça com toda a força para a frente, para assim mais poder sofrer. Ou então dava nós na ponta da trança açoitando-me com ela nas costas, no peito, nos braços e a todas as partes onde a trança chegava".

Note-se que muitas dessas mortificações fazia ela sem orientação, porque ainda não tinha director espiritual. Mais tarde, já depois de o ter, ainda nos conta uma dessas mortificações um tanto extravagantes :

Na tarde de um Domingo, tinha tantas ânsias de amor divino, não cabendo em mim de ansiedade, suspirava por ficar sozinha, vendo partir os meus para a Igreja. Como de costume, queriam ficar a fazer-me companhia, mas eu preferia ficar sozinha, pois só com o meu Jesus é que me sentia bem. Logo que me deixaram a sós com Jesus, foi então que Lhe provei quanto O amava. Peguei num alfinete que segurava as minhas medalhinhas, espetei-o sobre o meu coração; mas como não visse aparecer sangue, enterrei-o mais ainda e retorci as fibras até elas rebentarem, surgindo sangue.

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Tomei a caneta e um santinho e com o meu sangue escrevi assim:

— Com o meu sangue Vos juro amar-vos muito, meu Jesus, e seja tal o meu amor que morra abraçada à Cruz.

Alexandrina Maria da Costa.

E ainda acrescentou:

Amo-Vos e morro de amor por Vós, ó meu querido Jesus, e nos vossos Sacrários quero habitar, ó meu Jesus.

Balasar, 14.10.1934.

Diz que com grande repugnância contou o caso ao director e quando este lhe perguntou, quem lhe tinha dado licença, respondeu: "não sabia que era preciso licença. Desde então proibiu-me de voltar a fazer coisas deste género". Em penitência, tomámos-lhe o santinho e ainda hoje o guardamos como preciosa relíquia.

Deus não se deixa vencer em generosidade e por isso não é de estranhar que já nessa altura experimentasse tantas vezes essas ânsias e ardores de amor a Nosso Senhor e saboreasse frequentemente as carícias e como que escutasse a sua divina voz, quando lhe perguntava:

Meu Deus, que quereis que eu faça?

A resposta era sempre esta:

Amar, reparar, sofrer.

CAPÍTULO 6

NA ESCOLA DA EUCARISTIA

1934-1935

Quem lê a correspondência — melhor diríamos o diário espiritual — da Alexandrina de fins de 1933 a fins de 1935, descobrirá que ela vive aí um período de intensa iniciação sobre a vocação que Deus lhe destina na Terra. É o próprio Jesus Cristo que vem ao seu encontro, como Director e Mestre e lhe pede toda a atenção às lições que na Escola da Eucaristia lhe vai dar, para que não só ela as aprenda e pratique, mas as comunique depois a muitas almas que lhe hão de seguir o exemplo.

Dos escritos desses dois anos excertámos alguma coisa, para vermos quem é o Mestre, qual a Escola, quais as lições e qual a discípula.

E primeiramente o Mestre.

Em carta de 27.9.1934, lemos:

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Disse-me o meu amado Jesus que será Ele o meu Director e o meu Mestre contínuo, frequente, habitual e V. Rev.cia lá de longe; mas que tenho que lhe obedecer primeiro em tudo do que a Ele. Disse-me também para dizer a V. Rev.cia que a minha peregrinação na Terra não será longa, mas que grandes coisas me esperam.

A 1.11.34:

Minha filha, não estou só contigo quando me pedes para te consolar. Sou teu mestre. Feliz de ti, se bem aprenderes as minhas lições e as praticares.

O que temes tu? — pergunta-lhe a 9.12.34 — se Eu sou o Mestre dos mestres, o director dos directores?

Referindo-se a esta época, escreve nas notas autobiográficas:

Desde então tinha Jesus à minha ordem, falando-me de dia e de noite. Sentia grande consolação espiritual; não me custavam os meus sofrimentos. Em tudo sentia amor ao meu Jesus e sentia que Ele me amava, pois dele recebia carícias sem conta. Só me desejava sozinha. O como me sentia bem no silêncio unidinha a Ele!... Jesus desabafava muito comigo.

Como não havia a Alexandrina de experimentar que Jesus a amava, se eram tão extremas as delicadezas deste divino Mestre para com a sua discípula?

Pouco antes de mandar escrever esta carta — diz ela a 4.10.34 — Nosso Senhor pediu-me o meu coração para o colocar dentro do dele, para que não tivesse outro amor a não ser a Ele e às suas obras. Disse-me que cabiam lá todos, mas que o meu tinha um lugar reservado... escolhi-te para mim, corresponde ao meu amor. Quero ser o teu esposo, o teu amado, o teu tudo; escolhi-te também para a felicidade de muitas almas.

E acrescenta ela:

Diz-me que sou um canal por onde hão de passar as graças que eu hei de distribuir às almas e pelo qual hão de vir as almas a Ele. Diz-me mais o meu Jesus, que se serve de mim, para que por mim vão a Ele muitas almas e por mim sejam excitadas a amá-lo na santíssima Eucaristia.

No primeiro sábado de Outubro desse mesmo ano (6.10.1934, ver carta de 11.10.1934), afirmava Nosso Senhor:

Já que tão generosamente te ofereces como vítima pelos pecados do mundo, Eu colocarei em ti como que um canal para passarem as graças às almas.

O Mestre, artista infinito, pretende realizar nela uma obra-prima:

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Manda dizer ao teu Pai Espiritual que te vou modelando e preparando para coisas mais sublimes (11.10.34)

Hei de fazer em ti grandes coisas. (1º sábado de Dezembro de 1934)

Eu ainda não estou satisfeito: ainda te quero mais crucificada. (11.12.34)

E por isso em breve a veremos mergulhada na noite passiva do sentido e sobretudo na mais terrível do espírito.

A empresa é árdua, mas para lhe incutir coragem e confiança, Jesus multiplica as suas carícias: quantas vezes a estreita e a abrasa intensamente em seu amor!

Minha filha, ó minha amada, Eu estou contigo! Oh, como Eu te amo! São tão fortes as cadeias de amor que me prendem a ti que as não posso quebrar, não te posso abandonar. (1.11.34, carta, pág. 42)

Já antes lhe tinha prometido que sempre estaria com ela e que nunca mais a abandonaria. (26.10.34)

Com tal Mestre, as lições, apesar de sublimes e difíceis de praticar, vão ser aprendidas e executadas com toda a pontualidade e amor.

De mais a mais é à luz da Eucaristia, na Escola do Sacrário que o Mestre a ensina.

Desde menina que a Alexandrina teve pela Eucaristia devoção notável. Já o vimos ao falar da sua primeira Comunhão e da sua oração nos primeiros anos e das deliciosas preces que com Maria Santíssima dirigia a Jesus Sacramentado.

Aos dezanove anos acamou para não mais se levantar. Referem-se a essa época estas palavras:

Tinha muitas saudades do Jesus da nossa Igreja; e quando havia festas do Sagrado Coração de Jesus e missas cantadas, eu chorava amargamente.

Lá mesmo da cama, "cantava o Tantum ergo, como se estivesse na Igreja e fosse receber a bênção de Nosso Senhor. Como não tinha Santíssimo Sacramento em casa..., pedia a Nosso Senhor que me desse a bênção do Céu e de todos os Sacrários".

Pertencia à pia Obra das Marias dos Sacrários-Calvários, por isso gozava do indulto de Missa em casa, quando impedida por doença de ir à Igreja. Grande foi o seu júbilo, quando dada a aquiescência do Prelado arquidiocesano, pôde, a 20 de Novembro de 1933, assistir à santa Missa a que já há tantos anos não assistia. Daí por diante tinha mensalmente essa consolação.

Amaríssima se tornou para ela a época em que, mudado o Pároco, deixou de comungar todos os dias. Declara a propósito, a 27.9.34:

Com grande mágoa e saudade lhe digo que ainda não tornei a receber a Nosso Senhor. Se eu pudesse pagar e me

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trouxessem Nosso Senhor por dinheiro, quanto não daria eu! Mas paciência. Tenho feito muitas comunhões espirituais com o maior fervor que tenho podido e Nosso Senhor vai-me dando a recompensa.

A 26.10.34, expressa de novo a mesma pena:

Ainda não tornei a receber o meu querido Jesus desde o dia 13; ai, meu Deus, que pena eu tenho! Peça muito a Nosso Senhor que, por sua infinita misericórdia, se digne dar algum meio a isto.

Só passado talvez mais de um ano é que as coisas mudaram. Por isso a 6.6.35, exclama:

Eu continuo muito doentinha; mas tenho tido a consolação de receber Nosso Senhor todos os dias. Isto só por um milagre do Céu, pois o Sr. Abade nunca me fez tal....

A 4 do mês seguinte repete:

Tenho recebido todos os dias o meu amado Jesus; apesar de não ouvir sempre a sua divina voz, ó como eu me sinto bem com a divina presença sacramental em mim! Que paz eu sinto na minha pobre alma! Como sinto desejos de O amar sempre e cada vez mais!

A confirmar e intensificar este amor à Eucaristia que o divino Espírito Santo nela despertou desde menina, vem agora o Mestre divino, vezes inúmeras, a repetir que a Escola onde a quer ininterruptamente é nos Sacrários. Já a 27.9.34, escreve ela ao director espiritual:

Nosso Senhor não cessa de me pedir as coisas que lhe tenho dito. Convida-me muito para os Sacrários:

— Anda minha filha, entristecer-te comigo, participar da minha prisão de amor e reparar tanto abandono e esquecimento. Manda dizer ao teu Pai Espiritual que quero que seja pregada a devoção aos Sacrários, muito, mas muito.

A 15.10.34, de novo:

Anda para a minha escola, aprende com o teu Jesus o amor ao silêncio, a humildade, a obediência e o abandono. Anda para os meus Sacrários: estou sozinho, tão ofendido, tão desprezado, e tão pouco visitado! Anda, prostrar-te diante de mim, pede-me perdão pelo teu desânimo e pela tua desconfiança.

Alerta nos meus Sacrários! Estou sozinho em tantos, tantos! Passam-se dias e dias que me não visitam e não me amam e não me desagravam! (28.10.34)

No dia 1.11.34, escreve:

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Outra ocasião disse-me o meu Jesus:

— Minha filha, minha querida, ó minha amada: estou contigo; amo-te tanto!

E pediu-me que O amasse também muito; mas que não queria só o meu amor: que fizesse com que outros O amassem também. Pediu-me que fixasse a minha morada nos seus Sacrários. Que queria muitas guardas fiéis prostradas diante dos Sacrários, para que não deixassem lá cair tantos e tantos crimes. Que ao menos eu O amasse e reparasse.

Nosso Senhor disse-me para eu fazer um contrato com Ele: eu ir consolá-Lo e amá-Lo em todos os Sacrários e Ele me consolaria a mim em todas as minhas aflições e necessidades.

Eu disse a Nosso Senhor: a quem vou eu consolar? Ao meu Criador, ao meu Amor, ao Rei do Céu e da Terra?!...

E Nosso Senhor disse-me:

Que tens tu com isso? Escolhi-te assim. É debaixo da tua grande miséria e de teus crimes que Eu escondo a minha grandeza, a minha omnipotência e os raios da minha glória. Anda para os meus Sacrários, repara no meu silêncio, na minha humildade, no meu abatimento. Faz que Eu seja amado por todos, no meu Sacramento de amor, o maior dos meus Sacramentos, o maior milagre da minha sabedoria.

Disse-me também — prossegue a Alexandrina a 8.11.34 — que me dizia como à Madalena: que eu escolhi a melhor parte. Amar o meu Coração, amar-me Crucificado é bom; mas amar--me nos meus Sacrários, onde me podes contemplar, não com os olhos do corpo, mas com os olhos da alma e do espírito, onde estou em corpo e alma e divindade, como no Céu... Escolheste o que há de mais sublime. O tempo passa, o tempo é breve e Eu te escolho um lugar no Céu muito pertinho de mim, assim como na Terra escolheste estar junto de mim, nos meus Sacrários.

CAPÍTULO 7

AS LIÇÕES

1934-1935

Conhecido o Mestre e indicada a Escola, venham as lições.

Uma das mais insistentes que o Mestre lhe dá refere-se às disposições da Discípula, para bem O ouvir e aprender: o desprendimento do mundo, o silêncio. É essencial na pedagogia divina este silêncio; já o lembra o Espírito Santo, quando diz que leva a alma à solidão, para aí lhe falar ao coração.

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Mas oiçamos a Alexandrina:

Tenho momentos que me sinto tão abatida e sem nenhum fervor! E, pensando eu na minha indignidade, diz-me Nosso Senhor que escolhe os fracos, para os tornar fortes e que é debaixo das minhas faltas que Ele esconde o seu poder, o seu amor e a sua glória. Pede-me para eu esquecer o mundo e me entregar toda a Ele:

— Abandona-te nos meus braços que Eu te escolherei os caminhos. (27.9.34)

Nosso Senhor diz-me que quer que eu morra para o mundo e o mundo morra para mim. Ele é que é o mundo para quem eu hei de viver, e em quem hei de pensar, amar e imitar; que nele encontro todos os tesoiros. (4.10. 4)

Eu às vezes digo assim: ó meu Jesus, eu quero ser toda vossa e só para Vós quero viver. E o meu Jesus diz-me assim:

— O minha querida filha, Eu quero que sejas toda, toda minha e que só para mim vivas e que só a mim ames e só a mim procures. (26.10.34)

Quantas vezes Jesus lhe manda aprender esse silêncio e desprendimento no Sacrário!

Mas o que o Senhor mais lhe inculca, para que ela o compreenda, viva plenamente, é a missão a que a destinou desde toda a eternidade: a missão de vítima pelos pecadores. Longe iríamos se transcrevêssemos de suas cartas tudo o que a este ponto se refere. Algumas passagens ao menos. Já acima vimos como ela, sem saber como, se ofereceu a Nosso Senhor como vítima. De longe começara o Espírito Santo a despertá-la e a orientá-la para esta missão. Até que a 6.9.34, lhe dirige pela primeira vez o célebre convite a que ela se refere, em carta ao director espiritual, nos termos seguintes:

Vou fazer também um grande sacrifício, Nosso Senhor bem o sabe e V. Rev.cia também faz uma ideia do quanto me custa; mas antes de o fazer, ofereci-o ao meu bom Jesus.

Quinta-feira, dia 6, o Sr. Abade veio trazer Nosso Senhor a uma doente, minha vizinha e ao mesmo tempo trouxe também para mim. Depois de comungar, não sei como fiquei: estava fria, parecia que não sabia dar graças. Mas louvado seja o meu bom Jesus: não olhou para a minha indignidade nem para a minha frieza. Parecia-me ouvir dizer:

— Dá-me as tuas mãos que as quero cravar comigo,

dá-me os teus pés que os quero cravar comigo,

dá-me a tua cabeça que a quero coroar de espinhos, como me fizeram a mim;

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dá-me o teu coração que o quero trespassar com a lança, como me trespassaram a mim.

Consagra-me todo o teu corpo, oferece-te toda a Mim, que te quero possuir por completo e fazer o que me aprouver.

Foi isto bastante — continua ela — para me ter tido muito preocupada. Não sabia o que havia de fazer. Calar-me e não dizer nada? Parece-me que o meu Jesus não queria que eu ocultasse isto. Isto repetiu-se na sexta-feira e hoje dia de Nossa Senhora (dia 8 de Setembro), assim como a (recomendação da) obediência em tudo, como já expliquei a V. Rev.cia.

Este convite do Mestre vai repetir-se amiudadas vezes, por exemplo, em Outubro (carta de 11.10.34):

Quando Nosso Senhor me pede o meu corpo, quando chega à coroação de espinhos, diz-me:

— Que dores horríveis Eu senti quando me coroavam de espinhos! Perdi tanto sangue, tanto inútil! Fiquei exausto de forças. As minhas carnes despedaçadas; até a minha beleza desapareceu. E no meio de tantos algozes, queres, minha querida filha, participar comigo de toda a minha Paixão? Oh, não me dês uma negativa: ajuda-me na redenção do género humano!

Este convite, tão vibrante e tão claro foi aceite generosamente, mas essa crucifixão irá, nas suas realizações, até grandes extremos, como veremos, sobretudo daí a quatro anos. Por isso, o trabalho de Jesus agora é confirmá-la, adestrá-la para o perfeito cumprimento dos seus divinos desígnios.

Minha filha, minha filhinha, se soubesses o bem que te quer a Providência; se soubesses como és amada no Céu pela Santíssima Trindade!

Corresponde a este amor. Anda para os meus Sacrários. Vive lá. É de lá que vem a força para tudo. Ama-me muito; pensa só em mim. Deixa o mundo e tudo o que nele existe que é nada.

A missão que te confiei são os meus Sacrários e os pecadores; elevei-te a tão alto grau. É o meu amor. Por ti serão salvos muitos, muitos, muitos pecadores; não pelos teus merecimentos, mas por mim que procuro todos os meios para os salvar. (20.12.34)

Já a 15.12.34, ouvia ela:

Sê a minha vítima de reparação pelos pecados do mundo e assim me consolarás muito. Peço-te o sacrifício de vires passar parte desta noite comigo, nos meus Sacrários. Tem pena de mim; tem pena do Prisioneiro do Amor, nesta quadra

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em que sou tão ofendido! Anda formar com as tuas dores um abrigo sobre os meus Sacrários, para que não venham sobre Mim os crimes. Eu te prometo grande recompensa. Nossa Senhora e a Santíssima Trindade ficam-te muito agradecidos.

E pediu-me — continua ela — que guardasse silêncio o mais que pudesse. Eu atendi ao pedido de Nosso Senhor e que bela noite eu passei! Até depois da meia-noite estive alerta: cantava, rezava, pedia ao meu Jesus que me desse a bênção de todos os Sacrários do mundo.

E estamos no ano de 1935.

No dia 4.1 — escreve ela ao director — pouco depois da sagrada Comunhão, falava-me Nosso Senhor e dizia-me:

— Queres encontrar-Me, minha filha? Procura-me no teu coração e na tua alma. Habito lá a penetrar em ti mais e mais o meu amor e a santificar-te mais. O teu coração é o meu sacrário e a ti é sempre nos meus Sacrários que Eu te quero encontrar a pedir-me pelos pecadores, e quero que me digas muitas vezes que és toda minha.

Se soubesses como Me consolas! E como acodes aos pecadores só em Me dizeres que és minha vítima!

A minha paga é o meu amor e um lugar no Céu tão lindo, tão lindo, muito perto de Mim, muito unidinha a Mim. Se tu pudesses vê-lo, seria o bastante para a tua morte: morrerias de alegria. Não penses em nada deste mundo que não és dele. Ama-Me muito. Olha que te confio os meus Sacrários e os pecadores.

Para mais despertar a sua generosidade, Jesus repetidíssimas vezes lhe mostra o estado do mundo: pecado, pecado e mais pecado!

Minha filha — diz Jesus a 3.1.35 — o sofrimento e a Cruz é a chave do Céu. Sofri tanto para abrir o Céu à Humanidade, e para tantos é inútil!

Dizem: quero gozar, não vim ao mundo para mais nada. Quero satisfazer as minhas paixões.

Dizem: não há inferno! Eu morri por eles e dizem que não Me mandaram; e contra Mim dizem heresias e proferem blasfémias.

Eu para os salvar escolho as almas: ponho-lhes sobre os ombros a cruz e sujeito-me a auxiliá-las. E feliz da alma que compreende o valor do sofrimento! A minha Cruz é suave sendo levada por meu amor.

E disse-me Nosso Senhor — prossegue ela — que se eu sofresse alegre e resignada por seu amor todos os sofrimentos

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que Ele me enviasse, que abriria o céu a milhares e milhares de pecadores.

Disse-me também que mandasse dizer a V. Rev.cia, que nesta quadra eram mais as almas que se perdiam do que as que se salvavam. Que queria guerra aberta contra o pecado da impureza, que era com que o inferno estava mais povoado.

Em carta de 27.1.35:

No dia 13, das 8 às 9 da noite, estava a rezar a estação ao Santíssimo Sacramento e já me parecia que Nosso Senhor me falava. No fim fiz a comunhão espiritual e então dizia-me Nosso Senhor:

— Ouve, minha filha, e atende ao pedido do teu Jesus: anda fazer-me companhia nos meus Sacrários, nesta noite, nestas horas em que Eu sou mais ofendido.

Não me deixes sozinho, tem pena de Mim! Anda com essas tuas dores e com as tuas orações sustentar o braço da minha justiça, prestes a cair sobre os pecadores, que ainda para alguns o baixarei sem castigar; mas para muitos não! Muitos no pecado e daí a poucos momentos no inferno!

Eu morri por eles e por eles dei o meu sangue e por eles fiquei nos Sacrários há tantos séculos; e lá estarei até ao fim. Mas eles desprezam as minhas graças: triste verdade!

Lições como estas repete-as o Mestre divino constantemente. Em resumo: Deus ininterrupta e horrorosamente ofendido; a Paixão de Cristo misticamente renovada a cada instante; os pecadores a caírem sem cessar no inferno, aos montes , como nuvens de mosquitos . Remédio para desagravar a Deus, consolar a Cristo e salvar ainda muitos milhares de pecadores? — As almas-vítimas a orar incessantemente e a sofrer generosamente, em união com o único Redentor, com Cristo Crucificado e imolado no Altar.

Mais que nunca, preciso de vítimas do meu amor, para sustentar o braço da minha justiça, e tenho tão poucas!... Ainda que tivesse muitos milhares de vítimas, ainda era pouco para tantos pecados e crimes. (1.11.34)

Mas o Mestre não ensina só quando lhe fala e a consola, mas também com os silêncios que se vão tornando cada vez mais prolongados.

A 21.2.35, assim escreve ela:

Desde o dia 14 ainda Nosso Senhor me não tornou a falar. Mas eu estou conforme com tudo o que for da sua santíssima vontade. Bendito Ele seja. Ao menos não me faltam os desejos de O amar cada vez mais e de O fazer amado e conhecido de todos os corações.

Oh, que desejos eu tenho que Nosso Senhor seja amado por todos, como eu própria O queria amar! E como me sinto bem,

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quando digo a Nosso Senhor: não me poupeis a mim os sofrimentos e sacrifícios e poupai aos pecadores as penas do inferno.

Bom proveito este tirado das lições recebidas.

A 2 de Maio encontramos um silêncio mais longo:

Passaram-se 14 dias sem que Nosso Senhor me falasse; procurei fazer em tudo a sua santíssima vontade e proceder sempre como se ouvisse a sua divina voz, passando os dias unida o mais que me é possível ao meu querido Jesus Sacramentado. E que consolação para a minha alma quando chega a noite e vejo que não tenho tido grandes distracções. Toda e tudo o que se passar em mim ofereço a Nosso Senhor, tanto de noite como de dia; e muitas vezes digo a Nosso Senhor: ó meu Jesus, eu não vos quero sozinho nem um momento nem de dia nem de noite, em todos os lugares onde habitais sacramentado. Quero viver sempre unidinha a Vós.

Jesus interrompe nesse 2 de Maio o silêncio. Quando a Alexandrina lhe dizia:

Ó meu bom Jesus, vinde à minha alma. Não desprezeis a minha indignidade; vivei em mim!

Nosso Senhor assim lhe respondia:

Ó minha filha, sempre em ti vivo. Escuta o teu Jesus: anda passar parte da noite nos meus Sacrários.

Contempla-os; pede-me pelos pecadores, nas horas em que tantos dormem e tantos me ofendem. Sê a minha vítima. Vela comigo.

Assim pedi aos meus discípulos. Não durmas tu: sê-me fiel no que te peço. Vou enriquecer-te dos meus tesoiros, dos meus frutos. Vou encher-te dos meus dons. Vela comigo. Faz-me companhia com os Anjos, nos meus Sacrários. Oferece-te-Me como vítima.

Oh, como Me consolas! Eu habito em ti. Finjo abandonar-te, mas nunca te abandono.

Mas daí a pouco voltava o silêncio.

Parece que Nosso Senhor se escondeu de mim por completo — escreve a 23.5.35.

— Faz amanhã quinze dias que Nosso Senhor me não tornou a falar; e não me tenho confessado nem comungado. Tenho grandes desejos de receber o meu querido Jesus e muito O queria receber sequer mais uma vez, neste bendito mês de

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Nossa Senhora. Mas o que hei de eu fazer? Seja feita em tudo a vontade do meu bom Jesus.

Estes silêncios eram uma nota do bom aproveitamento da discípula.

É chegado o tempo que deposites em mim toda a tua confiança — dizia-lhe o Mestre a 30.5.35.

E mais adiante, a 25.8.35:

É porque te apanhei firme no meu amor.

E a cerração vai sendo cada vez mais densa:

O meu amado Jesus, agora, esconde-se muito — desabafa ela a 25.7.35 — deixa-me lutar com os meus sofrimentos que, sem cessar um momento, me vão consumindo o meu pobre corpo. Que consolação para mim é sofrer!

Ainda a 3.10.35:

Nosso Senhor escondeu-se de mim, mas escondeu-se a valer. Bendito Ele seja e faça-se a sua santíssima vontade. Eu não aspiro a outra coisa senão a que seja feita em tudo e sempre. Eu só queria morrer de amor. Queria ser a vítima da Eucaristia. Assim o digo ao meu querido Jesus, que quero ser vítima por Ele em todos lugares onde Ele habita sacramentado. E que consolação ser vítima do amor de Jesus, para lhe acudir aos pecadores! E como é consolador dizer a Jesus:

— Eu sou a sentinela dos vossos Sacrários, assim como o soldado é a sentinela do seu quartel; só com a diferença que o soldado muitas vezes cumpre obrigado e com medo ao castigo; mas eu quero cumprir e ser fiel por amor doido a Jesus Sacramentado.

CAPÍTULO 8

A DISCÍPULA

1934-1935

Dissemos do Mestre, da escola e das lições. E que dizer da discípula e do seu aproveitamento?

A Alexandrina prima, antes de mais nada, na grande qualidade de todo o bom discípulo:  a docilidade. Quantas vezes, nos nove anos que de perto a tratámos, pudemos apreciar quanto a Alexandrina era dócil. Indicação que se lhe fazia, lição que se lhe dava, era pronta, rigorosa e perseverantemente executada.

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Esta docilidade brotava espontânea da sua nunca desmentida humildade. Ficou bem demonstrado este ponto, para todos os que a trataram de perto, a sua humildade que cresce na proporção das graças que Deus lhe comunica e das maravilhas que nela opera e é, por isso mesmo, uma das garantias dessas graças e dessas maravilhas.

Já vimos como a sua primeira preocupação, ao escrever por obediência as suas notas biográficas, foi deixar bem claro os seus "defeitos", as suas "maldades". A luz de Deus incidia fortemente na sua alma, iluminava-lhe bem o seu nada, o nada da criatura humana, por isso coisa nenhuma a desvanecia nem a fazia sair da sua pequenez. Era com toda a sinceridade que escrevia a 26.10.34:

Vou contar-lhe o melhor que me for possível o que se passa na alma da mais indigna de todas as criaturas.

Ou então, quando, ao pedir ao director orações, acrescenta:

Eu também nunca o esquecerei, mas as minhas orações são muito pobrezinhas, porque é muito grande a minha miséria. (28.2.35)

E a 9.5.35:

Parece-me que não há ninguém no mundo como a mim (sic); que não há ninguém tão pecadora como eu, nem que tão mal sirva a Nosso Senhor. Parece-me que não tenho fervor nenhum...

Ó meu Jesus, eu não sei como agradecer-vos tantos benefícios, eu que não sou digna de levantar os olhos para o Céu, nem de vos chamar pelo dulcíssimo nome de Pai, e sou por Vós tão beneficiada!

Muito obrigada, meu Jesus, muito obrigada, meu Jesus! Eu vos agradeço de todo o coração. (4.7.35)

E esta humildade não só não se desmente, mas vai crescendo sempre na medida das graças extraordinárias, como já notámos; é um dos frutos das purificações místicas, como ensina São João da Cruz.

Em 1938, a 6 de Janeiro, por exemplo, vê-la-emos exclamar:

A minha alma está muito atribulada. Tremendas dúvidas me afligem. Eu tenho nojo de mim! Sinto-me abandonada de todos (era esta a impressão da sua alma), mas conheço bem que todos me deviam deixar e fugir espavoridos de mim.

E em 19.1.39, ao ver que já começava a ser conhecida, assim desabafava:

Ai, meu Padre, quanto esta pobrezinha sofre! Eu queria esconder-me por completo e não queria que o meu nome fosse falado nem enquanto viva, nem depois da morte! Claro está: não sou eu que quero; é a tribulação que me consome.

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Não mereço ser falada; sou digna de desprezo. Vivo uma tristeza e noite continua.

E, a 25.3.39, escreve ao director espiritual e diz:

Peço-lhe, por caridade, meu Paizinho, que se convença que não há no mundo uma miséria como a minha, um nada como o meu. Digo-lhe isto com as lágrimas a correrem-me pelas faces: acredite, é a realidade.

Mas não antecipemos, pois estamos entre 1934 e 1935. Ainda deste período algumas passagens que nos revelam não só a sua humildade, mas o seu amor incondicional ao sofrimento.

Já em 1933, a 31 de Dezembro, escrevia:

Bendito seja Nosso Senhor que me mandou a este mundo para sofrer e passar tantos desgostos e eu acrescentei tantos e tantos pecados! São esses que mais me afligem por tanto desgostarem a Nosso Senhor. Os sofrimentos, todos os dias os peço e sinto-me com grande consolação espiritual nas horas em que mais sofro, por me lembrar que tenho mais que oferecer ao meu Jesus…

A 8.3.34:

Não são os sofrimentos que me afligem, porque todos os dias os peço a Nosso Senhor e Lhe peço também que me não abandone, nem um momento, porque bem sei que sem Ele nada podia sofrer; o que me aflige mais é o muito, muito que O tenho ofendido!

Não esquecer que a Alexandrina nunca cometeu nenhum pecado mortal.

Um mês depois repete, a 7.4.34:

Mas no meio de todos os meus sofrimentos, eu sinto grande consolação espiritual, porque vejo que de todos os pedidos que faço a Nosso Senhor, conheço que neste ponto sou bem atendida; oxalá o meu querido Jesus se digne conceder-me todos os mais que lhe peço e que O não ofenda pedindo-lhe graças tão grandes, sendo a maior de todas as pecadoras.

A 20.12.34, prosseguem mais intensos estes sentimentos:

Os meus sofrimentos continuam a ser cada vez mais, mas eu não temo, porque o meu querido Jesus sofre comigo; antes pelo contrário, me sinto alegre e satisfeita, porque aumentando-me os sofrimentos, melhor posso acudir aos pobres pecadores e desagravar a Nosso Senhor.

E não há, por assim dizer, sofrimentos que a cansem. Com efeito, lemos a 23.5.35, depois de passar uma noite toda de dores:

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Ó meu Jesus, quem me dera passar assim todas as noites, para melhor vos acompanhar em todos os lugares onde habitais sacramentado! Eu convosco tudo podia.

Mas saboreemos esta página sublime de 16.11.35:

Que grande dia foi hoje para mim, que dia de tanto sofrimento! Espero que foi também de muita consolação para o meu querido Jesus, que O devia desagravar muito tantos e tantos crimes que Ele recebe e ajudando-o com tantos sofrimentos a salvar-lhe as almas dos pecadores. Se eu pudesse fechar as portas do inferno com os meus sofrimentos! Assim o repito a Nosso Senhor: ó meu Jesus, a cada nova dor e nova aflição, novos actos de amor para os vossos Sacrários e novos ferrolhos e fechaduras para as portas do inferno, para que força nenhuma de pecado jamais as possa abrir.

Faz-me preocupação — prossegue ela — não saber agradecer a Nosso Senhor tanto amor ao sofrimento e tantos e tantos benefícios que me concede. Por caridade, peço que louve e bendiga a Jesus por mim. Deu-me Nosso Senhor a pérola mais preciosa, a riqueza maior que me podia dar neste mundo.

Como é feliz quem sofre com Jesus!

Se eu O não tinha ofendido tanto, era completa a minha felicidade. Mas apesar de O ter ofendido muito, ainda me parece que não há ninguém mais feliz do que eu.

Sofrer por amor; sim, por amor, porque conheço que amo a Nosso Senhor no meio dos sofrimentos. Muito sofro, mas muito mais quero sofrer. Mas não amo a Nosso Senhor com amor que me satisfaça; é por isso que me lamento que O não sei amar. Continuo no mesmo estado de alma e no mesmo abandono em que Nosso Senhor se dignou ter-me.

Com tal Mestre e tais lições, com tanta docilidade e humildade, e com essa graça extraordinária de amor aos sofrimentos, não admira que tenha saído da Escola da Eucaristia Discípula tão aproveitada, vivendo em grau heróico os ensinamentos de Jesus. Tão aproveitada que ficou mestra:

Ontem, dia 14 (de Março de 1935), das nove às dez da noite — escreve a Alexandrina — depois de fazer a comunhão espiritual, falava-me Nosso Senhor assim:

— Anda, minha filha, ouve-me. Se soubesse como Eu te amo!

Mas não é possível compreenderes o meu amor. Eu estou a experimentar-te! Eu sei até onde chegam as tuas forças. Mas faço isto, para que, depois de ti, fiquem as lições: para se saber como me comunico às almas que escolho para tão alto fim.

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No dia 8.12.34, em que renovou para toda a vida o seu voto de virgindade, dizia-lhe Jesus:

De hoje por diante serás acumulada de muitos e grandes benefícios; serás uma escora firme para sustentar o braço da minha justiça, prestes a cair sobre esses infelizes pecadores.

Anda para os meus Sacrários. Seja a única morada do teu espírito. És a vítima das minhas prisões.

E Jesus multiplica os termos de bondade com que acaricia a sua discípula:

Meu lindo amor! Companheira dos meus Sacrários! Meu Céu na Terra!

A 29.12.34, escrevia ela:

Disse-me Nosso Senhor que me queria no Céu, mas que precisava de mim na Terra.

Por isso só morreu daí a 21 anos, a 13 de Outubro de 1955.

Em 24.12.38, após a Comunhão, há de Nosso Senhor afirmar que "a vida dela deve ser bem claramente mostrada ao mundo, para que, mesmo depois da sua morte, as almas sigam o seu caminho e a imitem, para que mesmo do Céu seja canal delas". E, já antes, a 16.3.38:

Diz ao teu Padre: Eu que quero que ele conheça bem o amor com que tu Me amas, para o dar a conhecer ao mundo, porque é de muita glória para Mim e proveito para as almas…

CAPÍTULO 9

NO CADINHO DA PURIFICAÇÃO

1935-1936

Os últimos meses de 1935, passou-os a Alexandrina em exercício cada vez mais árduo e difícil das lições recebidas pelo Mestre Divino. Jesus não perde tempo; trabalha bem a sua vítima e desperta nela primeiramente uma grande pena de ver Deus ofendido.

Não me canso — lemos em carta de 19.9.35 — de oferecer (a Nosso Senhor) as minhas dores para O consolar e desagravar dos pecados do mundo. Eu não lhe posso explicar a pena que tenho de Nosso Senhor ser ofendido.

Lembro-me tanto das ofensas que Jesus recebe! Sinto tanto, tanto esses ultrajes! Quem me dera a mim poder impedir com as minhas dores, de se abeirar de Jesus essa imundície de pecados que a cada momento se comete!

Como se paga um tão grande amor, com uma tão grande ingratidão? Como pode haver coragem, depois de conhecer a

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Nosso Senhor, considerar o que Ele sofreu por nós e ver que é o nosso querido Paizinho do Céu tão amável e tão bom, o melhor de todos os pais, e voltar a ofendê-lo tão repetidas vezes e tão gravemente!

Nosso Senhor continua a ter-me no mesmo abandono e nas mesmas trevas ou maiores ainda. Parece-me que se escureceu o Sol e que se fez noite em minha pobre alma. Tudo se escondeu para mim. Que momentos tão tristes e tão aflitos eu passo e muitas vezes sem saber pelo quê. Em algumas ocasiões, figura-se-me que tenho sobre mim todos os crimes do mundo.

Este último sentimento frequente nas almas verdadeiramente vítimas de expiação, atingirá nela, como veremos mais tarde, extremos incomensuráveis. Entretanto, no meio de grande abandono espiritual, agravam-se-lhe os sofrimentos físicos a tal ponto, que chega a ser sacramentada.

Em carta de 26.9.35, lemos:

Cada vez me sinto pior. Sofro muito, tanto física com moralmente. Continuo no mesmo abandono; Nosso Senhor está bem escondidinho de mim.

Sábado à noite confessei-me; recebi a Nosso Senhor por Viático e também recebi a Extrema-Unção. Foi muito por minha vontade, porque temia morrer sem os Sacramentos.

Parecia-me não fazer nada bem; estava fria: não sabia agradecer a Nosso Senhor tantos benefícios. Enfim, parecia que era uma coisa deitada ao esquecimento.

No Domingo de manhã, o Sr. Abade, antes de partir para a Póvoa, voltou a trazer-me Nosso Senhor, mas eu fiquei como se não comungasse. Sabe o que me fez lembrar? Foi a cidade de Jerusalém, quando traziam Nosso Senhor em triunfo e ela se mantinha fria. Mas faça-se a vontade de Nosso Senhor. Penso bem que Ele, apesar da minha grande indignidade, tem atendido aos meus pedidos.

Eu costumo dizer-lhe assim: ó meu Jesus, crucificai-me convosco; santificai-me, meu bom Jesus, à vossa santíssima imagem de Cristo Crucificado.

Fazei-me participar de toda a vossa santíssima Paixão.

Não me engano: o meu Jesus ouviu-me. Na sua santíssima Paixão não foi Ele abandonado e não sentiu tristeza mortal? Mil vezes Ele seja bendito que tanto se abeirou e cobriu de benefícios esta grande pecadora que tão mal sabe corresponder a tanto amor e bondade.

No meio desse abandono, intensifica-se a conformidade com a vontade do Senhor. A 26.10.35:

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Parece que Nosso Senhor me quer privar de tudo. Bendito Ele seja. O que eu quero é amá-lo e consolá-lo muito, sofra eu o que sofrer... Que me importam a mim as consolações, se Jesus está comigo e me dá forças para tudo sofrer e estou a fazer a sua santíssima vontade? É o que eu procuro e desejo sempre fazer. Eu queria desagravar muito a Nosso Senhor e desviar dele todos os crimes do mundo.

Que pena tão grande eu tenho de meu amado Jesus! Como Ele é ofendido nesta minha miserável freguesia! Pobre Jesus! E o que será por esse mundo fora! E Nosso Senhor é tão bom e sofreu tanto por nosso amor!

Eu também quero sofrer tudo, tudo quanto Nosso Senhor me enviar, por seu amor e para lhe salvar almas, muitas almas.

Toda esta biografia nos mostrará quanto Nosso Senhor vai aproveitar estas ofertas da sua vítima, na variadíssima maneira como a vai imolar.

Desde já lemos que a desolação prossegue cada vez mais temível:

O dia de Todos os Santos (carta de 4.11.35) foi muito atribulado para mim. Logo pela manhã sentia a impressão de aparecer diante de Nosso Senhor sem nada: de mãos vazias. Fazia-me lembrar um mendigo que não tem uns tristes andrajos para se cobrir: eu também não tinha nada para a minha pobre alma. Parecia-me que não tinha coração para amar a Nosso Senhor e sentia a impressão que mo separavam de mim, mas não sei como era.

Ontem voltei a sentir o que já há tempos tinha dito a V. Rev.cia: de repente me pareceu que estava carregada com todos os pecados do mundo: que todos os crimes eram meus. Mas eu não sei explicar como é que sinto isto.

E a 7.11.35:

Parece que cada dia me vai desaparecendo tudo cada vez mais. Parece que mais se escurece aquele Sol divino que tanto aquecia, iluminava e dava força à minha pobre alma...

Mas paciência! Quero sofrer tudo, por amor do meu amado Jesus e para lhe salvar muitas almas. Foi esta a missão que Nosso Senhor me confiou neste mundo, não é verdade? Como é bela e consoladora a oração do Padre-nosso! Faça-se a vossa vontade assim na terra como no Céu! Seja esta minha maior consolação, saber que estou a fazer a vontade do meu querido Jesus, que tanto tem amado esta pobre e miserável pecadora.

Como o meu querido Jesus se tem dignado ter-me num abandono tamanho! (lê-se 28.11.35) Eu não me sei explicar: não sinto consolação nenhuma em nada, nem mesmo quando comungo. Estou insatisfeita; apetece-me chorar, mas ainda

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não chorei. Vou falando eu para o meu Amado e tenho a certeza que Ele lá no íntimo da minha alma não deixará de ouvir os meus pedidos e aceitar as minhas ofertas. No meio de todo este abandono, muitas vezes me passa pela mente o faça-se a vossa santíssima vontade em tudo e sempre! O que eu quero é consolar muito o meu Esposo Sacramentado, ainda que para mim não haja nenhuma consolação; pois que assim levo a luz a muitas almas e eu queria salvá-las todas.

Pobres pecadores, tanto queria que não fosse mais nenhum para o inferno!

O Natal desse ano passou-o em grande aflição; revela-o a carta de 26.12:

... Outra coisa me preocupa muito: parece-me que sou daquelas criaturas que passam os dias e as noites sem se lembrarem de Nosso Senhor e sem nada sofrerem pelo seu divino amor; enfim que não tenho merecimento nenhum diante do meu querido Jesus. Não sei como possa ser isto, pois, desde que cheguei ao uso da razão, não me lembra de passar dia nenhum sem que me lembrasse de Nosso Senhor. Numa palavra: não sei explicar o que se passa em mim. São estas as consolações que o Menino Jesus me envia. Pedi-lhe para passar a Noite de Natal mal e Ele fez-me a vontade. Passei-a aflita e no meio de muitos sofrimentos. Estendia-lhe o braço e dizia-lhe: — crucificai-me à vossa santíssima vontade. Crucificai-me a mais não poder ser (sublinhamos a generosidade desta oferta), nestes últimos dias que me restam de vida e nesta noite tão santa, mas em que Vós sois tão ultrajado!

Ai, que saudade eu tinha do Céu; mas dizia assim:

Ó meu Jesus, eu queria estar no Céu a assistir à festa do vosso nascimento, mas ainda me quereis aqui: está bem. Eu não tenho outra vontade a não ser a vossa, nem outros desejos que não sejam os vossos também...

E assim fui passando a noite a fazer companhia a Nosso Senhor.

O novo ano desliza nos mesmos ou maiores abandonos e sofrimentos, mas com novas ânsias de mais sofrer pelos pecadores. Referindo-se ao muito que lhe custa falar para ditar a carta, diz a 7.1.36:

Digne-se Nosso Senhor aceitar tão grande sacrifício que estou a fazer para a conversão dos pecadores. Tanto me preocupam as almas desses pobres pecadores! Tenho tanta, tanta pena das alminhas deles! Lembrar-me que uma vez perdidas, ficam perdidas para sempre! Que tristeza! Não posso deixar de sofrer tudo e oferecer todos os sacrifícios para a salvação deles e para desagravar o meu querido Jesus.

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Quando por alguns momentos eu me ponho a contemplá-lo crucificado e O vejo tão mal tratado, então redobro de pena e o meu coração enche-se de dor e tristeza, ao recordar que a cada momento Ele é horrivelmente crucificado!

Meu Padre: sofro muito. Muitas vezes o meu corpo, com tantas dores e já tão enfraquecido, parece não poder resistir mais: parece morrer. Mas o meu espírito, no meio de tudo isto, vive ainda, Deus seja louvado. Vive com grande ansiedade de sofrer cada vez mais, para assim consolar e desagravar Aquele que tanto me ama e morreu por mim. E assim, sem nem um momento de consolação, eu vou vivendo no meio de trevas e abandono, mas sempre nos braços de Jesus, a fazer-lhe sentinela aos seus Sacrários, em toda a parte onde Ele habita sacramentado. Digo-lhe assim:

Ó meu Jesus, se eu me distrair ou dormir, ou vierem sobre Vós os crimes do mundo, chamai-me com grande aflição e fortes dores, para eu ir em vossa defesa, não deixar abeirar das vossas prisões de amor os pecados do mundo. Eu quero viver e morrer nos vossos santíssimos braços, mas sempre a consolar-vos, a amar-vos, fazer-vos companhia e desagravar-vos.

Nosso Senhor satisfaz-lhe generosamente os desejos de sofrer. É ela que o lembra a 15.1.36:

O meu querido Jesus ainda se não deu por satisfeito, na minha crucifixão. Atende bem aos meus pedidos de me aumentar os meus sofrimentos.

Além das enormes dores que me torturam, sinto de novo parecer-me que estou suspensa no ar, como quem anda num bambuão abaixo e acima, para um lado e para o outro e causa-me grande aflição em todo o corpo. Também me têm aumentado muito os sofrimentos do braço esquerdo. Bendito seja Nosso Senhor; faça-se a sua santíssima vontade que também é a minha.

Mas unindo aos sofrimentos do corpo os da alma, é que são elas! Só com a força divina é que eu posso resistir.

Este abandono completo em que o meu amado Jesus se digna ter-me, custa-me, mas custa-me muito. Não ter um momento de luz nem de consolação espiritual! Mas nada de temer. Muita confiança no meu amado Jesus que me não abandonará e que hei de subir vitoriosa até ao alto do Calvário.

Transcrevamos ainda da carta de 5.3.36 algumas passagens ardentes de amor a Cristo e de zelo das almas:

Se fosse possível eu sofrer todos os sofrimentos do mundo, contanto que Nosso Senhor fosse amado por todos, eu não me recusava. Digo isto muitas vezes a Jesus:

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Quem me dera poder-vos consolar, dizendo-vos: Vós não sois mais ofendido, nem vos vão mais almas para o inferno; Vós sois amado e conhecido por todos.

Oh, sim: eu quero sofrer muito, para que o vosso sangue não seja derramado inutilmente por nenhumas almas...

Na noite de 22 de Fevereiro, passei tão mal que pensava ser a última... No meio deste grande sofrimento disse a Jesus:

Ó meu Jesus, quanto mais sofrimentos, mais actos de amor para os vossos Sacrários, maior prova de amor para convosco. Sim, maior prova de amor, porque os recebo alegre e satisfeita, e maior aumento da minha confiança em Vós que me haveis de alcançar tudo quanto vos peço para as pessoas que me são tão queridas e para os pecadores...

No meio de tanto sofrer, pronunciei o Magnificat em acção de graças por tanto sofrer. Abraçava o meu Crucifixo e dizia:

Crucificai-me, meu Jesus, a valer; fazei-me semelhante a Vós, fazei-me participar da vossa santa Paixão.

E pedia a Nossa Senhora que O ajudasse a crucificar-me e dizia-lhe também: alerta, alerta: estou alerta. Eu sou a sentinela de Jesus Sacramentado. Para longe de Vós os crimes do mundo.

E agora, de novo o sentir-se carregada com os crimes do mundo. Encontramos na carta de 16.3.36:

Ontem de manhã senti uma tristeza tão profunda! Parecia-me ver-me cercada e sobrecarregada não sei de quê. Figurava-se-me que ouvi dizer:

— Que peso enorme de pecados tens sobre ti! E sobretudo a ira, a grande ira, toda a ira de Deus! O que tu tens que pagar!...

Eu ofereci-me toda a Nosso Senhor. Dizia-lhe:

Meu Jesus, dou-me toda a Vós, para vos pagar quanto me seja possível, até ao último alento, até que eu dê o meu último suspiro e entregue nas vossas divinas mãos a minha alma, para vos bendizer, louvar e amar por toda a eternidade.

Ó meu Jesus, sede comigo; não me abandoneis. Eu sou nada, nada, mas confio em Vós.

Todo este capítulo nos mostra eloquentemente que o principal na vida da Alexandrina não são consolações espirituais, êxtases contínuos de amor beatífico, visões, revelações, mas a participação cada vez mais intensa nos sofrimentos de Cristo, com o que não só atinge — e

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bem depressa — a total purificação do sentido e do espírito, mas ao mesmo tempo, e sobretudo, desagrava a Nosso Senhor como vítima e O ajuda a salvar almas.

Mas por muito que estas páginas nos digam dos seus grandes e variados sofrimentos, estamos por ora, apenas no vestíbulo, como iremos vendo.

CAPÍTULO 10

O DIA DA SANTÍSSIMA TRINDADE DE 1936

O ano de 1936 fica assinalado por dois factos importantes na vida da Alexandrina: a sua primeira morte mística e o pedido à Santa Sé da Consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria.

Quanto ao primeiro, é de notar que, inúmeras vezes, Nosso Senhor, para a encorajar nos sofrimentos, lhe prometia levá-la em breve para o Céu. E, por isso, a Alexandrina vivia sempre na ânsia e na expectativa desse momento tão desejado. Referindo-se ao dia 16 de Junho de 1935, festa da Santíssima Trindade, repete ela as palavras que ouviu a Nosso Senhor:

Minha filha, é hoje festa tão linda no Céu! A esta não assistes, mas assistirás a todas as outras, por toda a eternidade.

Perto de um ano depois, a 26.3.36, lemos:

Penso se chegará em breve o dia, para mim há tanto tempo desejado, em que Nosso Senhor se digne vir-me buscar para o Céu.

Dois meses mais tarde, a 14 de Maio, diz:

Não sei se o meu Paizinho (era assim que habitualmente tratava o director) se lembra de o ano passado, no dia da Santíssima Trindade, Nosso Senhor me dizer:

— Não assistes a esta festa, mas assistirás a todas as outras, por toda a eternidade.

A minha ideia é se nesse dia já estarei no Céu, mas não sei os desígnios de Nosso Senhor.

Oportuna e prudente foi esta sua última observação, pois nem sempre é fácil discernir com certeza de antemão, o perfeito significado das profecias.

Apesar disso, foi-se-lhe gravando no espírito o pensamento de que morreria pela Festa da Santíssima Trindade e assim, nas suas notas autobiográficas, relata nestes termos o estranho caso:

Em 1935, Nosso Senhor preveniu-me que morreria antes da Festa da Santíssima Trindade de 1936. Como não conhecia

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outra morte, pensava que era deixar este mundo e partir para a eternidade...

Nesse tempo tudo eram mimos, consolações e alegrias espirituais. À medida que se ia aproximando a dia da Santíssima Trindade, aumentava a minha alegria e contentamento. Ia passar no Céu a festa dos meus três amores (como lhe chamava), Pai, Filho e Espírito Santo.

Os males do corpo iam aumentando e tudo dava sinal da minha partida. Dois dias antes, Nosso Senhor disse-me que morreria das 3 às 3,30 da manhã e que mandasse vir o meu Pai Espiritual. Assim o fiz.

Ele chegou ao cair da tarde… Preparei-me para morrer. Sua Rev.cia fez comigo o acto de inteira resignação e conformidade com a vontade de Deus. Pedi perdão à minha família e pus-me a cantar de alegria assim (muito esmorecidamente e baixíssimo) :

Feliz, Oh ! feliz,Se eu tal conseguiaMorrer a cantarO nome de Maria !

Feliz quem mil vezes,Na longa agonia,Com amor repeteO nome de Maria !

A aflição ia aumentando e, à hora marcada por Nosso Senhor, não sei o que senti, deixando de ouvir o que se passava à volta de mim. O meu Pai Espiritual e a minha família rezaram o ofício da agonia. Acenderam uma vela benzida e meteram-ma nas mãos, mas eu já não dei por isso e assim estive algum tempo. Julgavam-me quase morta e choravam por mim.

Nessa altura já ouvi os choros dos meus; principiei a respirar e pouco a pouco reanimei-me; mas ainda debaixo do mesmo estado, pensei: estais a chorar e eu sempre morro...

Estava sempre a ver quando aparecia na presença de Nosso Senhor. Não tinha pena por deixar o mundo e os meus entes queridos.

Quando via que ia melhorar e que não se cumpriam as palavras de Jesus (no sentido em que ela as tomara) caiu sobre mim uma tristeza que não se pode calcular e um peso esmagador. Eram horas de o meu Director se retirar, não tendo tempo de me dizer umas palavrinhas de conforto.

Passei a festa da Santíssima Trindade como uma moribunda e dentro em mim tudo era morte. As lágrimas corriam, as dúvidas eram quase insuportáveis, porque (pensava ela) não só me tinha enganado no que dizia respeito a este dia, isto é, à morte, como também em tudo quanto Nosso Senhor me tinha dito antes deste dia. Nos dois primeiros dias a seguir, parecia-

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me que todo o mundo estava morto. Não havia Sol, nem Lua, nem dia para mim. Era quase insuportável o meu viver.

Aproximavam-se de mim a Deolinda e a Sãozinha, únicas pessoas que sabiam do caso e diziam-me:

— Não falas para nós, não te ris?...

Eu respondi:

— Retirai-vos de mim; já não sou a mesma. Jamais me vereis rir: não haverá Sol que me alumie…, e chorava.

Debaixo da minha amargura, falava-lhes de tal forma, que elas não tinham mais que me dizer.

Estavam as duas a combinar ir uma delas ter com o meu Director Espiritual quando, de repente, apareceu o Sr. Padre Dr. Oliveira Dias, que vinha, em nome do meu Pai Espiritual, confortar a minha alma. Sua Rev.cia tinha-lhe contado tudo e, como não pudesse vir pessoalmente, pois estava em pregação, compreendendo bem o meu sofrimento, tratou de me aliviar. Sua Rev.cia, o Sr. Padre Dr. Oliveira Dias esclareceu-me o caso, contando-me várias passagens que se tinham dado com alguns Santos e desde então fiquei a saber que se tratava de morte mística, da qual nunca tinha ouvido falar.

O Sr. Padre Dr. Oliveira Dias pareceu-me um anjo que veio do Céu serenar a tempestade da minha alma. Continuei a viver muito atribulada, pois Jesus pareceu morrer também, ficando alguns meses sem ouvir a sua divina voz. Quando aumentava a agonia da minha alma, recordava os casos que me tinham sido contados e animava-me com o que me dizia o meu Pai Espiritual.

Mais tarde, a 4.6.39, dia da Santíssima Trindade, há de Jesus dizer-lhe, referindo-se a essa morte mística:

Matei-te tudo, há três anos, para poderes viver.

Este acontecimento, que para a Alexandrina foi o ponto mais cerrado desta sua noite escura, para o director espiritual foi luz decisiva sobre um assunto em que até então não acabava de ver claro. E é o segundo facto importante neste ano de 1936.

Trata-se da Consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria. A primeira referência a este assunto encontramo-la em carta de 1.8.35. Nosso Senhor ter-lhe-ia dito que, assim como por meio de Santa Margarida (?) pediu a consagração do mundo ao seu Divino Coração, assim agora por meio dela pedia a consagração ao de sua Mãe.

Não ligámos por então importância a esta parte da carta, pois era a época, como ela afirma acima, dos mimos e das consolações espirituais, e são tão fáceis nessas circunstâncias os equívocos e enganos a respeito do que se experimenta na alma...

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Mas agora é treva cerradíssima e sofrimentos ininterruptos que a têm constantemente entre a vida e a morte. As cartas para o director interrompem-se durante quatro meses e tanto. Quem manda notícias é a sua irmã Deolinda ou a sua amiga Sãozinha.

De 26 a 30 de Agosto de 1936, o director prega em Balasar um tríduo e teve então oportunidade de atender a doente com mais vagar. Num desses dias, Nosso Senhor interrompeu o longo silêncio de mais de quatro meses e vem confortá-la:

Minha filha, com estes teus sofrimentos tens-me salvado muitas almas. Ora pela minha querida Espanha (grassava então na Espanha a guerra civil comunista). Vês o castigo de que Eu tantas vezes te falei? Estender-se-á a todo o mundo, se não se faz penitência e se não se convertem os pecadores.

E depois acrescentou Nosso Senhor:

Porque é que as minhas ordens se não cumprem? Não dei Eu já sinais de sobra ao teu Pai Espiritual que é o meu Espírito que te guia?... Eu quero que o mundo seja consagrado à Minha Mãe Maria Santíssima; é o remédio para tantos males que o ameaçam.

Manda-lhe então o director que, se Nosso Senhor lhe tornar a falar, lhe pergunte se quer que o pedido se faça directamente a Roma, ou como? A resposta não se fez esperar:

Que escreva directamente para Roma a comunicar este desejo de Nosso Senhor.

Passados uns doze dias, tornava Nosso Senhor a dizer-lhe, referindo-se à revolução comunista em Espanha:

Este flagelo é um castigo; é a ira de Deus. Eu castigo para os chamar; a todos quero salvar. Morri por todos. Eu não quero ser ofendido e sou-o tão horrorosamente na Espanha e em todo o mundo. Corre tanto perigo de se espalharem estas barbaridades!

E logo, como que recordando onde estava o remédio, acrescentou:

Eu vou dizer-te como vai ser feita a Consagração do mundo à Mãe dos homens e minha Mãe Santíssima; amo-a tanto! Será em Roma pelo Santo Padre consagrado a Ela o mundo inteiro e depois pelos Padres em todas as Igrejas do mundo...

Pareceu-lhe então ao director que não devia hesitar mais e em 11.10.36 escreveu ao Emº. Cardeal Pacelli, Secretário de SS. Pio XI, uma breve carta, expondo sucintamente do que se tratava, deixando à prudência do Emº. Secretário de Estado do Papa comunicar ou não a Sua Santidade o caso.

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CAPÍTULO 11

ENTRE A VIDA E A MORTE

1936-1937

Após a "Morte Mística" de que falámos, seguiram-se meses de sofrimentos físicos atrozes e quase ininterruptos, por mais de um ano. Pena é que, nessa altura, a Alexandrina não tivesse ainda a assistência assídua e dedicada que mais tarde, de 1941 até à morte, lhe vai proporcionar a Providência na pessoa do distinto clínico Dr. Manuel Augusto Dias de Azevedo. Poder-nos-ia esclarecer se todo esse sofrer o deveríamos atribuir a meras causas naturais ou se não andaria aí já bastante clara a acção preternatural a purificar, a imolar cada vez mais totalmente a vítima de eleição.

Pelo que então presenciámos e a descrição que encontrámos nas cartas dessa época, assim nos inclinamos a crer.

Contra o seu costume, deixa a doente de ditar as cartas para o director espiritual: não pode. Quem escreve durante esse período, sobretudo de 18.2.37 a 17.6.37, é a sua irmã Deolinda, que a seu modo, tenta revelar-nos o que são esses sofrimentos indizíveis de sua irmãzinha.

Oiçamo-la, por exemplo, a 15.7.36:

Já que a minha irmãzinha não pode, cá estou eu outra vez a dizer alguma coisa do que durante estes dias tenho presenciado e o que ela a custo me tem dito.

Quanto aos sofrimentos físicos são tantos e tão grandes que os não sei explicar. Só admiro, e pessoas que a visitam também admiram, como ela pode sofrer tanto e por tanto tempo: vê-se bem que só por milagre de Nosso Senhor é que ela pode viver. Várias vezes no dia, dão-lhe umas aflições tão grandes e umas tremuras tão fortes que quem está ao lado parece que lhe ouve os ossos a estalar.

A este estalar ou esticar dos ossos, a que se refere a Deolinda, assistimos nós mais de uma vez e pudemos apreciar a grande aflição em que a Alexandrina ficava. Deste género de sofrimento místico fala São João da Cruz, na sua "Noite Escura". Dir-se-ia que Deus não deixa órgão ou ponto nenhum no organismo sem o purificar deveras e o imolar pela dor.

A essas dores juntavam-se as do espírito, como a seguir nota a Autora da carta:

Diz-me a Alexandrina que todo aquele contentamento que sentia no sofrimento, lhe desapareceu: que era a única coisa que tinha para oferecer a Nosso Senhor a cada momento. Agora, que lhos continua a oferecer, mas que não vê neles proveito para ela, nem para os pecadores, nem consolação para Nosso Senhor e que isto lhe causa grande aflição na alma. Como Nosso Senhor lhe fez sentir tanta coisa, para tudo lhe tirar... Mas termina sempre com o... faça-se a vontade de Nosso Senhor!

Vemos aqui, nesse sintoma, bem indicada a morte ou a noite extrema do sentido: agora nem o grande gosto que sentia em sofrer lhe resta; mas permanece o principal e cada vez em mais

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alto grau: a vontade, o querer, o amor espiritual, e por isso mais sobrenatural, a todo o sofrimento que Deus lhe envia. É por isso mais puro esse sofrer.

Meses depois, a 18.2. 37, escreve a mesma benemérita secretária da Alexandrina, a Deolinda:

A Alexandrina está pior; desde o dia 15 em diante que ela fala pouco; as falas que dá é só com grande sacrifício e só muito ao pé dela é que se ouvem... Custa-lhe a mexer todos os membros do corpo, mas principalmente o lado esquerdo. Tem a perna esquerda muito inchada; calça-se com uma almofada e causa-lhe muita aflição ter que mexer com ela.

Hoje disse-me que estava tão doente, tão doente que só lhe faltava morrer; e ansiosa por isso está ela. Às vezes diz-me assim:

— Nosso Senhor demora-se tanto a vir-me buscar. Mas parece-me que agora não deverá tardar. Dentro em breve estarei nos Anjinhos; e de lá contai comigo que hei de alcançar tudo de Nosso Senhor. Ele há de fazer tudo o que eu lhe pedir, porque eu também nunca lhe digo que não. Bem sei que Ele é quem me dá coragem para tudo sofrer.

Passado um mês, a 18.3.37, diz ainda a Deolinda:

Ela tem piorado cada vez mais. Não sei se poderá ser possível agravar-se mais o seu sofrimento. Continua a ter os pés muito inchados; e tem tanta aflição neles e tantas dores que várias vezes no dia me pede para pegar neles nas minhas mãos, a ver se alivia um pouco. E depois diz-me assim:

— Olha como eu imito a Nosso Senhor!...

Tem piorado muito da bexiga com dores horríveis e com muito sangue...

Estou a escrever junto do leito dela, donde pouco posso sair nem de dia nem de noite. E por algumas vezes com custo tenho reprimido as lágrimas, vendo-a a sofrer tanto, tanto e não saber o que lhe hei de fazer...

Mas, graças a Deus, continua a sofrer muito resignada, com grande ansiedade que chegue o dia de ir para o Céu. Ontem à noite disse-me:

— Agora parece que sempre é certo Nosso Senhor vir-me buscar.

E hoje disse-me:

— Eu não vou morrer, vou viver. Vou para a minha Pátria. A minha Pátria não é esta, é o Céu.

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E eu também me parece que sim, que se aproxima o fim. Ai, meu Jesus, não sei como nos havemos de separar uma da outra!

E repete a 22.3.37:

A Alexandrina está tão doentinha! Quase não sossega nem de noite nem de dia. Pede-me para a puxar para um lado e para o outro e, não encontrando posição para estar, diz assim:

— Ó meu querido Amor, Vós ainda sofrestes mais do que eu!

Às vezes também diz:

— O que se passa no meu corpo, só Deus o sabe; e basta que Ele só o saiba...

Mas apesar de tudo isto, ainda conserva como de costume, o sorriso nos lábios e ainda diz a Nosso Senhor:

— Mais, meu Jesus, mais! Tudo quanto vos aprouver enviar-me!

E só deseja que se cumpra a vontade de Nosso Senhor em tudo, e sempre. Diz-me ela para mandar dizer a V. R. que a alma não é menos crucificada que o corpo. Que pensa se Nosso Senhor, na sua infinita sabedoria, ainda encontrará mais meios de a afligir. E que finge tudo tirar-lhe, que até lhe parece que não é amada por Nosso Senhor, nem por Nossa Senhora; mas que tem toda a confiança que é.

A 1.4.37:

Sábado de Aleluia, pelas oito horas da manhã, pensámos que morria.

Deu-lhe uma aflição tamanha que, se demorava muito tempo, ela não resistia. Principiou-lhe por dores horríveis nos rins e na bexiga, não deixando que ela se pudesse mexer para parte nenhuma; depois principiou em vómitos, mas não vomitava nada.

No meio desta aflição ela pedia-me para lhe dar o Crucifixo a beijar e repetia:

— Ó meu querido Amor, Vós ainda sofrestes mais do que eu!

Eu repetia com ela algumas jaculatórias, para ela acompanhar com o pensamento. Também mandámos chamar o Sr. Abade, mas ele não estava. Durante todo o dia nunca mais saí de ao pé dela, nem para comer...

Às vezes diz-me assim:

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— Eu tenho tantas dores e parece que não sofro nada. Sou tão rabugenta! Não sei sofrer caladinha...

É tal às vezes a aflição interior que ela sente, que diz-me assim:

— O que eu fui e o que eu sou! Dantes ainda tinha algum conserto e ainda era amiga de Nosso Senhor; agora não tenho conserto nenhum; não rezo: não sou nada amiguinha de Nosso Senhor...

A carta de 26.4.37 diz-nos que desde o dia 23 começou a não comer nada, nem mesmo água pode beber. É que principiou a não poder mastigar nem engolir nada. O que mais lhe custou nessa fase, foi não poder comungar, pelo mesmo motivo, pois vomitava tudo o que tentava engolir.

A carta de 3 de Maio atesta ainda que continua sem comer; portanto já há dez dias que dura esse jejum rigoroso. Dir-se-ia tirocínio para o que há de vir mais tarde, durante treze anos e meio.

Ainda não tornou a tomar nada — diz a irmã — senão alguns goles de água fria ou algumas colheres de chá e isso mesmo lhe causa dores horríveis desde a boca até o estômago e ainda lhe passam para as costas. Diz ela que Nosso Senhor ainda sofreu mais: que também teve sede na Cruz e que lhe deram a beber fel e vinagre. Diz-me que dizia a Nosso Senhor que lhe queria matar a fome e a sede que Ele tem de amor no Santíssimo Sacramento e essa sede que nunca lha pode apagar e que a dela em breve será saciada...

A Alexandrina assim resumirá mais tarde em suas notas biográficas todo este período em que deixou de comer:

Em fins de Abril de 1937 passei por uma grande crise que me levou às portas da morte. Principiei a vomitar de dia e de noite nada conservando no estômago. Nos primeiros dias fiquei em profunda prostração... O Sr. Abade leu-me as orações da agonia por três vezes... Havia talvez um ano que recebia diariamente a Nosso Senhor... Neste período da minha doença, não sei se de manhã se de tarde, vi entrar no meu quarto o Sr. Abade e conhecendo-o disse-lhe:

— Eu quero receber a Nosso Senhor.

Ele respondeu-me:

— Sim, minha menina, vou buscar-te uma hóstia por consagrar e se a não vomitares, trago-te Nosso Senhor.

Assim o fez. Logo que a engoli, a vomitei. Sua Rev.cia estava para desistir de me trazer Nosso Senhor e alguém disse:

— Sr. Abade, uma hóstia por consagrar não é Jesus.

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Foi então que se resolveu a ir buscar uma consagrada. Recebi-a e não a vomitei. Nunca mais deixei de receber Jesus Sacramentado, por causa desses vómitos...

Logo que recebia a Jesus, cessava os vómitos, nunca voltando antes de passar meia hora. Como era assim, o Sr. Abade nunca temeu em me dar a Comunhão. A crise durou bastante tempo, mas durante 17 dias estive sem tomar nada, absolutamente nada. A minha medicina foi Jesus.

CAPÍTULO 12

PRIMEIRO EXAME POR ORDEM DA SANTA SÉ

1937

Dissemos acima como o director espiritual da doente de Balasar, para descargo de consciência, se resolveu finalmente a escrever para Roma, ao Emº. Cardeal Pacelli, sobre o pedido da Consagração do mundo a Nossa Senhora.

O resultado foi que, meses depois, o Sr. Arcebispo Primaz de Braga, D. António Martins Júnior, em cuja diocese morava a Alexandrina, recebia da Sagrada Congregação do Santo Ofício essa carta escrita ao Emº. Cardeal, com o pedido de mais informes sobre o caso e o autorizado parecer do Prelado. Sua Ex.cia Rev.ma chama o director espiritual, interroga-o miudamente e pede-lhe um relatório por escrito.

O Venerando Prelado de Braga deve ter respondido para Roma, porque logo veio ordem para a Nunciatura de Lisboa, para que mandasse examinar a enferma por outrem que não o director espiritual. A Nunciatura encarrega o Provincial dos Jesuítas, R. Padre Paulo Durão, de determinar alguém para essa incumbência e ele escolheu seu irmão, Padre António Durão, também jesuíta e hoje já falecido.

A 31 de Maio de 1937, a irmã da Alexandrina escreve:

Acabámos de receber aqui a visita de um Sr. Padre, que por sinal parecia muito santo. Trazia um cartão de V. R. que dizia para a Alexandrina lhe falar à vontade; e foi bom, porque ela diz que, se não fosse o cartão, não lhe dizia nada do que ele queria saber. Ele disse-lhe ao que vinha e de mando de quem vinha.

Diz-me ela que lhe respondeu com toda a franqueza e simplicidade. Que Nosso Senhor a não levou ainda, porque lhe queria mandar mais esta prova, que tanto lhe custou. Se o sacrifício que fazia para dizer as coisas ao Paizinho era grande, para as dizer a este que nem ao menos o tinha visto antes, foi ainda muito maior. Não lhe disse tudo, porque era impossível em tão pouco tempo e o pouco que lhe disse foi com grande esforço, porque V. R. bem sabe quanto lhe custa falar. Diz ela também que para estas coisas já é um pouco tarde, porque não tem a cabeça em condições. Para ela que lhe é indiferente tudo isto; só o que quer muito é que seja feita a vontade de Nosso Senhor...

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Mas a própria Alexandrina exarou mais tarde, na sua autobiografia, este exame. Oiçamo-la a ela:

Em 31 de Maio de 1937, recebi a visita do Rev.mo Sr. Padre (António) Durão. Vinha mandado da Santa Sé para examinar o caso da Consagração do mundo a Nossa Senhora. O meu desejo era viver ocultamente, sem que ninguém soubesse o que se passava. Sua Rev.cia entregou a minha irmã um cartão do meu Director Espiritual e disse-lhe que mo lesse. Ao ouvir as palavras do cartão que eram assim:

— Vai aí o Sr. Padre Durão; fale-lhe à vontade e responda-lhe a tudo o que ele lhe perguntar.

Fiquei aflita e disse para minha irmã: que hei de eu dizer-lhe? Não sabia que eram precisos estes exames para casos destes. Minha irmã animou-me e disse-me:

— Dirás o que Nosso Senhor te inspirar.

Fiquei surpreendida, quando me fez perguntas das coisas de Nosso Senhor; mas, sem a mais pequena hesitação, comecei a responder as suas perguntas. Sua Rev.cia disse-me que só queria que lhe dissesse o principal, pois não me queria cansar, visto ser grave o meu estado. Respondi-lhe que não sabia o que era o principal. Sua Rev.cia disse-me assim:

— Gosto disso, gosto disso.

E foi quando me falou da Consagração do mundo a Nossa Senhora. Depois de me fazer várias perguntas com muito bom modo, disse-me:

— Não se enganará?

Ao ouvir estas palavras, passou-me pela mente o engano da minha morte e pensei assim: isto é contra mim, vou já dizê-lo. Então respondi: enganarei... e contei-lhe o que se tinha passado na festa da Santíssima Trindade, em 1936. Sua Rev.cia não mais me disse se estaria enganada e falou assim:

— Estas coisas custam muito, não custam?

Respondi: custam e fico triste; e comecei a chorar.

Sua Rev.cia pediu-me para não o esquecer nas minhas orações e prometeu nunca me esquecer no santo Sacrifício da Missa. Ajoelhou-se, rezou três Ave-Marias a Nossa Senhora e algumas jaculatórias, despediu-se de mim e retirou-se.

No dia seguinte escrevia ele à doente o seguinte cartão:

Senhora Alexandrina

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Venho agradecer a sua Mãe e a Si e a sua Irmã a bondade com que me receberam ontem nessa casa. Venho pedir desculpa também do grande incómodo que causei, certamente a pesar meu e por dever de consciência. Já hoje na Santa Missa recomendei suas intenções. Hei de continuar a pedir a Nosso Senhor para que se faça a sua vontade santíssima, naquilo que Ele deseja da Alexandrina. Pela minha parte procurarei não pôr obstáculo à mesma vontade divina.

Entreguemo-nos totalmente a Deus. A cruz pode ser às vezes pesada. Mas Jesus está-nos vendo! E depois temos a eternidade! A graça divina não nos há de faltar, mesmo sem nós a sentirmos. Recomendo-me às orações de todos para eu não ser indigno discípulo de Jesus.

Ínfimo servo no Coração de Jesus: Padre António Durão Alves.

Mais tarde, o R. Padre Provincial, informando o Padre espiritual da doente do trâmite que o caso estava tomando, declarou-lhe que seu irmão, o Padre António Durão, após o exame da Alexandrina, tinha ficado bem impressionado e lhe parecia tratar-se de um caso sério.

Em 1939, virá outro exame também por ordem da Santa Sé, feito por Mons. Vilar; mas não antecipemos, porque estamos ainda em 1937.

CAPÍTULO 13

LUTAS COM O INFERNO

1937

Ensina São João da Cruz, no capítulo XIV do livro I da Noite Escura, que as almas a quem Deus quer levar à divina união de amor, as faz passar por graves trabalhos e tentações sensíveis, que duram muito tempo, embora nuns mais que noutros.

Porque é dado o anjo de Satanás, que é espírito de fornicação, a alguns, para que lhes açoite o sentido com abomináveis e fortes tentações.

(Obras Espirituais do Doutor Místico São João da Cruz — Carmelo de São José, Fátima, pág. 448 e ss.)

Querendo Deus levantar a tão alta união a sua Alexandrina, não admira que a tenha provado com este género de tentações, como aconteceu também à angélica Santa Gema Galgani. E essas tentações vieram precisamente na época em que pior se sentia de saúde e pouco depois do primeiro exame mandado fazer pela Santa Sé. Dir-se-ia que o inferno raivava contra a Consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria.

Já de longe que os demónios a vinham acometendo sensivelmente de muitas maneiras: fantasmas, vozes, ameaças, palavras blasfemas e obscenas... Mas nunca lhe tinham tocado. Agora, depois de a ameaçarem muitas vezes, que vão dar cabo dela, chegam por fim a esse extremo e de modos formidandos.

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Não havia hora do dia, por assim dizer, que mais ou menos se não sentisse vexada por eles, mas sobretudo do meio-dia às três da tarde, e à noite, das nove em diante. Será porque tinha costume de oferecer o tempo que vai do meio-dia às três da tarde pelos Sacerdotes? Pelo menos, alguma vez o demónio, ao dar-lhe o assalto, começou assim: "Esta é a hora dos patifes!" As horas da noite oferecia ela de modo particular pelas impurezas do mundo.

Nesses dois ataques maiores diários, dava-se não só verdadeira obsessão diabólica, mas até instantes de possessão, a nosso ver. A algum assistimos nós, por exemplo a 7 de Outubro de 1937. Em tais lutas, ela entrevada e torturada de dores, esgotada de forças, pesando uns 33 quilos, tão violentamente tentava despedaçar-se contra os ferros da cama, morder-se, etc. que nem quatro pessoas conseguiam dominá-la de todo. Isto presenciámos nesse dia; e o demónio levava-a a dizer blasfémias e palavras inconvenientes de que nem ela mesma sabia o sentido, como nos declarou.

Para chegarmos à absoluta certeza de que não estávamos a contemplar um ataque de histeria mas um ataque diabólico, imperámos em latim:

In nomine Jesu, dic mihi: tu quis es? (Em nome de Jesus, diz-me : tu quem és?)

Respondeu imediatamente, sem hesitação nenhuma:

— Sou Satanás e odeio-te!

Para maior certeza, demos outra volta à frase, sempre em latim e a resposta foi também imediatamente esta:

— Sou eu, sou eu, não duvides!

Oiçamos porém a própria Alexandrina, na sua biografia, a dizer-nos em síntese essa tribulação:

Se a vida material melhorou, nesta altura redobraram os ataques do demónio que há meses me vinha ameaçando. Foi em Julho de 1937, que o "manquinho" (expressão popular para designar o demónio) não satisfeito de me atormentar a consciência e de me dizer coisas demasiadamente feias, principiou a atirar-me abaixo da cama de noite e a qualquer hora do dia. Ao princípio até para as pessoas de casa fui encobrindo, menos para a minha irmã, passando por ser aflição do coração. A pouco e pouco o mal foi aumentando e teve que o saber a minha Mãe e uma pequena que vivia connosco. Quem observava os tombos que eu dava abaixo da cama mostrava-se muito pesaroso, não supondo nada do que se tratava.

Passavam-se os dias e o mal aumentava sempre. Uma noite atirou-me para o chão, passando por cima da cama de minha irmã que ficava junto de mim. Ela levantou-se pegando em mim ao colo e dizendo:

— Anda para a tua caminha.

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Mal ela me deitou, levantei-me rapidamente e dei uns assobios. Reconhecendo imediatamente o mal que tinha feito, principiei a chorar e disse para a minha irmã: ai, o que eu fiz!

Ela sossegou-me dizendo:

— Não te aflijas, que não foste tu.

Na noite seguinte voltou a acontecer o mesmo e disse-lhe em voz alta: — não me deito — afastando-a de mim... Quando reconhecia que fazia mal, chorava.

Uma noite que eu passei com o mafarrico as coisas piores que se podiam imaginar e que tudo desconhecia e ignorava, chorava amargamente e pensava não receber o meu Jesus, sem me confessar. Nesse dia o Sr. Abade não estava na freguesia, para me vir trazer Nosso Senhor; mas pensava quanto me custaria ter que dizer que não comungava sem me reconciliar, com receio que o Sr. Abade me perguntasse a causa e ter de lhe dizer tudo, tudo e não querer abrir-me com ele.

Minha irmã, ao ver as minhas lágrimas, procurava consolar-me por todas as formas. Como nada conseguisse, disse-me que à tarde iria falar com o meu Director Espiritual que se encontrava a fazer uma pregação numa freguesia vizinha à nossa. Disse-lhe que nada adiantava, pois não lhe diria a ela o que se tinha passado. Pedi-lhe um postal de Nossa Senhora e com grande sacrifício descrevi por maior o sucedido, guardando-o debaixo do travesseiro, até que chegasse a hora de o ir entregar.

De repente entrou no meu quarto o meu Director, acompanhado por um seminarista, trazendo-me Jesus-Hóstia para eu receber. Como soubesse que estava para banhos o nosso Pároco, teve a boa lembrança de me trazer Jesus.

Quando Sua Rev.cia me disse que trazia Nosso Senhor para eu receber, respondi-lhe: não posso comungar sem me confessar.

As lágrimas e a vergonha não me deixavam falar. Com muito custo disse que tinha escrito um postal e que o guardava sob o travesseiro, O meu Director tomou-o, leu-o e tudo compreendeu, sossegando-me e dizendo-me que tudo previa em face de tudo quanto se tinha passado, mas não me tinha prevenido de nada.

Foi tremenda esta tribulação que se repetiu por várias vezes. Tinha ataques muito furiosos duas vezes por dia: pelas nove ou dez da noite e depois do meio-dia, durando cerca de uma hora ou mais. Durante os ataques sentia em mim toda a raiva e furor do inferno. Não podia consentir que me falassem em Nosso Senhor e na Mãezinha, nem podia ver as suas imagens, cuspindo-as e calcando-as aos pés. Também não podia consentir junto de mim o meu Director; chamava-lhe nomes, queria espancá-lo e tinha-lhe uma raiva de morte, assim como a algumas

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pessoas de casa. Ficava com o meu corpo denegrido com as pancadas e a escorrer sangue com as mordeduras. Também dizia palavras muito feias para quem estava junto de mim.

Hoje (escreve ela uns quatro anos depois, dessas coisas se terem passado) gostava que muita gente presenciasse, para temerem o inferno e não ofenderem a Jesus.

Depois que passava a influência do demónio e recordava tudo o que tinha feito e dito, sentia horrorosos escrúpulos: parecia-lhe ser a maior criminosa. Foram meses de doloroso martírio. Muito tinha que dizer sobre este assunto, mas não posso. A minha alma não resiste ao relembrar tais sofrimentos.

Citemos ainda alguma carta dela para o director em que se refere a este ponto, por exemplo, a de 30.8.37:

Têm-se repetido aqueles combates tão tremendos que só o meu Padre sabe, principalmente um, logo na noite a seguir ao dia que veio.

Ó meu Jesus, que coisa horrível! E ainda me dizia o maldito:

— Praticas tão horrendos crimes e queres passar por boa, por inocente. É a paga de tudo contares àquele intrujão (o director).

E mais coisas ainda. E atirou comigo abaixo da cama; mas o meu querido Jesus não me abandonou: veio em meu auxílio. Ainda antes de O ouvir falar, sentia uma grande paz. E dizia-me então Nosso Senhor:

— Quem poderá dar-te a paz que Eu te faço sentir? Coragem; é tua a vitória. É impossível (quer dizer: não permitirei) ofenderes-me.

Eu não posso dispensar-te de tão tremendos ataques, de tanta reparação para Mim. Que tesoiros de graças para Eu derramar sobre os pobres pecadores! Descansa em paz dentro do meu Coração. Os Anjos bons te defenderão dos maus. Recebe, meu anjo, as carícias do teu Jesus.

Se eu viver até estar com o meu Padre, lhe explicarei tudo melhor e desabafarei à vontade. Quando era meia-noite já estava livre do maldito. Que horas tremendas! Diz o meu querido Jesus e V. Rev.cia, em quem eu tenho toda a confiança, que não ofendo a Nosso Senhor. De contrário era impossível convencer-me que com tais coisas pudesse passar sem O ofender...

Ordinariamente, logo após estes combates, como vimos acima, vinha Nosso Senhor a confortá-la, dar-lhe coragem para a luta e a restituir-lhe a paz que o demónio lhe roubava com as indecências que lhe sugeria e dizia. É particularmente nestes momentos que Jesus lhe mostra maiores ternuras e a trata com os termos mais delicados. Assim os descreve ela a 24.9.37:

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Na noite de 16 (depois de um desses combates), falou-me Nosso Senhor assim:

— Minha filha, tomei-te para os meus braços para te defender; e todas as vezes que seja preciso, Eu te defenderei. Aceitei a tua oferta de te dares a Mim; tomei-a bem à letra. Consolou-me muito a simplicidade com que te ofereceste. Escolhi-te para mim ainda no ventre de tua Mãe, para que dentro em pouco, e bem depressa chegou, te pudesse chamar minha esposa. Eu e tua Mãe Santíssima olhamos-te com predilecção, pelos caminhos pedregosos e medonhos por que tiveste que passar. Fui Eu quem tos destinei, para que agora pudesse ter assim uma vítima de tanta reparação. Repousa contra o meu Coração; aqui encontras tudo: luz para poderes caminhar, força para tudo suportares e amor para tudo sofreres.

Minha filha, tem dó do teu Jesus: não durmas; desagrava-me dos pecados que a esta hora se estão cometendo. Faz-me companhia nos meus Sacrários: estou tão só.

Copiemos ainda a carta de 2.10.37 que ela é bem característica:

No 1.º de Outubro, disse-me Nosso Senhor:

— Minha querida Alexandrina, vem; ouve o teu Jesus que vem a ti para te animar, para te dar força. Não te aflijas; não penses, minha querida filha, que me ofendes... Ficas bela, cada vez mais bela; pura, cada vez mais pura. És a minha querida, cada vez mais querida.

Minha filha, como Eu te amo!

Que compreenda o teu Pai Espiritual e que to diga. Que compreenda quem de direito o pode compreender. Podem fazer ideia, uma grande ideia de quanto Eu te amo: que amor sublime! Um sofrimento desta forma em cima do que tanto há vem consumindo o teu corpo!

Podem ver aqui em que conta Eu tenho as almas dos pecadoras, servindo-me de tal sofrimento, para os chamar. Não desprezo nenhuns; a todos quero salvar. Sou pai, dei todo o Meu sangue. Mas não basta: preciso dos teus sofrimentos para me ajudares.

Recebe, minha filha, as minhas carícias, descansa entre o meu santíssimo Coração e o de tua Mãezinha do Céu, que contempla com ternura, a meu lado, o teu sofrimento, mas alegre, por ver a glória que me dás, os pecadores que me salvas e o que no Céu está preparado para ti. Associa-te aos Anjos e louva-me com eles, na minha Eucaristia.

Finalmente, no dia 23.10.37, anuncia-lhe Nosso Senhor que está terminado este género de luta:

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Descansa, minha filha; acabou a guerra desta forma. Venceste tu e com grande vitória. Os demónios não tornarão a tratar-te desta forma. Atacar-te-ão horrorosamente, dolorosamente, mas de tal forma que poderás sofrer diante de todo o mundo, sem que o percebam.

CAPÍTULO 14

TREVAS DENSAS COM INTERMITÊNCIAS DE LUZ

1938

As lutas diabólicas com agressões corporais cessaram de facto para sempre; nunca mais o demónio lhe tocou até à morte. Mas o inimigo não desarma e há de até ao fim, por todos os outros meios ao seu alcance, combater a heróica vítima.

Por isso, neste ano de 1938, vemo-la ainda frequentemente atormentada com dúvidas pertinazes e sugestões de desespero.

O demónio continua numa raiva feroz contra mim – escreve a 17.2.38 – Eu digo, ou antes, é o demónio quem diz:

Estou condenada, tenho a certeza que estou condenada. Que monstro horroroso eu sou no meio do inferno! Eu não creio em nada que aquele bandido me diz (bandido é o meu Paizinho).

E eu então disse a Nosso Senhor:

Creio em tudo, meu Jesus; sois Vós quem falais nele.

A 24.3.38:

O demónio, além das dúvidas que me traz para me assustar, dos nomes e das coisas feias que me diz, vem-me muito mansinho com vaidades, com grandezas, como se eu pudesse atribuir estas coisas a mim mesma. Mas graças ao meu querido Jesus, que me dá bem a conhecer a minha miséria, a minha pobreza, que de mim própria nada tenho.

O dia de sexta-feira e sábado (carta de 25.7.38) foram tremendos. O demónio continuou a desempenhar o seu papel. Não achava graça a nada, estava dura, nada me comovia.

E acrescenta o que o inimigo lhe sugeria:

Ainda tu desapareças que nem os cabelos te apareçam! Ainda leves o caminho que leva o fumo.

Eu com muito custo, dizia: ó meu Jesus, eu amo-Vos, sou a vossa vítima!

Mas logo sentia o contrário: não sou vítima, não amo!

Eu dizia: Sagrado Coração de Jesus, eu tenho confiança em Vós!

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Mas logo o contrário: Não tenho; odeio a toda a Igreja. Sei que estou condenada e estou!...

O meu Paizinho bem deve calcular como tudo isto me fez sofrer.

Mas outra variedade de sofrimento vem agora mais intensamente a purificar e imolar a vítima: por um lado as ânsias de amor cada vez mais intensas e muitas vezes aflitivas. É o que diz São João da Cruz quando escreve:

Às vezes cresce muito a inflamação de amor no espírito; as ânsias por Deus são tão grandes na alma que parece se lhe secam os ossos nesta sede e se murcha o natural e se estraga o seu calor e força, pela viveza da sede de amor, porque a alma sente que é viva esta sede de amor. (ob. cit., pág. 433)

Fale a Alexandrina:

As ânsias de amar a Nosso Senhor continuam, mas sempre com um freio a segurá-las.

No dia 15 (15.2.38), no meio da minha grande aflição, ia desabafando em ais. Sentia necessidade de me lançar ao pescoço de alguém e ouvi que Nosso Senhor me dizia:

— Anda, minha filha, repousar no teu Jesus; entre Mim e a tua Mãezinha do Céu estás bem guardada, bem defendida. Confia no teu Jesus, no teu Esposo, no louquinho de amor pela esposinha querida, pela Alexandrina.

Minha filha, para ti o dia raiou cheio de luz, candura e pureza. Agora está o Sol-posto a declinar. É noite escura, trevas intensas. Mas breve raiará de novo, mas com que resplendor, com que pureza e candura, com que luz para brilhar eternamente!

Logo que ouvi Nosso Senhor, fiquei bem. Parece que até a minha cabeça repousava em Nosso Senhor; a minha alma ficou em paz por algumas horas.

E daí a um mês, 16.3.38:

Todo o dia tive o meu coração numa fornalha ardente no amor do meu Jesus. À noite deram-me umas ânsias muito fortes de O amar. Não pude passar sem as dar a conhecer; viu também minha mãe. Eu não queria ser vista, mas também quero que ela ame muito, muito a Jesus.

Hoje continuo a sentir o coração na mesma fornalha de amor. Comunguei, mas... fiquei tão fria, tão tíbia! Mal sei explicar-me. Sentia um vazio tão grande em mim que não havia nada que o enchesse. O tempo ia-se passando e eu naquela aflição... Por fim, falou-me Nosso Senhor:

— Minha filha, belo anjo, pérola resplandecente, estrela brilhante que fazes brilhar toda a coroa do teu Esposo, diz ao teu Paizinho:

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Eu que quero que ele conheça bem o amor com que tu me amas, para o dar a conhecer ao mundo, porque é de muita glória para Mim e proveito para as almas.

Eu quero que ele conheça bem o que tu és para mim, que és a minha esposa mais querida...

E termina esclarecendo:

A minha alma estava toda iluminada e a tanta distância só era luz. Recebi as costumadas carícias de Jesus e disse-me:

— Vai, vai, minha filha, bem cheiinha do teu Jesus e da minha divina luz para combateres.

Por algumas horas, toda a fome me foi saciada. Estava cheia, bem cheia. Que alegria, que paz eu sentia na minha alma! Só queria que os pecadores experimentassem a paz que eu sentia; a bondade e o amor do nosso Jesus. Estou certa que não O ofenderiam.

Às vezes dava-se com a Alexandrina, como remate dessas ânsias, o que Santa Teresa de Jesus chama o voo de espírito e a Alexandrina chama-lhe foguete.

Quando sinto muitos desejos de amar a Nosso Senhor, parece-me subir para o Céu, mais rápido do que um foguete (11.7.38). Vou para os braços do meu querido Jesus e da minha querida Mãezinha, perco-me neles. Não tenho mais aflição; acabam-se-me as ânsias de amor: encontrei tudo o que podia encontrar.

Dá-me um pouquinho de alívio, mas depressa vêm os sofrimentos, o estado aflitíssimo da alma. Ainda há pouquinho tempo, já desde que estou a ditar esta carta, eu sentia sobre mim todos, todos os pecados do mundo. Parece que se lançavam a mim leões e mais animais ferozes.

E eis aí indicado, nestas últimas palavras da Alexandrina, nova tortura que lhe dará imenso que padecer até ao fim da vida; aliás já a este sofrimento nos referimos anteriormente e ele é bem característico das grandes vítimas.

Numa preciosa carta de 6.6.38, encontramos esta passagem:

Tenho umas coisas tanto ao vivo na minha alma! Parece-me que não podem estar mais. Dão-me tanto, tanto que sofrer, por me parecer que lhes não posso valer. São os pecadores! O meu Jesus ser ofendido! Oh, que peninha eu tenho! E estar sozinho no Sacrário! Ai, ai, o meu Jesus! Eu quero estar, sempre, sempre com Ele. E parece que não estou; sofro muito com isto. Paciência; é pelo seu amor.

Um mês mais tarde, a 3.7.38:

Ai, ai, como a minha alminha sofre! Eu sinto tão ao vivo a tristeza de Jesus. Como Jesus chora! É como lhe disse no dia da Missa. Eu queria-O consolar; estou tão seca, tão só. Como O hei de consolar? O coração

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oprime-se. Por vezes parece não me deixar respirar. É tal a aflição da minha alma, a revolta que nela sinto, que me obriga a desabafar dizendo a Nosso Senhor:

— Ó meu querido Jesus, só com muita confiança e com o vosso divino auxílio eu posso viver assim. Mas eu quero sofrer tudo por vosso amor e para vos salvar as almas.

Outras vezes parece que morro com tanta fome, com tanta sede, com tantas saudades do Céu. Quase me parece insuportável todo este sofrimento.

Com muito custo, é certo, mas digo:

— Mais, meu Jesus, mais, mais e sempre mais. Contanto que me deis amor, amor para morrer de amor e toda queimadinha de amor!

Há um pecadinho que eu sentia que Nosso Senhor chorava na minha alma e eu disse-lhe:

— Ó meu Jesus, não choreis. Deixai-me que vos limpe as lágrimas; deixai-me chorar por Vós.

Ele então deixou de chorar e eu fiquei mais levezinha um pouquinho. Mas depressa voltei ao mesmo estado.

Muitas vezes, nestes seus sofrimentos místicos pelos pecados do mundo, sente-se como que pairando ou suspensa sobre medonhos abismos. Fale ela (11.7.38):

Tenho visto aqueles abismos do costume. Não sei bem ao certo, mas talvez fosse sábado que eu vi, como ainda não tinha visto. Naquele abismo tão medonho, dava-me a impressão que tinha toda a imundície de pecados.

Ai, meu Jesus! Que massa de gente! Que moinha corria para ele! Que movimento! Sentia a impressão que ali se praticava toda a qualidade de crimes.

Pobre Jesus, como há de poder com tanto! Mas pobres, ainda mais pobres pecadores! Quem os há de salvar?...

Eu então, como no meio de uma grande aflição, não sei donde me veio a força para me oferecer toda a Nosso Senhor. Ainda agora, quando me lembro disso, eu digo:

— Jesus, eu amo-Vos; Jesus, eu sou a vossa vítima; eu quero desagravar-vos; eu quero reparar tantos crimes.

A 12.9.38:

Os abismos continuam e neles vejo, penso, ser o demónio e o pecador amarrados um ao outro, a puxarem um para cada lado. Não sei se o demónio só os quer levar para o inferno, ou se os leva mesmo. Pobres pecadores!

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Domingo, dia 11, apenas eu recebi Nosso Senhor, apoderou-se de mim uma tristeza e um peso que parecia arrancar-me o coração. Ouvi chorar alto: mas que choro tão suave e comovedor! Assim se passaram alguns momentos. Por fim ouvi Nosso Senhor que me dizia:

— Ai, ai, minha louquinha! Ouve o teu Jesus. Eu venho a ti, não para te dar coragem, nem para te dar consolação. Venho desabafar contigo; venho derramar minhas lágrimas em teu coração. Eu não posso mais com a monstruosidade do pecador.

Penitência, penitência, em todo o mundo penitência!... Ou o mundo se levanta rápido ou na mesma rapidez será destruído. Ai do mundo! A Justiça divina não pode mais suportá-lo!

Entristece-te comigo. Vive nesta tristeza, ao menos tu que és a minha esposa mais querida, a minha vítima mais generosa. Tu não queres a consolação e o teu Jesus em sofrimento tão doloroso.

Diz depressa ao teu Paizinho, Eu que quero que isto se faça ouvir no mundo com a fortaleza do trovão e a luz luminosa do relâmpago:

Penitência, penitência, penitência! Depressa virá o dia da catástrofe!

Daí a pouco mais de um ano, rompia a guerra mundial.

Frisante é a carta de 15.8.38:

A minha alma sofre muito. Não tem descanso; nem sei bem explicar-me. Sinto que ela tem uma ânsia não sei de quê. Parece-me ir pelo mar fora sobre a água e não ter onde repousar nem um só momento. Não tem onde; mas também não quer. Está cansada, mas caminha sempre. Que ânsia fortíssima: que empresa ela tem de cuidar! Faz-me uma aflição muito grande. Não vê terra nem vê nada. Figura-se-me que toda a vida tem que trabalhar e continuar nesta ânsia.

O que será? Serão os pecadores os que me fazem assim? Creio que são. Mas o que eu quero é dá-los todos ao meu querido Jesus. Sofrer por eles na Terra, pedir por eles no Céu.

São os pecadores e, a nosso ver, o pressentimento do muito que ainda está para vir sobre ela para os salvar. Nosso Senhor está a predispô-la, cada vez mais, para a grande imolação do Calvário que se aproxima. Nesse intento sente também ao vivo na alma as torturas místicas de Cristo pelos pecados do mundo. Escreve ainda na mesma carta:

Hoje é o grande dia da Mãezinha (Assunção); não sei se por Ela, se por Jesus me quiseram aumentar os sofrimentos. Logo que comunguei, sentia um peso em mim que me parecia insuportável. Parecia arrancar-me o coração e enterrá-lo pelo chão abaixo. E eu disse logo a Nosso Senhor:

Aceito, meu Jesus, aceito pelo vosso amor e para Vos salvar as almas.

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E via com os olhos da minha alma atarem cordas à volta do meu Jesus, arrastavam-No para um lado e para outro e davam-Lhe pontapés. Atiravam-Lhe tantas, tantas setas e todas ficavam espetadas no corpo santíssimo de Jesus. Com uma coroa de espinhos cravavam também a sua santíssima cabeça, arrancando-a de um lado e espetando-a fortemente no outro. Parecia-me ler em minha alma: são os maus-tratos dos pecadores. Sofre por meu amor: salva-mos!

CAPÍTULO 15

ÊXTASES DA PAIXÃO

1938-1939

Na sua autobiografia, escreve a Alexandrina:

Sempre que ouvia falar em pessoas que iam fazer Retiro eu dizia:

Todos o fazem, só eu não.Cheguei a dizer isto várias vezes na presença do meu Director Espiritual.

De facto, alguma vez me declarou que, se eu pedisse licença ao meu Superior, ele me deixaria ir dar-lhe um retiro a ela. Não me parecia o caso muito viável, mas prometi pedir licença ao meu Provincial. Assim o fiz e em resposta recebi o seguinte cartão:

Autorizo-o a ir passar, como pede, dois ou três dias a Balasar, para atender com vagar à doentinha Alexandrina Maria da Costa. E ela que me encomende a Nosso Senhor e, comigo, a toda a Província. Paulo Durão, S.J.

Por isso, a Alexandrina acrescenta nas suas notas:

Por alto desígnio de Deus, a licença foi concedida e, a 30 de Setembro de 1938, veio o meu Padre espiritual principiá-lo (o retiro).

Mas os desígnios de Deus não eram que lhe desse um retiro, mas que fosse testemunha dos acontecimentos extraordinários que iam dar-se nesses dias.

Já há tempos — afirma ela — que sentia grandes agonias na minha alma e me vi por vezes prestes a cair em assustadores abismos.

Na verdade, desde Março de 1938 em diante que ela começou a viver num estado quase habitual de terrores, abandono, esmagamentos e agonias a que podemos chamar um prolongado Horto. Às vezes eram horas seguidas e até noites inteiras de indescritíveis angústias. Mostrava-lhe Nosso Senhor ao mesmo tempo os grandes castigos que estavam para cair sobre a Terra.

Nunca porém foram tão longe esses horrores de espírito como de 2 para 3 de Outubro desse ano. Via-se como que esmagada com o peso de todo o mundo, a terra a abrir-se como que para devorar os homens e por cima o Céu em furiosíssima tempestade, ouvindo-se constantemente uma voz terrível que a trespassava e aniquilava toda:

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— Vingança! Vingança!... Maldita, vou esmagar-te!

E ela desabafava:

Ai, ai... a ira de Deus!

Na noite de 2 de Outubro ouviu este convite de Nosso Senhor:

— Aceitas, minha heroína, um calvário mais doloroso, que Eu estarei sempre a teu lado e o teu Padre não te abandonará, para te dar forças – será o teu Cireneu?

— Sim, meu Jesus, aceito tudo, mas não queria que se soubesse.

— Nem convém: quero-te muito escondidinha. Não te aflijas: quando estiverem pessoas que Eu não quero, não te sucederá nada...

Indica-lhe então Nosso Senhor que quer que os Padres José de Oliveira Dias e Rogério Frutuoso, ambos colegas do director, venham examinar o caso.

— Então — pergunta ela a Nosso Senhor — o Sr. Padre Frutuoso não volta para a Índia? (Tinha vindo por doença à Europa e os Superiores queriam que regressasse ao seu posto de apostolado.)

— Não, não; se o não quisesse aqui, não lhe dava a doença. Preciso dele aqui para as almas. Que ele entende bem estas coisas e há poucos que as entendam...

No dia seguinte, 3 de Outubro, dia de Santa Teresinha, depois da Comunhão, após grandes aflições místicas em que se viu com Cristo no Horto, repete-se-lhe o convite:

— Aceitas, minha filha, um calvário que Eu só dou às minhas esposas mais predilectas?

E, ouvido de novo o sim generoso, anuncia-lhe então Jesus, como na véspera, que depois das 12 horas começará a sua paixão do Horto ao Gólgota e terminará às 3 da tarde. Depois ficará Ele com ela em colóquio a desabafar as suas mágoas, até às 6 da tarde.

Na verdade, tudo se realizou assim e os presentes vimos desenrolar-se o drama da Paixão do mais ao vivo que era possível: Horto... prisão... tribunais... flagelação... caminho do Calvário... Crucifixão... Morte.

Existe a descrição pormenorizada dum dos êxtases da Paixão da Alexandrina, pelo Padre José Alves Terças, publicada em 1941, no fasc. X da Vida de Cristo, pág. 319 ss. Também foram filmados alguns passos dos mesmos êxtases, que são de particular interesse para o estudo científico do estranho caso.

Os estigmas ficaram sempre ocultos, pois ela tinha pedido a Nosso Senhor que nada se percebesse. A Paixão foi violentíssima; os presentes não continham as lágrimas ante aquele espectáculo bem visível de dor.

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No colóquio que se prolongou das 3 da tarde às 6, ouviram-se, entre outras muitas, estas palavras:

— Como vos amo? (Era o que Nosso Senhor lhe dizia, por isso ela o expressa em interrogação.) No meio de tanta dor?... Ó Jesus, não foi no meio da dor que me amaste também!? Pois foi: agora, não vos havia de amar? Oh, como era injusta, meu Jesus!...

Tendes muita pena de me fazer sofrer? Mas eu ofereci-me com toda a generosidade?...

Mas Jesus, eu queria amor! Não mo dais, Jesus? Dai-me!... Não podeis dar-me mais?... Eu queria morrer de amor!

Já mo prometestes? Ao que prometeis não faltais?... Eu bem sei, Jesus.

Eu sou vossa? Sempre o fui? Então quereis-me assim tanto, tanto?

Sou vossa heroína?... Sou toda para Vós, não é, Jesus? Sou uma louquinha consumida, perdida no amor de Jesus?...

Depois desse primeiro êxtase da Paixão tão prolongado e tão doloroso, ficou vários dias sem poder comer nem beber. Experimentava tortura em todos membros e sentidos do corpo, até no olfacto, pois tinha a sensação de que tudo lhe cheirava a cães mortos.

É daí por diante sobretudo que ninguém podia pronunciar na sua presença a palavrapecador; sentia-se logo novamente esmagada e contorcia-se toda dolorosamente. Cessou de ditar cartas; só passado mais de um mês é que o torna a fazer e começam então as suas mais belas cartas.

O êxtase da Paixão realizou-se invariavelmente todas as sextas-feiras (à excepção de uma – 30.12.38), até à sexta-feira de Dores inclusive, a 27 de Março de 1942. O que nesse êxtase se lhe ouvia dizer está escrito em doze cadernos que conservamos.

Mas o melhor ainda são as cartas em que ela explicava o que durante eles lhe passava na alma. Copiamos ao menos algumas, ao acaso.

A 7.4.39:

Busco um bocadinho de alívio para o meu sofrer. Espero a hora da minha crucifixão. Nem posso falar. O coração está em marcha acelerada. É uma revolta, é uma barafunda na minha alma. O peso esmaga-me. Trevas, noite medonha e triste; estou num abandono tremendo. Figura-se-me que ando no meio de todo o ódio, de tribunal em tribunal. Pobre de mim! E não recebi Jesus: mas confio que Ele suprirá a falta nas comunhões espirituais, apesar do nojo que tenho de mim mesmo e horror à minha enorme miséria.

Ontem, a tempestade acalmou. Que horror eu sentia! O meu corpo era-me trespassado todo de um lado ao outro com agudos ferros. Que momentos tão terríveis! Apesar do bocadinho de alívio, fiquei sempre numa noite escuríssima, numa tristeza profunda.

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A noite, passei-a, posso dizê-lo, quase que toda a fazer companhia a Nosso Senhor Sacramentado e concentrava-me um pouquinho em toda a tragédia da noite. Parecia que Jesus me convidava ao Horto. Que movimento de gente! Mas tudo isto era sentido na minha alma.

Ai, meu Padre, parece que tudo isto que estou a ditar-lhe é mentira! Ai, tantas dúvidas!... Ai, ai, os medos de toda a Paixão!

Já disse à Deolinda: do modo que sinto o coração, é preciso um milagre para eu resistir. Jesus seja comigo.

Não digo mais nada que não posso.

Aqui interrompeu a carta, porque logo depois se seguiu a Paixão. Sua irmã Deolinda assim no-la descreve:

Ai, meu Padre, o que foi o dia de sexta-feira santa! É bem sexta-feira de Paixão!

Antes de principiar, ó como se via nela cara de aflição! Ela temia passar este dia! E dizia-me:

— Ai, se eu vejo este dia passado!...

Eu conformava-a quanto podia e acariciava-a; apesar de estar eu também cheia de medo e muito aflita.

Durante a Paixão eu não podia passar sem chorar e vi correr lágrimas pelas faces de quase todos os assistentes. Que espectáculo tão comovedor!

A agonia do Horto foi muito demorada e aflitiva... Ouviam-se gemidos muito profundos e por vezes via-se soluçar. Mas a flagelação e coroação de espinhos isso é que foi! Os açoites foram tomados de joelhos, com as mãos (como que) atadas. Eu cheguei-lhe uma almofada para debaixo dos joelhos e ela retirou-se dela, não quis. Tem os joelhos em mísero estado...

Os açoites foram pelo menos 5.311. Levaram tanto tempo! Ela desfalecia tanto! Os golpes na cabeça (com a cana na coroa de espinhos) foram 2.391.

Vomitou por duas vezes durante a Paixão: era água, porque mais nada tinha que vomitar.

O suor era tanto que os cabelos estavam empastados e ao passar-lhe a mão por cima de toda a roupa, ficava molhada. Quando acabou a coroação de espinhos, ela parecia um perfeito cadáver.

O Sr. Cónego Borlido (venerando Pároco de S. Domingos em Viana do Castelo, hoje já falecido) veio assistir com mais duas pessoas. Também veio o Sr. Dr. Almiro de Vasconcelos com a esposa e irmã D. Judite (de Penafiel).

Já alta noite, a Alexandrina, sentindo um pouco de coragem, ditou ainda o que segue:

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A noite já vai adiantada e eu estou tão doentinha; mas tenho tantos desejos de lhe dizer umas palavrinhas. Com muito sacrifício, mas vou ver se consigo fazê-lo.

Ai meu Paizinho, como eu me senti desfalecida por tantas vezes! Nosso Senhor, antes de principiar, falou-me assim:

— Ó minha esposinha, minha crucificada, dás a esmolinha ao teu Jesus? É hoje o dia que te peço maior esmola. Foi nestes dias que Eu mostrei ao mundo quanto lhes amava e a recompensa são ingratidões.

Dá-me, dá-me a esmolinha, para me desagravar de tantos crimes.

— Ó meu Jesus, eu dou-vos tudo. Vede se encontrais em mim alguma coisa que eu vos possa dar.

— Muito obrigado, minha esposa. Tens coragem? Que hás de tu temer... se tens o teu Jesus ao teu lado?...

Algumas vezes durante a Paixão o meu Jesus confortava-me e dizia-me:

— Tens o teu Paizinho, tens o teu Jesus.

— Na flagelação desfaleci muitas vezes. Uma vez sempre disse:

Jesus, ajudai-me! Se não fosse por vosso amor, dizia-vos: não posso mais!

O meu Paizinho conhece bem quem eu sou? Eu parece-me que não há ninguém tão má, nem tão cheia de misérias como eu.

Eu hoje vi-me tão envergonhada e confundida, ao ver-me cercada de pessoas que pareciam tão santas; e eu, meu Paizinho, quem sou eu? Ai, a minha miséria, ai, o meu nada! Figura-se-me que tenho uma responsabilidade tão grande por andar tudo enganado comigo! Compadeça-se de mim, meu Padre, e peça a Nosso Senhor pela pobre filhinha.

Perdão e a bênção para esta má, tão má Alexandrina.

Nem é mister chamar a atenção do leitor esclarecido para estes efeitos de profundíssima humildade que na alma da Alexandrina deixavam as graças místicas de que foi objecto, efeitos que são ao mesmo tempo prova irrefutável da autenticidade dessas mesmas graças.

Passemos para o mês de Maio, a 19 desse ano de 1939:

Está próxima a minha crucifixão. Tenho o coração oprimido, nem posso respirar. Estou tão só, tão abandonada! Tenho que subir uma enorme montanha e não sinto forças: estou calada ao pé dela. Figura-se-me que não tenho ninguém que me auxilie. Ela é tão enredada! Se me meto nela, não posso sair. Pobre de mim; já não tenho quem se compadeça da minha dor.

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Hoje, quando comunguei, Jesus não me falou; mas eu sentia tanta aflição. O coração era-me tão apertado, parecia-me que abafava; estava todo enredado de agudíssimos espinhos. Por todos os modos procuravam por entre os espinhos atravessá-lo por uma lança num e noutro lado. Bendito seja Nosso Senhor que tanta variedade tem para me dar.

Ai, meu Padre, parece-me que tudo isto é mentira! Até logo, não posso dizer mais nada.

Seguiu-se a Paixão e no fim, talvez lá mais para a noite, continuou a ditar:

Estou muito cansadinha, mas mais aliviada uma pouquinho. Nosso Senhor, antes de principiar a Paixão, disse-me assim:

— Anda, minha louquinha, meu amor, dar a esmolinha ao teu Jesus. Não te peço esmola que me não possas dar, coitadinha, porque Eu estou contigo, senão não podias nada. Coragem: dá-ma contente: dás?

— Tudo, meu Jesus, tudo que Vós quiserdes...

Por algum tempo, no Horto, sentia que Nosso Senhor estava prostrado comigo. Pedia-me coragem:

— Reanima-te, loucura do meu amor, loucura do meu Coração, minha crucificada, minha Alexandrina. Eu sou um louquinho, um perdidinho de amor por ti!...

Mais tarde, quando eu pedia a Nosso Senhor várias coisas, Ele dizia-me:

— Pede-me, pede-me sem cessar.

Na flagelação disse-me:

— Coragem, coragem; estás amparada. Sei que é por amor que sofres tudo.

Eu sentia que o meu Jesus, o meu Paizinho (apesar de ausente) e o meu Anjo da Guarda me amparavam pelos braços. Parecia-me que já tinha forças para tudo: já não tinha medo de cair.

A coroação de espinhos custou-me muito; até não me lembra que me custasse tanto. Parecia-me que os espinhos me entravam na cabeça, me atravessavam o corpo e se espetavam no coração. Ai que dor eu sentia! Custou-me tanto! Seja tudo pelo meu Jesus.

Durante toda a Paixão várias vezes sentia tanto abandono, tanto desânimo e tinha tantas dúvidas. Nosso Senhor dizia-me:

— Coragem. Esse abismo com a maldade desses crimes que te cobrem, que te esmagam, não são teus: é a maldade do mundo de quem és fiadora.

E acariciava-me. Mas eu tinha tanto medo do Eterno Pai!

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Para não prolongarmos demais este capítulo, transcrevemos apenas mais uma carta referente à Paixão, a do dia do Coração de Jesus, a 16.6.39:

Nosso Senhor, às sextas-feiras, no fim da Sagrada Comunhão, costuma poupar-me de rolar pela cama; mas hoje não poupou, bendito Ele seja. E em que estado me ficou o meu coração e todo o meu corpo! Parece que me ficou tudo em mostarda. E eu sentia-me num abismo tão medonho! E Nosso Senhor dizia-me:

— Em que montão de ruínas vai ficar o mundo!

(N. B. Aproxima-se a Guerra Mundial, em que vão morrer mais de vinte milhões e em que ficarão mutilados ou inutilizados ainda mais de vinte milhões de homens, sem contarmos as ruínas materiais imensas!...)

É por causa da gravidade de tua maldade!

Converte-te! Arrepia caminho. Eu to peço no dia do meu Divino Coração.

Ó justiça, ó vingança de um Deus! Converte-te: peço-te contas de tudo!

O peso da justiça divina caiu bem sobre mim; espedaçava-me toda, a mão do Senhor. Não sei com que era que me cortava.

Fiquei ainda num abismo mais medonho e... não temia a Nosso Senhor!

Não quer isto dizer, meu Paizinho, que eu não temo ao meu Jesus; mas naqueles momentos a aflição da alma é grande, mas parece que não temo ao meu Jesus.

Até logo, meu Paizinho; estou no dia que mais temo.

E seguiu-se a Paixão. No fim, assim fala ela:

Da sexta-feira de hoje escapei; estava quase a parecer que não escapava. Ai, quanto sofri! E agora estou cheia de dúvidas, tão atribulada e parece-me que tudo é falso.

Bendito Jesus, que tanto tem que me dar e eu para Ele não tenho nada.

Antes de principiar a Paixão, o meu Jesus confortou-me um bocadinho. Bateu ao meu coração e disse-me:

— Alexandrina, minha crucificada, vem ao mendigo que está à porta: vem dar-lhe a esmola de tanto valor. Dá-ma; não ma negues. Não me contentam todas as outras esmolas, se não me deres a tua. Só a tua me satisfaz.

— Entrai, entrai, meu Jesus, e tomai tudo que vos agrade e despachai Vós.

— Não temas, meu encanto: terás todas as forças…

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Toda a Paixão foi muito abandonada; Nosso Senhor só por três vezes me disse umas palavrinhas. A primeira vez no Horto, quando o peso da justiça divina caía sobre mim. Nosso Senhor dizia-me:

— Estás a fazer as minhas vezes; também sobre mim vinha tudo isto. Tem coragem; é obra divina que te dá força, que te move, que faz tudo isto.

A segunda vez no Horto (note-se que o Horto da Alexandrina tinha três partes bem marcadas, recordando as três horas de Cristo) … Via-me num abismo tão grande, tão cheio de imundícies: parecia-me que havia ali todas as misérias e que eram minhas. E Nosso Senhor dizia-me:

— Assim como Eu, és fiadora; também Eu estava nesse abismo coberto com todas as misérias.

Na flagelação estava tão desfalecida! E Nosso Senhor disse-me:

— Coragem! É para fazer o último pedido ao Papa que te faço assim sofrer. É o dia do meu divino Coração.

No fim de tudo, quando Nosso Senhor me falou, disse-me estas palavrinhas em particular:

— Diz ao teu Padre que mande dizer ao Papa por meio do Cónego Vilar:

Eu permiti que ele aqui viesse para que seja uma escora firme, para levantar a minha obra. Que diga ao Santo Padre... que hoje, dia do meu divino Coração, que é a última vez que peço a Consagração (do mundo) à minha Mãe Santíssima. Já a pedi tantas vezes! Que não me recuse por mais tempo o meu pedido.

Depressa, depressa! É a minha Mãe Santíssima com as minhas vítimas que salvam o mundo.

CAPÍTULO 16

SEGUNDO EXAME POR ORDEM DA SANTA SÉ

1939

Após o primeiro êxtase da Paixão, a 3 de Outubro de 1938, declara Nosso Senhor à Alexandrina que é mais uma prova de que deseja quanto antes a Consagração do mundo a Sua Mãe Maria Santíssima e promete que, se o Papa lhe fizer a vontade, o levará direito ao Céu, logo depois da morte, sem passar pelo Purgatório.

Depois de levar a Balasar, com a aprovação do seu Provincial, os Padres Sebastião Pinto e José de Oliveira Dias para presenciarem os fenómenos da Paixão e darem o seu parecer, o Director Espiritual da doente escreveu directamente a SS. Pio XI, a 24 de Outubro de 1938, uma carta em que declarava a razão porque se dirigia directamente a Sua Santidade: a promessa a que nos referimos acima.

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O resultado foi logo depois mandar a Santa Sé fazer novo exame da Alexandrina, sendo encarregado da incumbência, desta vez, o Cónego Manuel Pereira Vilar, Reitor do Seminário Maior de Braga e já então designado pela Santa Sé para Reitor do Colégio Português de Roma. A própria Alexandrina nos fala desse novo exame:

Em 5 de Janeiro de 1939, recebi a visita do nosso Sr. Abade, acompanhado pelo Rev.mo Sr. Cónego Vilar que, depois de me ser apresentado, ficou a sós comigo. Falámos de várias coisas de Nosso Senhor, cerca de duas horas, para depois entrarmos verdadeiramente no assunto que o trouxe aqui. Sua Rev.cia disse-me assim:

— A Alexandrina deve estranhar a minha visita; não me conhece...

Sorri-me, respondendo:

— Eu sei com certeza ao que V. Rev.cia vem aqui.

Ao que ele disse:

— Diga, diga, Alexandrina.

Então disse eu: vem do mando da Santa Sé (pois era o que eu sentia na minha alma, nesse momento.)

Sua Rev.cia confirmou:

— É isso mesmo; e apresentou os documentos que tinham vindo de Roma.

Fez-me várias perguntas a que respondi. Não falei da Crucifixão, mas falou-me ele, dizendo:

— Parece que há mais qualquer coisa que se passa há meses — apontando-me a Paixão, mas mostrando desejo de vir assistir, como veio logo na primeira sexta-feira seguinte. (13.1.39)

Falando eu disto ao meu Director Espiritual, este aconselhou-me a que lhe falasse com toda a franqueza. Visitou-me quatro vezes, mas só duas foram obrigatórias (quer dizer, por dever de ofício). Se me não engano, logo da primeira vez, disse-me:

— Olhe, Alexandrina, gostava de há muito a ter conhecido, mas não queria ter vindo como vim...

Termina a narrativa, dizendo:

Chorei quando Sua Rev.cia se despediu de mim, na partida para Roma. Prometeu escrever-me de lá, dizendo-me que ficaria a ser a sua intercessora na Terra. Recebi algumas cartas dele em que mostrava ter em mim inteira confiança.

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Respondi-lhe e ajudávamo-nos mutuamente com orações a Nosso Senhor.

O respeitadíssimo Examinador, hoje já falecido como um predestinado, ficou bem persuadido de que se tratava de um caso sobrenatural, digno de todo o respeito. Temos em nossa mão os originais de sete cartas de Sua Rev.cia para a Alexandrina que são um esplêndido testemunho a favor da Doentinha de Balasar. Não vamos copiá-las todas; alguns excertos ao menos, a provarem o que afirmamos.

Logo quatro dias depois de chegar a Roma, lhe escrevia e entre outras coisas, dizia:

Recordo-a todos as vezes que entro na Capela a visitar a Jesus ou sempre que pego no terço, no qual coloquei a recordaçãozinha que me ofereceu a última vez: dentre tantas é talvez a que mais estimo. E todos os dias na santa Missa, faço um memento especial por si, pedindo a Nosso Senhor todas as graças de que necessita, para realizar a sua missão.

Ainda não fui recebido pelo Santo Padre; mas logo que seja, expor-lhe-ei todos os desejos de Nosso Senhor.

A 2.6.39, escreve-lhe:

Boa Alexandrina: É hoje a primeira sexta-feira de Junho e está a fazer um mês que recebi a sua estimada cartinha. Esperava, ao escrever esta, poder-lhe dar alguma boa notícia acerca da nossa Consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria, tão insistentemente pedida por Jesus, mas infelizmente ainda nada de positivo lhe posso dizer. As coisas em Roma contam-se em comparação com a eternidade e por isso nunca têm pressa. Continuemos porém a rezar e a trabalhar, para que por fim os santíssimos desejos de Jesus sejam realizados.

Esta manhã, ao recordar-me de si na santa Missa, como costumo fazer, recordei-me da sua paixão e ofereci tudo a Nosso Senhor. Encontrei assim um meio de desagravar a justiça divina pelas minhas tão numerosas e tão graves infidelidades… Procuro ser bom para com todos e só para Jesus continuo a ser assim infiel! E depois disto ainda Ele vem dizer-me que me ama e me compreende.

Quando li estas palavras, as lágrimas saltaram-me aos olhos; e a sua carta lá ficou aos pés do meu Crucifixo até hoje... Jesus ouviu-a: mais uma graça. Mas compreendo que o Amor seja hoje para si ao mesmo tempo o algoz, o amparo e força, a consolação e felicidade. Mas deixe: esse Artista divino sabe realizar obras admiráveis; e se Ele a levar até a imolação heróica, maior será a glória do Senhor, mais completa a reparação, mais bela a recompensa. É isto o que Ele lhe pede, não é verdade? Mas nem admira. Nesta hora de desvario, Jesus tem necessidade de vítimas que com Ele desarmem a justiça divina.

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Na carta de 5.7.1940:

Em princípios de Junho alguém falou ao Santo Padre na Consagração do mundo a Nossa Senhora; mas o momento é tão incerto e tão difícil, que só Deus sabe o que será. Nós continuaremos a rezar, na certeza de que sua santíssima vontade, um dia, se realizará plenamente.

Esse alguém a quem aqui se refere Monsenhor Vilar, supomos ser um Prelado português que, indo a Roma, reiterou o pedido a Pio XII e a Sua Santidade teria respondido que queria fazer essa Consagração, mas, como eram tantas revelações sobre o caso, hesitava ainda um pouco.

Certeza de que a Consagração se faria, tinha-a dado Nosso Senhor repetidas vezes à Alexandrina; disse-lhe mesmo que ela não morreria antes que o facto se realizasse; por exemplo, a 25.4.38, mandava-lhe Nosso Senhor que comunicasse ao Padre Espiritual para escrever ao Papa sobre a vontade divina:

Diz-lhe que escreva ao Santo Padre, Eu que quero a Consagração do mundo a minha Imaculada Mãe, mas quero que o mundo saiba a razão porque lhe é consagrado:

Eu quero que se faça penitência e oração. Tu é que estás a aplacar a justiça divina e tens que sofrer isto (eram as imolações de que já antes falámos), até que Ele o consagre.

Já a 20.11.37, ouvia:

Eu venho buscar-te em breve, mas não quero vir sem que antes seja feita a Consagração do mundo a minha Mãe Santíssima...

E eu (afirma Alexandrina) disse:

Ó meu Jesus, o Santo Padre parece que não atende: demora tanto!

E Nosso Senhor disse-me:

— Sossega, descansa, minha filha: Ele atende; chegará o dia da glorificação.

E ainda a 4.1.41:

Prometo-te, neste sábado consagrado a Ela (a Nossa Senhora) não demorar na Terra por muito tempo a tua existência. E prometo-te alcançar no Céu, com os teus pedidos e amor, o que agora te alcanço na Terra pela dor. Mas para isso, minha filha, pede ao Santo Padre que se compadeça do teu martírio e que satisfaça os desejos divinos de Jesus, que é consagrar o mundo a minha Mãe bendita.

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CAPÍTULO 17

A VÍTIMA NO HOLOCAUSTO

1939-1942

Facto notável na vida da Alexandrina é — como já insinuámos antes — a profusão de páginas ditadas por ela (algumas escritas pela própria mão), não obstante a sua reduzidíssima instrução e sobretudo os seus sofrimentos atrozes quase ininterruptos. Dir-se-ia que, quanto mais crescem esses sofrimentos misteriosos, mais imperiosa se mostra a necessidade de escrever. Oiçamo-la:

Parece-me que o escrever é um dever ao qual não posso faltar — diz a 27.8.39 — E sinto tanta necessidade de o fazer. Mas é para maior desconsolação. Onde poderei eu na Terra encontrar alívio?

É por Jesus; só com Ele vencerei.

A 7.11.40, encontramos esta afirmação:

Jesus põe-me na alma a grande necessidade de desabafar. Sinto como se Ele me abrisse a alma, para eu melhor poder mostrar quanto ela sofre por Jesus.

Mais que um desabafo, era uma exigência que Deus lhe impunha, para se desempenhar da missão que lhe confiava: vítima e mestra de vítimas.

É incontestável que vivemos na era por excelência da Reparação e das vítimas. Não somos nós que o afirmámos: vozes de maior autoridade o atestaram. Fale por todos Pio XI, na encíclica Miserentissimus Redemptor:

Quanto pois seja urgente, especialmente em nosso século, a necessidade da expiação ou reparação, não pode ignorar quem quer que com os olhos ou com a mente considere este mundo todo submetido ao maligno (1 Jo 5,19)... A palavra do Apóstolo: onde abundou o pecado, superabundou a graça (Rom 5,20) pode aplicar-se em certo modo, à nossa época. Enquanto sobe sem cessar a malícia dos homens, o sopro do Espírito Santo multiplica maravilhosamente o número dos fiéis de um e outro sexo que generosamente procuram reparar tantas injúrias feitas ao Divino Coração e até não hesitam em se oferecer a si mesmas a Crista como vítimas.

Mas — como reflectia São Pio X (AAS, 28 - IV e 2 - V - 1910):

É árdua a vocação da vítima, porque o lugar da vítima é no Calvário com Jesus e não nas doçuras do amor... As almas consoladoras, as almas reparadoras são vítimas com a grande Vítima do Calvário.

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Torna-se portanto uma necessidade urgente haver quem ensine bem com doutrina e mais que tudo, com o exemplo o que é o viver da vítima.

Aí temos — a nosso ver — um modelo de primeira grandeza: a Alexandrina.

Minha louquinha, minha louquinha, tem coragem! — ouvia ela, no êxtase da Paixão de 20.10.39 — É tão grande o número de almas que me salvas! Se não fosse por me salvares número tão grande de almas, já te tinha no Céu. E salva-las, porque és a maior vítima que tenho na Terra, a de maior generosidade, a de maior sofrimento, a de maior amor.

A seguir acrescenta ela estas palavras bem características:

Fico humilhadíssima com o que me diz Nosso Senhor; faz-me sofrer: aterra-me. Se isto fosse para dizer em público, de melhor vontade, em vez de dizer isto, confessaria todos os meus defeitos, para que todos soubessem como tenho sido má e ingrata para com o meu Jesus.

A 1.11.39, repetia-lhe o Senhor:

O teu sofrimento é um mistério de prodígios, é uma nova invenção minha. Se não fosse esse sofrimento, muitos pecadores que se salvam, não se poderiam salvar. Sofre com confiança, que dentro em pouco serás contada no Céu entre os meus Santos.

E a Alexandrina compreendia bem ao vivo esta sua missão de vítima.

Que felicidade a minha — diz a 3.12.39 — ter a dita de Vós me escolherdes para a dor! Como sou feliz, mesmo sem sentir que o sou, quando em alguns momentos encontro umas migalhinhas para oferecer ao Senhor de tudo; ao Rei do Céu e da Terra. A minha miséria é extrema, como raras vezes encontro. O meu Jesus, se Vós permitísseis que a cada momento eu pudesse rasgar o peito, arrancar fora o meu coração ardendo em chamas vivas, colocá-lo em vossas divinas mãos e dizer-vos: — aqui tendes; é vosso. É a prova do meu amor! Dai-me sofrimentos, por mais violentos que sejam, mas, que com eles eu possa provar que vos amo. Peço-vos dor e amor: são os laços que a Vós me prendem.

Jesus ouve a sua prece e quantas vezes lhe repete, como a 25.3.40:

Olha, meu amor, aceitas ficar na dor até à morte? Tu sempre na dor, para teres o teu Jesus sempre alegre e consolado?

— Sim, meu Jesus, nada vos posso negar. Aceito tudo, na condição de me dardes graça, amor e força para tudo poder sofrer.

— Ó meu encanto — retorquia Jesus — viverás sempre na dor, mas nunca te faltará para te dar conforto o teu Jesus...

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Fixemo-nos então, mais demoradamente a escutar, saborear e assimilar as lições que, nesta cátedra de dor e amor, nos dá a Alexandrina.

Reputamos esta parte a principal da sua biografia; mas, para não alongarmos indefinidamente os limites deste volume, vamos cingir-nos principalmente aos seus escritos de 1939 a 1940. Já dissemos que as suas mais belas cartas são as que se seguiram à sua crucifixão até à morte.

Veremos que a vítima é posta no altar do sacrifício: em lugar dos pecadores e em lugar de Cristo.

Em lugar dos pecadores, portanto, é fiadora, tem que pagar por eles. Por isso, pairam sobre ela os pecados do mundo; experimenta dolorosamente, misteriosamente em si as más disposições dos pecadores, como se fossem suas próprias. Em consequência, sente-se, como eles, abominável aos seus olhos e aos olhos de Deus. Cai sobre ela em tremenda expiação a ira de Deus que a aterra, esmaga, aniquila, a reduz a estado de morte e a faz sentir as dores do inferno. E junta-se a isto, para mais a imolar, a tortura amarga das dúvidas.

Mas está no altar do sacrifício também em lugar de Cristo: e assim ininterruptamente unida a Ele, aos sofrimentos da sua Paixão e à Vítima do Altar, padecendo os sofrimentos de

Cristo. Por isso, com Ele medianeira, com Ele redentora e mãe dos pecadores. Por isso apaixonada pelos pecadores. Com Cristo, enfim, pára-raios da Justiça divina.

Não podemos provar tudo isto num só capítulo, mas comecemos, seguindo sempre os seus escritos.

Fiadora em lugar dos pecadores

— Oiçamo-la a 1.3.39:

Noite tenebrosa e triste!... Ai, como custa, no meio de tão medonha tempestade, sentir a repugnância que Nosso Senhor tem de mim! Não me pode ver nem de longe! E ao cair sobre mim o peso, a aflição que me faz rolar sobre a cama, o cutelo a cortar-me o fio da vida, gritava-me Nosso Senhor tão irritado:

— Vingança, vingança cai sobre a vítima! Ofereceste-te, és fiadora, tens que responder!

Que aflição! Parece que o meu coração e a minha alma choram de medo e dor. Eu queria-me esgaçar toda e não parar a correr o mundo em desespero. Mas disse:

Ó meu Jesus, sou vossa. Imolai a vossa vítima; tem que ser imolada; mas não corteis o fio da vida a nenhuma alma em inimizade convosco. São as ofertas da pobre Alexandrina que não tem que dar a Jesus.

Na manhã de 31 do mesmo mês, sexta-feira, escutava depois da Comunhão:

— Vingança! Vingança! Quem deve não paga; paga tu que és a fiadora. Ou pagar ou morrer.

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No êxtase da Paixão desse dia, os golpes da flagelação subiram a 4.519 e os golpes sobre a cabeça coroada de espinhos, a 1.858.

E a 21.4.39, em igual dia de sexta-feira:

Jesus dizia-me no fim da Comunhão:

— Paga-me; atende bem: ou me pagas ou virei acordar o mundo da noite da morte em que vive: é por causa do pecado.

Paga-me: és abanadora, fiaste o mundo. Se me não pagas, virei sobre ele com toda a justiça, para o punir eternamente.

Durante a Paixão de 23.6.39, mandou-lhe Jesus:

Oferece-te ao Eterno Pai, pede-lhe pela tua crucifixão que salve o mundo. Seja esta a tua oração, que também foi a minha... A tua Paixão é uma fonte aberta para os pecadores, onde eles se lavam e purificam para virem a Mim.

Depois da Comunhão de 27.5.39, ouve ela:

— Olha como estás suja. Olha como te apresentas para receber a Majestade divina! Repara: tu és a vítima de tudo isto; é por isso que te falo assim. É este o teu viver; não terás outro cá na Terra!

Era tão forte, tão forte o peso que me esmagava!

E a 21.8.39, são mais graves as palavras de Jesus:

— Miserável, desgraçada! Paga-me a dívida mais penosa e de maior valor. É a dívida dos Sacerdotes: a dívida mais cara. Ofereceste-te a Mim por eles como vítima: paga-me. Eles calcam aos pés a minha Carne, o meu divino Sangue (referência clara aos sacrilégios na Missa).

Paga-me, miserável, paga-me, desgraçada!

Ai, meu Padre: figurava-se que o corpo de Nosso Senhor estava todo em pedacinhos e andava a ser esmigalhado aos pés. Que aflição! E sobre mim caiu também o peso esmagador e Nosso Senhor dizia-me:

— É o peso da Justiça divina; é o peso que os devia esmagar a eles!

— Ó meu Jesus, eu quero que sobre mim venha toda a vingança, toda a Justiça divina; mas quero que eles se salvem e se voltem deveras para Vós e se encham todos do vosso divino amor, para que possam incendiar as almas numa só chama de amor por Vós.

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Ainda a 6.11.39, lhe brada Cristo:

A justiça de Deus tem que punir; tem que ser satisfeita. Ou sofre o pecador ou sofre o inocente!

Mas vejamos a vítima no exercício da sua missão. Um dos sofrimentos mais ordinários das vítimas autênticas é sentirem-se:

Sob o peso dos pecados do mundo

Fale a Alexandrina, a 9.10.39:

Não posso viver neste mundo. Que aborrecimento! Parece que até tremo. Sinto em mim como se vivesse nele desde o princípio; já estou cansada de tanto viver. Adormeci no abismo mais medonho, para nunca mais acordar. Fui morrer atulhada nas coisas mais imundas. Que montão de imundícies! Causo nojo a todos quantos me vêem.

Ai, ai, a minha alma está cega, não conhece a luz! Estou ao abandono; navego sozinha. Apenas o meu coração sente uns raiozinhos que o queimam.

Hoje, quando recebi Jesus, no meio da tempestade, das dúvidas, do abandono, Ele ardia e eu dizia:

Ó meu Jesus, quero arder tanto, tanto; quero-Vos queimar nas chamas do meu amor e queimar-me nas chamas do vosso.

Mas a minha miséria, o meu nada, o aniquilamento em que estava, fazia que eu nada tivesse. Mas eu dizia:

Jesus, já que nada sou, ofereço-vos o meu nada. Por vosso amor, eu quero ser como as ervas rasteiras, que não fazem caso delas, deixam-nas ao abandono, são até calcadas. Tudo, tudo quero sofrer, para que vos consoleis e para que as almas se salvem.

E agora esta bela página de 19.10.39:

Parece-me que sou calcada com as patas de um bicho tão feroz! É tão aterrador! Tem o tamanho do mundo inteiro. Cai sobre mim: tenta devorar-me. Sou uma arestinha, em comparação dele.

Tanta raiva, tanta fúria sobre uma coisa tão pequena! Eu parece-me que é impossível poder viver, poder resistir a tanto sofrimento. Que horas, que dias tão assustadores me esperam!

Já falta pouquinho tempo para estar no dia da minha crucifixão.

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Meu Deus, e eu tenho tanto medo! Receio que Nosso Senhor ou a querida Mãezinha digam às pessoas santas que tudo é feito por mim; que nada há em mim que não seja imposturice.

Não sei como pode ser: estou nesta tribulação e a saber que não quero enganar, que não quero ser impostora, que quero que todos me conheçam (no que na realidade é).

A alguma hora da tarde quase me escapava dos lábios o pedir a meu Jesus que me aliviasse um pouquinho, que não podia mais. Mas num momento lembrei-me que era vítima, que não devia pedir alívio: tomei coragem, fui resistindo. Parece-me que não consolei nada com isto o meu Jesus. Sinto o desprezo de Nosso Senhor; parece que Ele me não conhece.

Ai, meu Padre, ai, quanto eu sofro, no fim de comungar, com esta indiferença de Nosso Senhor e com a morte total que Ele me faz sentir!

Morro para o mundo, morro para Deus. Para o mundo quero eu morrer, mas quero viver para Vós, meu Jesus, para vos consolar e amar, para desagravar o vosso divino Coração e o da querida Mãezinha. Deixai, meu Jesus, deixai, querida Mãezinha, arrancar dos vossos divinos Corações, com toda a doçura e amor, os espinhos que vos ferem. Quero o meu coração sempre cercado com eles, a agonizar de dor e a derramar sangue até à última gota: sofrer eu tudo, Jesus e Maria, nada. Quero ser vítima de amor!

A 11.4.40:

Esta manhã, depois de possuir a Jesus no meu coração, estava fria e morta. Queria dizer-lhe tantas coisas, queria amá-Lo pelos que O não amam, amá-Lo com todo o amor do Céu e da Terra; queria dar-me inteiramente a Ele, para que Ele me possuísse para sempre. Mas a morte reinava; sombras assustadoras me cobriam, de nada valiam os meus desejos, tudo era perdido e inútil. Rolei pela cama, ao mesmo tempo que Jesus me ralhava, dizendo:

— Desgraçada, desgraçada! O teu sono é mortal; vão acordar-te os horrores do inferno. Ai de ti, se não te convertes! Espera-te o inferno ladeados de demónios, de fogo, de almas ardendo, ardendo eternamente! Converte-te; vem a Mim; vem ao meu divino Coração que está aberto para receber-te.

Estas últimas palavras de Jesus, este convite para o seu divino Coração, não era a ralhar-me: era uma voz doce e tristíssima. A dor que Ele sentia no seu divino Coração ainda agora a sinto no meu. É agonizante, é esmagadora, reduz-me ao nada... Mas de novo, já mais irado, voltou Jesus a dizer-me:

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— Converte-te; cai sobre ti a Justiça divina para punir teus crimes!

E agora, 20.6.40, a sentir-se

Um mundo de abominação:

A minha vida apaga-se num momento: só o pecado aparece. O mundo cobre-me com todas as misérias e eu caminho sobre ele no meio da tristeza e da escuridão. Sinto-me como uma louquinha de braços abertos, na valeta da estrada, a pedir auxílio. Não há quem me acuda: para mim não há compaixão. Parece-me que não tenho perdão para os meus pecados, e Jesus me odeia. Está longe de mim, de costas voltadas: nem de longe lança para mim os seus divinos olhos. A sua vista divina não pode vir ao encontro das minhas enormes misérias.

Oh, que monstro, oh, que mundo de abominação eu sou! As mãos de Jesus são a prensa onde eu estou a ser exprimida; é Ele mesmo quem me espreme o meu corpo, transformando-o numa bola com a qual se entretém. Jesus joga, brinca, enquanto eu gemo e choro. Gemo, porque sou fraca; choro, porque não sei amar. Nem consolo o meu Jesus tanto quanto a minha alma deseja e o meu pobre coração anseia.

Jesus ontem e hoje, deixou-me no mais rigoroso abandono. Nem, ao baixar a mim, Se deu a conhecer. Mas eu hoje parecia uma louca, cega de dor e quase sem vida. Mas fui dizendo:

— Mãezinha, dai graças a Jesus por mim. Amai-o com todo o amor com que O amais e sois por Ele amada e dizei-Lhe que esse amor é meu, porque é assim que eu O quero amar. Amai-o com todo o amor do Céu e da Terra e dizei-Lhe:

Este amor é da mais pobre das vossas filhas, Jesus, mas quer consolar-vos, quer viver só uma vida de amor!

E então certamente Jesus comoveu-se com as minhas palavras ditas pela Mãezinha e fez passar pela minha alma um pouquinho de suavidade. Mas passou tão rapidamente, como um raio que entra pela janela, para sair pela porta.

E eis-me de novo a lutar com a dor e com a morte e com os medos da crucifixão que me espera.

As alegrias do mundo causam-me dor, aborrecimento e tristeza: não posso ouvir nada que cause alegria.

Dias antes, a 18, tinha escrito:

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A minha vida é uma vida morta. A única coisa que me resta é o pecado; esse sim: esse cobre-me vergonhosamente. Tenho nojo de me ver.

Todos se escandalizaram em mim e foi por isso que me abandonaram. É o que sente a minha pobre alma. Jesus nem lá do alto dos Céus pode baixar os olhos sobre mim. A minha alma sente que Ele se retira. Por Ele não pode ser vista assim suja e imunda como está.

Mas também sente que Jesus chora a perda de todas as almas que dentro da minha estão. Só tenha uma alma e sinto milhões de almas e devo responder por todas e todas devo consagrar a Jesus.

Meu Deus, que horror! Eu não sou nada diante de Nosso Senhor e como lhe posso responder por tanta coisa?! Tremo de confusão e de medo e só posso dizer a Jesus:

Se quereis tirar deste nada alguma coisa, fazei-o Vós. Não vos envergonheis de mim nem de nenhuma alma. Eu estou suja, mas quero lavar-me. E estou coberta de todos os pecados, mas cometi-os sem saber; não tenho conhecimento deles, mas humildemente vos peço perdão. Perdoai-me, perdoai ao mundo.

E não resistimos a copiar aqui o resto desta carta sublime:

Ai, que indiferença há entre mim e Jesus! Não nos encontramos e parece que nem nos conhecemos. Nem ao recebê-Lo eu sinto o mais pequenino alívio. Se ontem O não conhecia, hoje ainda O não conheço. Se ontem não lhe tinha amor, hoje ainda O não amo. Não tenho peito nem coração para O receber, mas tenho sede de amor, ânsias de ver o mundo numa só chama. Queria ter sangue, para ter a Terra toda ensopada nele, mas sangue que pudesse apagar toda a qualidade de crimes, para Jesus não os ver; para que o seu divino Coração não sentisse a dor causada pelo pecado, mas sim os ardores de todos que O amam.

É por isso que eu quero sofrer, para que na Terra só possa existir amor. É por isso que eu quero dar a vida por Jesus e pelas almas que o pecado tenta matar.

A minha natureza tem horror ao sofrimento, mas o coração, a transbordar com ânsias da glória e do amor de Jesus, voa num voo rápido e louco a enredar-se nos sofrimentos.

Que loucura pela dor, para que só Jesus tenha amor e para que o mundo se incendeie nas chamas do amor divino e para que todos os corações se purifiquem e inflamem dentro do mesmo divino Coração!

Quero amar, quero sofrer, quero reparar.

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CAPÍTULO 18

SENTINDO MISTERIOSAMENTE AS MÁS DISPOSIÇÕES DO PECADOR

Substituindo os pecadores para pagar por eles, permitia Nosso Senhor que a Alexandrina se sentisse como que revestida das más disposições deles.

Hoje (1.4.39), depois de comungar, sentia que a minha alma era um verdadeiro rochedo. Não havia nada que fosse capaz de o quebrar e amolecer. Isto, no meio de medonhas trevas, de noite escura e tremenda. E Nosso Senhor a dizer-me com ira:

— As trevas do pecado, a noite das almas mortas pelos mais horrendos crimes: vê de que te revestiste! Paga, dá-me contas; não há abatimento, não há perdão; tens que pagar tudo. O pecado, o pecado é a causa do teu sofrer.

Estas últimas palavras Jesus já falava mais brando; parecia ter mais compaixão de mim...

Hoje é bem quarta-feira de trevas (5.4.39). São trevas, trevas dentro em mim. Que noite tão medonha e triste! E que abandono eu sinto! Já quando comunguei, assim estava abandonada de tudo.

Ai, que peninha eu tenho de não ter um bocadinho de amor a Jesus! Não sei falar com Ele: coitadinho do meu Jesus, vem repousar sobre o meu coração e eu não lhe sei agradecer.

Ai, em mim tudo é pobreza e miséria! Eu acredito que recebo a Jesus, porque vejo, de contrário em tais momentos, não acreditava. Ó pedra dura e fria que eu sou!

Jesus não se faz sentir, senão para ralhar-me muito irado. Hoje dizia-me:

— Vingança! Vingança! Como hei de desagravar-Me de tão graves crimes, neste corpo tão frágil?

Mas pouco importa: paga, dá-me contas; paga à Divindade Santíssima a dívida que deves da Humanidade!

O coração era-me atravessado por uma forte lança; ficou-me como que a escorrer sangue com muita abundância...

Meu Paizinho: não será nada disto assim? Todo este sofrer que me parece tão penoso será uma ilusão minha? Estude bem, para não se enganar comigo.

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Bem frisante o que escreve a 27.4.39:

Hoje no fim da sagrada Comunhão, estava morta, coalhada de gelo. Estive assim um grande pedaço; depois Nosso Senhor dizia-me:

— Maldita, não te posso ver; retira-te de Mim.

E, com o braço, parecia-me que me repelia dele.

— Estás tão suja e esfarrapada; não te aproximes de mim, porque é para mais e melhor poderes ferir o meu divino Coração.

Mas, depois, já com mais bondade, dizia-me:

— Mas olha: a Chaga do meu Coração está aberta, é uma fonte pura. Queres-te lavar nela? Ficas limpinha e asseada. Ficas rica e brilhante, mais bela do que a rainha coroada com o rei.

O meu coração era duro, como um rochedo e eu não queria ouvir as palavras de Nosso Senhor. Mas disse-lhe:

Jesus, vede como estou!

E Ele então inclinava-se sobre o meu pobre coração, apertava-me e dizia-me chorando:

— Se, irritado, te repreendo, não me temes; se te chamo com doçura, não me atendes.

E continuava a chorar. Fez cair o peso sobre mim e dizia-me:

— Vingança! Hei de esmagar-te!

— Ó meu Jesus, eu não temo a vossa vingança, porque confio em Vós cegamente. Onde encontrarei eu Pai tão bom, tão terno e amante como Vós? Ai, não encontro Pai que se possa assemelhar ao meu Jesus! Sabeis porque vos não temo? Porque sei que, quando vos irritais, é para chamardes a Vós as almas, para lhes perdoardes. E vossa vingança é de amor: vingais-vos, para dardes amor. Cativou-vos o amor, meu Jesus.

Qualquer comentário ofuscava a beleza das linhas que acabámos de ler.

A 9.5.39:

Ai, ai, os dias da minha vida como são tristíssimos! Que combate tão forte na minha alma! Peço tanto ao meu Jesus que se compadeça da minha miséria e do meu nada, que eu vejo tão claramente! Que horror, ver-me assim tão carregada

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de lepra! Parece que do interior ao exterior estou toda a desfazer. Como eu tenho medo de mim. Como receio de me enganar e enganar o meu Paizinho e a toda a gente. Meu Deus, que confusão parecer-me que é tudo feito por mim!

Sentia tanta aflição hoje no fim de comungar: figurava-se-me que andavam a fazer do meu coração um bolo. Como ele era esmigalhado e atirado para longe! Parece-me que já não posso com mais aflição, mas vou podendo sempre. A força é Nosso Senhor que ma dá, não é, meu Paizinho? Eu por mim não posso nada, sou nada. Mas Jesus dizia-me:

— Maldita, ingrata! Já te não posso sofrer mais. Tenho que tirar-te a existência. Já que te não moves pelo amor, move-te ao menos pelo temor do inferno. Levanta-te, desgraçada!

— Ó meu Jesus, eu quero levantar-me; mas não é tanto pelo temor do inferno, mas é porque Vos amo e quero morrer de amor. Sou toda vossa; não Vos quero ofender; não Vos quero desgostar, só quero fazer o que for mais perfeito, para vos consolar e amar. Eu sei que Vós não me dizeis isto a mim: é por eu ser vossa vítima.

A 29.5.39:

Tenho medo de mim; parece-me que não posso viver no mundo.

Ó triste viver! Parece-me que não posso, mas tenho que viver. Jesus não me vem buscar. Faça-se a sua santíssima vontade. Se Ele me quisesse aqui, enquanto o mundo for mundo, de boa vontade ficaria. Eu só quero o que Ele quiser.

Ai, meu Paizinho: tenho cá na minha imaginação que as graças que recebo de Nosso Senhor são a recompensa que Ele me dá aqui no mundo e no outro será sofrer por toda a eternidade!

Meu Deus, meu Deus! Vejo-me coberta de misérias e medonho abismo: não posso sair dele. Estou envergonhada de mim mesma. Nosso Senhor não se envergonhará também de mim? Não sentirá nojo ao ver-me?

Pobre de mim!... O meu Jesus hoje não me disse palavra. Comunguei num abandono tremendo. Sou a ovelha desgarrada. Nosso Senhor (quando ela comungou) parece que caiu num poço sem fundo de podridão, de imundícies.

Ai, que pena eu tinha do meu Jesus, metido naquele poço imundo! E eu não O podia tirar! Não sei o que hei de fazer ao meu Jesus: não tenho que lhe dar. Que pena eu tenho no meu coração! A dor esmaga-o. Queria chorar lágrimas de sangue.

E sente ao vivo a morte que o pecado causa à alma do pecador; oiçamo-la, a 30.6.39:

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Para onde hei de fugir? Não vejo esconderijo para mim, a não ser no Coração do meu Jesus. Corro para Ele, confiada que um Pai e um Pai como Jesus, quando castiga, é só por amor.

Mas Ele está morto para mim. Portanto, figura-se-me que não tenho lugar no seu divino Coração nem os seus santíssimos braços me podem sustentar, porque estão mortos. Que há de ser de mim? Confiar e confiar sempre: abandonar-me toda a Ele, mesmo assim em estado de morte, como se me apresenta.

Chamei-o tantas vezes no fim da Comunhão:

Jesus, valei-me! Mãezinha, compadecei-vos de mim. Jesus, Jesus, vede quanto a vossa filhinha sofre e não me abandoneis.

Mas Ele não atendia aos meus pedidos. Não sei como posso resistir com a aflição que tal estado de alma me causa. É Ele sem dúvida que, mesmo assim morto, como se me apresenta, me dá coragem.

E, só depois de um pedaço, me disse:

— É assim mesmo que Eu chamo os corações dos pecadores e eles não me falam, porque o pecado os matou. Tal maldade e ingratidão faz-me sofrer tanto o meu divino Coração! Trespassam-no agudos espinhos!...

Eu sentia a dor de Nosso Senhor no meu coração e o doloroso sofrimento que os espinhos faziam ao serem-lhe espetados. Eu via mesmo os espinhos: eram tantos, tantos! Eram sebes deles. Nosso Senhor estava tão triste e chorava. Eu disse-lhe:

— Não choreis, meu Jesus. Fazei que os meus sofrimentos desviem do vosso Coração esses espinhos, para o não ferirem nada, nada. Fazei também que os mesmos sofrimentos desta mísera filhinha possam acordar, ressuscitar os pecadores.

Jesus, não sei mais o que vos hei de dizer, nem o que hei de fazer.

Um ano depois, assim se expressa, a 30.7.40:

Eu ando com Ele às escondidas; parece que não sei que Ele existe, nem Ele sabe que eu existo também.

Navego sozinha e não sei navegar. Ando morta sobre as águas. Eu estou morta e o mundo também. O mundo está dentro em mim: vejo-o, sinto-o morto vergonhosa e horrorosamente! Causa-me nojo, medo e pavor.

Só a força e a graça de Jesus me dá força para tanto sofrer e sustenta o meu viver. A minha vida é tristíssima, mas como o

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não há de ser, ao sentir tanta mortandade? O coração parece-me que se derrete de dor. Jesus é tão ofendido! Eu quero consolá-lo e amá-lo e nada encontro. Vejo-me perdida. É uma perda irreparável; é uma perda eterna!

Ai, meu Paizinho, ai, o sofrimento da minha alma! Jesus dá-mo; eu aceito-o e quero-o. Amo o sofrimento: é a minha maior riqueza na Terra.

A dor dá-me Jesus; Jesus dá-me amor.

Ainda esta carta bem expressiva do que estamos demonstrando: é de 29.8.40:

Ontem sentia na minha alma uma grande revolta contra Nosso Senhor.

Sem ser por vozes, eram com certeza inspirações, convidava-me à penitência, a reconciliar-me com Ele.

Eu, quase que num desespero, cerrava os ouvidos, não queria escutá-lo. Indignada quase que O odiava.

Mas, repare-se bem no que ela escreve a seguir:

Não sei se me faço compreender: eu tinha estes sentimentos, mas creio que não eram meus, porque as minhas ânsias é só de O amar e nunca O ofender.

Mas não terminou o dia sem que eu fosse má, muito má. Sinto bem que cobri de espinhos o meu doce Jesus. Tenho tanta pena por ter procedido assim. Esta dor tem-me consumido hoje o meu pobre coração.

De que se trata afinal? De uma coisa que é elogiosa para ela: a repugnância que sente de ser falada e sobretudo ser vista durante os êxtases da Paixão. Mas na sua consciência delicadíssima — é difícil encontrar consciência mais delicada — parece-lhe que se deixou levar demasiado por essa repugnância. Mas diga ela:

Quer saber o que foi a minha maldade? Juntou-se aos medos que eu tinha da sexta-feira um horror tão grande, tão grande de eu não querer ser vista por ninguém. Estava aborrecida e (parece) queria bater em quem presenciava e ia contar o que tinha visto.

Então dizia eu: na sexta-feira, depois do Sr. Abade me trazer Nosso Senhor, fecha-se a porta e quem tiver saído não volta a entrar senão à noite. Isto era com o fim de não ser vista.

Eu não me compreendo: eu dizia isto, mas parece-me que o não fazia, porque do íntimo do meu coração saía-me este brado:

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Ó meu Jesus, eu quero o que Vós quiserdes. Pelo vosso amor, aceito ser vista. Perdoai-me; dai-me força para me vencer. Meu Deus, e meu Jesus, eu não quero desgostar-vos!

Foi uma grande luta que eu tive.

Referindo-se ainda às sextas-feiras, desabafa, a 27.10.39:

Todos os dias são tristíssimos para mim, mas a sexta-feira, ai meu Deus! Ai meu Jesus, não sei como poder viver! Quase chego a odiar este dia. Mas quero tudo o que Jesus quiser: aceitar tudo e sofrer sem me queixar.

Principiou a aumentar a minha dor logo depois da sagrada Comunhão, por me ver tão suja e a morrer naquela imundície. Jesus chamava-me:

— Vem ao teu Deus, ao teu Senhor que te criou para Ele.

Que voz tão triste e tão cheia de ternura! Eu, como que se O não ouvisse, deixava-O ao abandono e corria loucamente para os prazeres do mundo.

Que dor, que tristeza a de Jesus! Era minha também. Assim fiquei durante o dia.

Ao aproximar-se a hora da crucifixão, já me parecia andar aos empurrões. Com a aflição e o medo, ainda vieram as lágrimas bailar-me aos olhos. Coitadinho de Jesus, não pode contar comigo para nada. Ele apressou-se a vir confortar-me. Chamava-me:

— Minha filha, minha filha, venho com tanta pressa a pedir-te a esmola. Preciso que me consoles e me desagraves. E os pecadores estão a morrer de fome: queres alimentá-los? Queres dar-lhes a vida?...

Segue-se depois o que foi a Paixão nesse dia.

A 2.11.39:

Estou na véspera do dia mais triste e aflito para mim (escreve numa quinta-feira). Parece-me que caminho apressadamente para a morte.

Meu Deus, que confusão a minha! Aceito tudo por vosso amor: estou cheiinha de medo. O ódio do povo cai todo sobre mim. Todos me atiram setas e mais setas que me despedaçam o coração e todo o corpo.

Sinto como se estivesse o meu Jesus no meu coração a chorar e a tremer de frio: é um pobre e triste mendigo. Mas o meu coração está mais duro que a dura pedra e mais frio que o

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frio gelo: não tem dó de Jesus. Tenta expulsá-lo, não quer dar-lhe abrigo, oborrece-O. E Jesus, o pobre Jesus quase morre de dor!

Morra eu de dor, meu Jesus, por Vos ter ofendido tanto; chore eu que sou a causa das vossas lágrimas. Mas não basta, meu Senhor: fazei que eu verta lágrimas de sangue e de dor por todos aqueles que Vos ofendem; mas alegrai-vos e consolai-vos, porque eu sou instrumento vosso. Nas vossas divinas mãos me entrego para o Calvário, para a crucifixão, para a morte!

Ai meu Paizinho: sinto-me fechada, sozinha dentro de um mundo de trevas intensas. Tudo são pecados, maldades e crimes; por um lado e outro tudo são montões de imundícies. Tudo me pertence: eis toda a minha riqueza!

Sinto-me envergonhada e confundida. Desejava que todas as montanhas caíssem sobre mim e me cobrissem!

Depois de tudo, o abandono e a separação do meu Deus! Como estou sozinha! Perdi toda a riqueza; estou num abismo de perdição. Nem ao menos ao receber o meu Jesus me reanimo e lhe dou qualquer provazinha de amor. Nada, nada! O meu Jesus de mim nada tem. Ai de mim: esqueço-me dele! A morte é o meu acto de acção de graças. Eu não sei o que hei de fazer: eu quero amá-lo e viver só para Ele, mas não tenho amor vivo para nada. Terei coragem para subir o resto do meu Calvário? Tudo me abandonou e eu estou caída na encosta de uma enorme serra; a minha vista não atinge a altura que ela tem...

Depois de tudo isto, sinto que nada disse e não sou capaz de descrever a minha desconsolação. Que tristeza!

E cada vez mais ao vivo sente na sua alma o estado do pecador e aumenta ao máximo a sua desolação, que ela descreve com estas cores vivíssimas, a 12.11.39:

Poderá haver luz para as minhas trevas? Alívio para o meu sofrer? Eu estou de rasto no lodo e na lama; não vejo para dar um passo. Vou rastejando a olhos fechados por toda a imundície.

Parece-me que estou nas garras do demónio, não me larga mais. Sinto-me revoltada contra Deus (já antes explicou o sentido desta sensação: sente em si mesma o pecador revoltado contra Deus); estou ao desamparo de todos e num desânimo tão grande nem posso dizer ao meu Jesus que O amo.

Sinto-me envergonhada com tanta miséria: parece-me impossível amar a Nosso Senhor. Queria dizer bem alto, que não acredito que O amo nem Ele me ama a mim!

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Nosso Senhor foge, desaparece! Não me quer ver: vai horrorizado comigo e eu fico sozinha numa imensidade sem luz.

Se ao menos O soubesse amar e agradecer-lhe quando O recebo; mas nada, nada! Estou a dormir no pecado, em cima da sepultura ou do inferno que me há de engolir.

E Jesus sofre e faz-me sentir a sua dor. Todos os espinhos que vão ferir o seu divino Coração passam para o meu.

Ai, o meu Jesus, não pode sofrer tanta ingratidão! Nem ao menos eu poder consolá-lo! Vejo-me assim cercada de todos os crimes, não saio deles.

Sou a causadora de toda a dor e agonia de Jesus.

CAPÍTULO 19

SOB A IRA DE DEUS

Para que sobre os pecadores não caia a ira de Deus a esmagá-los, como eles merecem, tem a vítima que suportar de algum modo os efeitos dessa ira divina, à imitação de Cristo no Horto prostrado por terra e a bradar: "Pai, se é possível, passe de Mim este cálice!" O mais amargo da Paixão de Cristo foi ver-se como que objecto dessa ira, por ter tomado sobre si tudo aquilo que no mundo a provoca: os nossos pecados. Por isso sentia-se como que abandonado, repelido por seu Eterno Pai: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?"

As grandes vítimas tomam parte nessas aflições máximas de Cristo para completarem o que falta à sua Paixão: Adimpleo quae desunt passionum Christi in carne mea: Completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo (Col 1,24). Não admira então que encontremos nos escritos da Alexandrina tantas passagens em que a vemos debaixo dessa ira de Deus.

A 2.3.39, mostra a saudade que sentia por não ter podido comungar, na ausência do Pároco:

O não comungar é ainda para maior martírio. Ai, quanto sofre a minha alma!

Ó meu Jesus, e quanto sofreste Vós por mim! Deixai que a vossa vítima seja esmagada por vosso amor!...

Meu Paizinho, no momento em que pronunciei esta palavra, rolei pela cama. Todo o peso da justiça divina caiu sobre mim. Bradava-me Nosso Senhor:

— Vingança, vingança! A justiça de Deus tem de satisfazer-se na vítima da Humanidade!...

— Tudo, tudo, meu Jesus que for do vosso divino agrado, mas salvai o mundo. Mas não me falteis com o vosso divino auxílio; sem Vós nada posso.

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É impossível explicar a aflição e o medo destes momentos e o estado em que me deixa a minha alma. Que noite tão tremenda! Não posso falar mais.

A 3.4.39:

No fim de comungar, caiu sobre mim o peso esmagador, o aniquilamento e Jesus bradava-me:

— Infame, cruel, não correspondes às graças do teu Deus, do teu Criador!

Miserável: olha a tua miséria. Toda a miséria da humanidade é tua: toda a gravidade dos seus crimes. Que vergonha! Paga-me.

Agora digo eu: que vergonha, que medo eu sentia do Eterno Pai!

A aflição da minha alma não a posso explicar. Sentia no meu interior necessidade de me esgaçar toda, de aflita. Eu era retalhada ao fio da espada. O meu coração era-me arrancado fora, mastigado com dentes, até estar bem desfeito e lançado fora.

Com a aflição e o medo apetecia-me desatar em choro mas não chorei. A tristeza e a dor continua a fazer-se sentir.

Quatro meses depois, a 22.7:

O meu Jesus continua a ralhar-me; continuo a rolar na cama.

Meu Deus, meu Deus, como eu tenho medo!

Hoje dizia-me assim:

— Cruel! Insensata! De ti esperava tudo: desprezaste-me, calcaste aos pés o alimento da tua alma e de todas as almas. Desafias com os crimes mais horrendos a justiça divina. Criei-te para mim, desprezaste-me; abandonaste o teu Deus, o teu Criador: és digna de morte, és digna de inferno!

Que grande aflição eu sentia na alma e no corpo! Tais eram os arrancos que eu dava que parecia que ficava tudo em bocadinhos. Custa tanto suportar a ira de Nosso Senhor! O abandono dele e de todos!...

No dia seguinte:

Já que hoje tenho portadora, não posso deixar de lhe dizer umas palavrinhas de Nosso Senhor que me causaram extrema agonia na minha alma. Sentia que mãos imundas me apertavam a garganta; e Nosso Senhor dizia-me:

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— Maldita! Satanás é o teu senhor. Expulsaste-me a Mim, para ele te possuir. Ele quer instalar-te em corpo e alma no aposento dele que é o inferno: és digna dele! As tuas paixões desregradas to fizeram merecer.

Converte-te: ouve a voz do teu Deus; deixa-me de novo tomar posse do teu coração, para poderes ser digna da minha mansão celeste. Para que Eu te possa instalar lá, arrepia caminho!

O meu coração estava duríssimo e não queria ouvir a voz de Nosso Senhor: Ele irritado contra mim, deixava cair o peso de sua justiça e dizia que me esmigalhava:

— Olha o caminho que trilhas; olha como Me tratas, os maus-tratos que me dás. Converte-te, converte-te, porque te quero para Mim!

Todo o meu corpo ficava alanceado; mas não valeu nada o chamamento de Nosso Senhor: fiquei morta por completo...

— Meu Jesus, é tudo por Vós; aceitai a minha desolação e os meus dolorosos e tristes sofrimentos, para reconciliar e abrasar no vosso amor todos os vossos discípulos; sou vítima deles: aceitai-me, Jesus.

A 6.12.39:

O meu Jesus hoje estava muito zangado comigo. Antes de O receber, estava numa noite escura e o meu coração amargurado de dor. Parecia-me que não valia nada o que orava nem tudo o que fazia.

Depois de O receber, por uns rápidos momentos, iluminou-se um pouquinho a alma; varreu-se a tempestade e fiquei em paz: foi para voltar mais fortemente. Numa escuridão assustadora, já sem poder respirar, principiou Nosso Senhor a dizer-me assim:

— Ai, ai de ti, miserável; ai de ti, maldita, e de todo aquele que Me ultraja, que Me ofende a ponto de merecer a minha ira, a minha cólera, a minha justiça vingadora! Para eles já não é coração de Pai, já não tem ternuras nem amor! Sou juiz, mas juiz que castiga com toda a severidade e sem dó nem compaixão. És tu o réu de toda a Humanidade, o réu que merece todo o castigo da Justiça divina.

Eu sentia que Nosso Senhor lá do alto me olhava com toda severidade e descarregava sobre mim vingança e castigo, para me destruir. O coração batia com tanta força: parecia não me caber no peito; queria sair fora e rastejar na lama com desespero e aflição. O peso da Justiça divina deixava-me esmagadinha.

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O que hei de eu dizer-vos, meu Jesus, depois de tudo isto? Sem um momento de arrependimento por me ter oferecido a Vós como vítima, renovo a minha oferta. Descarregai sobre mim tudo, tudo: não deixeis nada para os pecadores, a não ser ternura, amor e compaixão! Os vossos ralhos são a prova do amor que me tendes: dão-me a conhecer que não rejeitastes a minha oferta e serei portanto, vítima até à morte, vítima dos pobrezinhos, vítima de reparação e amor.

Quero que as flores que adornam a minha cruz sejam só sofrimentos.

Ó sofrimentos amados, resgate e conquista das almas e do amor do meu Jesus! Quem uma vez abraçou os sofrimentos por amor daquele que lhos envia não os pode deixar jamais!

Mais terríveis o que lemos a 6.2.40:

Hoje tem sido outro dia de grande tormento. Tenho vergonha de viver no mundo. Estou receosa de mim mesma. Se me contemplo, enojo-me. Nosso Senhor ralhou-me. Rolei pela cama. Ele dizia-me:

— O cheiro do teu corpo é nauseabundo. A peste dos teus vícios invadiu o mundo. Desgraçada! Nem todos os crimes dos condenados do inferno te deixavam tão coberta como estás! Não te lavas jamais a não ser com o sangue de vítimas inocentes. Caia sobre ti a ira de Deus, um fogo de maldição!

Eu estava sozinha num mundo escuro e de podridão. Com muito custo, porque nem podia respirar, dizia a Nosso Senhor:

Ó Jesus, caia sobre mim e sobre o mundo inteiro o fogo do vosso amor. Seja essa a vossa maldição. Eu não recuso dar-vos o meu sangue até à última gota. Em troca só quero amor. É com ele e com a minha dor que eu comprarei as almas.

E agora a ira de Deus ameaçando com o inferno; 11.4.40:

Esta manhã, depois de possuir a Jesus no meu coração, estava fria e morta. Queria dizer-lhe tantas coisas; queria amá-Lo pelos que O não amam, amá-Lo com todo o amor do Céu e da Terra; queria dar-me inteiramente a Ele, que Ele me possuísse para sempre.

Mas a morte reinava; sombras assustadoras me cobriam. De nada valiam os meus desejos. Tudo era perdido e inútil. Rolei pela cama, ao mesmo tempo que Jesus me ralhava, dizendo-me:

— Desgraçada, desgraçada! O teu sono é mortal; vão acordar-te os horrores do inferno!

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Ai de ti, se não te convertes! Espera-te o inferno ladeado de demónios, de fogo e de almas ardendo, ardendo eternamente. Converte-te, vem a Mim, vem ao meu Divino Coração que está aberto para receber-te...

Não resistimos a copiar deste mesmo mês de Abril, a 17, esta passagem belíssima:

Onde é que está o meu Jesus? Para onde se escondeu Ele? Ai do meu coração e da minha alma que estão sem vida! Não podem passar sem Jesus. Não O vejo, não O sinto, mas parece que o Céu se rasga, que Ele desce às nuvens e as faz cair sobre a Terra, ficando eu no meio para ser esmagada. É tremenda a justiça de Deus! Está armada sobre mim. Eu não tento fugir: em vão o conseguiria.

Como pode ser isto? Jesus não tem na Terra mais ninguém para castigar? Sou eu, só eu que mereço castigo? Sou eu e sempre eu que estou coberta de todos os crimes! O inferno abre-se abaixo de mim: estou prestes a cair, nem um fiozinho me prende. O meu coração parece não caber no peito com aflição... Nem posso falar nem respirar.

Se os pobres pecadores sentissem o que eu sinto, vissem os horrores que vejo, não pecavam, com certeza.

E agora segue-se esta linda prece:

Ó meu Jesus, o que eu sou e de que estou coberta! Não tenhais nojo: aproximai-vos. O vosso sangue divino regou a Terra, abriu o Céu.

Permiti que vá agora o meu lavar as almas dos pobres pecadores.

Permiti que o mesmo sangue possa incendiar por toda a Terra o vosso amor, para que possamos dizer todas as almas da Terra numa só voz: reina o amor de Jesus em todos os corações, arde o mundo numa só chama por amor de Jesus.

Morreu o pecado: já não existe! Jesus já não é mais ofendido. Na Terra já só há amor, amor, amor!

Às vezes sente a Alexandrina mais expressamente a ira do Eterno Pai, como por exemplo lemos a 14.5.40:

...O mundo em treva revolta-se todo contra mim e eu sinto-me humilhada, reduzida ao nada. Estou coberta de crimes e de imperfeições e tenho vergonha de Jesus; temo a justiça do Eterno Pai.

Nosso Senhor hoje, ao baixar ao meu coração, suavizou a minha dor. Uma lampadazinha se acendeu na minha alma. Apagou-se bem rápido; fiquei na maior escuridão e num

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estado abominável e vergonhoso.Sentia a justiça do Eterno Pai a destruir-me; ficava como reduzida a pó...

E a 25.10.40, Jesus convidava-a para a Paixão: era sexta-feira:

— Minha filha, meu anjo, anjo querido do meu Divino Coração, é chegada a hora de mais amor. É chegada a hora de mais alegria e consolação para Mim.

Vem, vem ver o teu Calvário. Como está lindo! De seco e espinhoso que era, está quase todo transformado em viçosas e perfumadas flores. Tantos lírios e açucenas! Coragem, anima-te. Vem contente transformar em rosas os espinhos que ainda faltam. E depois, o Céu, o teu Jesus e a tua Mãezinha querida! Coragem, deixa-te crucificar, para me salvares os pecadores, para dares a paz ao mundo. Tens o teu Jesus com tua Mãezinha para te auxiliarem.

— Sim, Jesus, vou alegre, vou contente, porque a minha alegria está em consolar-Vos, em sofrer por Vós. Quero dar-Vos as almas, quero salvar o mundo, mas não posso sozinha, não tenho força. Conto convosco, meu Jesus.

Fui para o Horto, tudo me convidava para a tristeza e solidão. Ao ver-me tão abandonada, senti tal dor no meu coração, que me fazia chorar rios de lágrimas; parecia que morria. Uma onda de crimes, um mundo de maldades e imundícies caía sobre mim. Faziam que a vergonha mais se apoderasse de mim e mais desejos tinha de me esconder e mais medo sentia ainda. Ao mesmo tempo que me parecia do meu corpo sair tanto sangue que banhava a Terra e as almas.

Sim: sei que todo o sangue e toda a dor eram de Jesus. Ai, quem me dera poder exprimir-me; mas não sei! (Note-se aqui a identificação das suas dores com as de Cristo que nos revelam ao mesmo tempo a grande união a que já chegou com Ele).

Jesus sentiu uma dor de morte, ao ver as almas que foram remidas e lavadas com o seu divino sangue, diante dos seus divinos olhos lançarem-se ao lodo, às imundícies, só entregues ao pecado! A aflição, o medo e a dor aumentou tanto, tanto: fazia sentir pavor! (É o coepit pavere – começou a sentir medo - de Cristo no Horto).

Se houvesse milhões de mundos para esconder tudo isto!

O Eterno Pai estava todo irado. A sua justiça divina prestes a descarregar-se desabridamente. Parecia que se abria a abóbada do céu e sobre mim; caía em negros pedaços, com tal horror que parecia-me que todas as minhas veias se rasgavam e esguichavam fontes de sangue. Meu Deus!...

Mais tarde, a 25.8.42, encontramos em seus escritos:

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Não custam as nossas ofertas a Jesus; dizer-Lhe que todo o corpo é dele; dizer-Lhe: sou vossa para o martírio e para a Cruz. Mas quando se sentem os rigores da sua divina justiça, quando Ela dá sinal que tomou a sério e se utilizou do frágil instrumento, para assim salvar o mundo, é de morrer.

Que tremenda e aterradora é a Justiça divina!

CAPÍTULO 20

A MORTE TOTAL

A vítima sente não só terrivelmente a ira de Deus a esmagar-lhe todo o seu ser, mas como que a morte destrutiva de todo esse ser.

Múltiplas vezes encontramos nos escritos da Alexandrina a descrição deste género de imolação.

A 22.4.39:

A minha alma sente a morte do mundo inteiro. É a morte, é a noite escura que reina por toda a parte e quando recebo o meu Jesus: a morte total. Não sou só eu; é Jesus também que se finge morto. Faz-me sofrer tanto! Mas é por Ele, benditos sofrimentos.

Hoje passei um pedaço assim neste estado e por fim ouvi que o bom Jesus me dizia:

— Maldita, maldita! E um Pai como Eu bondoso, terno e amável! Que dor, que angústia, que martírio para o meu divino Coração!

— Ó meu Jesus, passai para o meu coração a dor, a angústia e o martírio. Fazei que eu sofra tudo; eu ainda estou aqui, meu Jesus. Seja o meu coração, a minha alma, o meu corpo um instrumento de reparação para Vós.

Nosso Senhor chorava e eu sentia que Ele abraçava o meu coração e me estreitava ao dele. Não me dizia estas palavras com tom de quem ralha, mas sim com grande mágoa e dor. Como o meu coração sofria! Nosso Senhor fazia-me sentir a dor que Ele sentia.

No dia 2.5.39, lemos:

Hoje, no fim da sagrada Comunhão, estava morta. Que morte tão triste! Andei a rolar pela cama de aflita. E Nosso Senhor dizia-me:

— Maldita, maldita! Hei de esmagar-te! Que caminho escandaloso tu levas! Corto-te o fio da existência. E que morte é a tua? A morte eterna, a morte dos condenados!

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O peso esmagava-me; o coração era apunhalado com toda a força. E Jesus parecia que descarregava sobre mim uma foice. E eu dizia:

— Ó meu Jesus, que me importa ser esmagada e que o meu coração seja trespassado pelo punhal, milhares e milhares de vezes por minuto, se não for o vosso apunhalado?! Se vos consolar, alegrar e amar e vos der as almas?!

E Nosso Senhor disse-me:

— São tantas, tantas as que andam por caminho errado. É o maior número. Dá-mas; dá-me almas. Olha: quem é criado não é senhor e todo se deve empenhar em cumprir o seu dever para lhe ser agradável.

Tu és a minha vítima: esforça-te para desempenhares bem a tua missão; para consolares o teu Jesus e lhe dares almas.

Nosso Senhor dizia-me isto com muita tristeza e dor. Mas quando pronunciou estas últimas palavras, tirou de sobre mim o peso que me esmagava.

Hoje, 17 (17.5.39) — escreve ela no mesmo mês — depois que recebi Nosso Senhor, fiquei por muito tempo num estado aflitivo. Era a morte completa que reinava em mim. Eu dizia a Nosso Senhor:

— Que eu sofra a morte, mas que viva o mundo.

Nosso Senhor bradava-me:

— Vingança! Hei de me vingar de ti! Tens que viver nesta morte, se não queres a morte eterna. Ou melhor, tens que viver esta espécie de morte, para que aqueles a quem fiaste não morram eternamente.

— Ó meu Jesus: que eu não tenha um momento de outro viver, mas que vivam todas as almas para a vossa graça, para o vosso amor, para a vossa glória!

Era uma tempestade medonha: parecia que as nuvens se rasgavam e Nosso Senhor aparecia muito irado contra mim. Retalhava-me toda. Rolei de aflição e com o peso sobre mim.

No dia 4.6.39, terceiro aniversário da sua primeira morte mística, no dia da Santíssima Trindade, no meio das mais ininterruptas angústias de morte, teve um pequeno alívio do alto. Fale ela:

Hoje, quando recebi o meu Jesus, Ele não me disse nada e eu também não encontrei palavras para lhe dizer. Estávamos ambos mortos. Eu sentia um rio de gelo: coalhou, fiquei coberta: foi assim que eu morri.

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Ai, o dia da Santíssima Trindade, como eu o passei triste! Que dor sentia no meu coração e recordava tão amargamente o dia da Santíssima Trindade de há três anos. Benditos sofrimentos. Mas ai, se não fosse a força de Nosso Senhor, não se podiam suportar!

Agora à noite, eu estava tão doentinha, nem podia falar nem consentir que me tocassem. Principiámos a rezar o Terço; eu ia acompanhando. Principiei a sentir tanta força: não cabia em mim. Queria voar para o Céu. Levantei-me: não sei o tempo que estive de joelhos em oração; a Deolinda calculou que foram perto de três quartos de hora. Não sei se me sei explicar; não sei se o meu Padre me compreenderá. Eram ânsias de amor que eu sentia, mas eram ânsias de me fazerem sofrer muito, porque queria amar o meu Jesus e queria que todos O amassem, que ninguém O ofendesse. E, pobre de mim: não sentia nada disto! Mas tudo se passava no meio de uma grande paz e nesses momentos não tinha dúvidas que era o meu Jesus, que era Ele a minha força; o que agora não sucede: já tenho dúvidas.

No fim de tudo veio o meu Jesus falar-me assim:

— Não te aflijas, meu encanto, com a morte que sentes. Matei-te tudo há três anos, para poderes viver. Tu és o encanto dos meus olhos, a alegria, a consolação do meu Coração divino. Tu amas-me, mas amas-me com dor: é o amor doloroso.

O teu coração arde e arderá eternamente nas chamas do meu divino amor. Depressa virá o dia que amarás com delícias e com toda a consolação. Eu não podia deixar de te vir confortar com umas palavrinhas, depois de umas ânsias tão fortes do amor doloroso, mas que foram de tanta consolação e reparação para Mim e de honra e glória para toda a Santíssima Trindade...

Repetidíssimas vezes a Alexandrina experimenta não só essa morte mística, mas as consequências: a sepultura, o cemitério onde vai sendo toda reduzida a pó pelos vermes.

Mais um contrapeso para a minha cruz: mais um bocadinho de aumento ao meu sofrer, à minha dor — escreve a 10.6.39 — Bendito seja o meu Jesus: que variedade de sofrimentos sem fim! Ele conservou-se sempre caladinho: nem uma palavra.

Mas o meu Padre quer saber o estado da minha alma? Sinto como já muitas vezes tenho sentido, a morte no interior. Mas o pior ainda é ser eu própria o cemitério onde toda esta mortandade de almas se vem sepultar. Que horror, meu Jesus! O que eu sou! Não sei se me faço explicar: mas o meu Padre bem sabe que sou muito ignorante, que não sei melhor.

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Mas sinto mesmo em mim o que costumamos sentir quando entramos num cemitério e nos concentramos daquele silêncio, daquele sono mortal.

Ai que aflição na minha alma! Até parece que me faz rasgar o peito.

E o abandono em que estou; e o meu nada! Não tenho que dar a Jesus. E tenho tanta pena de que Ele seja ofendido! O que poderei fazer, para evitar os pecados do mundo? Tenho imensos desejos de me fazer pequenina: eu quisera nascer agora, para ser vítima desde criancinha. Não queria ter vivido no mundo nem um momento sem sofrimentos, para melhor poder dizer com toda a verdade:

Ó meu Jesus, eu amo-Vos, sofro para Vos amar e consolar o vosso divino Coração; sofro para reparar todos os crimes do mundo e salvar-Vos todas as almas. Vivo para tudo o que Vós quiserdes, menos para vos ofender e desgostar. O como eu me julgava feliz, se não tivesse tido outro viver na Terra senão sofrer e amar!

Mas pobre de mim: o que eu tenho sido! Não existe no mundo quem de longe se possa comparar à minha miséria e maldade.

No dia seguinte escrevia:

Eu continuo a ser um enormíssimo cemitério e toda a mortandade do mundo inteiro vem ser sepultada em mim. Já não cabia mais: foi-se amontoando, até que agora nem assim: cai para lados. O meu Padre compreende este estado?

E a 21.6.39:

Que dia de trevas e aflição! Sinto necessidade de rasgar o peito para ir numa carreira doida acudir ao meu coração, como quem acode a um fogo. Parece que morre de dor: está esmagado, aniquilado. Se não fosse o meu Jesus, não resistia.

Ele hoje não me disse nada; ficámos na agonia da morte. É para mim um dos maiores sofrimentos o eu ser sepultura de toda a mortandade

Passemos ao ano seguinte, a 15.1.40:

Não vejo, não vejo. A minha alma está morta, morta: morta para o mundo, morta para Deus! Morri para o mundo e o mundo para mim. Parece-me que morri para Jesus e Ele não existe para mim. Ai, como eu estou abandonada! Ai que amargura a do meu coração! Eu estou morta e sinto o meu nada e atemoriza-me, porque não há um nada semelhante ao meu.

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Eu estou morta, mas vejo-me coberta de todas as misérias, dos crimes mais vergonhosos e nojentos. A minha alma não tem um raiozinho de luz.

Morta estava antes de receber Jesus e morta fiquei depois de O receber. Não tenho aquilo que queria ter: queria amor, mas o amor morreu também para mim. O coração está frio, mas está ferido. Quantas mais ânsias de amor, mais ele sangra, mais viva é a dor, porque não consegue o amor puro e abrasado com que deseja amar a Jesus. Não posso olhar para o Céu, porque o coração levanta-se mais rápido do que um foguete, começa por não caber dentro do peito. Só em Jesus pode descansar.

E agora esta bela página literária que encontramos a 14.2.40:

Continuo a minha viagem por debaixo do mundo. Tudo o que nele se encerra está morto: é portanto a morte que me cobre. Esta mortandade causa-me medo, arrepia-me, faz-me estremecer. O gelo tudo gelou e todo o meu ser morreu gelado!

Ó meu Jesus, por vosso amor quero viver e morrer no gelo, para assim incendiar o vosso amor nos corações de todas as criaturas, para que nele possam viver e morrer também. Como há de ser belo! Nem posso pensar: parece que já estou a ver todos os corações no Céu a arder numa só chama! O amor do meu Jesus, incendiai-vos no meu coração, para que eu o possa espalhar na Terra e incendiá-la toda nos raios do vosso amor!

Ai meu Padre, que sofrimento que tanto fere o meu coração! Eu tenho ânsias de voar para Jesus; mas quanto mais voo, mais quero voar; quanto mais me quero aproximar dele, mais Ele me foge, até desaparecer e fica como se não existisse para mim. Eu fico no ar, como uma pombinha batendo as asas. Para baixo não quero descer, mais para cima não tenho força, não posso voar. Estou em risco de cair desfalecida.

Ó meu Jesus, ó meu amor, compadecei-vos da minha dor; não me deixeis cair. Dai-me força para ir ao encontro do vosso divino Coração e nele descansar eternamente!

Ai meu Padre, que dor, que dor! Quero e não posso; busco a Jesus e não O encontro. Morro de dor, desfaleço e caio!

CAPÍTULO 21

DORES DO INFERNO

O peso dos pecados e a consequente vergonha que eles causam, a ira de Deus pairando sobre esses pecados, esmagamentos, vascas de morte, ameaças e até dores do inferno: tudo experimenta a grande vítima de expiação.

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Depois da Comunhão, assim desabafava a Alexandrina a 3.6.39:

— Ó meu Jesus, para onde fostes Vós? Parece-me que fostes para tão longe, que nunca mais vos posso encontrar.

Mas o meu Jesus não me deu resposta; só passados alguns momentos me falou assim:

— Vingança e maldição é a paga que recebes da tua maldade e dos teus crimes.

Abre-te, ó inferno, para sepultar em ti estes abismos de miséria, estes abismos das imundícies mais nojentas! Vingança, vingança, ó cruel!

Nosso Senhor descarregava sobre mim o peso da sua divina justiça e da sua vingança. Eu disse-lhe:

— Ó meu Jesus, fazei que os meus sofrimentos fechem as portas do inferno, para que não caiam lá as almas. Eu não vos recuso nenhuns, mas quero que as salveis! Lembrai-vos, Jesus, que são vossas filhinhas, filhinhas do vosso sangue que derramastes até à última gota.

E no dia 8, também após a Comunhão:

No fim de receber o meu Jesus, fiquei sepultada numa noite escuríssima. O coração tornou-se tão grande e tão duro e escuro! Parecia um rochedo do mar e debaixo de mim estava um medonho abismo. Nosso Senhor dizia-me:

— Miserável, desgraçada, estás à boca do inferno para te engolir!

Maldita, é a tua sepultura eterna. Não bastam os tormentos do inferno por toda a eternidade para castigar os teus crimes. Não temes as ameaças, não te moves à penitência!

Eu nada temia, estava sempre na minha dureza e não tinha quem se compadecesse da minha dor. A minha morte não causava dó a ninguém. Mas Nosso Senhor gritava:

— Vingança! Vingança!

O peso que sobre mim caiu deixava-me esmagadinha; todos os nervos parece que se me encrespavam. Nosso Senhor, com uma foice, deixava-me retalhada. Era grande, mas muito grande a minha aflição. Rolei pela cama e não tinha palavras para dizer a Jesus. Como há de ser terrível ver Nosso Senhor na realidade a lavrar a sentença às almas que se condenam!

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Ai, meu Padre, como eu quero sofrer, para que o meu Jesus não sofra e para que não tenha de pronunciar tais palavras aos pobrezinhos que tão gravemente O ofendem.

Ó meu Padre, parece-me que todas as misérias são minhas; que as palavras de Nosso Senhor são para mim! Como eu me vejo coberta de imundícies! Não há ninguém tão miserável e tão nada como eu. Mas o nada pode pecar? O meu Padre compreende-me?... Eu não me sei explicar melhor…

A 13 de Junho sente na alma a ameaça de guerra que se aproxima:

Hoje sim, recebi o meu Jesus, mas Ele estava tão zangado! Eu estava aflita com tanto abandono e dizia-lhe:

— Que será de mim, meu Jesus, se me deixais sozinha? Não me abandoneis. Ó meu Jesus, confio em Vós!

De repente pareceu-me ouvir o toque de uma trombeta tão estrondosa que se ouvia pelo mundo todo. A aflição fez-me rolar e ouvi Nosso Senhor então dizer-me:

— Ó Justiça, ó Justiça divina! O mundo está em cima de um vulcão de fogo, o qual sé falta de um momento para o outro abrir-se e incendiá-lo!

Vingança, vingança de um Deus que já não pode suportar mais.

Desgraçada, não ouves a voz que te chama? Maldita, maldita!

A presença de Nosso Senhor em minha alma era aterradora e a sua Justiça divina caía sobre mim fortemente. Todos os ossos e nervos pareciam estalarem e partirem-se em pedaços e ficaram esmigalhados. Por alguns momentos não sabia dizer nada a Jesus. Depois disse-lhe:

— Ó Jesus, isso é comigo? Eu quero ouvir-vos, eu quero seguir-vos; quero ser-vos fiel como São Paulo no caminho de Damasco. E, se não é comigo, fazei que com os meus sofrimentos todas as almas oiçam a vossa divina voz e vos sigam.

Disse-me Nosso Senhor, em tom mais brando mas ainda muito severo:

— A trombeta que te chama é a voz da minha Igreja e dos meus discípulos a convidar-te à oração, à penitência...

No dia seguinte lemos:

Não espere outra coisa de mim: só queixumes e nada mais. Recebi a Jesus e fiquei morta.

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Passado um pedaço, comecei a sentir como que a Terra em convulsões e a dar urros fortíssimos, o que fez logo com que rolasse na cama. Nosso Senhor dizia-me:

— A Terra move-se e dá urros, o vulcão incendeia-se: ficas num braseiro do qual passarás ao inferno.

Justiça, Justiça de Deus cai sobre a terra pecadora e criminosa. Acorda, acorda, maldita, do sono mortal que te precipita no inferno.

Nosso Senhor dizia-me isto com voz altiva, parecia falar do alto do Céu. Eu conhecia bem que não havia nada superior a Ele, que era Ele quem tinha todo o poder. Mas eu morta estava e morta fiquei. Não tive palavras para dizer a Jesus, senão passados alguns momentos.

Um mês depois, a 13.7.39:

Hoje no fim da sagrada Comunhão estava bem morta. Sentia na minha alma uma medonha tempestade: parecia-me que se rasgavam as nuvens com o estrondo do trovão. Com a desolação que sentia e o susto, ia desfalecendo: parecia-me não resistir. Tristes momentos depois de recebido o meu Jesus! Vinha-me à lembrança: não voltarei a sentir outro estado senão este de morte?

— Jesus, Jesus, compadecei-vos de mim. Tende pena da maior de todas as pecadoras.

Ó meu Jesus, eu quero, com esta Comunhão e com esta desolação, consolar a Mãezinha querida para que por Ela sejais Vós consolado.

Mas o meu Jesus não me dizia palavra; a tempestade tudo derrubava, o peso esmagava-me até que ficava despedaçada e me enterrava pelo chão. Passei hora e meia neste estado e depois disse-me muito fortemente Nosso Senhor:

— A fúria da tempestade da alma é muito mais tremenda do que a fúria dos ventos, a tempestade dos tempos e dos astros.

Maldita! Já não a temes, não a ouves! Vê a gravidade dos crimes que te matou. Desgraçada! O inferno todo te espera, para te atormentar em todos os teus sentidos...

Eu sentia-me morta e ainda agora sinto; mas os sofrimentos sentia-os como viva. Compreende este estado? Não me sei explicar melhor.

Mas mesmo assim, sei que não há palavras com que eu possa exprimir os desejos que sinto de agradecimento ao meu Jesus por tanto que me faz sofrer e mostrar-lhe quanto O desejo amar. Parece que já não estou em mim: tinha coragem de

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entrar num fogo a arder em fortes labaredas, para assim provar ao meu Jesus que sou dele e que O amo...

Agora repare-se na veemência da dor com que foram escritas as palavras que se seguem, a 26.11.39:

Ai, que martírio, o da minha alma! Ai, que dor, a do meu coração! Foi ferido: está aberto. Sangra sangue em tanta abundância! Parece-me que todas as almas do mundo se podiam afogar nele.

Estou sobrecarregada com um peso brutal: esmaga-me, não me posso mexer.

Não há quem se possa aproximar de mim. A enormidade das imundícies que me cercam não deixa. Estou coberta delas, ao abandono de todos. Eu sou um veneno que envenena o mundo, mas ai, que veneno mortal! Sinto que todos têm de fugir de mim, mais do que de um monstro feroz.

O abismo em que me vejo é medonho. Não há luz que o penetre e eu não posso fugir dele. Meu Deus, e eu sozinha!

Não tenho um momento de alegria. A minha alma está desesperada; sinto que cai sobre ela a maldição divina. Quero amaldiçoar a hora em que nasci, a mãe que me criou, a terra que calquei. (Parece que estamos a ouvir o Santo Job)!

Ai, meu Jesus, que sofrimento, que dor tão tormentosa! É uma guerra interior, guerra que jamais poderá acabar. Os combates são todos sem luz.

Mãezinha, minha querida Mãezinha, dai-me a vossa bendita mão; é por Jesus que eu combato, é para lhe dar as almas: mas não posso só. Socorre-me, ó Mãezinha querida, tem dó da pobre filhinha que sempre te amou e em ti confia!

A 5.12.39, damos com esta carta terrível:

Não tenho nada de Nosso Senhor; não tenho virtudes; não tenho amor. Tudo é do demónio: vejo a minha alma mais negra que um negro carvão, Sinto que estou nas garras do demónio; quer lançar-se ao meu pescoço e apertar-mo com toda a força. Que furiosa tempestade! O vento enrola-me, derruba-me. Estou no meio do lodo, da lama, das imundícies: ninguém se pode aproximar de mim.

Sinto a dor e a pena que Nosso Senhor sente, ao ver-me assim. O coração fica aniquilado: o peso é esmagador.

Este estado da alma só serve para Nosso Senhor derramar lágrimas: falta-me a minha dor. Estou dura, dura. Não me entristeço com o que faço sofrer ao meu Jesus. Que negra ingratidão!

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Na verdade, serei a causa de tanto sofrer para o meu Jesus? Ai, que triste noite a da minha alma! Não posso seguir com tanto desfalecimento. O abandono é em tudo e por todos.

Parece-me que tenho que jurar que sou uma falsa, uma enganadora. O meu Jesus não podia repousar nem operar tantas graças numa alma, num coração tão nojento, como o meu. Ai, meu Jesus, não há quem me possa valer!

Hoje quando O recebi, era assim com estes terríveis sofrimentos que eu estava e caí num abismo medonho; mas não cheguei a morrer.

A 28.1.40, esta tão terrível ou ainda mais que a precedente:

Hoje estou tão aterrada com as minhas misérias e o meu nada! E, para maior dor ainda, Nosso Senhor ralhou-me, quando veio à minha alma. Logo, logo que O recebi, principiou Ele:

— O teu coração está podre! És má, és digna de condenação e da ira de Deus. Onde hospedas o Rei da Glória, a Majestade divina? O teu corpo já exala o cheiro imundo dos condenados. Aparta-te para o inferno!

Nosso Senhor repelia-me com a sua bendita mão e sobrecarregava-me com a sua divina Justiça. Que aflição na minha alma! Estava como que num desespero. Passados alguns momentos disse-lhe:

— Jesus, não vos canseis de jogar a vossa bolinha; brincai, brincai e, se me virdes cansada pelo sofrimento, vinde ajudar-me; dai-me força. É bem doce sofrer pelo vosso amor. Não quero outro fim no meu sofrimento senão dar-vos almas, consolar o vosso divino Coração...

Para a incompreensão que possam suscitar estes sofrimentos tão esquisitos e, quase diríamos, com aspectos tão novos na mística, copiemos esta frase que Nosso Senhor lhe dirige durante a Paixão de 2.11.40:

Coragem, minha filha: a ira de Deus que cai sobre ti não é para ti; não és tu que O desafias, mas sim aqueles de quem és fiadora.

Repetidíssimas vezes lhe dá Nosso Senhor a explicação do seu misterioso sofrer. Afinal, vê-se satisfeita no pedido tantas vezes feito a Deus: que invente sofrimentos para mais a imolar pelos pecadores.

Bem diferente é a linguagem divina quando se dirige à própria Alexandrina, como vemos no dia seguinte:

Depois de uns momentos que Ele já estava no meu coração, disse-me assim:

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— Minha filha, que bem se está no teu coração! És digna que Eu habite nele. Tem raios ardentes, fogo devorador. Como consolas a tua querida Mãezinha por me amares assim! Ela tomou-te para os seus braços maternos como outrora a mim em criancinha. Está-te a acariciar: não o sentes?

— Sinto, sim, meu Jesus; mas, mesmo que o não sentisse, confiava em Vós…

Posta esta explicação, continuemos a estudar essas que poderíamos chamar dores do inferno. Delas fala S. João da Cruz, ao tratar da purificação mística do espírito:

Porque, verdadeiramente, quando esta contemplação purgativa aperta, sombra de morte e gemidos de morte e dores do inferno sente a alma muito ao vivo. (ob. cit. p. 374-375)

Diga a Alexandrina a 27.4.40:

Que tristeza eu sinto com a separação do meu Deus! Parece-me que nunca mais me posso juntar a Ele; nem nunca mais O verei. O Céu não é para mim. Sinto Nosso Senhor a repelir-me dele. Que sofrimento o dos condenados! Avalio o tormento deles. Só este bastava para eles sofrerem no inferno. Que horror! Quanto se deve evitar o pecado, só para nunca perder a Jesus nem ferir o seu amante Coração.

Ainda hoje, ao recebê-lo, era dolorosa a minha dor e tremenda a minha aflição. A dor que eu sentia não era minha: era a de Jesus; era o ferimento do seu divino Coração: era a mágoa da ingratidão humana. A aflição era tremenda, porque era tremendo o estado da minha alma.

Está nesta passagem bem indicada ao vivo a pena de dano dos condenados.

A 15.5.40, experimenta a gravidade da ofensa de Deus:

A visita de Jesus, hoje, ainda me sobrecarregou mais com dor, tristeza e amargura. Ele dizia-me:

— Ingrata, ó ingrata que me feriste! Ingrata, ó ingrata que me ofendeste! Não tenho outro castigo para castigar teu crime a não ser o inferno; e esse mesmo não basta. O que é a ofensa de Deus! Aparta-te de mim: não te posso ver! Vais ser esmigalhada com o peso da Justiça divina. Vais ser sepultada no inferno eternamente!

Ai, meu Padre, quanto custa ouvir esta sentença de Jesus! Ele, ao pronunciá-la, fazia-me sentir no coração e na alma ais tristes e profundos. Mas eram dele. Ele repelia-me, mas, oh, com que amargura!

Este quadro não me sai da alma: está-me bem gravado.

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— Ó meu Jesus, quero evitar o pecado e todas as ofensas feitas ao vosso Coração amantíssimo. O meu coração e a minha alma sentem a necessidade extrema de chorar amargamente. São os sentimentos que eu tenho por Vós, meu Amor. Quero chorar lágrimas de dor, lágrimas de sangue. Quero que todo o sangue do coração e das veias seja vertido em lágrimas de dor e de amor. Quero com elas obter de Vós para a cruel Humanidade perdão e misericórdia.

Jesus, crucificai-me, Jesus, imolai-me, Jesus, consolai o vosso Coração divino, o vosso Coração de Pai. Passai para mim as vossas amarguras e esquecei as minhas ofensas e de todos os vossos filhos. Perdão, Jesus! Sou vossa e amo-Vos.

A carta de 20.5.40 raia o sublime:

O inferno está aberto e dá urros debaixo de mim; parece-me que caio sem remédio neste abismo infernal. Estou sobre ele para ser engolida; e a lepra dos meus pecados, os vícios de que estou coberta descarnam-me a carne dos ossos, fazendo-a cair ainda da Terra para o inferno aos bocadinhos!

O que poderá sentir ainda mais o meu pobre corpo e a minha alma? Estou à boca do inferno e não temo. Estou a sentir os horrores da Justiça divina e continuo na minha louca e desgraçada vida. Estou cega, estou cega! Só me encantam os desvarios e loucuras do mundo. Na alma não penso nem na minha salvação eterna. Que triste vida, que triste morte! Já ouço a maldição de Nosso Senhor:

— Aparta-te de Mim, maldita, eternamente!

E sou repelida por Jesus e já quero amaldiçoar-me a mim mesma. Sou um mundo de horrores e trevas medonhas!

Isto é o que a minha alma sente. Graças, muitas graças ao meu Jesus, por não ser assim. Eu teria sido tudo isto, se Ele desde a minha tenra idade não velasse por mim, não me amparasse. E a minha querida Mãezinha trouxe-me sempre nos seus santíssimos braços, debaixo do seu divino manto. Ai de mim, se não fora Jesus e Maria!

Em troca de tão grande amor, quero ser-lhes grata, quero reparar todos os crimes que contra os seus santíssimos Corações se cometem: quero desagravá-los na medida do possível; quero ser vítima, quero dar por Eles a vida. E a todo o momento de dor e de imolação, quero dar glória a Jesus, à Mãezinha e a toda a Santíssima Trindade.

E como prova do meu agradecimento por tudo, quero dizer-lhes um eterno obrigado e cantar-lhes sem cessar o Magnificat!

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E para não prolongarmos demais este capítulo, ainda esta carta célebre e bem característica de 3.6.40:

O dia 2 do mês de Junho! Recorda-se, meu Padre, que Nosso Senhor me preveniu, logo de manhã, que eu ia sofrer muito? Falou-me assim logo que eu O recebi:

— Toma conforto, minha filha: a tua dor será dolorosíssima. O teu sofrimento horroroso. Aceitas, para consolares e desagravares o meu divino Coração e para que se salvem as almas?

— Aceito tudo, meu Jesus; com a vossa graça, nunca ouvireis dos meus lábios um não.

— Ai de ti, se não tinhas o teu Jesus... para te ajudar na tua dor! Enche-te de amor; também hás de transbordar de dor. Ainda hoje hás de sofrer muito: a dor há de atingir o seu auge. Coragem: o Tabor dá força para a dor.

Já da parte da tarde, não sei bem a hora, quando menos eu pensava, principiei a sentir um doloroso sofrimento. O mundo estava todo numa tremenda nuvem negra e sobre mim caíram todas as maldades e crimes dele.

Via e sentia a destruição dele: tudo em ruínas. Eu estava condenada ao inferno! Sentia a minha alma a arder nele. Por entre mim e muitas almas que lá estavam saíam horrorosas labaredas, mas não eram de luz e os meus ouvidos ouviam o rumor delas.

Eu não podia suportar em mim o olhar de Jesus e da Mãezinha e nem ao menos podia chamar por eles. Por muito tempo não fui capaz de dizer: Jesus, Mãezinha, acudi-me. O meu coração era uma pedra dura: estava completamente perdida. O inferno era a minha morada.

É impossível descrever os horrores que a minha alma sentiu. Não sei o que me obrigava a descer da cama e a atirar-me para aquele abismo.

Sinto que nada é tudo isto que digo em comparação do sofrimento: mas não me sei explicar melhor.

Presenciámos toda esta cena grandemente impressionante para os presentes. Num dado momento, vendo-a tão aflita, disse-lhe:

— Chame por Jesus!

Respondeu-me, com voz abafada:

— Não posso.

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Perguntei-lhe então:

— Está no interno?

Resposta imediata:

— Estou!

Compreendi então do que se tratava nesse êxtase tão atroz.

Quando terminou e voltou ao normal, a primeira pergunta que fez, foi esta:

— Mas eu ainda posso chamar por Jesus!? Ainda me posso salvar!?...

Para concluir, ainda esta passagem de 15.8.40:

Nosso Senhor não estava satisfeito com os sofrimentos do dia; veio já a altas horas da noite e disse-me:

— Anda, minha filha, para as portas do inferno, para evitares que as almas caiam lá. Anda para ele sofrer os sofrimentos que deviam sofrer aquelas que nele deviam cair,

Então principiei a sofrer horrorosamente. Senti-me dentro do inferno agarrada às portas. Empreguei quanta força tinha para conseguir que elas não se abrissem. E agarrados a mim sentia os demónios com toda a raiva infernal a arrastarem o meu corpo para todos os tormentos, mais para o meio do inferno; cravavam-me os dentes, arrancavam-me as carnes aos bocadinhos.

Meu Deus, que horror e que tremendos os tormentos do inferno! Tudo são urros, escuridão e maldições.

Claro está: os meus olhos não viram nada. Tudo isto foi o que a minha alma sentiu. Tudo me ficou bem gravado para nunca mais esquecer. As forças que empreguei para fechar as portas do inferno não foram do corpo mas as forças da alma.

CAPÍTULO 22

COMPLETANDO O QUE FALTA AOS SOFRIMENTOS DE CRISTO

A vítima está em lugar dos pecadores: fiadora deles, por isso sofre o que eles deviam sofrer: sente o peso dos pecados do mundo e torturantemente as más disposições dos pecadores que repelem o convite à conversão; experimenta toda a abominação desse estado, como se fosse seu, e consequentemente a ira de Deus a repelir de Si essa abominação: paira sobre ela a morte eterna, as dores do inferno.

Mas a vítima está também e principalmente em lugar de Cristo: é isso afinal o que dá valor à sua imolação. Sem essa união com Cristo, nada valeriam os seus sofrimentos diante de Deus!

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Não quiseste sacrifício nem oblação — diz a Escritura, referindo-se a Cristo — mas formaste-me um corpo. (Hebr 10,5)

Esse corpo é antes de mais nada o que foi gerado de Maria Santíssima, é a sua santa Humanidade: é ele que é a vítima por excelência imolada e oferecida ao Eterno Pai no Calvário, pelos pecados do mundo.

A Cristo, porém, foi-lhe dado não só um corpo físico humano, mas um corpo místico: os baptizados, a Igreja; e foi-lhe dado particularmente na sua morte, porque nela é que todos fomos baptizados, como diz São Paulo:

Não sabeis que todos fomos baptizados em Cristo, que fomos baptizados na sua morte? (Rom 6,3)

O baptismo é pois a marca de um laço real entre os que pertencem a Cristo e também da participação na sua morte.

Participar na morte de Cristo não é só receber as graças que Ele nos mereceu com a sua morte, mas experimentá-la, ser vítima, estar morto com Cristo. É experimentar os seus estigmas e a sua morte em nós mesmos, estendendo até nós, membros seus, os seus sofrimentos:

Adimpleo quae desunt passionum Christi in carne mea pro corpore ejus quod est Ecclesia. (Col 1,24)

"Completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu corpo que é a Igreja", ensinava o mesmo São Paulo.

Evidentemente nada falta à Paixão de Cristo quanto ao mérito, mas quanto à aplicação: para esta quer que colaboremos, com os nossos trabalhos, sofrimentos, fadigas, orações, vida e morte, transformando-os assim em instrumentos destes méritos redentores de nós mesmos e dos pecadores.

A vida da Alexandrina é uma realização concreta e eloquente desta doutrina; desta sua união com Cristo sofrendo, encontramos passagens inúmeras nas suas cartas e outros escritos e já várias foram aparecendo nos capítulos precedentes. Mas o ponto é importante, por isso apresentemos mais algumas a comprovarem expressamente a doutrina que agora nos ocupa.

A 17.2.39:

A noite foi de grandes sofrimentos para o corpo. Mas esforcei-me o mais que pude por fazer companhia ao meu Jesus Sacramentado. De manhã ainda cedinho caíram sobre mim mais fortemente os sofrimentos da alma. Recebi o meu Jesus ainda para mais sofrer. No meio de toda a miséria com um peso esmagador e uma tristeza profunda, ouvi que Ele me falava assim:

— A força do amor tudo vence, minha jóia. Ai, consentes que Eu passe para ti toda a minha dor, tristeza e o peso com que a gravidade da Humanidade a cada momento trespassa com lanças o meu divino Coração e faz abrir a minha divina Chaga?...

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Jesus soluçava e eu disse-lhe:

— Ó meu Jesus, passai para mim tudo. Esmagai a minha alma e o meu corpo. Fazei que ele desapareça esmagado com o peso dos sofrimentos, como se eu o não tivesse, como se eu não existisse.

Então ainda mais sofri: o peso parecia que me esmagava e sentia como que uma lança a atravessar-me de um lado ao outro; mas repetia-se muitas vezes. Voltou Jesus a dizer-me:

— A força do amor tudo vence, quando é amor puro amor elevado, quando é por Mim.

A 24.3.39:

Eu bem desejava mostrar ao meu Padre quanto a minha alma sofre: o que se passa dentro em mim. Sinto que Nosso Senhor é que sofre tudo por mim; só me deixa uma pequena migalha para sofrer. Se assim não fosse, morria de dor. Mas ainda assim, com este nada que sofro, se Jesus me não sustentasse, morria. Não sei exprimir a dor que hoje senti no meu coração no fim de comungar. Espetaram-lhe um punhal: atiraram-se com toda a força sobre ele; ficou o coração cortado de alto abaixo. Que horror, que aflição isto causava! Pobre de mim: não sei sofrer...

Passemos para seis meses depois, a 27.9.39:

Não posso olhar o mundo tal qual ele é; causa-me horror ver como ele está e o que nele se passa. Ele está revoltado contra mim (repare-se nesta como que identificação com Cristo); sinto como se eu tivesse todo o poder sobre ele; mas ele não me teme. Parece que vou em corpo e alma refugiar-me nos Sacrários: vou ser prisioneira com Jesus e naqueles cárceres de amor, num silêncio profundo, sofro o que Jesus havia de sofrer: o abandono, o esquecimento, o ódio e a maldade de toda a Humanidade. Que escola tão sublime! O Mestre é o Santo dos Santos; quanto eu tenho que aprender! Sinto todas as amarguras de Nosso Senhor, mas não sofro como Ele. Jesus sofre em silêncio e eu não sei senão queixar-me; pobre de mim, não sofro caladinha. Quantas vezes me parece que não posso mais: que tenho que deixar de existir...

Advirtamos, uma vez por todas, que era notável o silêncio com que a Alexandrina suportava toda variedade de sofrimentos que Nosso Senhor lhe enviava; ninguém a ouvia queixar-se nunca. Se tanto e tão bem nos diz do seu sofrer, nos seus escritos, não é para desabafo, mas para cumprir um dever que Deus lhe impõe na alma, de se manifestar ao director espiritual, "para que fiquem as lições preciosas" que irradiam de todas essas páginas. Já a este ponto nos referimos anteriormente.

Oiçamo-la a 24.10.39:

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Já é meia-noite e eu tão doentinha; mas tenho que cumprir o meu dever que é dar conta da minha consciência; vou ver se o consigo fazer.

A dor não cessa, a luz não aparece: não vejo para onde fugir e é tão grande a necessidade que sinto de me esconder! Só no Coração santíssimo do meu Jesus ou da querida Mãezinha tenho refúgio seguro. Mas sinto-me tão abandonada deles: somos uns desconhecidos! Parece que Eles não sabem que eu existo. Nosso Senhor hoje, mal baixou ao meu coração, principiou a chorar, mas a chorar muito. E dizia-me:

— Choro, choro, porque o mundo me faz chorar. A malícia, a gravidade dos seus crimes, se fosse possível, crucificava-me, fazia-me expirar a cada momento.

Depois, sentia como se Nosso Senhor erguesse a cabeça mais confortado e deixou de chorar e dizia-me:

— Consolo-me, porque ainda encontrei na Terra quem me consolasse e em tudo me pode consolar. Para maior alegria tua, deixa-me dizer-te: não te encontrei, porque sempre te possuí. O teu coração está aberto, a dor fá-lo sangrar. São as setas que aos milhões, a cada momento, se haviam de espetar no meu. Desagrava-me; sofre, que é por Mim.

Nestes momentos a paz e a luz que tenho na minha alma não me podem deixar duvidar: mas é só isso. A dor e a mágoa por ver assim sofrer o meu Jesus faz-me sofrer amargamente. E a minha pobreza é tão grande! Se eu ao menos tivesse que oferecer ao meu Jesus! Eu bem lhe digo que queria todos os corações num braseiro para O amar; mas o meu está gelado e o dos outros não me pertence.

Na carta de 21.6.40, encontramos esta passagem bem frisante:

É esta a minha dor unida à dor que Jesus devia sentir com os males da Humanidade.

Eu não quero que Jesus sofra: quero sofrer eu a dor do seu santíssimo Coração. E Ele aceita: passa tudo para mim.

Ai, o pecado, ai, o pecado que tanto fere a Jesus! É impossível esta dor. Mas não sou eu quem sofro. Jesus esconde-se em mim e é Ele quem sofre. Eu não posso consentir isto: sofro por não saber onde hei de ir esconder Jesus, para O livrar da maldade da Humanidade.

Ai, o meu amado Jesus! Se Ele ainda pudesse morrer, morria milhares de vezes a cada momento e era a dor quem O matava. Mas como não pode, vem sofrer em mim e estou eu a morrer esmagadinha e banhada num mar de dor e de sangue. Não sei explicar a dor da minha alma; só Jesus sabe quanto eu sofro.

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A 26.6.40:

Quero o peito aberto e o coração ferido para dar toda a honra e glória e para desagravar o meu divino Jesus de tantas ofensas contra Ele cometidas. Posso dizê-lo: só a força de um Deus sofrendo em mim pode suportar a dor que a maldade da Humanidade causa a Jesus. Sinto a dor que Ele sente através da minha alma.

E sinto a grande necessidade de chorar noite e dia lágrimas de sincera dor e arrependimento. Sinto que tantos as deviam chorar e não choram. Sinto a dureza e ingratidão de tantos corações. Sinto que o mundo se alastrou ou invadiu num só crime. Sinto que Jesus não pode suportá-lo mais.

Sinto que Ele tem de castigar com todo o rigor da sua divina Justiça. Sinto que a minha maldade ultrapassa tudo isto.

O que eu sou? Que horrores de crimes vejo em mim! Que pena eu tenho de ofender a Jesus. Que desejos eu tenho de nascer agora, para viver só para O amar!

Ontem de tarde senti tantas, tantas ânsias de amor, tantos desejos do Céu! De repente levantei voo e foi na Pátria celeste que eu fui descansar: não era da Terra, era do Céu. Batia as asinhas à volta de Jesus e de toda a Santíssima Trindade e da Mãezinha querida; cobria-os de carícias: era para Eles todo o meu amor,.. De repente, já sem asas para voar, caí à terra na maior frieza envolvida em gelo, cercada de dor e de espinhos.

Que feliz vida se eu vivesse como Jesus quer; mas ai, pobre de mim, não sei sofrer!

Lemos a 16.7.40:

Hoje houve uma transformação grande dentro de mim, ainda mesmo sem O ter recebido.

Enquanto a Deolinda foi à Igreja buscar uma sobrepeliz, estava Jesus no meu quarto em cima da mesinha. Não O via, porque Ele estava encerrado (dentro da píxide), mas sabia que Ele estava ali. O meu coração tinha ânsias dele, ânsias de O devorar. A custo me contive sem me atirar para Ele. A noite da minha alma transformou-se num sol claro: estava inundada e a alma e o corpo pareciam estar em cima de fortes chamas.

De repente sentia e ouvia que Ele chorava, mas ainda em cima da mesinha. O coração e a alma encheram-se de profunda dor e cobriram-se de luto.

Passados alguns minutos baixou Ele a mim: transformou-me por completo, deixando-me em luz, paz e enlevo; mas só por

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alguns rápidos momentos. Voltei à dor e às trevas bem intensas e dor bem dolorosa. E de novo senti que Jesus chorava e dizia-me:

— Chora comigo, minha filha; as minhas lágrimas, a minha dor e a agonia do meu Coração é o que Eu mais dou às minhas esposas. Chora, chora, para que o teu Jesus não tenha que chorar a perda eterna das almas.

A 8.11.40, ao começar a Paixão, diz-lhe Jesus:

Avante, minha filha, o amor vence, o amor triunfa na dor. O Calvário e a Cruz remiram o mundo: foi a chave que abriu as portas do Paraíso.

A tua crucifixão continua a ser a salvação e a paz da Humanidade. Eu sei, minha amada, que não me podes ver sofrer. Vem então com coragem: deixa-te crucificar, para curares a chaga tão dolorosa do meu divino Coração. Coragem: tens o teu Jesus com a tua Mãezinha querida, louca de amor pela esposa de Cristo Crucificado.

 

Sublinhámos esta última cláusula, "esposa de Cristo Crucificado", para desde agora notarmos a consumada união em que ela vivia já. Mais tarde voltaremos mais de propósito a este assunto.

Dolorida é a carta de l0.4.40:

Na verdade o nosso Jesus nunca falta àquilo que promete: ontem fiquei na dor e na alegria (fora esta a promessa); o tempo dava para tudo… Neste estado variante adormeci.

Ao acordar, já não era a mesma: estava coberta de luto e tristeza, esmagada, mas tão esmagada pela dor, que durante o dia me senti sempre como se tivesse o coração aberto: aberto e todo chagado, ensopado em sangue.

Também assim estava o de Nosso Senhor. Logo que O recebi, sentia-o chorando, abraçado ao meu coração e dizia-me com voz dolorida e agonizante:

— Minha filha, minha filha, ando à procura de amor para ser amado e à busca de corações para Mim e não os encontro. Até aqueles de quem Eu tudo esperava, me esqueceram e desprezaram. À busca de quem hei de ir Eu agora? É por isso que o meu Coração está triste e cheio de dor.

— Contai comigo, meu Jesus, eu estou pronta para sofrer e para amar-vos. É com a minha dor e com o meu amor que eu vos hei de fazer amado. Esquecei os desprezos, as ofensas e os esquecimentos de todos. Olhai para mim: lembrai-Vos de que nem um só momento quero deixar de estar imolada, para

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que venha a nós o vosso Reino e para que todas as almas vão ao encontro do vosso Coração divino, ao vosso Coração de amor, ao vosso Coração de Pai.

Vê, meu Jesus, vê, meu Amado, que de boa vontade me deixo ferir por Ti. O meu coração está aberto, está em sangue, mas ainda tem vida, ainda conserva nele as ânsias devoradoras do teu amor. Amor, Jesus, amor, só o teu amor! Basta-me, satisfaz-me, nada mais quero. Com ele venço a dor, com a dor hei de aplacar, hei de sustentar a Justiça do teu Pai. Sê comigo, ó meu Amado, e eu nada temo.

Ai, meu Padre, sinto-me aniquilada, reduzida ao nada e entregue à força da corrente. Mergulho aqui, para aparecer além, mas não há quem me salve. Mas eu quero bradar bem ao mundo: é com toda a alegria que eu abraço todo este martírio de dor, porque sinto que não há nada melhor para nos unir a Jesus como é a dor. Sinto que a dor tem laços, fortes cadeias de oiro que me prendem ao Coração divino do meu Esposo, do meu Jesus.

E agora mais este trecho de eloquência inexcedível, uns quatro meses depois, a 27.8.40:

Sinto a grande necessidade de mortificar o meu corpo, de fazer penitência. Já há dias que me custa resistir à necessidade que tenho de o fazer. Não sou eu que o quero, mas é Jesus que precisa que O desagrave, que de alguma maneira se repare tanta maldade. É preciso consolá-lo e suavizar a dor do seu divino Coração que Ele continuamente me faz sentir.

Não se pode explicar: Jesus não pode com mais dor e amargura.

Eu ontem tinha tantos desejos de com minhas próprias mãos martirizar o meu corpo! O peso oprimia-me, aniquilava-me; a dor era dolorosa e penetrante. Eu estava desconsoladíssima, em completo abandono, longe, muito longe de Jesus, sem jamais me poder juntar a Ele. A dor que eu sentia era viva, era aguda,mas não era minha, era dele, do amantíssimo Jesus. Eu sem poder suportar mais a dor do meu Amado, queria amá-lo, queria sarar-lhe as feridas que tanto O fazem sofrer.

Como não encontro nada, nada que lhe possa dar, para satisfazer os meus desejos, sinto quase como uma obrigação de eu própria me ferir e martirizar. Se o meu Padre me desse licença para isso!... Eu queria rasgar e desfazer em migalhinhas todo o meu corpo, eu queria ser moída como um grãozinho de trigo, esmagada como as areias da estrada, espremida como o cachinho da uva, só para consolar Jesus e dar-lhe prova do meu amor.

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É preciso consolá-lo, é preciso fazer penitência, para O desagravar. Eu não sei mais o que hei de fazer: parece-me que não posso resistir sem fazer tudo isto, para que Ele não seja ofendido.

Esta manhã ao recebê-lo, senti um bocadinho de alívio, na minha alma. Rasgaram-se as negras nuvens para aparecerem uns raiozinhos de luz. Pouco depois fiquei numa dolorosa e tremenda desolação. Mais uns momentos, fez-se noite e avivou-se a dor. E Jesus chorando, dizia:

— Chora, chora, chora, minha filha, com o teu Jesus. São precisas lágrimas de dor, lágrimas de sangue para lavarem o mundo, os corações e as almas. O mundo ofende-me muito: a minha dor é imensa. Eu sofro milhões e milhões de vezes mais, do que a dor que te faço sentir. Tu sofres muito, meu anjo, sofres a mais não poder sofrer; mas sou Eu que sofro em ti. Tu sofres, mas Eu revesti-Me do teu corpo, para poderes caminhar com a tua cruz e subires o teu calvário. Vences, com a força divina.

Pede orações e penitência e diz ao teu Padre que peça também penitência contínua e oração sem cessar.

— Ó meu Jesus, não me poupeis as lágrimas, sejam de sangue, sejam de dor, seja o sofrimento que vos aprouver; mas quero chorar sozinha: não posso consentir que sofra mais o vosso divino Coração.

Basta, Jesus, basta, basta de sofrimento para Vós. Já destes por nós todo o sangue e toda a prova do vosso divino amor. Quero sofrer agora continuamente para salvar-vos as almas.

Após a Paixão, de 17.1.41, dizia ela a Nosso Senhor:

Ó Jesus, fazemos este contrato: crucificai-me todos os dias até o fim do mundo, e não deixeis cair nenhuma alma no inferno.

Anos depois, a 2.5.47, há de Jesus afirmar-lhe:

Minha filha, minha filha, a vítima não pode sair um momento da sua imolação e sacrifício. És a minha maior vítima, a minha vítima mais amada: não podes ser libertada do teu martírio, porque o mundo não deixa de pecar.

CAPÍTULO 23

OS MÉDICOS EM CENA

1941

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Desde que principiaram a dar-se os primeiros êxtases em que a Alexandrina — paralítica há tantos anos — recuperava durante eles os movimentos, pôs-se para logo o problema: até que ponto esses movimentos eram milagrosos? Tratava-se, como sempre se pensou até aí, de paralisia orgânica (tendo por causa mielite, osteite) ou meramente funcional?

A Ciência, se possível, tocava dar a resposta e nela tinha grande interesse, antes de mais ninguém, para perfeito conhecimento de causa, o director espiritual da doente, tanto mais que o próprio Senhor Arcebispo Primaz lhe significara desejo de ver o caso examinado por médico competente.

Convidaram-se, antes de mais ninguém, o médico assistente, Dr. João Alves Ferreira e o Dr. Abílio de Carvalho, da Póvoa de Varzim, a presenciar alguns desses êxtases da Paixão. Nada puderam concluir de definitivo sobre o ponto em questão. Era mister primeiro que tudo uma radiografia, devendo para tanto deslocar-se até ao Porto a Alexandrina. Oiçamo-la a ela própria, nas suas notas autobiográficas:

Quando o meu Director Espiritual me falou em ser examinada pelos médicos, foi para mim um grande tormento; uma grande barreira se levantou em minha alma. Queria sofrer escondida, que só Jesus soubesse do meu sofrimento. Mandava a obediência, calei-me e tudo aceitei por Jesus. Faltavam os médicos para completar o meu calvário. Alguns foram verdadeiros algozes que no caminho encontrei. Resolveram que fosse ao Porto. Custou-me muito a convencer-me, devido ao estado em que me encontrava. Temia não poder fazer viagem e ao convite do médico assistente, respondi-lhe:

— Então o Sr. Doutor, em 1928, não consentiu que eu fosse a Fátima e agora, que eu tenho piorado tanto, quer que eu vá ao Porto?

Sua Excia. respondeu assim:

— É verdade que não consenti, mas agora queria que fosse.

Perguntei-lhe se o meu Director Espiritual sabia do caso e como afirmasse que sim, cedi ao seu pedido.

No dia 6 de Dezembro de 1938, fui tirada da minha cama para uma automaca. Naquela manhã fui muito visitada por pessoas amigas e em quase todas via lágrimas nos olhos, assim como nas pessoas da minha família. Eu procurava alegrar a todos, fingindo que nada sofria. Foi dolorosa a minha viagem, pois foram precisas três horas e cinco, para chegar ao Porto. Parámos inúmeras vezes.

No consultório do Sr. Dr. Roberto de Carvalho, tirei a radiografia e por ele fui tratada com todo o carinho. Disse-me assim:

— Ai minha menina, quanto sofres!

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De lá fui transportada para o Colégio das Filhas de Maria Imaculada, onde me trataram muito bem. O que mais me custava era sofrer os ruídos da rua, chegando por vezes quase a perder os sentidos.

Lá fui examinada pelo Sr. Dr. Pessegueiro, exame este que só serviu para maior sofrimento. No regresso No Porto a casa, voltei a ter uma viagem penosa.

A radiografia nada acusou e o próprio Dr. Roberto de Carvalho, suspeitando tratar-se de mielite, declarou que esses processos escapam à radiografia. Foi este o seu parecer em carta ao Dr. Abílio de Carvalho:

Meu prezado amigo e colega

O estudo analítico da radiografia da coluna lombar, sacro, articulações sacro-ilíacas e articulações coxo-femurais não mostra a existência de qualquer lesão óssea evidente. Os corpos vertebrais, os espaços intervertebrais, os contornos ilíacos, dum modo geral, toda esta estrutura é regular e normal, como se verá pelo cliché junto, não havendo qualquer sinal que nos leve a pensar em lesões ósseas propriamente ditas,parecendo portanto, que as suas perturbações tróficas devem estar relacionadas com qualquer processo de mielite, lesão medular, que não é fácil estudar, como é sabido, pelo exame radiológico. E um caso para ser internado e estudado convenientemente, porque com o estado geral que a doente apresenta e sem um estudo cuidadoso do caso, não é possível formar qualquer hipótese.

Com os cumprimentos do amigo grato. R. C.

Achando-se pelo Natal em Braga, onde residíamos, o Dr. Elísio de Moura, conhecido neurologista, convidámo-lo a vir examinar a doente, a ver se na verdade, a sua paralisia teria por causa mielite ou não. Acedeu gostosamente ao nosso convite.

Explicámos-lhe então a razão do nosso interesse em conhecer a causa da doença: — é que tendo ela êxtase em que se movimentava perfeitamente, era de toda a conveniência perscrutar o valor desses movimentos, à face da Ciência.

Ergue bruscamente a cabeça e, em tom bem diferente daquele em que até ali estávamos conversando, respondeu-nos:

— Ah sim? Está bem: eu vou lá e curo-a!

— Mas Doutor, não é que tenhamos dúvidas da verdade dos êxtases da doente; queremos simplesmente saber até que ponto esses movimentos excedem as forças naturais, suposta a sua paralisia.

— Sim, sim: eu vou lá e curo-a! — repetiu.

Com tal predisposição apriorística, pareceu-nos logo que pouco resultado prático iria dar o tal exame. Mas lá fomos, ele, sua Esposa, o Padre José de Oliveira Dias, S.J. e nós, no dia 26 de Dezembro de 1938.

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Sem nenhum interrogatório prévio, tratou-a como a própria Alexandrina nos descreve nas suas notas biográficas:

No dia 26 de Dezembro de 1938, fui visitada e examinada pelo Sr. Dr. Elísio de Moura, que me tratou cruelmente, tentando sentar-me numa cadeira com toda a violência. Como nada conseguisse, atirou-me para cima da cama, fazendo experiências que me fizeram sofrer horrivelmente. Tapou-me a boca, atirou-me contra a parede, fazendo-me dar uma forte pancada. Vendo-me quase desmaiada, disse-me:

— Ó minha Joaninha, não percas os sentidos.

Sem querer, chorei, mas as minhas lágrimas ofereci-as a Jesus com os meus sofrimentos que foram muitos, pois o que digo, nada é do que passei. Tudo lhe desculpei, porque ele vinha em missão de estudo.

Em carta escrita no dia seguinte, começava por esta frase:

Custa-me muito a falar; tenho o meu corpo que parece que passaram carros por cima e o esmigalharam.

Copiamos agora o que ao regressar a casa escrevemos em nossas notas que temos presentes:

26.12.38 - Consegui levar hoje à doente o Dr. Elísio de Moura. Conclusão: parece-lhe que não tem mal de Pott. Perguntei-lhe se não será alguma coisa na medula? Respondeu: poderia ser. Mas o que mais afirma é que foi um crime abandoná-la clinicamente e não a terem examinado a sério há mais tempo.

Quanto aos fenómenos tais quais se apresentam (ele assistiu ao êxtase da Paixão), — são impressionantes, disse — e muito impressionantes, para quem não está habituado a observar o que eu observo: para mim são banais e não vejo motivo, da parte da Ciência, para os atribuir a forças estranhas.

— Então que causa lhe atribui? Histeria? — perguntámos.

— Não.

— Então?

Respondeu hesitando:

— Fraude e auto-sugestão.

É de notar que o Dr. Elísio de Moura, católico, o melhor psiquiatra português, mas não sabe nada de fenómenos místicos, como múltiplas vezes mo confessou, nem está disposto a admiti-los; mostrou-se até algo interessado, quando lhe disse que médicos eminentes os estudavam e admitiam. Não admite as estigmatizações dos Santos; mostra-se muito céptico a respeito dos milagres de Lurdes e indignado com a Voz de Fátima, pelos milagres que lá narra. Nunca leu nem estudou nada de Mística e afirma-me que não há nenhum médico em Portugal que saiba disto.

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Procurei convencê-lo que estudasse, pois os teólogos em Portugal precisariam médico a quem recorrer em casos análogos, possíveis... Respondeu-me que não tinha tempo.

Conclusão — continuam ainda as notas — É inútil estarmos a levar mais médicos, enquanto os fenómenos não passarem disto. Ele, o Dr. Elísio, admitiria como extraordinária a estigmatização e levitação, se as visse ele.

Passaram-se mais de dois anos. Mas eis que, em princípios de 1941, nos procura em Braga um cavalheiro que nos afirma ser médico — Dr. Manuel Augusto de Azevedo — e manifesta-nos desejo de ver a doente de Balasar, pedindo-nos para isso uma apresentação.

Lá foi e, depois de ter assistido várias vezes aos êxtases da Paixão, declarou-nos que um caso destes tinha de ser bem estudado e registrado pela Ciência, tão extraordinário ele era.

Respondi-lhe que já vários médicos a tinham examinado e que os exames e resultados só serviram para mais torturar a pobre mártir.

Ele porém insistiu e comprometia-se a escolher médicos competentes e que tratariam a doente com todo o cuidado.

Sugeri-lhe então que, visto o seu interesse neste caso, o estudasse ele a sério como médico e depois apresentasse as conclusões a outros competentes, a ver se estavam de acordo. Acedeu e algum tempo depois, a 15.2.41, escrevia-nos:

Irei mais vezes a Balasar e procurarei como médico estudar a doença da Alexandrina, doença que acompanha os dons de que Nosso Senhor a dotou. Essa doença, que deverá ser uma mielite lombar e que deverá ser registrada, com respeito e carinho, por vários médicos — a meu ver, mais realça todos os fenómenos que se passam todas as sextas-feiras, principalmente no que diz respeito a movimentos.

Enquanto a fisionomias várias, compostura de movimentos, profundezas de conceitos teológicos e místicos expressos, tudo isso é simplesmente admirável.

Nada absolutamente nada do que se passa, quer sob o ponto de vista clínico, quer sob o ponto de vista teológico, nos poderá permitir que classifiquemos de naturais ou diabólicos os fenómenos que observamos.

Depois, a sua vida humilde e despretensiosa, a sua falta de cultura, o seu equilíbrio de inteligência e maneiras, a sua resignação completa e humildade profunda, os seus rasgos de génio amiudados, tudo isto envolto numa simplicidade encantadora, dá provas manifestas de que se trata de uma alma a transbordar de sobrenatural, à beira da qual nos sentimos pequeninos, muito e muito pequeninos.

Bendito seja Nosso Senhor que nos dá tais anjos pala expiarem os nossos pecados.

O Dr. Manuel Augusto de Azevedo — que a Providência trouxe a intervir neste caso, no momento oportuno, e que com toda a competência de clínico notável, de católico fervoroso e

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conhecedor nada vulgar da Teologia e da Mística (ainda há médicos em Portugal que se interessam pela Mística), assistirá à Alexandrina e a defenderá competente e incansavelmente até à morte de todos os seus impugnadores, por lhe parecer que com essa atitude não só defende a causa de um inocente, mas a causa de Deus — estudou com todo o vagar e consciência o ponto que falávamos, compondo um relatório completo no qual chega à conclusão de que se trata de mielite lombar sagrada, mas também braqueal ou compressão medular de um ou mais focos.

O primeiro colega a quem resolve mostrar esse Relatório, e convidar a que venha examinar a doente, é o Dr. Abel Pacheco, por já em tempos, nos começos da doença, a ter examinado, como vimos anteriormente, e ter até declarado ao médico assistente de então que a doente não tinha cura.

Passo a dizer-lhe que o Sr. Dr. Abel irá na próxima quinta-feira, 1 de Maio (escreve-nos a 26.4.41), ver a doentinha de Balasar. Irei buscá-lo ao Porto às 8,30 e estaremos em Balasar pelas 10 horas, se Deus quiser. Já lhe tinha enviado o meu Relatório e o Sr. Dr. Abel esteve a lê-lo com o irmão, colega do Sr. Padre Pinho (trata-se do Padre Manuel Pacheco, S.J., já falecido). Tive a impressão de que o Relatório e as palavras do irmão o assustaram...

E a 1.5.41:

O Sr. Dr. Abel Pacheco foi a Balasar ver a Alexandrina na minha companhia, comparecendo o médico assistente, Sr. Dr. Alves. Concorda com o Relatório que apresentei, mas, enquanto a diagnóstico, a princípio discordava: inclinava-se para uma nevrose e nesse caso, o que é tudo, ficava sujeito a uma crítica talvez desairosa. Pelo caminho até ao Porto não falámos noutra coisa e então terminou por dizer que era possível ser a doença principal uma mielite lombo-sagrada, mas que só acreditava nela, se o electrodiagnóstico fosse positivo…

Razões várias levaram o Sr. Dr. Abel a não aceitar a mielite lombo-sagrada, como mais tarde escreveu:

Se na realidade há lesões orgânicas, como conciliar essa impossibilidade de marcha e muito mais de genuflexão com a representação feita ao vivo da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, não uma vez, mas todas as sextas-feiras? Só por milagre o facto se poderia admitir: mas desde que se verifica todas as semanas, tenho direito de pensar que são milagres de mais.

A isto facilmente se poderia responder que Deus tanto lhe custa fazer um milagre, uma vez, como repeti-lo muitas. Cumpria-se também nisto o que Nosso Senhor tinha afirmado à doente, uns cinco anos atrás:

Farei em ti grandes maravilhas.

E veremos claramente essas maravilhas, quando durante mais de treze anos, estiver sem comer nem beber coisa nenhuma.

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Não concordavam pois os dois clínicos no diagnóstico da paralisia da Alexandrina. Era mister um especialista inconteste para dar a última palavra. Resolve o Dr. Augusto de Azevedo recorrer a um neurologista de nome, o Dr. H. Gomes de Araújo, tanto mais que a opinião do Dr. Pacheco tinha transposto os limites dos imediatamente interessados no assunto e já se espalhava que a doente de Balasar era uma histérica em alto grau e se tornava bem desairoso para a Companhia de Jesus ver envolvido nesse caso um de seus membros, o director espiritual da doente.

A 5.7.41, recebíamos esta carta do Dr. Augusto de Azevedo:

Se Deus quiser, a nossa ida ao Porto será no dia 15. O Sr. Dr. Gomes de Araújo disse-me que aparecêssemos numa terça-feira e quando quiséssemos, por isso é natural que a ida seja no dia 15.

Estou ansioso que passe esse dia, afim de vermos se é polimielite (mielite) ou se é polinevrite (nevrite). Tudo me leva a crer que seja mielite, apesar da ausência de reflexos tendinosos dos membros inferiores. A rigidez muscular da doente é tão intensa, que para a pesquisarmos, era preciso fazer a prova de Magalhães Lemos, que consiste em injectar por via subcutânea um a dois miligramas de bromidato de escopolamina e vinte minutos após a rigidez muscular estaria desfeita, aparecendo os músculos tal qual estão (normais ou alterados). Muitas vezes há sintomas piramidais (Babinski) que só assim são postos em evidência...

Não caberei em mim de contente se Deus permitir a constatação eléctrica da doença que julga ser, para serem postos de lado por outros os histerismos, que por mim não ganharam raízes nem ganhavam, ainda que o exame eléctrico nada desse.

Mas deve tratar-se de mielite ou nevrite. Claro que é muito mais grave e portanto, verdadeiro milagre, andar nas condições em que está a evolução da doença, se for mielite. Se fosse nevrite, nas condições actuais, também não poderia andar a doente sem auxílio ou ordem superior; mas o caso não era tão brilhante…

Como escreve a própria doente em suas notas, no dia 15 de Julho de 1941, às quatro horas e meia da manhã partiram de Balasar.

Em que silêncio ia a minha alma! Mergulhada num abismo de tristeza, mas sem me separar um momento da união íntima do meu Jesus, ia-lhe pedindo toda a coragem para o exame que ia ter e pelo seu divino amor e pelas almas oferecia todo o meu sacrifício...

O exame foi doloroso e demorado...

A regressarem a Balasar, de lá mesmo nos escreve o Dr. Augusto de Azevedo:

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Agora que trouxe ao Calvário a doentinha e que vou retirar-me, não o quero fazer sem deixar escrita a impressão do Sr. Dr. Gomes de Araújo. Depois de um exame muito rigoroso e que lhe causou bastantes dores, escreveu o seguinte:

"A doente Alexandrina Maria da Costa é portadora, quanto a mim, de compressão medular alta sé, ou complicada de outros focos compressivos mais baixos.

H. Gomes de Araújo, 15 de Julho de 1941."

No seu entender — continua o Dr. Augusto de Azevedo — a doença está na medula e de modo nenhum em ponto diferente, isto é, nos nervos dos membros inferiores. Enquanto à etiologia, à causa, poderá essa compressão ser devida a qualquer lâmina ou parte óssea que partisse, quando foi dado o salto, aos treze anos, e pode ser devido a qualquer massa tumoral que se esteja a formar à volta da medula. Só exames rigorosos e dolorosos poderiam distinguir a causa — se distinguissem — pois também é possível nada darem, continuando a ignorar-se a causa.

O que ficou assente foi o seguinte: a doença está na medula e é natural que seja uma compressão.

Considerei ou falei-lhes em histeria e ele pôs de lado essa ideia. Claro que, se em histeria falei, foi para ouvir a sua opinião.

Em carta posterior esclarece ainda o distinto clínico: 19.8.4l

Segundo a opinião dos grandes médicos e tratados de medicina, as mielites crónicas podem ser devidas à localização na medula espinal duns processo infeccioso geral, ou podem resultar de uma compressão por tumor ou lesão das vértebras, de traumatismo, de paquimeningites, sífilis, resfriamento.

O Sr. Dr. Gomes de Araújo, um dos maiores neurologistas de Portugal, prefere o nome para o diagnóstico, de compressão medular, porque entende que a medula está prejudicada nas funções, por motivo externo (certamente algum tumor nos invólucros da medula ou qualquer lâmina óssea que fracturou da ocasião do salto) e nos casos de compressão da medula, apesar da gravidade dos sintomas, as modificações dos elementos nervosos são mais leves, explicando-se dessa forma o facto de os reflexos tendinosos não serem exagerados.

O Sr. Dr. Gomes de Araújo entende que deve haver grande compressão medular, porque esta explica melhor as muitas dores da nossa doentinha; ao passo que na mielite sem compressão, não há em geral tantas dores.

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Numa palavra: trata-se de afecção na medula, mas por motivo externo, no pensar do Sr. Dr. Gomes de Araújo, grande neurologista.

Quando mais tarde, em 1943, o mesmo Dr. Gomes de Araújo tiver de examinar durante quarenta dias a doente, por causa do seu jejum total de sólidos e líquidos, há de ainda repetir no seu Relatório:

Não temos razões para eliminar a hipótese de paralisia orgânica.

E o Dr. Carlos Lima, professor jubilado da Faculdade de Medicina do Porto, há de afirmar também, em conjunto com o Dr. Augusto de Azevedo, no seu Relatório sobre o jejum perpétuo, "que a Alexandrina é portadora de uma afecção ou compressão medular, causa da sua paraplegia..."

CAPÍTULO 24

SEM DIRECTOR ESPIRITUAL

1941-1942

Já de há tempos que a Alexandrina se vinha referindo a sofrimentos do director espiritual, sem que este nada lhe tivesse dado a entender. E assim, a 18.10.41, por exemplo, escreve:

Se pudesse ser em vez desta carta, ir eu mesma! Sinto necessidade de alívio para o meu corpo e sinto também necessidade de alívio e luz para a alma. Estou tão ceguinha e numa dor tão profunda!

Anseio por amar o meu Jesus: são ânsias devoradoras. Se me dissessem que no fundo do mar estava um cofre onde estava encerrado o amor de Jesus, eu louca de alegria, lançava-me ao fundo a buscar esse cofre que possuía o amor de Jesus, e com o amor dele eu O queria amar! Queria frequentar a escola do amor: queria aprender a amar o meu Jesus e a amá-lo na dor, amá-lo no meio de tudo o que é sofrer. Não sei da escola, não sei do amor. Sem luz não vejo e sem amar o meu Jesus não posso viver.

E já a terminar a carta, diz:

Meu Padre, peço-lhe por caridade para me dizer se sofre e se eu sou a causa do seu sofrer! Não me engane: venha o que vier, digam o que disserem. Não poderei resistir às lágrimas, mas não me entristeço com Jesus. Eu amo tudo o que dele me vem. O que eu quero é o Céu e dá-lo a todas as almas. Não me importa viver noite e dia cravada na cruz.

E a 22 do mesmo mês, acrescenta ainda:

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Estou muito doente, mal posso ditar estas palavrinhas. Sinto necessidade de o fazer, por mim para desabafar: ver se respiro melhor debaixo do peso da cruz; e pelo meu Paizinho: para lhe dizer que quanto mais sinto que sofre, mais Jesus une as nossas almas. Melhor conheço que é o caminho que Nosso Senhor talhou para o meu Padre seguir. Caminhamos por amor unidos na mesma dor: Jesus o quer. Não importa que o mundo não conheça estes caminhos, não compreenda este sofrer. Se Jesus com isto é amado e desagravado, que mais devemos desejar?

Evidentemente que o director sentia a fundo a responsabilidade que sobre ele pesava com a direcção desta alma que caminhava por vias tão extraordinárias e não era para ele nada agradável perceber a perseguição que já se estava movendo ao Caso de Balasar, por elementos que (embora nunca tivessem examinado nem visto a doente nem estudado os imensos documentos que sobre ela já então possuíamos), devido à sua posição, influíam sinistramente no caso. Perseguição que mais se cimentou e agravou ao divulgar-se a opinião do Dr. Abel Pacheco sobre a doença da Alexandrina, a que cegamente aderiram, sem atenção ao parecer dos outros distintos médicos e que acima ficou bem clara.

Ao director consideravam-no como um visionário, um imprudente e elemento perigoso que necessariamente se devia afastar e quiçá começariam já a estranhar que o Superior do mesmo não interviesse eficazmente. Momentos bem desagradáveis por certo para o pobre Superior que também ele não conhecia pessoalmente a doente.

Para precipitar essa intervenção, concorreu decisivamente a publicação de um fascículo, o n.º 10 da Vida de Cristo, a Paixão Dolorosa, vol. V, pelo Padre José Alves Terças, Lisboa, 1941, onde, depois de falar do Santo Sudário de Turim fala de "A martirizada do Calvário", isto é, da Alexandrina, narrando miúda e longamente os factos que viu e anotou a 29 de Agosto de 1941, durante o êxtase da Paixão.

A Alexandrina refere-se ao caso, em carta autógrafa escrita por ela à meia-noite de 27.8.41:

Meu Padre, é quase meia-noite; venho agora mesmo de contemplar o céu. Chorei de olhos fitos no alto do firmamento. Disse a Jesus:

Quando me levais para Vós? Quando poderá partir esta criminosa que anda a ser julgada e interrogada, como o maior assassino e criminoso do mundo?

Tendes razão, meu Jesus: o meu julgamento assemelha-se bem com o que eu sinto na minha alma. Eu tenho nojo e vergonha de mim: estou coberta de todos os vícios e crimes!

Ai meu Padre, hoje ao cair da tarde, fui interrogada por um senhor Padre da Ordem do Espírito Santo, chamado Padre Terças. Tratou-me com muito carinho, mas interrogou-me seriamente. Custou-me tanto! Não posso falar da Paixão de Jesus e tive que falar: eis a razão das minhas lágrimas. Só por Jesus, só por seu amor. Este exame veio agravar a minha dor, já tão profunda; tornou-se mais doloroso o meu calvário. Novos espinhos virão ferir o meu pobre coração e ladear o caminho triste do meu penoso calvário.

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Senti em mim a força divina: senti que Jesus me obrigava a caminhar para a frente. As dúvidas atormentam-me e eu para poder resistir, digo a mim mesmo: se esta obra fosse minha, era isto bastante para ela acabar...

Nas notas autobiográficas, é mais explícita:

No dia 27 de Agosto de 1941, recebi a visita do Sr. Abade acompanhado pelo Padre Terças e outro sacerdote. Esta visita foi para mim de grande desgosto, pois fiz o sacrifício de responder às perguntas que o Sr. Padre Terças me fez diante de todos, o que me custou imenso. Respondi a tudo conscientemente, porque pensava que viria em estudo, como outros tinham vindo. Só Nosso Senhor pôde avaliar quanto me custou ter de falar sobre o assunto da Paixão e foi sobre isto que mais me interrogou. O nosso Pároco disse-me que Sua Rev.cia queria voltar aqui, na próxima sexta-feira, dia 29. Não queria ceder ao pedido sem consultar o meu Director Espiritual, mas como me dissessem que tinha de se retirar para Lisboa, nos dias imediatos a este, consenti, dizendo:

Eu penso que V. Rev.cia não vem aqui por curiosidade?

Como me dissesse que não, cedi prontamente, embora me fizesse sofrer muito a visita na sexta-feira.

Sua Rev.cia não faltou, mas trouxe consigo mais três sacerdotes. Mal eu pensava que esta visita vinha erguer para mim um novo calvário!

Não levou muito tempo que Sua Rev.cia publicasse o que observou e o que soube de mim.

Que Jesus tenha em conta a dor que me causou aquela publicação, por saber que a minha vida foi publicada e os meus segredos revelados, aquilo que tanto tempo escondi.

De vez em quando chegavam-me aos ouvidos vários comentários a meu respeito. Eram espinhos que me cravaram no peito, mesmo sem as pessoas darem por isso. Eram variadas as impressões com que ficavam as pessoas que liam o livro ou ouviam falar de mim.

A minha ida ao Porto e a publicação da minha vida fizeram inquietar os espíritos dos Superiores do meu Director Espiritual, a ponto de o proibirem de vir junto de mim e de me prestar a assistência religiosa que necessito, assim como o proibiram também de me escrever e de receber cartas minhas.

Logo que nos chegou à mão o citado fascículo, apressámo-nos a escrever ao Padre Terças (com quem nunca falámos e a quem nunca tínhamos escrito coisa alguma), manifestando-lhe o nosso desagrado por uma publicação daquele género, tão prematura. Sua Rev.cia respondeu-nos de Lisboa, a 31.12.41, o que segue:

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Em resposta ao cartão de V. Rev.cia de 17 do corrente, tenho a honra de enviar-lhe o parecer do Sr. Arcebispo de Braga sobre a publicação do caso da "Martirizada do Calvário". Da carta de Sua Ex.cia Rev.ma, tratando também doutros assuntos, remeto só o final dela, referente ao caso do Calvário. O parecer do Sr. Arcebispo de Mitilene está contido no "imprimatur". A opinião do Senhor Cardeal Patriarca tenho-a oralmente, pois além das provas tipográficas, tudo lhe expus de viva voz e com todas as particularidades.

Agora pergunto eu: o que faria V. Rev.cia se, ao referir o que se passa no lugar do Calvário, lhe respondessem: — esse é um dos muitos casos para iludir o povo…— o que faria?

Colega muito obrigado, P. José Alves Terças.

O final da carta do Senhor Arcebispo é o seguinte:

Como V. Rev.cia se apresenta autorizado pela Cúria de Lisboa e pelo Rev. Superior Provincial, julgo que não devo intervir, nem mesmo solicitado agora por V. Rev.cia.... E só o faria mais tarde ex officio, se se mostrasse que a narrativa dos factos feita no livro trazia prejuízo grande às almas que me estão confiadas, o que creio firmemente se não virá a dar. E até faço votos por que o livro venha a produzir abundantes frutos espirituais, como V. Rev.cia, a cujas boas intenções rendo justo preito, seguramente deseja. Augurando a V. Rev.cia muitas boas festas natalícias, com alta consideração me subscrevo.

† A. Arcebispo Primaz.

Segundo o dito, nenhuma das autoridades eclesiásticas mais imediatamente responsáveis de algum modo, na dita publicação, se alarmou nem lhe pareceu necessário censurá-la. Mas alarmou-se uma conhecida Revista de Lisboa (Brotéria). A propósito ou despropósito de um artigo anódino sobre Mística, julgou oportuno então o director da Revista pôr a seguinte nota:

Chamamos a atenção para este artigo, cujo assunto está sendo entre nós da máxima oportunidade. Vemos com espanto difundir-se pelo País, com demasiada insistência, um espírito visionário e preocupado de preternaturalismo, que não deixa de ser perigoso para as almas afectadas dessa pendência e até para a Religião em geral. A publicidade dada numa Vida de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo os Evangelhos e as visões de Ana Catarina Emmerich a pretensos (?) fenómenos místicos duma doente do Norte de Portugal parece-nos, sob todos os pontos de vista, lamentável e, sem pôr em causa a boa fé do signatário dos factos vistos e anotados em 29 de Agosto de 1941, sumamente suspeita (??). Não nos compete a nós ajuizar oficialmente da objectividade mística dos mesmos factos. Estamos no entanto habilitados a declarar que o que, a pág. 332 do volume V da mesma Vida de Cristo (Lisboa, 1941) se atribui a um sacerdote da Companhia de Jesus, é da exclusiva responsabilidade deste.

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Depois de uma nota dessas, que reflectia bem o ambiente que contra o caso se estava formando, estávamos para dizer, era lógico que o Provincial proibisse ao director espiritual a quem se refere a nota de continuar a tratar com a doente de Balasar.

Foi o que sucedeu: o Provincial fulminou essa proibição, declarando que, se o caso fosse de Deus, não precisava dos homens para o fazer triunfar.

A carta do Provincial foi recebida pelo director espiritual a 7.1.42; já no dia 2.1.42 dizia Nosso Senhor à Alexandrina:

Prepara-te para a luta, minha filha: tens que lutar aparentemente sozinha. Depois da batalha vem a glória. O teu caminho não terá luz, Sol nem dia, mas é para que mais apareçam em ti as minhas grandezas e para que na glória brilhe em ti o esplendor do meu amor e vejas brilhar toda a beleza divina.

No dia seguinte (3.1.42), repete-lhe Nosso Senhor as mesmas afirmações e pergunta-lhe:

— Aceitas, minha amada, toda a declaração do teu Jesus?

— Sim, sim, meu Jesus, tudo aceito por vosso amor e sempre confiada que não me faltais com a vossa graça, que a vossa força divina será em mim a única resistência para todo o meu sofrer.

Salve eu as almas e incendeie nos corações o vosso divino amor...

Neste golpe que a Alexandrina vai sentir afinal até à morte, revela-se-nos esplendidamente a solidez da sua virtude, na extraordinária conformidade com a vontade de Deus e o espírito de fé com que encara a situação, sem uma incriminação nem uma queixa contra ninguém. Mas a dor é pungente e manifesta-a claramente nos seus escritos espirituais dessa quadra. Copiamos ao menos o que encontramos a 19.2.42:

Meu bom Jesus, sinto o meu coração retalhado de dor. Tereis ainda mais golpes para ferir-me? Faça-se a vossa vontade! Gravada na cruz convosco, escorrendo sangue e na maior agonia, vejo-me de todos abandonada.

Não posso viver no mundo: tenho medo, Jesus. Vinde depressa, vinde, levai-me para o Céu. Os homens tentam desviar de mim, arrancar-me para sempre aquilo que me servia de alívio, que podia dar-me conforto. Tiram-me o meu Pai Espiritual; proíbem-no de me escrever a mim e de lhe escrever a ele.

Permiti Vós ao menos, meu Amado, de eu desabafar convosco. Estou sozinha, no meio da tempestade e ela não serena. Abro-vos o meu pobre coração, só Vós sabeis ler o que nele está escrito com dor e sangue. Só Vós compreendeis e podeis avaliar o meu sofrer. O mundo desconhece-o; os homens nada compreendem. Deixai-me dizer a Vós o que Vós dissestes ao Eterno Pai:

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— Perdoai-lhes, meu Jesus, porque eles não sabem o que fazem.

Estão ceguinhos, falta-lhes a vossa divina luz; iluminai-os a todos e a todos dai o vosso amor.

Ó meu Jesus todos os meus pressentimentos me têm saído certos. Poderão eles ainda proibir que eu vos receba sacramentalmente? Ai de mim! Seria esse o golpe que me tiraria a vida, se Vós com o vosso divino poder ma não conservásseis. Digam o que disserem, façam eles o que fizerem, o que nunca conseguirão é tirar-me desta união íntima com Vós (sic). Roubarem-me Jesus Sacramentado, sim não o duvido que o façam; tirarem-me do meu coração o tesoiro riquíssimo que eu adoro, que eu amo acima de todas as coisas, o Pai, o Filho, o Espírito Santo, nunca, nunca os homens o conseguirão: teriam para isso fazer-me viver sem coração e sem alma. Impossível. Venha a força do mundo inteiro, seja ele todo contra mim a separar-me desta grandeza infinita, deste Amor infinito, nunca: só o pecado: só esse me pode separar. Mas eu confio plenamente em Vós, é de Vós que eu tudo espero, embora que o sentir da minha alma me chegue quase a persuadir que me engano a mim mesma. Sinto que não vos amo; sinto que nada de Vós posso esperar, por tão grande ser a minha miséria.

Que confusão a minha, que grande é o meu desfalecimento!...

E a terminar:

Perdoai-me os meus desabafos, Jesus; bem vedes que só convosco posso desabafar. Já que me escolhestes para a dor, já que me destinastes para tão grandes martírios, eis a tua vítima, eis a tua escrava, Jesus: faz de mim o que quiseres. A tua bênção, meu Amado. Diz à Mãezinha que me abençoe e proteja.

Sou a tua mais indigna filhinha, pobre Alexandrina.

CAPÍTULO 25

OS DOIS DERRADEIROS ÊXTASES DA PAIXÃO

1942

Só, sem ter com quem abrir sua alma, é com Jesus e Maria que a Alexandrina desabafa as suas mágoas, tão imensas, tão profundas e tão íntimas. Desses desabafos ficou-nos um eco nas notas espirituais que ela, por uma necessidade misteriosa, continua a ditar à sua irmã Deolinda.

Arquivemos aqui ao menos o que nos deixou escrito a propósito dos dois últimos êxtases da Paixão; retrata-se aí bem o seu estado de alma, em fase tão crítica e que irá ainda agravar-se.

A 20.3.42:

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Jesus, não quero mais viver de ilusões; quero viver só de amor e de confiança. Cortai em mim tudo o que é terreno: quero só esperar em Vós. Quero ser forte, mas não posso: sinto-me definhar dia a dia.

E sinto na minha alma que novos assaltos estão para cair sobre mim. Tudo é revolta: prevejo um mundo de leões lançarem-se a mim com toda a raiva para me devorarem! (Como iremos vendo, não se enganava nestes seus pressentimentos). Que angústia na minha alma, que tristeza profunda no meu coração! A alma treme de medo com todo o meu corpo: não posso viver assim. Será porque o fim se aproxima? Venha ele, venha depressa.

O Céu é a minha esperança.

Quero por todos os caminhos percorridos durante a vida deixar escrito com o meu sangue o vosso amor! São caminhos de luta, caminhos de negras trevas, trevas como nunca, abandono como nunca imaginei passar. Levanto as minhas mãos ao Céu, para o Céu que tantas vezes fitei e contemplei com amor, mas não o vejo. Brado com toda a força do fundo do coração e o meu brado não sobe: parece-me Jesus não ouvir. Abandono, que completo abandono!

Jesus, Jesus, compadecei-vos de mim; parece-me que vos perdi e que perdi a Mãezinha. Afastaram de mim na Terra o amparo, guia e luz que me tínheis dado.

Jesus, Jesus, olhai a louquinha perdida que tudo sofre e aceita por vosso amor, para dar-vos as almas.

Jesus, Mãezinha, quero sofrer tudo: as forças não me ajudam. Estou sozinha; posso dizer convosco: — Pai, porque me abandonastes? Quereis assemelhar-me a Vós? Obrigada, meu Jesus; submeto-me ao peso da vossa Cruz. Sinto arrancarem-me o coração, sinto que vou morrer esmagada, mas quero balbuciar sempre: — Oh, como é doce morrer por amor! Oh, como é doce cumprir a vontade do Senhor!

Jesus, à medida que se aproxima de mim a crucifixão, o pavor aumenta. Sinto-me cravada na cruz dando de longe a longe mim suspiro, até que seja dado o derradeiro. A agonia aumenta; são dados ao meu corpo maus-tratos, sem piedade.

Ó mundo, ó mundo que não conheces a dor nem o amor de Jesus! Só com Ele se abraça a cruz, só com Ele se caminha para o martírio!...

Após a crucifixão escrevia:

Chegou a hora da crucifixão: não podia temer mais. O meu corpo não tinha força; pedi para mim todo o auxílio do Céu.

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Obrigada, meu Amor, apressastes-vos a dar-me conforto.

— Minha filha, escuta, é Jesus que se aproxima; vem beber à tua fonte, vem saciar a fome com a tua esmola.

É com a tua crucifixão que os pecadores recebem graça. É pela tua crucifixão que os pecadores recebem toda a graça. É pela tua crucifixão que o mundo recebe a paz. Coragem, coragem! O teu Paizinho auxilia-te de longe, como se estivesse aqui. Eu não o retirei de ti. Acompanho-o com a tua Mãezinha para te amparar. Coragem, coragem, coragem!

Caminhei para o Horto, meu Jesus, com as vossas divinas palavras por algum tempo gravadas em meu coração. A pouco e pouco com as trevas nada via, com o desfalecimento nada podia. Sofria como se nunca vos tivesse ouvido nem encontrado. Que abandono triste! Principiei a sentir lançadas no meu coração que o desligaram do meu peito fazendo-o cair no chão, sendo nele esmagado, maltratado. Não era o meu, mas o vosso, meu Jesus.

Que dor me causava ver-vos sofrer assim! E sentir que Vós vos queríeis cobrir de terra sendo ela o véu que encobrisse os pecados de que estáveis revestido!

Impossível, Vós não podíeis fugir à vista do Eterno Pai. Ele via-vos todo manchado, revoltava-se contra Vós.

Eu ouvia os vossos suspiros, sentia as vossas lágrimas. Não tínheis quem fosse testemunha delas: os Apóstolos dormiam despreocupados de tudo; não viam que suáveis sangue. Só quando vos levantastes para os chamardes, eles viram os vossos vestidos ensopados. Sem nada discorrerem, continuaram o sono.

Pobre Jesus, sofríeis sozinho: que lição para mim! No palácio de Herodes… senti a vossa dor por tanto que vos fizeram sofrer.

Na flagelação fui descansar no vosso Coração divino. Era grande como o universo; podia percorrê-lo todo; mas não: estava muito ferida. Inclinei-me para Vós, descansei até que de novo voltassem os algozes. Na coroação de espinhos, descansei nos braços da Mãezinha; senti que o seu manto me cobria e a sua santíssima mão me acariciava; o rosto dela junto ao meu suavizava a minha dor. Sentia-me cansada, sem alegria. Em seus braços não vinham ferir-me, mas quando fui para eles já ia em sangue.

Caminhei para o Calvário: sentia que era impossível chegar ao termo; fugia-me a vida, falhavam-me as forças. Invoquei a Mãezinha, invoquei o vosso divino nome, meu Jesus, pedi as vossas forças divinas...

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Cheguei ao Calvário... tudo era escuridão e abandono total. Por entre o som de grandes blasfémias, ouviam-se suspiros, caíam lágrimas de amargura e dor. Bradei ao Céu de todo o coração; ele estava fechado, não se abriu para mim.

Ó dor, ó dor, que és aceita só por amor!

Terminou toda a Paixão: porém a dor tem que atingir seus limites. Soube que tinha razão em sentir os novos assaltos na minha alma. Que pena, Jesus!... O coração estala-me de dor. As humilhações deitam-me por terra. Ser forte, só convosco, Jesus!...

Referindo-se ao último dia em que teve a Paixão, a 27 de Março de 1942, sexta-feira das Dores de Nossa Senhora, encontramos o seguinte não menos expressivo:

— Jesus, ouve as minhas palavras, parece que já abafadas com o peso da morte. Mais uma vez quero dizer-vos:

Sou vossa no tempo e vossa serei na eternidade; só a Vós me dou e só a Vós quero pertencer.

É com a alma em agonia e o coração retalhado de dor que os meus lábios mais uma vez balbuciam estas palavras: só por amor!

As negras trevas não me deixam ver; caminho só por entre abrolhos e espinhos. Estou toda ferida: só sangue sinto escorrer do meu pobre corpo.

Sinto-me sozinha: roubaram-me o meu conforto, o alívio da minha alma, o meu amparo na Terra! Tenho que lutar abandonada no combate mais difícil. Por vezes não posso resistir às saudades de ver celebrar, no meu quarto, o Santo Sacrifício da Missa. Tudo roubado, tudo perdido!

— Perdoai, meu Jesus, aos que me causaram tudo isto. Para todos peço a vossa compaixão e a vossa luz para a sua cegueira.

No meio deste mar de sofrimento e deste lutar de negras trevas, de noite escuríssima, a minha alma goza a maior paz.

Não temo comparecer na vossa divina presença. Lembra-me por vezes se será orgulho da minha parte: não o conhecerei, meu Jesus? Estará escondido na minha ignorância? Vós destes-me a graça de eu conhecer o abismo da minha miséria, mas ao mesmo tempo, vejo que maior, infinitamente maior é o abismo do vosso amor, a vossa misericórdia e compaixão. Confio cegamente em Vós e em Vós espero. É o manquinho infernal que tenta inquietar-me, arrancar de mim a paz de consciência, prender-me de alguma forma às coisas terrenas. Quando me sinto mais desprendida do mundo e em maiores ânsias de voar para Vós, para a Pátria celeste que me espera,

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aparecem-me rapidamente na minha imaginação estas coisas que tanto me atormentam:

— Tens muita pressa de deixar os teus que nunca mais voltas a ver; com a morte tudo acaba: não há Céu nem inferno.

— Jesus, Jesus, eu amo-Vos, eu creio em Vós. Vós não enganais ninguém; não deixeis o maldito confundir-me. Nem queria que estas palavras se soubessem, não quero escandalizar ninguém; não quero tirar a fé a quem tem pouca e mais aprofundar no erro aqueles que nenhuma têm. Perdoai-me, se não devia dizê-lo! Meu bom Jesus, meu doce Amor, tenho chorado com o medo à minha crucifixão: ai de mim e pobre de mim sem Vós! Não me falteis por quem sois, com a vossa força divina: eu não tenho força, a minha vida está perdida.

Durante a noite e a manhã de hoje, animou-me a vossa divina presença. Apresentastes-Vos à minha frente de Cruz aos ombros, inclinado para a terra, desfalecido e sem vida, rodeado de vil canalha.

Ao ver assim um Deus sofrer por meu amor, não posso recusar-vos minha crucifixão; aceito por vosso amor, aceito pelas almas. Revesti-vos de mim, vivei em mim, movei o meu corpo sem vida.

Está próxima a crucifixão, não me falteis, meu Jesus: dai-me graça, força e amor.

(Depois da Crucifixão)

— Jesus, não me falteis com as vossas forças, para que eu possa descrever o melhor possível o que Vós sofrestes na vossa santa Paixão e a vossa protecção e amor para com esta pobrezinha. É para vossa maior glória e proveito de todas as almas.

Os olhos do meu corpo pareciam quase não ver, ao aproximarem-se os momentos da crucifixão. Assustava-me o meu desfalecimento; o abandono em que me encontrava levava-me à sepultura. Que tormento não ter vida e ter que lutar contra o mundo!

Desceu sobre mim a vossa vida e o vosso amor: Ouvi a vossa doce e meiga voz:

— Minha filha, ó amor de Jesus, coragem: não temas, não temas!

O caminho do Calvário está a terminar; vem trilhar os últimos espinhos. Das feridas por eles feitas nascem fontes de salvação. As almas necessitam de tudo. Jesus consola-se na tua crucifixão encontra em ti toda a reparação que se pode

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encontrar na Terra. Coragem; Jesus não te falta com a sua Mãe bendita. O teu Paizinho acompanha-te em espírito, com a minha divina graça; auxilia-te em união connosco.

Fui para o Horto; no meio do abandono relembrava as vossas doces palavras que por algum tempo se conservaram gravadas em meu coração. Depois, com os golpes que nele senti pelos maus-tratos que me foram dados pela Humanidade, tudo desapareceu.

E aí, sozinha, em profundo silêncio, na maior escuridão, quase na morte, procurava esconder-me para sempre, ser a terra o meu esconderijo, ao ouvir as ameaças do Eterno Pai.

Meu Deus, meu Deus! E eu sozinha, não corria uma aragem nem as folhas das oliveiras se mexiam, a não ser para curvarem seus ramos em sinal de adoração por terra.

Ó dor! Ó agonia de Jesus! Ó loucura de amor de Jesus pelas almas!

— Não eram meus estes sofrimentos, mas Vossos, só vossos, meu Jesus.

Segui os passos da Paixão: aqui e além caía sucumbida, esmagada pela dor. Repetidas vezes invoquei o nome de Jesus e da Mãezinha; pedi as vossas forças, porque todas as minhas estavam perdidas.

— Obrigada, meu Jesus; convosco fui resistindo.

Na flagelação, ao ser resguardada em vosso divino Coração, via à minha frente os algozes preparados com os açoites, para mais castigarem o meu corpo. Eu, coberta com o vosso divino amor, não os temia. Na coroação de espinhos, quando estava nos braços da Mãezinha, via também enlearem à minha frente agudos espinhos uns aos outros, preparando novo capacete para na cabeça me cravarem, As carícias da Mãezinha fizeram-me esquecer que eles se preparavam para mim. Oh, como é grande o vosso poder e o vosso amor, ó Jesus!

Caminhei para o Calvário sem vida para chegar ao fim: não podia caminhar, escasseavam-me as forças. Na segunda queda obrigou-me a obediência a entrar de novo no vosso divino Coração; ouvi que Vós me dizíeis:

— Minha filha, todas as minhas graças e todo o meu amor se estendem sobre o Cireneu (refere-se ao Médico que assistia) que te auxilia e sobre todos os seus descendentes, até ao fim e sobre o teu Paizinho aqui presente (em espírito) a teu lado e sobre as almas que mais de perto te tratam e com o meu amor te acariciam suavizando a tua dor. Não se chama a isto amor da Terra.

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Fui cravada na cruz; a cada pancada que davam para me cravarem, caia em desfalecimento.

Todo o Calvário estava escurecido, mal se ouviam os suspiros da Mãezinha, que eram abafados com as blasfémias: sentia-os mais no meu coração. Parecia-me que ia em pouco expirar em Vós...

Foi esta a última vez que a Alexandrina teve o êxtase movimentado da Paixão. Daí a oito dias, Sexta-feira Santa, dizia-lhe Nosso Senhor:

Confia, minha filha, que não és mais crucificada. A crucifixão que tens é a mais dolorosa que se pode imaginar na história...

Mas em todas as sextas-feiras, embora sem se movimentar, continuou a sentir ao vivo a Paixão de Cristo, em que sofria tanto e por vezes mais do que nas precedentes, como se pode ver nos seus escritos. Vá, à guisa de amostra, a sexta-feira Santa de 1947 (4.4.47):

No princípio da tarde de ontem (Quinta-feira Santa), senti como se a minha alma fosse presa, insultada, maltratada; era um nunca acabar de martírios. Nas outras quintas-feiras tenho sentido um ou outro sofrimento, mas nesta senti muitos, se não foram todos.

Senti e vi a Ceia com a maior de todas as maravilhas: Jesus dar-se para nosso alimento, partir e ficar connosco. Que maravilha! Que amor tão profundo! Vi o lava-pés e o discípulo amado inclinado sobre Jesus; sentia e via o desespero de Judas e vi-o partir à frente dos outros, para O ir entregar.

No Horto senti e vi beijar e apontar para Jesus, para poder ser preso. Mas, antes da prisão, senti a sua grande aflição: a rolar pela terra, a suar sangue, o Anjo a confortá-lo e Ele, com o cálice da amargura, a enchê-lo de sangue, que lhe saía dos seus divinos olhos, ouvidos e de todo o corpo.

Vi depois, à saída do Horto, que o acompanhavam uma grande multidão de soldados com armas, homens com paus. Meu Deus, como eles maltratavam a Jesus! Como Ele já ia desfigurado e desfalecido!...

Vi São Pedro a negá-lo, mas sentia que aquela negação foi feita só por temor. O galo cantava uma e outra vez. Ele chorou copiosas lágrimas. Oh, como foi grande o seu arrependimento!

Custou-me tanto ver Jesus de tribunal em tribunal, tão maltratado e por fim ter que O deixar sozinho na prisão.

E assim moribundo O senti hoje a seguir os caminhos do Calvário.

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Parecia-me que todas as feridas do seu santíssimo corpo estavam no meu e ainda assim era chicoteada e arrastada; não havia compaixão para mim nem para o nosso Jesus. Os espinhos da sua santíssima cabeça feriam-me a minha e também me feriam o coração.

Fui subindo e quantas vezes desfaleci com Ele e com Ele ia a expirar! Jesus ia dentro em mim tão ansioso para a morte, como cordeirinho sequioso para a corrente; queria morrer para dar a vida.

Na Cruz, eu sentia como se o sangue das Chagas de Jesus corresse nos meus braços, pés, peito e cintura, como se tivesse chagas também.

Senti dentro em meu peito um mundo tão cruel e tão duro que mo abriu de cima a baixo. Neste transe doloroso fiquei, como se expirasse com Jesus.

Passou-se algum tempo num silêncio mortal.

Jesus despertou e fez que eu despertasse.

— Minha filha, minha filha, Eu não morri; vem para Mim, vem para o meu amor, vem para o meu fogo divino; ele é para ti a vida, é o cadinho, o fogo que te purifica, te dá a pureza, a graça, todo o brilho da tua alma. Mergulha-te nele, enamora-te de Mim, enche-te para poderes encher as almas. Descansa neste fogo, suaviza nele a tua dor, retoma as forças perdidas em tão doloroso martírio.

Jesus calou-se e eu fiquei por um pedaço de tempo a arder naquelas chamas; sentia-as, via-as; eu era a caldeira, Jesus o fogo. Conservei-me em silêncio também; não sabia falar a Jesus...

A seguir recebe misteriosamente a Comunhão da mão dos Anjos, que lhe é ministrada com a fórmula do Viático:

Viaticum Corporis Domini Nostri Jesu Christi custodiat animam tuam in vitam aeternam.

E depois ouve ainda estas preciosas palavras:

Minha filha, dei-me a ti em alimento, sou a tua vida. Dei-me desta forma para mais e melhor mostrar as minhas maravilhas e para mostrar que estou contente com os meus representantes na Terra, com a doutrina da minha Igreja. Não podia deixar-te sem o meu alimento, depois de tantas forças consumidas, de tanto sofreres. Prometi não deixar-te sem a minha Eucaristia, às sextas-feiras, e não faltei. Recebestes-me como Viático e é verdade que és enferma e sem um milagre divino não terias resistido à dor, eras moribunda.

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Coragem, minha filha; Eu continuo a pedir-te sofrimento, porque o meu Eterno Pai continua a exigirgrande reparação das minhas vítimas, para a salvação do mundo, para que os pecadores se convertam e venham a Mim…

CAPÍTULO 26

O MUNDO CONSAGRADO AO CORAÇÃO DE MARIA

1942

Vimos como a Alexandrina, desde 3 de Outubro de 1938, ia passando invariavelmente pela Paixão, todas as sextas-feiras e esses êxtases se mostravam cada vez mais cruciantes.

Mas eis que cessam de improviso, com o último realizado a 27 de Março de 1942. Qual seria o motivo?

Recordemos que, logo no primeiro, Nosso Senhor lhe dissera ser esse mais um sinal dado ao Santo Padre de que queria a Consagração do mundo a Sua Mãe Santíssima. Ora em breve ia de facto realizar-se essa tão suspirada Consagração. Já estaria, nesta altura, o Papa resolvido a fazê-lo? Se assim era, acabava a razão dos êxtases da Paixão.

É certo que nos escritos da Alexandrina encontramos que Nosso Senhor, duas vezes em Maio desse ano de 1942, lhe afirma estar Pio XII determinado a realizar essa Consagração e na verdade todo o mundo pôde escutar pelo rádio, em língua portuguesa, a 31 de Outubro de 1942, conclusão do jubileu de Fátima, as palavras do Santo Padre, consagrando o mundo ao Imaculado Coração de Maria, Consagração depois renovada solenemente na basílica de São Pedro, a 8 de Dezembro, festa da Imaculada Conceição.

Cabe aqui apontar factos que poderão servir de documentação para a história desta Consagração. Longe de nós a pretensão de demonstrar que foram os pedidos e as revelações da Alexandrina que moveram Pio XII a esse acto.

O movimento para a Consagração do mundo ao Coração de Nossa Senhora vinha de havia quase um século. Parece ter-se inspirado nas aparições de Nossa Senhora a Santa Catarina Labouré. Desde então começaram a dirigir-se em variadíssimas circunstâncias, pedidos à Santa Sé, para que se tributasse à Rainha do Céu e da Terra este preito de amor. Em 1850, os Bispos de França, reunidos em concílio provincial, em Albi, Bourges, Sens, consagraram as suas dioceses ao Sagrado Coração de Jesus e ao santíssimo Coração de Maria — prelúdio da Consagração de França pelo Episcopado, a 13 de Dezembro de 1914, ao Coração Imaculado de Maria.

Em Itália, já desde 1891, houve um vasto movimento chefiado pelos Cardeais de Milão e Turim para a Consagração das Dioceses ao Coração de Maria. A partir de 1900, o Padre Deschamps, S.J. começou a recolher petições para obter do Papa a Consagração do género humano ao Coração de Nossa Senhora.

Em 1906, sob os auspícios do Cardeal Richard, partiu a segunda petição de Nossa Senhora das Vitórias e levou a Roma 707.854 assinaturas.

Em 1908 e 1912, o R. Padre Doré, Superior Geral dos Padres Eudistas, apresentou duas listas numerosas: o Padre Lintelo, S.J. faz nova petição, em 1914, e, nesse mesmo ano, o Congresso Eucarístico de Lurdes dirigiu oficialmente a São Pio X a mesma petição e consta que Sua

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Santidade estava resolvido a aquiescer a este pedido, se não fora a guerra e a morte do Pontífice.

Em 1920, outra vez o Geral dos Padres Eudistas recolhe mais 700.000 assinaturas.

São estes também os votos de múltiplos Congressos Marianos de Lião (1900), Friburgo (1902), Einsideln (1906), Paris (1927), Chartres (1927), Lurdes (1930), Boulogne-sur-Mer (1938), Saragoça (1940).

Em 1938, os Prelados Portugueses, reunidos em Fátima para cumprir o voto nacional pela protecção alcançada de Nossa Senhora numa das horas mais difíceis da História Nacional, não só renovaram a Consagração de Portugal ao Coração Imaculado de Maria, mas pediram em corpo gesto ao Santo Padre Pio XI se dignasse também consagrar o mundo todo ao mesmo amantíssimo Coração da Rainha do Céu.

Outra vez, em 1942, durante as festas jubilares das Aparições de Fátima, o Episcopado Português renovou ao Santo Padre a súplica da Consagração e o Papa Pio XII julgou necessário — como Ele mesmo o afirmou ao R. Padre Gabriel Roschini — ouvir essa súplica e consagrar o mundo ao Imaculado Coração de Maria, ao concluir as festas do XXV aniversário das Aparições. (cfr. Roschini — La Madre de Dio — vol. II, pág. 748)

A Irmã Lúcia, vidente de Fátima, mais de uma vez, obedecendo às inspirações do Céu, manifestou para Roma a vontade de Deus de que a Rússia fosse consagrada ao Imaculado Coração de Maria:

Em 1929 — escreve ela — Nossa Senhora, por meio de outra aparição, pediu a Consagração da Rússia ao seu Imaculado Coração, prometendo por este meio impedir a propagação de seus erros e sua conversão.

Mas não há dúvida nenhuma que os pedidos feitos por meio de Alexandrina ao Papa mereceram a atenção que já vimos antes: por duas vezes foi mandada examinar pela Santa Sé. Além disso, uma coisa ficará clara, a nosso ver: é que com esse grande acontecimento se realizaram, não uma, mas várias predições (para não dizermos profecias) da Alexandrina, algumas delas, muitas vezes repetidas.

É o que passamos a demonstrar com documentos à vista:

1 — Predisse que o mundo seria consagrado a Nossa Senhora: consta de cartas que citarei pela data que trazem:

A 10.9.36, entre outras coisas, diz-lhe Nosso Senhor:

Eu vou dizer-te como será feita a Consagração do mundo à Mãe dos homens e minha Mãe Santíssima. Amo-A tanto! Será em Roma pelo Santo Padre consagrado a Ela o mundo inteiro e depois pelos Padres em todas as Igrejas do mundo... Não haja receios que os meus desejos serão cumpridos.

A 20.11.37:

Eu venho buscar-te em breve, mas não quero vir, sem que seja feita a Consagração do mundo a minha Mãe Santíssima...

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Assim ouviu de Nosso Senhor e objectou:

— Ó meu Jesus, o Santo Padre parece que não atende: demora tanto!

E Nosso Senhor disse-me:

— Sossega, descansa, minha filha: ele atende, chegará o dia da glorificação.

A 22.11.37, diz-lhe Jesus:

Eu quero, logo depois da tua morte, que a tua vida seja conhecida e há de o ser; farei que o seja. (Ainda não há cinco anos que ela morreu, no momento em que estas linhas redigimos, e já andam no mundo cinco obras diferentes sobre a Alexandrina, tendo uma delas já quatro edições diferentes e outra, duas.) Chegará aos confins do mundo, como terá chegado a voz do Papa a consagrar o mundo à minha querida Mãe. Quero que tudo se saiba, para verem como me comunico às almas que me querem amar.

A 4.2.38, anuncia-lhe Nosso Senhor:

Minha filha, está próxima a tua felicidade eterna, porque em breve serão realizados os meus divinos desejos, para a tua maior felicidade.

Minha filha, venho falar-te hoje para testemunhar a loucura de amor que Eu e a minha Imaculada Mãe temos por ti. Ela ao ver a honra que, por teu intermédio, lhe vai ser tributada, inclina-se tão docemente sobre ti, elevando-te à mais elevada altura de esposa fiel, de esposa querida, de esposa toda e só de Jesus. Confia no teu Jesus que não te engana e é a tua força e será sempre até ao fim...

A 6.6.38, ao declarar-lhe Jesus que quer depressa a Consagração, afirma-lhe categoricamente:

Os meus divinos desejos serão realizados!

A 2.12.39:

O Coração de minha Mãe bendita está tão ferido com as blasfémias que contra Ela se proferem. Tudo o que fere o seu santíssimo Coração vem ferir o Meu e tudo o que fere o Meu vai ferir o d’Ela. Estão tão unidos os nossos divinos Corações! É por isso que a Consagração do mundo lhe há de dar muita honra e glória. Ao ele lhe ser consagrado, hão de ser abatidas e humilhadas aquelas línguas malditas, blasfemas e impuras que se moverem para a blasfemar. Coragem, minha filha, que dentro em pouco tudo será realizado, e depois verás no Céu a glória que lhe foi dada...

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2º — Predisse que não morreria antes desse acontecimento se realizar e é de notar que mais de uma vez foi sacramentada nesse intervalo, por estar em perigo de vida e algumas dessas predições foram feitas exactamente quando assim se encontrava:

Já a 20.11.37 escutava:

Eu venho buscar-te em breve, mas não quero vir sem que antes seja feita a Consagração do mundo a minha Mãe Santíssima. Ela é por teu intermédio glorificada e maior será também a tua glorificação…

A 25.4.38, mandava-lhe Nosso Senhor que comunicasse ao Padre Espiritual para escrever ao Papa sobre a vontade divina:

Diz-lhe que escreva ao Santo Padre que Eu quero a Consagração do mundo à minha Imaculada Mãe, mas quero que o mundo todo saiba a razão porque lhe é consagrado.

Eu quero que se faça penitência e oração. Tu é que estás a aplacar a Justiça divina; é por isso que te faço sofrer assim: e tens de sofrer muitas vezes isto, até que Ele o consagre.

No êxtase da Paixão de 20.1.39, afirmava-lhe Nosso Senhor que o mundo estava preso por fiozinho muito quebradiço: que ou o Santo Padre se movia a consagrá-lo, ou o castigo vinha ao mundo. E acrescentava que sua Mãe Imaculada tinha remédio para tudo. Mas que até a Consagração se realizar, a crucificava a ela, Alexandrina.

E ainda a 4.1.41:

Prometo-te neste sábado consagrado a Ela (Nossa Senhora) não demorar na Terra por muito tempo a tua existência. E prometo alcançar-te no Céu, com os teus pedidos e amor, o que agora te alcanço na Terra pela dor.

Mas para isso, minha filha, pede ao Santo Padre que se compadeça do teu martírio, que satisfaça os desejos divinos que e consagrar o mundo a minha Mãe bendita.

A 17.1.41, repete-lhe o mesmo:

O teu calvário em pouco terminará, mas hão de cumprir-se antes as profecias de Jesus...

3 — Predisse que seria Pio XII quem havia de fazer a Consagração.

Consta de um documento escrito a lápis, durante o êxtase que teve a 20.3.39, em que Nosso Senhor mais uma vez urge a Consagração, declarando que será feita pelo novo Papa.

4 — Predisse várias circunstâncias que haviam de acompanhar a Consagração.

Que nela Nossa Senhora seria invocada com o título de Rainha do mundo, Rainha da Paz, Senhora da Vitória. Na verdade assim foi: na Consagração feita por Pio XII, lêem-se esses

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títulos: Rainha do mundo, Rainha da Paz e o equivalente a Senhora da Vitória: Vencedora das grandes batalhas de Deus.

Vejam-se os documentos de 10.9.36, já citado, de 2.5.40, em que Nosso Senhor manda dizer ao Papa:

Se Ele quer que o mundo seja salvo, que apresse a hora da Consagração dele a minha Mãe bendita. Que A coloque à frente da batalha e que A proclame Rainha da Vitória e Mensageira da Paz. O mundo vai dar muito que sofrer, porque a malícia humana atingiu toda a maldade dos seus crimes. A carne faz merecer todos os castigos, desafiando a Justiça divina.

Ai dele, se à sua frente não tem a Rainha do Céu! Ai dele, se Ela não intercede junto do trono divino!

Na Mensagem, Pio XII chama-lhe Medianeira perante o trono divino

Predisse que a Consagração seria ao Coração de Maria:

a) Pede-lhe Nosso Senhor como que num símbolo, a 3.11.36, dizendo-lhe que o Papa, ao consagrar o mundo, ponha um coração de oiro ao peito de Nossa Senhora, com uma chave preciosa, o que quer dizer:

Minha filha, vou dar-te a certeza da consagração do mundo à tia querida Mãezinha. Diz ao teu pai espiritual para ele mandar dizer ao Santo Padre que quero que seja colocado por ele ao pescoço duma imagem de minha Mãe Santíssima um coração e uma chave de ouro, coisa fina, o que quer dizer: assim como mandei fechar tudo na Arca de Noé antes do dilúvio, assim quero fechar o mundo inteiro naquela Arca Santíssima.

b) A 3.5.41:

Diz ao teu Pai Espiritual que lhe pede Jesus e Maria, que escreva ao Papa para que Ele consagre o mundo ao Imaculado Coração da Virgem Mãe. Toda a Humanidade está a agonizar debaixo da Justiça do Eterno Pai(fervia a guerra mundial em cheio). Só Ela o poderá salvar. De contrário será todo carbonizado com fogo vingador. Diz-lhe que peça ao Papa que faça ecoar em toda a Humanidade as palavras de Jesus: Convertei-vos, fazei oração, fazei penitência!

c) A 20.6.41, durante o êxtase da Paixão de sexta-feira, dizia-lhe Cristo:

Une a tua dor à minha dor e o teu amor ao meu amor; só assim te será suavizado o caminho do Calvário. Só assim os pecadores serão salvos; só assim vem a paz e vai vir depressa dentro em pouco. Depois, todo o mundo rejubilará ao ser consagrado ao Coração de tua e minha bendita Mãe.

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d) Os mais retumbantes e claros são os de Maio de 1942 a que já nos referimos. A 22 ouvia ela:

Glória, glória, glória a Jesus! Honra, honra e glória a Maria!

O coração do Papa, o coração de oiro está resolvido a consagrar o mundo ao Coração de Maria! Que grande dita e alegria para o mundo, pertencer mais que nunca à Mãe de Jesus!

Todo o mundo pertence ao Coração divino de Jesus; todo vai pertencer ao Coração Imaculado de Maria.

E a 29:

Ave Maria, Mãe de Jesus, Mãe de todo o Universo!

Quem não quererá pertencer à Mãe de Jesus, à Senhora da Vitória? O mundo vai ser consagrado todo ao seu divino (sic) Coração!

Guarda, Virgem pura, guarda, Virgem Mãe, em teu Coração Santíssimo todos os teus filhos!

Para terminar este capítulo, restaria responder à pergunta: em vista de tantas insistências, para que se pedisse ao Papa a Consagração, que passos afinal se deram?

As insistências vinham desde 1935; mas só em 11 de Setembro de 1936, nos resolvemos a escrever pela primeira vez ao Papa Pio XI, por meio do Cardeal Pacelli, uma carta resumidíssima de uma folha dactilografada, a pedir a Consagração do mundo e dando a origem desse pedido. O resultado foi a Santa Sé solicitar do Senhor Arcebispo de Braga mais longas informações sobre o caso. Pediu-no-las Sua Em.cia Rev.ma e redigimos umas cinco ou seis páginas à máquina que entregámos ao Prelado, em começos de 1937. Sua Ex.cia Rev.ma mandou o seu parecer para Roma e em consequência veio a ordem para a Nunciatura de Lisboa para que a um ou dois Sacerdotes se confiasse a missão de examinar a doente. Foi como vimos, o R. Padre António Durão, S.J.

Voltámos a escrever ao Cardeal Pacelli, a 9.2.38, a título de informação do que se ia passando. Diga-se desde já que ao Director Espiritual nunca de Roma foi mandada nenhuma resposta, ao contrário do que alguém erradamente publicou.

Insistindo Nosso Senhor de novo e dando novas provas de que queria a Consagração, quanto antes, não ousámos desta vez escrever para Roma, mas, como acima já se insinuou, aproveitando o Retiro dos Prelados portugueses em Fátima, nos princípios de Maio de 1938, expusemos-lhes o caso e eles resolveram pedir ao Papa, em corpo gesto, a Consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria.

Como director do Secretariado Nacional das Congregações Marianas em Portugal, dirigimo-nos também, em nome das mesmas Congregações, ao Primaz da Espanha, ao de Colômbia e de Inglaterra, a solicitar se dignassem fazer igual pedido ao Papa.

Outra vez escrevemos para Roma directamente a Pio XI, após os fenómenos da Paixão que principiaram a 3 de Outubro de 1938 e que eram apresentados pelo Céu como uma nova prova

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transmitir ao Papa de como Deus queria a Consagração oficial ao Coração de Maria, e em que se prometia ao mesmo Papa o subir direito ao Céu depois da morte, sem passar pelo purgatório, se acedesse ao pedido do alto.

Já em plena guerra, ainda uma vez escrevemos, a 31.7.41, directamente a Pio XII, narrando tudo o que ultimamente se tinha passado e transmitindo algumas passagens que pareciam verdadeiras profecias a respeito da guerra que estava ardendo.

Fora disso, o único passo que demos, foi conseguir que, por meio da Rev. Madre Vigária-Geral do Instituto de S. José de Cluni, múltiplas Congregações religiosas de Portugal e do Estrangeiro, por ocasião do Jubileu do Santo Padre Pio XII, em Maio, lhe fizessem o mesmo pedido.

CAPÍTULO 27

NO JEJUM PERPÉTUO

1942 - 1955

Desde o dia em que cessaram os êxtases da Paixão, cessou também a Alexandrina de comer e de beber: iniciou o seu jejum perpétuo que duraria mais de treze anos.

Ao princípio não estranharam o caso; afinal o que ela comia habitualmente durante uma semana não chegava para uma refeição de quem quisesse nutrir-se bem. De mais a mais já antes tinha suportado jejuns de cinco e até de dezassete dias seguidos. Mas desta vez foram passando semanas, meses, anos sem nada comer nem beber.

Já a 2 de Fevereiro de 1943, nos escrevia o médico assistente, Dr. Manuel Augusto de Azevedo sobre o estranho caso:

É o anjo de sempre a seguir firmemente a missão que Deus lhe marcou para nosso bem. A sua alimentação desde Março de 1942 Sexta-feira das Dores de Nossa Senhora — até fins de Maio do mesmo ano, consistiu em beber a meia manhã e a meia tarde, umas colherinhas de água com sal, sendo essa água fervida com um fiozinho de azeite, havendo porém nesse espaço de tempo um ou outro dia em que nada bebia.

De Junho de 1942 até hoje (isto é, nove meses) nada pôde engolir (sem que esteja aflita até vomitar o que engoliu), a não ser a própria saliva, a sagrada Hóstia e algumas gotinhas de água simples.

A isto — se quisermos ser lógicos (continua o médico) e conscientes, temos de chamar, embora respeitando a decisão da Igreja, milagre de Deus.

Meses depois escrevia o mesmo médico:

Recebi o convite do Senhor Arcebispo Primaz, de levar alguns médicos a Balasar, a fim de, à face da Medicina, ser declarado o que se deve pensar a respeito da nossa querida doentinha...

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Convidei um médico católico do Porto — escreve ainda a 13 de Maio de 1943 — e teve medo. Convidei o especialista de doenças nervosas, Dr. Gomes de Araújo, dizendo-lhe que a doente não se alimentava e aceitou o convite. Convidei o especialista de doenças de nutrição — agnóstico — e ficou maravilhado, ao dizer-lhe que não se alimentava.

— Mas, se é verdade isso, temos um autêntico milagre! Que pena não ser internada no Porto, que isso seria para nós uma revelação (acrescentou).

Estive com o Prelado, segunda-feira, e ele quer os exames dos médicos.

Os Drs. Gomes de Araújo, Carlos Lima, Prof. da Faculdade de Medicina do Porto, com o Dr. Manuel Augusto de Azevedo foram de facto a Balasar, mas pareceu-lhes finalmente que a doente devia absolutamente ser internada, pois não confiavam no valor real da vigilância feita na própria casa.

Vencidas não pequenas dificuldades, sobretudo por causa do estado melindroso de saúde da Doente, conseguiu-se de facto interná-la no Refúgio de Paralisia Infantil da Foz do Douro, para ser examinada unicamente sobre a sua abstinência alimentar pelo Dr. H. Gomes de Araújo.

O exame prolongou-se por quarenta dias e quarenta noites, com todo o rigor científico, como consta do Relatório apresentado, com o título: Um notável caso de abstinência e anúria, por H. Gomes de Araújo, da Real Academia de Medicina de Madrid, director do Refúgio de Paralisia Infantil; especializado nas doenças nervosas e artríticas .

Aí se lêem estas palavras decisivas:

É para nós inteiramente certo que, durante os quarenta dias de internamento, a Doente não comeu nem bebeu: não urinou nem defecou e esta circunstância leva-nos a crer que tais fenómenos possam vir a produzir-se de tempos anteriores. Não podemos duvidá-lo. Os treze meses, como nos informaram? Não sabemos.

E termina luminosamente afirmando que há neste caso estranho tais pormenores que, "pela sua importância fundamental de ordem biológica, tais a duração da abstinência de líquidos e anúria, nos tornam suspensos, aguardando que uma explicação faça a necessária luz".

Não nos permite o espaço copiar aqui todo esse Relatório, donde são tiradas as citações que aduzimos; mas transcrevamos ao menos o atestado firmado em conjunto pelos Drs. Carlos Alberto de Lima e Manuel Augusto de Azevedo:

Nós abaixo assinados, Dr. Carlos Alberto de Lima, professor jubilado da Faculdade de Medicina do Porto, e Manuel Augusto Dias de Azevedo, doutor em Medicina pela dita Faculdade, atestamos que, tendo examinado Alexandrina Maria da Costa, de 38 anos de idade, natural e residente na freguesia de Balasar, do concelho da Póvoa de Varzim, verificámos que era portadora de uma afecção ou compressão medular, causa da sua paraplegia.

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Atestamos também que, estando internada desde o dia 10 de Junho até ao dia 20 de Julho corrente, no Refúgio de Paralisia Infantil, da Foz do Douro, sob a direcção do Dr. Gomes de Araújo e sob a vigilância feita de dia e de noite por pessoas conscienciosas e desejosas de indagar a verdade, foi constatado que a sua abstinência de sólidos e líquidos foi absoluta, durante o seu internamento, conservando-se o seu peso, temperatura, respirações, tensões, pulso, sangue e faculdades mentais sensivelmente normais, constantes e lúcidas e não havendo durante esses quarenta dias nenhuma evacuação de fezes nem a mínima excreção de urina.

O exame de sangue colhido três semanas após o internamento supramencionado vai junto a este atestado e por ele se vê que, considerada a dita abstinência de sólidos e líquidos, a Ciência não pode explicar naturalmente o que nele se registrou, assim como, atentas as verdades da Fisiologia e Bioquímica, não pode ser explicada a sobrevivência desta Doente, por motivo dessa abstinência absoluta, durante os quarenta dias de internamento, devendo-se salientar que a Doente, durante esse tempo, respondeu diariamente a muitas perguntas e sustentou inúmeras conversas, manifestando a melhor disposição e melhor lucidez de espírito.

Enquanto aos fenómenos observados às sextas-feiras, pouco mais ou menos pela 17 horas oficiais, entendemos que pertencem à Mística, que se pronunciará sobre os ditos fenómenos.

Por ser verdade mandamos passar este atestado que assinamos.

Porto, 26 de Julho de 1943.

Carlos Alberto Lima

Manuel Augusto Dias de Azevedo

A par do Relatório médico, é interessante ler nas notas autobiográficas o que a própria Doente escreveu sobre esse episódio: chega a parecer um romance, tão ao vivo nos descreve tudo e com tais pormenores. Aí se verá claro quanto sofrimento veio acrescentar à cruz já tão pesada da Alexandrina, essa prova a que ela se sujeitou exclusivamente para obedecer aos desejos do Prelado da sua Diocese.

Quarenta dias — escreve ela — passados na Foz!

Só Jesus sabe o que eu lá passei: quantos espinhos a ferirem-me! Quantas setas cravadas em meu coração! Quantas humilhações, quantas humilhações! Razão tinha o meu Médico assistente, na minha ida para lá, ao colocar-me na minha testa um pano molhado, em dizer-me:

— Tem por aqui uns cabelos brancos, mas quando vier ainda há de ter muito mais.

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E de facto assim aconteceu; eu já adivinhava tudo o que me esperava. Mas é tão bom passarmos tudo por amor de Jesus.

Estava provada cientificamente a abstinência total da Alexandrina de sólidos e líquidos e hoje, que sabemos que esse jejum durou mais de treze anos, temos que assimilá-lo aos jejuns dos grandes místicos conhecidos na Agiografia, como o de Santa Ângela de Foligno que esteve doze anos sem tomar nenhum alimento; Santa Catarina de Sena, oito; Santa Livínia de Schieleman, vinte e oito, etc.

Os jornais falaram do estranho caso e por isso não admira que, ao retirar-se a Doente para Balasar, tivesse imensos curiosos a querer vê-la: cerca de 1500, ao que relataram.

Que impressão, meu Deus, aquele burburinho de povo! — escreve a Alexandrina — Não valeram as súplicas da minha Irmã, para que acabassem com aquilo. Não valeram de nada os polícias. O mesmo Médico teve de ir à janela a dizer que se devia acabar, porque não era possível mais movimento, para não me matarem. Quanta gente julgava que tivesse morrido!

Eu de facto fiquei humilhada, abismada e cansadíssima com o nojo de mim mesma, pelos beijos recebidos, as lágrimas etc., que me deixaram no rosto, a dizer-me uma estima que não mereço e não quero.

Além dos Médicos supracitados, outros ainda, ao lerem o Relatório, atestaram que o caso não tinha explicação natural.

Ainda a 3 de Novembro de 1954, o Dr. Ruy João Marques, Prof. catedrático da Faculdade de Ciências Médicas e da Faculdade de Medicina da Universidade do Recife, especialista em assuntos e nutrição, declarava:

A meu ver, não é possível explicar por meios meramente científicos — melhor diria, por meios médicos — o que se vem passando com a Sra. Alexandrina Maria da Costa. Nada faz crer, segundo se depreende dos minuciosos relatórios dos médicos... que se trate de um simples caso de histerismo, sobretudo porque é demasiadamente prolongado o tempo que a observada passou e vem passando sem tomar o mínimo alimento. Por outro lado, estou certo de que não se trata igualmente de mistificação, pois a comissão (insuspeitíssima e à altura da investigação a proceder) que a observou por quarenta dias e quarenta noites, sob rigorosa vigilância, na Casa de Saúde "Refúgio da Paralisia Infantil", pôde constatar que de facto, sua abstinência alimentar era total.

Ora essa ausência absoluta de consumo de substâncias nutritivas, durante tão largo espaço de tempo, cerca de 14 anos, se não me engano, não é compatível com a vida e muito menos com a manutenção da normalidade da temperatura, da respiração, do pulso, da tensão arterial, etc. etc. Até mesmo as funções psíquicas deveriam cedo se apresentar obnubiladas, mas é exactamente o contrário o que se verifica: sua vida

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intelectual é intensa, suas relações afectivas são perfeitas, suas faculdades e seus sentidos absolutamente conservados.

Trata-se pois, de um caso extraordinário, direi mesmo excepcional, de modo algum explicável por meios puramente naturais ou através de dados científicos.

Quanto ao progresso da mielite, muito provavelmente existente e responsável pela paralisia, nada tem a ver com a abstinência de alimentos, sendo uma doença paralela.

Dr. Ruy João Marques

Não há dúvida: este ponto ficou brilhantemente demonstrado, ainda em vida da Alexandrina, o que não quer dizer que cessasse toda a oposição que se notava, em certos sectores, ao caso de Balasar. Pelo contrário, dir-se-ia que mais se agravou, como vamos ver. Mas tudo serviu para mais pôr em foco a virtude nunca desmentida da Doentinha.

Concluamos este capítulo com o que, a 7 de Dezembro de 1946, ouviu de Nosso Senhor:

— Não te alimentarás jamais na Terra. O teu alimento é a minha Carne; o teu sangue é o meu Sangue divino; a tua vida é a minha Vida, de Mim a recebes, quando te bafejo e acalento, quando uno ao teu o Meu Coração.

Não quero que uses medicina, a não ser aquela a que não possas atribuir alimentação. Esta ordem é para o teu Médico.

É grande o milagre da tua vida.

(cfr. Humberto Pasquale — Alexandrina — trad. port., pág. 152)

CAPÍTULO 28

NOVOS ESPINHOS

1944-1951

Concluído o rigoroso exame de quarenta dias sobre a abstinência total de sólidos e líquidos por parte da Alexandrina, parece deveriam os adversários do caso, ao me nos por prudência, calar-se. Mas nada disso: recrudesceu mais o seu zelo.

Houve até quem, ouvindo falar do exame, acorreu pressuroso ao Dr. Gomes de Araújo, antes que ele entregasse o seu relatório, a preveni-lo que "devia ter cuidado com o dito relatório, porque a Doente de Balasar era uma impostora... que ficasse certo que se tratava de uma mistificação... – e que o Médico dela era um fanático, etc. etc."

Pareceu então ao Dr. Manuel de Azevedo ser de toda a conveniência que a Autoridade eclesiástica competente estudasse o caso e desse o seu parecer e orientação; e assim o significou ao Sr. Arcebispo Primaz várias vezes.

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Dir-se-ia que Alexandrina pressentiu na sua alma o resultado que daria essa diligência. Assim lemos nas suas notas de 27.7.1944:

Jesus, estou num sobressalto; não sei o que pressente a minha dor. Ai que horror! Tudo é tempestade. Oiço o zunir dos ventos, os ecos dos trovões terríveis, ameaças de destruição! Tudo fugiu espavorido e eu sozinha no meio do mar: sem barco, sem leme e sem luz, prestes a infundir-me para sempre no abismo do mar! Horror, horror! A tempestade rasga as nuvens, o céu abre-se e revolta-se contra a terra.

Meu Deus, meu Jesus, que me espera ainda? Em vossos santíssimos braços me entrego.

Depois de várias insistências, Sua Ex.cia Rev.ma encarregou alguém de estudar e dar parecer sobre o caso. Não entrámos em contacto com nenhum dos encarregados desse estudo, por isso não houve ensejo de lhes mostrarmos a imensa documentação que possuímos.

Em resumo: saiu o parecer da Comissão e... foi desfavorável.

Nada encontravam no caso da Alexandrina de sobrenatural, extraordinário ou milagroso.

Em presença desse parecer, determina prudentemente o Senhor Arcebispo o seguinte:

a) que se faça silêncio sobre os pretensos factos extraordinários atribuídos à referida doente ou de que ela se afirma protagonista, os quais não devem ser expostos nem apreciados em público, mas confinar-se quando muito ao âmbito restritamente privado;

b) que seja feita recomendação aos Sacerdotes que não alimentem mas antes caridosamente contrariem a curiosidade que em volta da doente e por consideração de ordem religiosa se possa vir a manifestar ainda; visto que essa curiosidade não pode ser sã e bem fundada, nem é louvável;

c) que a mesma recomendação se faça a todos os nossos diocesanos, sempre que houver necessidade e se puder fazer discretamente;

d) que ao Rev. Pároco de Balasar se comunique que o incumbimos, além disso, de velar para que a doente e a sua habitação não sejam molestadas com visitas importunas, feitas a título de observação dos pretensos fenómenos extraordinários, a que se atribua carácter religioso ou intenção religiosa.

Diante destas determinações, só restava obedecer, fossem quais fossem as razões que a isso levaram a Autoridade competente.

O que mais interessa é ver como a Alexandrina acatou esta ordem, com tudo o que ela tinha de humilhante, para ela, para a sua família e para todas as pessoas que de perto a acompanhavam, particularmente para o director espiritual...

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Copiemos as seguintes passagens das suas notas espirituais referentes a este momento crucial, que elas são extraordinariamente eloquentes e dão lições até aos mais provectos em vida espiritual.

1 de Agosto de 1944, ao cair da tarde.

Escutai, Jesus, a minha dor quase moribunda. Duro golpe lhe foi dado. Ó dor, ó dor que matas a dor! Ó dor, que só por Jesus podes ser conhecida!...

Com os olhos em Vós, Jesus, as calúnias as humilhações, os desprezos, os ódios, o esquecimento tem a doçura do vosso amor. Venha tudo, ó Jesus, venha tudo o que vos aprouver. Morra o meu nome, como sinto que morreu o meu corpo e a minha alma, para que viva o vosso divino amor nos corações e a vossa graça nas almas. Eis, meu Amado, porque me deixo imolar!

Mas como resistir a tanto, ó Jesus? Olhai este coração que rebenta, desfaz-se em dor! Não pode com tanto aperto, se não vindes em seu auxílio! Vinde, vinde, ó Jesus! Socorro, socorro, Jesus. Querem privar-me de tudo, até me ameaçam de eu ficar sem Vos receber, proibindo o Sr. Abade de vir junto de mim, a não ser em perigo de vida: isto no caso de eu não obedecer. Obedeço, obedeço, meu Jesus, com a vossa divina graça. Ó santa obediência, como eu te amo por Jesus! Por Jesus e pelas almas!

Lançaram-me a público sem consentimento meu; de nada soube e agora, meu Jesus, querem à custa da minha dor apanhar as penas que o vento tão furiosamente espalhou? Como, Jesus, como? Ai, nunca mais, meu Jesus, nunca mais!

Oh, quem me dera viver escondida, ai quem me dera amar-vos, como tanto desejo: ser vossa, meu Jesus, a mais não poder ser…

Mas perdoai, ó Jesus, perdoai-me: sem ter esta vida assim!

Ai, quantos que nada desta vida conhecem e são santos e eu, meu Jesus, tão cheia de misérias! Oh, que saudades dos anos que já lá vão: tantos colóquios tive convosco e sem que nada se soubesse! Dava vidas, meu Jesus, dava mundos para viver escondida!

Perdão, Jesus, não tenho querer, não tenho vontade.

Meu Deus, se eu soubesse que com o meu sofrimento a vossa consolação era completa! Se eu pudesse viver fechada neste quartinho, sendo Vós, meu Jesus, e estas pobres paredes testemunhas das minhas dores, sem que os meus e todos os que me são queridos pudessem recordar que eu vivia aqui e que em dia algum da vida eu tinha vivido na companhia deles, então já não sofria!

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Mas vejo que quem sofre mais é o vosso divino Coração e que os que me são queridos sofrem comigo, não podem mais esquecer-me: então faz-me sofrer a mais não poder.

Quantas vezes não posso conter as lágrimas, cega, cega de dor! Vem-me ao pensamento: é mais perfeito não chorar; Jesus fica mais contente... Fito meus olhos no Crucificado, levanto-os ao Céu, fico por algum tempo a contemplar Jesus, e logo as lágrimas, que me pareciam nunca mais terem fim, estancam. Sinto vida nova.

Meu Deus, que luta tremenda! Ai de mim sem Vós, Jesus! Mãezinha valei-me, sou a vossa vítima! Ó Santa Teresinha, Santa Gema, São José e Santos meus mais queridos, valei-me! Ó Céu, ó Céu, conto contigo.

Nunca, meu Jesus, me deixeis cansar; nunca deixeis parar meus lábios, repetindo sempre: Amo-vos, Jesus, sou a vossa vítima!

Dêem-me os homens a sentença que quiserem, não importa. Dai-me Vós, ó Jesus, a sentença de vencerdes em mim e de eu Vos amar e de Vos dar almas.

Jesus, não vejo o meu passado nem presente, vejo só o futuro: vejo o meu sangue correr por entre espinhos; entre uma noite tremenda e escura vai a minha dor que tem vida, caminhar por entre ele, banhar-se, ensopar-se nele. Ó meu Deus, que tormento! Não sei dizer-vos o que sinto: sofro e a dor desaparece à medida que vou sofrendo. Nada me pertence e morro de dor, Jesus, e tenho sede de mais dor.

Jesus, só Vós me compreendeis: tenho fome, tenho sede, morro, morro, ó Jesus!

Pouco depois, a 10 de Agosto, lemos ainda esta beleza:

Jesus, olho para um lado e para o outro, não vejo ninguém; temo e tremo: ai que pavor! Não cessa a luta. Vejo por entre a escuridão o meu sangue correr e a dor quase moribunda segue o seu caminho. Sangue e dor, morte e eternidade!

Escutai, ó Jesus, ouvi, ó Mãezinha, é uma dor agonizante: não há quem se compadeça da minha dor. Olhai, ó Jesus, vede-a ensopada em sangue. Jesus, Jesus, não me deixeis sem vos receber. Perder tudo, tudo, mas comungar. Perder tudo, mas possuir-vos!

Ao ouvir lá fora risos, como de quem goza uma grande alegria, sem eu querer, quase sentia saudades de gozar dessa alegria também.

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Meu Deus, que vida tão mal compreendida! Se não fosse o amor de Jesus, se não fossem as almas, não estava sujeita ao juízo dos homens, não tinha que lhes obedecer.

Estes pensamentos passavam rápidos como relâmpagos: sentia-me como que obrigada a trocar todas as alegrias pelo amor de Jesus. Jesus, Jesus é digno de tudo. As almas, as almas!... Este pensamento vibrou dentro de mim; acendeu uns desejos mais firmes de caminhar por entre espinhos banhada de sangue, só em sangue. Deu-me um conhecimento claro do que é Jesus e do que é o mundo.

— Meu Deus, levanto-me aqui para cair além. A luta continua.

Sinto saudades da minha crucifixão das sextas-feiras, mas tenho horror aos êxtases (o grifo é nosso). Temo as sextas, temo os primeiros sábados, temo qualquer dia ou hora, meu Jesus, em que vos dignardes falar-me. Não será isto perfeito? Tende pena, Jesus, tende dó. Temo a minha fraqueza, temo vacilar: horroriza-me o sofrimento, mas confio em Vós. O meu querer é o vosso, só o vosso, meu Jesus.

Que estou aqui a fazer? Não permitais que eu seja a desgraça das almas. Preocupa-me também o dizer-se que certas coisas são precisas para tranquilização delas (a Comissão eclesiástica que deu o parecer sobre o caso de Balasar, dizia: "Esta Comissão só faz votos para que o Exmo. Prelado tome todas aquelas medidas necessárias para a glória de Deus e a tranquilidade das almas").

Ó Jesus, espero em Vós, confio em Vós. Sossegai a minha pobre alma.

Passaram-se algumas horas. Ia alta, bem alta a noite. Tudo em casa estava em descanso; só a minha dor, a minha tremenda luta continuava.

Veio de repente Jesus, estreitou-me em chamas de amor.

— Dá-me a tua mão, minha filha. Não te prometi Eu vir levantar-te do teu desfalecimento? Anda para os braços da tua Mãezinha!

E como uma criancinha, lancei meus braços a seu pescoço. Ela apertou-me docemente e acariciou-me, cobrindo o meu rosto de beijos. Eu não sei se chorava, se não, mas sentia que chorava. Ela limpava-me com o seu santíssimo manto as lágrimas e dizia-me:

— Não chores. Consola comigo o teu e meu amado Jesus. Ele é tão ofendido. Anda, toma coragem!

E Jesus ao meu lado dizia-me:

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— A tua dor, minha filha, o teu martírio arranca das garras de Satanás as almas que ele com tanto furor me roubou. O inferno está fechado; é a raiva dele (mais de uma vez Nosso Senhor prometeu à Alexandrina, atendendo ao que ela lhe pedia, não deixar em certos dias cair ninguém no inferno).

Coragem. A tempestade passa. Recebe graça, recebe amor e a luz do divino Espírito Santo...

E, sobre um trono riquíssimo, vi o divino Espírito Santo em forma de pomba, deixando cair sobre mim, lá do alto onde estava, raios doirados à espécie de fitinhas de várias cores e cheias de brilho. Tudo isto era belo e luminoso.

Fiquei mais forte. E pouco depois, numa doce paz, adormeci.

Não precisam de comentários estas belas páginas, quanto ao seu valor literário — quase valeu a pena tão grande tribulação, para nos ficarem em herança estas jóias — nem sobretudo quanto ao que eloquentemente nos revelam da virtude solidíssima desta alma privilegiada. Que sinceridade a desta frase, escrita mais tarde em 1954:

Estou na cruz: ó como é doce! Sou humilhada: mais doce ainda!

A situação de descrédito ou desconfiança prolongou-se por vários anos. Embora, por Março de 1947, se principiasse a falar em novos exames de teólogos, nada se fez por então e só pouco a pouco é que a atmosfera foi desanuviando.

Em carta de 21.11.46, escreve a Doente ao director ausente no Brasil:

Veio aqui um médico, que é irmão do Sr. Cardeal Patriarca. Ficou muito meu amigo. Veio numa sexta-feira e com várias pessoas; foram pedir licença ao Sr. Arcebispo; ele autorizou-os assim como já várias vezes tem autorizado para mais, mas sempre a pedido da família do Sr. Cardeal.

Eu bem gostava de estar sozinha com Jesus. Sinto-me tão humilhada ao ver-me acompanhada!

Como se vê, o rigor das proibições vai-se atenuando. A 13.2.47 escreve também:

Passou por aqui um Sr. Padre Carmelita que há uns três anos veio de Roma a Portugal, e disse-me que já foi professor de Mística e Ascética, que eu não percebo. Depois de conversarmos umas quatro horas e meia, retirou-se e na despedida disse-me:

— Esteja sossegadinha, pode estar sossegadinha; em tudo o que me disse não encontrei em si uma palavra que seja contra o Evangelho, contra a doutrina de Santa Teresa e S. João da Cruz. Conheço a Mística e a Ascética (Padre Isidoro Maguna, n. 19.4.1907, † 19.2.1975), como o pão de cada dia. Sou-lhe franco: já tenho sido escolhido para examinar destes casos e tenho sido contra; mas aqui não sou: sou a favor. Viva muito

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humilde, viva sempre como tem vivido até aqui. Os seus sofrimentos são pedras preciosas que adornam a coroa que lhe há de cingir a fronte. Mais tarde falarei. Pode dizer a minha opinião ao Sr. Padre Humberto.

A 24.5.49, encontramos esta frase mais sintomática ainda:

Gostava de estar sempre sozinha, na solidão e no silêncio, e na maior parte do tempo não estou. A gente a visitar-me é muita e os meus sofrimentos enormíssimos...

E volta a ser-lhe concedida Missa em casa:

Meu Paizinho: já há meses que tenho tido no meu quarto uma Missa cada mês (escreve a 21.11.50). No mês passado, foi o filho do Sr. Dr. Manuel Augusto de Azevedo, e volta a ser ele, se o Senhor quiser, para o mês que vem. Por estes dias, talvez no dia 28, celebre o Sr. Padre que tem celebrado as outras, o Rev.mo Padre Olavo da Congregação do Espírito Santo.

As coisas já estavam pois mudadas.

A 12.4.51, assim nos escrevia o Médico Assistente:

Enquanto a Braga, Paço e Seminários, a atmosfera vai melhorando a olhos vistos. Mensalmente há autorização para ser celebrada uma Missa, no quarto da Alexandrina. Padres e Médicos em número razoável estão a visitá-la, sabendo eu que têm a melhor impressão sobre ela.

É da Alexandrina a seguinte carta, datada a 9.1.52:

Segunda-feira, dia 7, esteve aqui o Secretário do Sr. Arcebispo, Rev.mo Dr. Sebastião Cruz; veio visitar-me e oferecer-me um livro. Disse-me que tivesse muita confiança de que a minha vida era o dedo de Deus em mim; que Ele me chamou como chama a muito poucas almas.

— O seu caso, Alexandrina, está estudado e todos os que o conhecem desapaixonadamente vêem que é obra de Deus, que é um caso digno de respeito.

O Sr. Arcebispo mudou completamente da ideia que tinha a seu respeito. Ele admira-a e venera-a. Isto sem vaidade; ó Alexandrina, o seu leito é um altar e a Alexandrina é a hóstia.

Torne-se cada vez menos indigna do chamamento do Senhor, porque dignos nenhuns somos.

E acrescenta ela:

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Eu digo isto ao Paizinho, não é por mim, é para saber o que se vai passando. E, depois de tudo isto, parece-me que nada acredito. Tudo é morte, dor e mentira.

Bendito seja o Senhor: só vivo no abandono e na confiança...

Em 22.4.53, repetia o Médico:

Em Braga, as coisas, a atmosfera vai melhorando, estando todos certos de que o caso não se explica naturalmente.

Mas deve dizer-se que, só depois da morte da Alexandrina, se teve uma prova inequívoca, decisiva de como o Sr. Arcebispo Primaz estava mudado a respeito do caso de Balasar, quando ele mesmo quis assistir à inauguração da capela-sepulcro, oferecida pelo povo à saudosa defunta, e pela aprovação que deu a várias pagelas publicadas e ao boletim mensal, em que aparecem as graças atribuídas à sua intercessão.

É como lhe dizia Nosso Senhor: "A tempestade passa."

CAPÍTULO 29

AMPARO INESPERADO

1944-1948

Neste abandono em que se encontrava a Alexandrina, quis a Providência, como outrora a Cristo no Horto, enviar-lhe um anjo a confortá-la.

Encontrando-se em Junho de 1944, em pregação perto de Balasar, o R. Padre Humberto Pasquale, salesiano, alguém lhe pediu que fosse por caridade a levar algum conforto à Doentinha de Balasar, que estava muito abandonada em grandes tribulações.

Se se deixasse levar pelas vozes que em contrário ouvira nesses dias, não teria cedido; mas foi precisamente aquela discordância de pareceres expressos e preparados com tão pouco escrúpulo que lhe despertou o desejo de indagar a verdade.

E lá foi, levado em automóvel pelo Médico Assistente da Alexandrina, o Dr. Azevedo. Outra vez voltou a visitá-la, a 14 de Julho do mesmo ano, mas agora por motivo superior: "por um sentimento de bem-estar que se experimenta ao pé dela" — escreveu ele e acrescenta: "tenho ouvido da boca de outros a mesma coisa: naquele quarto a gente sente-se bem, como envolvido numa atmosfera especial: é o bonum est nos hic esse de S. Pedro com Jesus." (carta de 27.7.44)

Desde a primeira visita que a Alexandrina sentiu, na pessoa daquele filho de S. João Bosco, como que o anjo confortador que vinha incutir-lhe coragem para continuar a subir o seu calvário tão duro. E facilmente começou a abrir-lhe a alma, ao contrário do que acontecia com outros Sacerdotes que a visitavam, a tal ponto que, desde Setembro, o considerou como o segundo director que o Senhor lhe enviou.

Não foi sem hesitação que o R. Padre Humberto aceitou a delicada incumbência de dirigir a Alexandrina, sentindo interiormente o peso daquela responsabilidade; nem o fez sem consultar

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primeiro a quem desde 1933 até 1942 a dirigira. Como ele mesmo escreveu na preciosa biografia da Alexandrina que publicou em Itália em 1957, a pág. 201:

Naquele brevíssimo encontro, o único e primeiro director da Alexandrina não só confirmou o Salesiano na delicada empresa, mas com uma sensação de alívio lhe disse:

— É sua; confio-lha plenamente. O Senhor lhe concederá luz para a guiar.

Temos de facto, de confessar que foi para nós, seu primeiro director espiritual, um alívio, ao vermos como a Providência supria tão competentemente, na pessoa do R. Padre Humberto Pasquale — Mestre de noviços em Mogofores, pregador e escritor — a falta que em circunstâncias tão acres e difíceis fazia à Doente uma direcção assídua e esclarecida.

Meteu pois generosamente ombros à empresa. Para logo, mandou à Alexandrina que semana por semana, lhe mandasse por escrito, ao menos resumidamente o que se ia passando. Apesar da repugnância e dificuldade que neste período, mais que nunca, sentia em ditar o que se passava em sua alma, obedeceu àquela ordem como se de Deus emanada. E assim se foram juntando, ano por ano, centenas de páginas, logo dactilografadas em Mogofores, pelos Salesianos, que são mais uma mina preciosa a mostrar bem claro a elevação daquela alma de eleição e a melhor resposta às incompreensões, aos dictérios, às calúnias com que em vão tentaram deitar por terra a obra que Deus vinha realizando na alma da Alexandrina. (ib. p. 201)

O novo timoneiro tomou com toda a responsabilidade e consciência o leme dessa atribulada barquinha, que parecia neste momento vagar no mar alto, entregue a todos os ventos e tempestades, sem uma estrela a luzir no firmamento que lhe orientasse a rota difícil.

Tão bem compreendida e guiada se sentia a Alexandrina que lhe abria de par em par a consciência, tal qual ao primeiro director. Por isso, há de ela escrever-lhe, quando ele estiver em vésperas de partir para Itália:

30.8.1948

Meu bom Padre: desde criança sempre gostei de nunca faltar ao que prometia, mesmo nas mais pequeninas coisas. E ainda hoje quero continuar na mesma forma, mas já não é com aquela prontidão de outrora, porque as minhas forças não me permitem, o que é por vezes de grande sofrimento para mim. Mas como não estou no mundo para fazer a minha vontade mas sim a de meu Jesus, cá estou a fazer o que há um ano prometi. Perdoe-me a falta que foi inteiramente involuntária.

É com certeza a última carta que escrevo por minha mão a vossa Rev.cia: seja em tudo feita a vontade de Deus: que ela se cumpra em mim sempre e em tudo.

Depois de pedir luz e forças ao Céu, quero dizer ao meu bom Padre que esta minha carta tem o fim de felicitar e saudar aquele que tanto por mim tem feito nas horas trágicas da minha vida, o que jamais esquecerei. E depois de o felicitar de alma e coração, prometo no dia um de Setembro, aniversário de V. Rev.cia, comungar, sofrer e orar, para que

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Jesus com sua bendita Mãe lhe dêem as suas melhores bênçãos e graças e o façam cada vez mais santo e mais cheio de amor pelas almas.

Meu bom Padre, quando penso na minha vida, no meu calvário, no abandono em que estou e se sim ou não Nosso Senhor me quererá só, mesmo só, sem ter junto de mim um Sacerdote que me compreenda, o meu coração cobre-se de toda a escuridão e fico como que sem nenhuma esperança: a custo encubro as lágrimas e por vezes nem sou capaz de as esconder.

Mas isto não quer dizer que não aceito com alegria da alma, mais este golpe, o segundo golpe espiritual, se Jesus com ele me quiser ferir. Pode acreditar, meu Padre: seja esta carta como que meu testamento, que é depois do meu Paizinho (o primeiro director), outro segundo Paizinho a ocupar lugar no meu coração. São os dois Padres por quem eu mais oro, que mais união têm na minha alma e que melhor me compreendem.

Ai, meu Padre, eu não sou digna de ter a amparar a minha alma Sacerdotes tão sábios e tão santos. Será por isso que Jesus deixa que os homens os retirem lá para longe? Pobre de mim: eu não sou nada! Eu não sou o que devia ser; sou pior que o nada, vou muito além do nada: muito mais além! Eu gostava, meu bom Padre, de saber dizer o que sinto, todo o horror que isto me causa e como me sinto indigna de tudo e de todos; mas não sei nem poderei jamais saber.

Adeus; nunca esquecerei o grande bem, o grande amparo que tem dado à minha alma. Lembro-o na Terra e lembrá-lo-ei no Céu.

Muito obrigada.

Na verdade, só durante três anos e tanto tratou o Padre Humberto pessoalmente com a Alexandrina. E esse período não deixou de ser atribulado para ele e para a dirigida.

Mal começou a ir a Balasar, logo houve quem quis ver nessas visitas transgressão às ordens emanadas da Autoridade eclesiástica. Dizia-se que o Salesiano andava a fazer-se director da Doente, metendo assim a fouce em seara alheia. A documentação que temos diante deixa entrever qualquer coisa parecida a intriga.

Fosse como fosse, o certo é que, passados poucos meses, o P. Humberto recebe ordem de não se meter no caso de Balasar: foi-lhe comunicada pelo seu Inspector, que a tinha recebido do Sr. Arcebispo Primaz.

Apresentando-se ele (o Padre Humberto) como director espiritual da Doente, concorre — dizia a ordem — para perturbar algumas pessoas mais sensíveis que a rodeiam. (ob. cit. p. 167-168)

Esteve por isso, algum tempo sem escrever nem visitar a Doente.

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Mas logo que se fez luz sobre aquela urdidura, a autoridade competente atenuou a proibição e ficou a escrever-lhe e a visitá-la uma vez por mês. (ib.)

E seguiram-se da parte do Padre Humberto quase quatro anos de estudo a sério daquela alma de escol, não só para a poder dirigir com todo o acerto, mas para logo após a morte dela, a dar a conhecer ao mundo, como o prova a esplêndida biografia que dela publicou em Itália, em 1957.

O ter tomado a direcção do Padre Humberto Pasquale deu ensejo à Alexandrina de se ligar espiritualmente à Congregação Salesiana. Já no ano de 1944, recebia o diploma de Cooperadora Salesiana que lhe foi dado para poder gozar de todas as indulgências anexas e com a sua oração colaborar, em união com os Salesianos, na salvação das almas, sobretudo dos jovens e a fim de orar e sofrer pela santificação dos Cooperadores de todo o mundo. (ib. 310)

Meu Deus, já não estou sozinha! - exclama ela confortada.

Não estava de facto, e os Salesianos de Mogofores principiaram a mostrar de vários e delicados modos quanto a consideravam da Família de Dom Bosco, tanto os Padres como os Noviços. Dir-se-ia que principiaram a corresponder-se como irmãos da grande Família Salesiana.

Por gentileza do Padre Humberto, possuímos a fotocópia de dois autógrafos dela, datados no dia do seu aniversário, um para os Padres outro para os Noviços. Transcrevemo-los:

Só Deus é grande!

Balasar, 30.10.1944.

Exmos. e Revmos. Senhores Padres.

Para todos o amor mais abrasador de Jesus e da Mãezinha e todas as riquezas do Céu. Tenho presente todas as intenções que me recomendaram e faço-os participar das minhas pobres orações e sofrimentos. É um dever de gratidão da minha parte: não faço nada demais. Sinto-me tão feliz e tão rica com o apoio que tenho em Vossas Reverências!

Ó meu Deus! Já não estou sozinha: tenho quem me ajuda a subir o meu tão penoso calvário. De todo o meu coração e de toda a minha alma digo: Jesus e a querida Mãezinha lhes paguem tudo e lhes dêem todas as riquezas do Céu: riquezas de virtudes, de graças, para com elas atraírem para o Coração divino de Jesus as almas.

Não posso mais. Sempre unidinhos na Terra e no Céu. A bênção e o perdão para esta que implora orações e muitas orações, a pobre Alexandrina.

A carta para os Noviços é como segue:

Meus queridos Noviços e Salesianos dessa Santa Casa.

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Queria escrever a cada um de vós, mas não posso: faltam-me as forças. Como tenho um dever a cumprir de vos agradecer as santas orações que tendes feito por mim, faço-o a todos em geral. Jesus e a Mãezinha vos paguem tanta caridade. Só desejo que ocupeis no Coração divino de Jesus o lugar que ocupais no meu, porque assim tudo podeis receber. Jesus é tão rico!... E eu tenho-vos a todos tão dentro do meu coração! É por isso, que vos quero assim nos de Jesus e da Mãezinha.

Um muito obrigada a todos os que me escreveram. Podeis confiar que Jesus vos concederá tudo quanto desejais, para vossa santificação e salvação das almas. Confiai, confiai:

Jesus será sempre convosco. Contai sempre comigo aqui na Terra e depois no Céu, onde vos espero.

Por caridade orai por mim.

Sou a pobre Alexandrina Maria da Costa.

Mas de novo vinha Jesus mostrar-lhe o que já há tantos anos lhe tinha afirmado: "Ele é que era o seu director de perto, contínuo", os outros que lhe dava na Terra, sê-lo-iam de longe. No êxtase após a primeira Crucifixão ouvia ela de Jesus que "Ele é que tinha sido seu Mestre a ensiná-la desde pequenina."

Por isso, não nos espanta que o R. Padre Humberto, em fins de 1948, fosse chamado pelos seus Superiores para a sua pátria, para a Itália.

No Brasil, onde nos encontrávamos desde princípios de 1946, recebíamos nas vésperas da sua despedida de Portugal a seguinte carta:

Porto, 9.6.48.

R. Padre Mariano Pinho.

Há quanto tempo devia ter escrito. Perdoe-me tanto silêncio. O tempo não chega para nada. A falta de notícias deve ser para V. Rev.cia um sacrifício, mas também para nós não há mimos, graças a Deus. Estamos perto, mas não tanto como se julga. Os afazeres e as contrariedades nos acompanham sempre.

Te Deum laudamus! No sofrimento sim, oh, nele estamos juntos à vítima do Calvário; no sofrimento e na convicção cada vez mais profunda de que digitus Dei est hic.

A vida mística vivida cada vez mais intensamente, os escritos sempre teologicamente correctíssimos, a perfeição num aumento sensível e admirável, em todas as virtudes especialmente na humildade: eis em resumo o que continua a ser a Alexandrina.

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Continua o jejum (começado em Março de 1942), continua o sofrimento da Paixão íntima sofrida por Jesus e descrita com uma visão psicológica das coisas, dos sentimentos do Salvador que não deixa dúvidas sobre sua veracidade e manifesta uma tal interioridade da alma vítima, que impressiona.

O que Nosso Senhor lhe tem pedido e o que ela lhe tem dado dão uma ideia da missão verdadeiramente grande de que está encarregada. O mundo com as suas maldades, com os seus diferentes crimes está nela representado ao vivo, como se ela tivesse a experiência de todo esse conjunto de mal que horroriza quem bem o conhece. E ao lado disso, que heroísmo de reparações!

Os colóquios são muito mais raros, mais breves e dolorosos. Há mais de um ano, o que acho de mais notável é a transfusão do sangue de Jesus para ela. Fala na gotinha de sangue injectada no seu coração por um tubo dourado, em comunicação com o Coração de Jesus.

Na sexta-feira Santa recebeu misteriosamente a Comunhão com estas palavras: Viaticum Corporis Domini Nostri Jesu Christi etc.

Um dia um Anjo dá-lhe a comunhão e diz: Corpus Domini Nostri Jesu Christi etc. Outra vez é Jesus que lha dá e diz: Corpus Domini Jesu Christi etc.

Pequenas coisas que, por ela não entender a língua, dizem muito.

O demónio, com assaltos sem a tocar, tem-na perseguido muito, deixando-lhe a sensação de consentir em baixezas sem nome. Há pouco tem-se feito ouvir com pancadas fortes no soalho da casa. Nada porém tira ao ambiente e a ela a paz e a serenidade mais invejável.

É esta, em resumo, a vida da vítima do Calvário (não esquecer que o lugar onde morava a Alexandrina se chama Calvário): um mistério de sobrenatural, de heroísmos que se desenrola na forma mais simples e sob o sorriso enganador que cativa as almas, as muitas almas que a visitam... Nas mil vicissitudes, vejo-a guiada pelas luzes do alto e cheia de uma sabedoria prudente que não encontrei ainda em ninguém.

Quantas coisas queria dizer mais a V. R., mas tenho que fechar a carta já interrompida umas poucas de vezes. Queira lembrar-se de mim: bem sabe que não é esquecido nunca entre nós. Oxalá que os planos de Deus se realizem quanto antes, para o bem das almas.

Abraça-o com amizade nos corações de Jesus e Maria.

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P. Humberto Pasquale, Salesiano.

Além da actuação destes dois directores espirituais, ocupou lugar especial de bom conselheiro e confessor habitual da Alexandrina o R. Padre Alberto Gomes, pároco de Travassos, por quem a Doente de Balasar tinha a veneração e respeito que se tem aos santos, como ela em várias cartas o expressou.

Logo que por ordem dos Superiores nos vimos afastados de Balasar, nós mesmo pedimos ao R. Padre Alberto Gomes se dignasse, sempre que pudesse, passar por Balasar, para confessar a Alexandrina e confortá-la no seu martírio. O Padre "Albertinho", com toda a sua caridade e zelo característico, começou a visitar a Doentinha duas vezes por mês. Numa carta que nos escreveu Sua Rev.cia, a 29.2.49, encontramos esta passagem:

A Alexandrina continua no seu glorioso posto, sempre sofrendo mas sempre sorrindo e consolando outros que sofrem e não sorriem.

Eu, na falta de director idóneo, continuo a absolvê-la regularmente duas vezes por mês.

E depois da morte dela, lemos noutra sua carta estas linhas:

Até ao último dia, nunca eu fui infiel à delegação de V. Rev.cia, nem ela foi ingrata à minha dedicação. O que desejo é que ela, no Céu, conheça à evidência a intenção pura dos meus trabalhos e despesas. Sei que conhece e até sinto o seu conhecimento, desde que compareceu diante do Eterno Esposo.

Terminou pois a minha actuação no desempenho da pesada missão que V. Rev.cia me confiou, quando me apresentou Alexandrina com o cartão que de Braga a ela enviou por mim, no dia 20.1.1942. Nunca mais esqueço a V. R....

Muito dedicado em Jesus Cristo.

P. Alberto Gomes

CAPÍTULO 30

DOR E AMOR

1944 - 1955

A Doentinha de Balasar legou à posteridade, em seus numerosos escritos, riquíssimo manancial em que não só nos revela bem transparente a sua bela alma de eleição e os delicados e árduos caminhos por onde, desde a infância até à morte, a conduziu a Providência, mas jorra deles luz abundantíssima de preciosa doutrina espiritual.

E isto tanto mais, quanto mais se aproxima do fim.

Impressiona de facto a quem conhece, por exemplo, a doutrina de São João da Cruz, ler esses escritos da Alexandrina, sobretudo os dos últimos quatro lustros de sua existência. Dir-se-ia

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que neles encontramos a exemplificação vivida, num superlativo por vezes misterioso, dos ensinamentos do grande Doutor Místico, particularmente no que se refere à Noite passiva do sentido e muito mais ainda à do espírito e à União consumada.

Muito ficou já disperso nos vários capítulos deste livro a provar o que afirmamos, mas seríamos incompletos, se não procurássemos, sempre à luz dos mesmos escritos, tentar pôr ainda mais em foco até que culminâncias atingiu essa purificação maravilhosa que, "despojando-a de tudo, lhe dá tudo", levando-a até à consumação da união de amor com Deus, aurora da união beatífica.

Já em 7.8.41, ouvia ela dizer:

O teu calvário ser-te-á cada vez mais penoso.

E foi-o de facto. E antes, a 9.4.39:

Poucos são os momentos de alívio que terás na Terra. A tua vida será Dor e Amor...

Eu preciso na Terra dos teus sofrimentos.

É que, como ensina S. João da Cruz, "nessa purificação em que suas obras e potências ficam mais divinas que humanas, despojam-se todas as potências, afeições e sentimentos tanto espirituais como sensíveis, tanto exteriores como interiores, ficando o entendimento às escuras e a vontade às secas e vazia a memória e os afectos da alma em suma aflição, amargura e aperto, privando-a do sentido e gosto que antes experimentava nos bens espirituais". (ob. cit. 459)

Mas fale a Alexandrina que já de longe vinha passando por esta noite: (31.10.43)

No dia de Cristo Rei, senti como se morresse o meu corpo e o meu espírito e acabasse por completo a minha existência no mundo. É indescritível a dor que isto me causou. Mais ainda: sentia-me no purgatório. Que dor, meu Deus, que dor! Há dias que sentia passar por mim umas labaredas, julgando eu que era efeito da sede ardente que continuamente sentia; mas enganei-me. Essas labaredas continuaram: não eram as labaredas do fogo da Terra. Tinham um brilho encantador. Passaram por mim, horas seguidas, atormentando o meu corpo e todos os meus sentidos. Atingiam a maior altura e todo o meu ser ficava embebido nelas. Causavam-me dores indizíveis.

Mas, apesar disso, eu sentia necessidade de me mergulhar nelas, para assim me purificar. Como a borboleta louca pela chama, eu estava também louca e queria de braços abertos entrar naquele fogo que atormentava, mas não destruía, vivendo só numa ânsia: libertada daqui vou para o meu Jesus!

Eu não sabia o significado de todo este sofrimento. Soube sentir e nada mais. Jesus veio explicar-mo:

— Tem coragem, meu encanto, não desanimes, no teu martírio, não te desalentes no teu calvário. Só assim os

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pecadores são salvos, só assim o mundo recebe as graças desejadas. Vives no purgatório, a barreira que te separa do céu. Fui eu que assim o permiti. Agora já não estás no mundo: vives como se não vivesses. O teu tormento é inigualável: nunca o dei a nenhuma alma.

E Jesus continua:

— Queres consolar-me assim, minha filha? Queres continuar nesta dor?

— Tudo, meu Jesus, tudo o que Vós quiserdes. O meu anseio é não viver sem vos dar consolação um momento só, meu Jesus. Viver para vos consolar, viver para vos salvar as almas, é a minha aspiração.

— Coragem então, filhinha. Se soubesses quanto bem vai fazer às almas, quando souberem o tormento que te foi dado!

O teu espírito morreu para o mundo, a tua vida é a vida das almas do purgatório; mas não estás a sofrer só por ti (porque para a sua purificação não eram precisos tantos sofrimentos, como veremos no capítulo seguinte). Depressa, depressa a dar a conhecer ao mundo, quanto elas sofrem. Depressa, depressa as almas minhas amadas a libertá-las.

Recebe o amor todo, o amor do teu Jesus e da tua Mãezinha querida. Recebe as carícias de Jesus, as carícias celestes...

E agora veremos a Alexandrina a declarar de variadíssimos modos, que já não vive, que dela só fica na Terra a dor e que nem essa lhe pertence.

Morri, morri para o mundo escreve a 13 de Maio de 1944 — e para as criaturas. Tudo baixou ao túmulo para ficar sempre sepultado.

Meu Deus, que horror! Já não vivo, só vive a minha dor amada, só vive o meu inexplicável martírio. Poderá ele sem a minha vida, dar vida às almas? Poderei ainda ser útil à Humanidade?

Ó Jesus, posso assim amar-vos e consolar o vosso santíssimo Coração?

Pobre de mim: depois do ódio e do abandono, depois do esquecimento, do desprezo, baixei à sepultura; já vivo na eternidade e sem que me désseis o meu Paizinho e sem ter de novo aqui a santa Missa! Nunca mais, meu Jesus, nunca mais posso ter alegria, a não ser com os olhos em Vós. Podem de novo darem-me tudo o que me roubaram, sinto que para mim tudo é morte e que já é tarde para me ser restituído aquilo que eu mais amava e estimava depois de Vós, ó meu Jesus...

E mais abaixo:

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A minha eternidade não tem luz; é uma eternidade que não vos ama, que não vos louva, que não vos vê, que não vos goza! Tremenda eternidade!

Não ver a Jesus é uma eternidade morta. Só a dor triunfa sobre a morte. É o que vive na eternidade que eu sinto.

Seja qual for o estado da minha alma, Jesus, apressai-vos a cumprir as vossas santas promessas. Eu espero, eu espero confiada por vosso amor. Dai, Jesus, dai vida às almas com a minha morte, com a minha eternidade. Dai-lhes a vossa eternidade, dai-lhes o Céu, o Céu, ó Jesus!

Mais expressivo, se é possível o que ditou a 20 de Julho de 1944:

Jesus, poderá ser, será possível a morte falar? O coração de um cadáver ter saudades do Céu, ânsias de voar para Vós, louco, louco, por se esconder na imensidade do vosso divino amor? Jesus, Jesus, é a minha dor que Vos fala; é ela que vive; é uma dor que nela se encerram todas as dores.

Jesus, sinto que o meu corpo já não é um cadáver, no qual os vermes da terra ainda não penetraram; um cadáver que depois de alguns dias ter baixado ao túmulo, pode ainda ser reconhecido: não, meu Jesus, não: nem cinzas tenho, tudo desapareceu. O meu Deus, que morte a minha, que eternidade perdida!

Escutai, Jesus, tende compaixão: olhai para mim, lede na minha dor. É por Vós, é pelas almas. Aguentai com o peso que me causou a morte; vede que sem Vós não resisto a tantas saudades do Céu e, com tantas ânsias de vos amar, não posso estar aqui. A noite não tem estrelas, não há dia, não há Sol. Ó dor, só tu vives: só tu vives, mas não amas; não amas a Jesus, não vives para Jesus!

Ouvi, Senhor, o meu brado, chegue até Vós o meu clamor!...

A quem não tem experiência destes caminhos das almas de eleição, poderão parecer exageros as expressões com que nos deixaram descritos o seu sofrer. Mas S. João da Cruz pensava doutro modo e escrevia:

Donde convém ter grande compaixão da alma que Deus põe nesta tempestuosa e horrenda noite (sublinhamos o tempestuosa e horrenda), pela imensa pena que tem e pela grande incerteza que tem de seu remédio, pois crê que não há de acabar-se o seu mal. (cfr. ob. cit, pág. 472)

Se a Alexandrina não sentisse imenso essa tempestuosa e horrenda noite de espírito, não era capaz, por mais poeta ou artista que a imaginemos, de deixar exarados tão ao vivo e de tão variados modos esses seus sofrimentos. Não resistimos a copiar ao menos duas passagens desse mesmo ano de 1944, incontestavelmente um dos mais dolorosos da sua vida. Uma é de 27 de Julho e diz assim:

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Trevas da noite, horrores da morte! Continua, Jesus, o brado da dor; escutai: ela é que chora, é ela que grita pelo vosso socorro. Jesus, é dor que sente dor; é dor que outra vida não tem a não ser dor. Tudo o mais meu Jesus, tudo o mais baixou ao túmulo, passou para a eternidade. Não vejo luz; parece-me, ó meu Deus, que nunca conheci a luz; não sei o que é o luar, o brilho do Sol nem o cintilar das estrelas. Não sei o que é a vida nem o amor de Jesus...

A outra é de 27 de Setembro:

Meu Jesus, não posso viver aqui. Continuam as minhas ânsias: quero amar-vos, quero morrer de amor! Morro por vos dar almas. Quero vê-las todas, todas dentro do vosso divino Coração. Tudo isto é nada, Jesus, nada para mim. Não encontro no mundo satisfação nenhuma.

Quero agradecer-vos os vossos benefícios e nada sei dizer-vos, nada sei agradecer-vos... Parece-me, Jesus, quando vos chamo, quando invoco o vosso divino amor e da querida Mãezinha, que não sou ouvida. Sinto o meu brado ficar abafado no montão da cinza do meu pobre corpo que já não é um cadáver, como há pouco sentia, mas cinzas, só cinzas, meu Jesus. Parece-me estar num cemitério e quando, no meio da agonia da minha alma imploro o auxílio do Céu, esse brado em vez de subir ao alto, perde-se abafado nesse montão de cinza e na cinza de outros cadáveres que jazem no cemitério em que me encontro e cuja extensão eu não sei medir.

Tende dó, Jesus: vede quanto sofre a minha pobre alma. Não caibo em mim de dor. Não cabe em mim o meu coração em ânsias de vos amar e voar para Vós. Não digo bem, meu Jesus: este coração não é meu. Não sei a quem pertence. Aonde está ele, ó Jesus, a quem pertence?

Tudo morreu, Jesus, tende dó de mim!...

No meio destas trevas misteriosas, desta vida de morte total, rasgava-se de vez em quando o Céu e vinha o conforto suficiente para poder continuar o seu árduo caminho. Os primeiros sábados eram geralmente o momento escolhido por Deus para estes alívios reconfortantes. Vejamos, por exemplo em 6 de Maio deste mesmo ano de 1944:

— Estou sentado como um rei no trono do teu coração — ouvia ela de Nosso Senhor — Sou Rei, sou Senhor da tua alma, do teu corpo e de todo o teu ser. Tu és pedra preciosa, és a minha jóia riquíssima. Não posso ausentar-me de ti.

Os crimes da Humanidade fazem-me tiritar de frio. O teu coração é fogo: o teu coração é amor. Como eu me sinto bem ao calor da alma virgem!

Não temas, filhinha: consola-te e alegra-te, como me alegras a mim. Alegra-te e consola-te com a reparação que me dás. É

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necessária a inocência e a pureza das virgens para reparar tantos crimes, tantas imundícies!

Que horrores, que maldades contra a santa pureza!

Jogo, brinco contigo: consolo-me no teu martírio.

Que alvura, que alvura a da tua alma! És mais brilhante para mim que o Sol com seus raios e esplendores; és mais, muito mais, imensamente mais purificada no sofrimento, do que o oiro no cadinho.

— Purificai-me, purificai-me, meu Jesus; quero ser pura, bela aos vossos divinos olhos. Passe pelo que passar perante o mundo. Faça ele o juízo que fizer, contanto que eu seja vossa; contanto que eu vos ame; contanto que eu vos salve almas! Não quero ofender-vos, Jesus, na mínima coisinha: antes milhões e milhões de infernos!

— Não me ofendes: sossega; recebe a minha paz. Que encantadores desígnios tenho sobre ti!..

No primeiro sábado, a 2 de Setembro, dá-lhe Jesus o seu divino Coração. Fale a Alexandrina:

Tudo o que é de Jesus caminha à minha frente e desaparece, como se por mim não passasse. Parece-me que tudo desconheço. Sinto-me sozinha, vendo só em mim o meu nada, a minha miséria, e sem poder aguentar as ânsias de amor a Jesus e de O possuir inteiramente.

Foi neste estado de alma que eu hoje O recebi. Queria dizer-lhe tudo e nada sabia dizer-lhe. Ele estava escondido na minha miséria. Eu não O sentia, não O amava.

Passei assim alguns momentos; a minha alma começou a inundar-se e a sentir uma doce paz. Então ouvi-o dizer-me:

— Tenho frio, tenho sede, tenho fome, minha filha. Aquece-me com o teu amor, mata-me a fome e a sede das almas.

Tenho fome, tenho sede! Dá-me, minha filha, as tuas dores, os teus martírios, a tua imolação.

O teu sangue é o selo com que posso selar as portas do inferno para não se abrirem. É o resgate, é o preço das almas, é o passaporte para uma eternidade feliz.

Pega, minha filha querida, aceita o meu divino Coração; és a depositária, és o cofre das minhas riquezas.

É teu: guarda nele todos os que te são queridos, porque também são queridos meus. Guarda nele os pecadores, guarda nele os Sacerdotes, guarda nele todos quantos quiseres.

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Dou-to, porque te amo; dou-to, porque te dei uma sublime missão.

É por ti que as almas vêm a mim purificadas com a tua dor e no teu sangue passam para o meu Coração divino.

Senti — continua a Alexandrina — que Jesus passou, ou melhor, depositou em mim o seu divino Coração. O meu estava abrasadíssimo. Via do Coração divino de Jesus saírem grandes chamas e, por entre elas, manchas de sangue saindo da grande chaga que o abria. Ao ver-me depositária de tão grande riqueza, disse:

— Ó Jesus, como podeis Vós entregar nas minhas indignas mãos o vosso Coração divino, este tesoiro imenso? Eu não sou digna de beijar a terra, não digo onde pousais os vossos santíssimos pés, mas aquela por onde passais voando. Que indignidade a minha!

Do dia 13 de Maio em diante, como vimos, experimentou a Alexandrina que tinha morrido tudo nela: só vivia a dor.

A 15 de Agosto, vai mais longe o despojo: pelo menos por algum tempo, sente que até a vida dessa dor lhe é misteriosamente arrebatada. Mas oiçamo-la:

Chegou o dia da Mãezinha e, ao recordar o dia que era e a alegria que havia no Céu, parecia-me não resistir às dores desta Terra.

Veio o momento da Comunhão. Poucos minutos depois de ter recebido a Jesus, senti como que um assalto dentro de mim. Pareceu-me que foi Jesus, como se fosse um ladrão, a entrar e a sair logo, levando consigo esse pouco de vida que dá vida à minha dor.

Senti-me morta, mas continuei a sofrer mais, por sentir-me sem esse pouco de vida da minha dor. Senti que me faltava tudo de mim mesma e como que separada, cortada ao meio, ficando aqui o meu cadáver e lá no alto, no Céu, aquele roubo que era um aparte. Esta parte estava mergulhada no gozo completo, menos o da vista de Deus, sem dar porém à parte que ficou na Terra alívio nenhum, pelo contrário, esmagando-a num abismo de dor sem fim.

Passei o dia todo numa ânsia dolorosa de possuir outra vez aquela parte de mim que me pertencia e sem a qual eu era cadáver. Foi um dia que me pareceu não ter fim; passei-o num brado contínuo a Jesus e à Mãezinha e a perguntar-me:

Ó meu Deus, sem vida, como posso viver?

Na tarde desse dia, ouvi novamente as harmonias que já tinha ouvido no dia 12 e foi como que um calmante ao meu

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sofrimento, sem o qual me parece não teria resistido aqui muitas horas.

À noite, não me lembro a hora, foi-me restituído o roubo; dei-me conta disso, por me sentir reviver.

E vão correndo os dias, os meses, os anos e esse mistério de dor e de amor a intensificarem-se sem medida na Alexandrina.

A 28.8.47 escreve:

Sinto-me a morrer desfalecida, sinto-me a não poder mais. Queria morrer de amor, de amor só por Jesus. Quero amá-lo e não sei. Quero ser perfeita e em nada vejo em mim a perfeição. Que trevas de morte!

Mas se soubesse o desejo que tenho de amar estas trevas! Abracei-as com a cruz, abracei-as com Jesus, dei-lhe este abraço para sempre. Vejo na cruz amor e dor; amor e dor sem fim. É este amor, é esta dor que eu quero; foi esta a cruz que abracei pelo meu Jesus, pelas almas.

Em 1948, a 13 de Setembro, esta passagem magnífica:

Tenho o meu corpo cheio de ligaduras, sinto todos os ossos a desconjuntarem-se. Mas é esta e só esta a minha alegria: sofrer por Jesus. Não me importa que já em vida, se à divina Vontade assim aprouver, todo o meu corpo se desfaça em podridão. O que eu quero é amá-lo a Ele, só a Ele. Não quero perder um momento de sofrimento, quero que ele seja aproveitado em favor das almas, das minhas almas que custaram o preciosíssimo sangue do meu amado Jesus.

Custa sofrer e por vezes solto gemidos, mas quero sofrer e por nada do mundo trocava o sofrimento.

Se no corpo sofro muito, não sofro menos na alma... Que fases eu estou a atravessar!

Não sou eu, não vivo eu, não há luz nem houve luz, nunca sofri nem sofro nem virei a sofrer; nunca dei nada a Jesus nem virei a dar. Eu sou nada, tão nada, que este nada me apavora!

Eu sinto isto, mas a razão diz-me o contrário. Mas o pior é que este estado da alma não atende à razão. A minha cegueira nada me deixa ver nem compreender; só me resta a minha confiança em Jesus. Quero viver sem preocupação alguma, sobre Ele descarregar tudo. E isso procuro fazer. Entrego-me nos braços da Divina Providencia, sem querer pensar o que sofro ou virei a sofrer; deixo passar a tempestade incessante que por vezes é aterradora.

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Vontade do meu Jesus, eu quero-te e amo-te; por nada te trocarei.

Sejam quais forem os sofrimentos, por maiores que sejam as dores do meu corpo e da minha alma, sinto no meu íntimo uma grande paz, a paz que nos vem de Deus. Se em alguns momentos estou mais atribulada e me sinto como que a cair no desespero, lá vem Jesus invisivelmente a deitar-me a mão. Faz serenar tudo; e a alma, no meio de tanta dor, fica a gozar a mesma paz...

No meio de tanta dor e tanta treva, teve a Alexandrina, a fins de 1949 ou talvez em princípios de Janeiro de 1950, uma suave alegria. A ela se refere em carta que nos escreveu a 9.1.50:

De Roma, por intermédio do Sr. Padre Humberto, recebi um cartão com a fotografia do Santo Padre, de braços abertos e olhos no Céu, e dizia assim:

Fui recebido pelo Santo Padre e pedi-lhe uma bênção especial para si, dizendo-lhe alguma coisa da sua vida. E ele, abrindo os braços afectuosamente e orando, disse:

— Sim, sim! Não uma, mas todas as bênçãos àquela filha querida!

E disse também:

— A todos os seus e aos que a rodeiam.

Fiquei muito contente e estimei-o imenso.

Mas estes breves contentamentos são nada para os constantes sofrimentos da alma. A 20.6.50 assim nos descreve, em carta, a sua extrema desolação:

É de arrepiar o pavoroso estado da minha alma! Sempre a morte a derrotar todas as coisas da minha vida, sem que elas cheguem a viver. Estou sem nada, de mãos vazias, despido de tudo para a eternidade. De nada aproveita para as almas nem para o Céu o meu viver.

Os meus sofrimentos são horrorosos, mas não vivem, não aparecem e para maior tormento é ter que sofrer, querer sofrer e não ter forças para sofrer.

Quero a dor e sinto ao mesmo tempo repugnância; amo-a e com o amor parece que a odeio: está o ódio junto ao amor; está a vida unida à morte. Vivo, sei que vivo, não posso dizer que não vivo, mas também posso dizer que estou morta com tudo o que se passou, passa e passará em mim; morta, totalmente morta com todas as minhas coisas. Falo assim e posso falar, porque não vivo, não; não vivo: a vida que possuo não é minha, sinto que não é. A morte sim, pertence-me, sou eu a senhora dela.

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Aflige-me, meu Padre, escrever, por não saber dizer o que me vai na alma: a minha ignorância não me deixa. Ai que tremenda ignorância! Não há nenhuma que a ela se possa assemelhar. Parece que fui, sou e serei a maior ignorante entre os filhos do Senhor.

Neste martírio, tão só, tão só (estão longe os que a dirigiam: um no Brasil, outro em Itália), naquele abandono de Jesus na Cruz, parece que não tenho ninguém por mim. Não há quem me dê um raiozinho de luz. Tudo é treva na Terra e no Céu. E a ira do Senhor pesa tanto sobre mim! Não sei como satisfazer à sua divina Justiça. Meu Deus, e sem forças para sofrer!

Quando, junto à vontade de sofrer por Jesus, tinha a coragem e a força, não custava tanto. Agora, sem coragem, sem força, sem luz e sem vida, ó meu Deus!...

Linhas abaixo, conclui:

Não se entristeça, meu Padre, com o estado da minha alma. É grande, infinitamente grande a misericórdia de Jesus sobre mim. Eu sinto paz, aquela paz que é dele.

Não tenho nada e tenho tudo. Ele sofre e ama em mim. São devoradoras as ânsias que tenho de O amar e de em tudo ser perfeita. Se eu pudesse, se fosse possível eu dar-lhe todas as almas, que alegria para Jesus!...

Já lembramos que, após o último êxtase da Paixão movimentado, de 27 de Março, continuou a Alexandrina até à morte a experimentar misteriosamente os sofrimentos de Cristo, todas as sextas-feiras, sem que os pecadores soubessem o que se passava, se ela o não deixara, por obediência, exarado em seus escritos. Sobe a umas 5.000 páginas dactilografadas só o que ela ditou até à morte. Aí nos aparecem os seus sofrimentos, sempre os mesmos e sempre misteriosamente novos e num crescendo de intensidade indescritível.

Aí vemos, por exemplo, a 9.3.51, referência ao intolerável martírio que lhe causa o fogo do amor para com Deus:

Tenho tido tão grande, tão grande, infinitamente grande o martírio e a dor do meu Coração! A chaga é tão profunda: vazou-me dum lado ao outro e até me parece que o peito e as costas também tudo foi aberto, tudo está ferido. O coração tem a lança, as setas e os espinhos. Chora, sangra, sofre incessantemente.

No sábado e no domingo senti nele um fogo tão grande que eu não podia resistir; faltava-me a respiração, parecia-me morrer sem ar. Só a panos molhados em água fresca e roupa que tinha vestida, molhada, sobre o peito, eu pude resistir.

Este fogo era de dor e não de consolação. Estive sempre na cruz.

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A 4.7.52, primeira sexta-feira:

Parece-me que já basta de falar de mim, apesar de ter imensa necessidade de desabafar: faço-o para obedecer, mas representa para mim um enorme sacrifício.

Queria esconder-me e fugir aos olhares de todos. Busco a glória do Senhor e o bem das almas, não é a minha glória nem os louvores das criaturas. É por isso que sinto a necessidade de refugiar-me e desaparecer para sempre.

É um martírio, é uma humilhação quase constante ao ver-me rodeada de pessoas. Enquanto que elas falam, o coração sangra-me de dor, por reconhecer o que sou e que sou a alma mais pobrezinha, mais enferma que Jesus tem na Terra.

Se todas as criaturas que se abeiram de mim, me conhecessem, fugiam, nem de longe me queriam ver. A minha inutilidade continua a ser um doloroso pavor para a alma. Sofro muito, mas tudo inútil.

E mais abaixo:

Por vezes o meu coração abre-se como um vulcão de fogo. Quer queimar a Humanidade inteira e absorvê-la toda em si. Mas aqui entra a inutilidade e nada posso fazer...

No colóquio, entre outras coisas, ouve Nosso Senhor dizer-lhe assim:

Sofres assim, minha filha amada, florinha eucarística, sofres assim, porque és vítima. A tua inutilidade é para que o meu sangue divino, toda a minha Paixão e Morte seja útil a essas almas. Tu salvas, salvas almas, almas sem conta. São milhões, milhões, milhões por esse mundo além, a quem o teu sofrimento abre as portas do Céu...

Sofre, sofre, minha filha, o mundo exige o teu sofrimento. Só as vítimas podem aplacar a justiça de meu Pai. Tenho tão poucas! O número das que se deixam imolar com amor e heroísmo é tão pequenino!...

Ainda a 9.3.51 experimenta a dor que os pecadores causam a Jesus:

Ai, meu Jesus, meu Jesus! Que dor eu sinto, que dor tão profunda e que fogo tão abrasador! Parece queimar todo o meu ser!

Jesus responde-lhe:

É fogo divino, é dor divina. É amor que te dei do meu divino Coração. É dor que me causam os pecadores.Sofre, sofre, minha filha, faz como até aqui: não dês a Jesus uma negativa.

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Sofre e pede que sofram; quero dor e muita dor. A dor foi, é e será o maior meio de salvação. Com a dor e o sangue e a vida das minhas vítimas, as almas são salvas.

São salvas as almas, mas não o mundo poupado. A justiça de Deus cai sobre a Terra: os corpos têm que sofrer, mas as almas, essas, se houver grande reparação, estão abertos os meus divinos braços para a todos receber.

E agora já não é só nas sextas-feiras que é misticamente crucificada. Ficará sempre na cruz. Eis o convite que lhe faz Jesus, na sexta-feira santa de 1951, a 23 de Março. Depois de como sempre, viver e sentir atrozmente com Cristo toda a sua divina Paixão, até se ver com Ele sepultada, diz-lhe Nosso Senhor:

Minha filha, minha filha, desci ao sepulcro do teu coração, não de pedra nem de terra, mas de graça e de puro amor.

Filha, minha filha, não morri: estou a viver neste coração ferido só por mim, neste coração a sangrar só por amor.

Sofre, sofre, minha filha. Continua a minha obra de redenção. Vou pedir-te e vou ser atendido. Vais dar-me mais esta esmola. Dá, dá, não a negues, é o Mendigo do amor. Doravante, enquanto viveres neste exílio, ficarás sempre na cruz, não uma hora nem um dia, mas todos os dias, todas as horas. Responde agora ao pedido do teu Senhor.

— Já sabeis, Jesus, já conheceis toda a maldade do meu coração, mas tende a certeza, meu doce Amor, que nada vos posso negar. Estendo os meus braços em sinal de aceitação. Estreito novamente tudo quanto me dais. Recolho tudo para tudo fechar no mesmo coração. Não mais o retireis, Jesus. É tão doce sofrer por Vós! É a minha única alegria na Terra. Estou pronta para viver na cruz com todos os sofrimentos desta Quaresma.

E Jesus responde:

Minha filha, minha encantadora filha, é heróica a tua generosidade, é sem igual o teu amor a Jesus, o teu amor às almas. Não sou Eu que exijo este martírio contínuo, são os pecadores, é o mundo.

Tem coragem, tem coragem, a graça do teu Deus não te faltará nunca. Tens nas tuas mãos o triunfo e a salvação das almas...

No dia do seu aniversário desse mesmo ano, a 30 de Março, ouve de Jesus, no costumado colóquio, estas palavras:

Escolhi-te para a dor, minha filha, escolhi-te para a dor. E foi pela dor que te levei ao mais alto grau de amor.

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E agora este desabafo a 9 de Janeiro de 1953:

Ou sofrer, ou morrer, meu Jesus.

São tão grandes as ânsias que tenho de sofrimento que me levam a murmurar silenciosamente, é o meu coração a falar, no mais íntimo com Deus:

Ai de mim, ai de mim, meu Jesus, se me tiráveis a dor! Eu não saberia viver sem sofrer. A vida sem dor seria para mim insuportável. Tenho a certeza, Jesus, que sofreria mais, se é possível, sem sofrer, do que com os sofrimentos que me dais.

Não há nada que se compare com a doçura da Cruz, quando a aceitamos e levamos por amor.

É por Vós, Jesus, e pelas almas que eu sofro e que quero e aceito o que Vós quereis e me dais.

Amo e beijo a mão bendita do Senhor.

Caio e não me levanto; a dor desfaz todo o meu ser. A natureza apavorada sente quase impulso de revolta contra a dor. Mas a vontade, no abraço mais íntimo, estreita-a, prende-a, enleia-a toda em fortes cadeias do mais puro amor: não pode deixá-la, não pode separar-se. Dor e Jesus, Jesus e dor!

Mas este capítulo não tem fim, tanta é a abundância e riqueza que encontramos no que a Alexandrina nos deixou sobretudo, nesta matéria preciosa do amor apaixonado à Cruz. Consintam-nos os leitores ao menos mais esta síntese magnífica, exarada a 8 de Junho de 1951:

Porque a dor custa, é que eu quero sofrer: sinto prazer no sofrimento e nele me delicio. Porque a dor custa, é que eu a amo e me ofereço a Jesus como vítima. Quanto mais doloroso é o meu martírio, mais eu lhe quero e mais reconheço a minha miséria e o meu nada. Nunca, nunca eu seria capaz de tanto — eu que já nem um vermezinho da terra sou, eu que já nem sou sombra nem sou nada — como poderia resistir tanto, se não fosse Jesus a sofrer, a lutar e a vencer em mim? Ah, sim: é Ele, só Ele com a querida Mãezinha que são a força do meu calvário!

É destes Corações divinos que me vêm as ânsias de me dar, dar, consumir até desaparecer consumida nestes Amores. É deles que me nascem os desejos de tudo sofrer e fazer por amor. As mais pequeninas coisas levam-me ao sacrifício: calo-me por amor, não sou curiosa por amor, uso da caridade por amor quando por muitas vezes os meus instintos queriam o contrário.

Não posso proceder mal: tenho que usar a caridade de Jesus. Exige-o a sua glória, exige-o o seu amor, exigem-no as almas!

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CAPÍTULO 31

NA UNIÃO CONSUMADA

1938-1955

Quem vem seguindo atentamente o que neste livro fica escrito sobre os sofrimentos de Alexandrina, cada vez mais atrozes e mais misteriosos à medida que a vida se aproxima do seu termo, poderia ter talvez a impressão de que afinal tudo se lhe vai em provações e purificações místicas, sem nunca atingir o fim dessas purificações, que é levar a alma ainda na Terra à união consumada com Deus.

Tal conclusão desfiguraria por completo a fisionomia espiritual da nossa biografada e a grande finalidade da sua cruz, sobretudo a partir de 3 de Outubro de 1938. Expliquemo-nos.

Pie Rémaguey, no seu precioso livro La Croix du Christ et celle du Chrétien, depois de falar das provações místicas que geralmente e primariamente são destinadas à purificação da alma, afirma luminosamente que:

Quanto mais a alma caminha com simplicidade, menos necessita delas; o trabalho faz-se nela como por encanto, sem todo esse aparato trágico.

E continua:

Mas evidentemente que as provações místicas têm outro sentido além desta purificação, necessária para elevar a alma a certos graus da união divina; evidentemente (sublinhamos o evidentemente) que há provações particularmente elevadas que não crucificam a alma a fim de a purificar, mas existem precisamente, porque a alma já está purificada. (conf. trad. port. O Mistério da Cruz, pág. 103, ed. Éfeso, Lx.)

E conclui que esses sofrimentos dão-se "na medida em que a graça lhe concede uma eminente conformidade com Cristo Crucificado pelo mundo".

Ora é o caso da nossa Alexandrina. Alma tão simples como ela, tão angélica, tão desprendida de si e de tudo, tão dócil às divinas inspirações e tão perfeita e pronta em abraçar a vontade de Deus, fosse ela doce ou amarga, suave ou atroz, depressa atingiu, sob a acção abundantíssima da graça, a purificação exigida para a perfeita união com Deus. Não mentia, quando em seus colóquios com Deus lhe dizia com tanta simplicidade:

Ó meu Jesus, eu nunca vos neguei nada, nada, nem na menor coisinha!

Só para a purificação da alma da Alexandrina não era preciso todo esse "aparato trágico" de sofrimento. Já de há muito que Nosso Senhor em seus colóquios com ela a tratava de "minha bela, meu lírio, meu lindo amor: tu estás pura, pura, pura", e outras muitas expressões análogas.

Mas é que Deus, na missão que destinava à Alexandrina, determinou conceder-lhe a graça de uma eminente conformidade com Cristo Crucificado pelo mundo. Mistério que se verifica em toda a sua pureza na "compaixão da Imaculada", como adverte o Autor citado.

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Este ponto ficou superabundantemente demonstrado em muitas das páginas desta biografia. A prece tantas vezes dirigida ao Céu pela Alexandrina, a pedir que a fizesse uma perfeita imagem de Cristo Crucificado, para O ajudar a salvar os pecadores, foi bem atendida, e essa prece apresentada — é já por si um sinal da sua grande união com Deus, pois que, como escreveu o Pe. Penido no Itinerário Místico de S. João da Cruz, falando do que foi neste ponto a vida do Santo e comentando uma passagem do "Canto Espiritual" do grande Doutor místico, " um dos efeitos da união transformante é uma profunda apreensão do mistério da Redenção, grandes luzes sobre a Cruz, árvore da vida. A alma transmutada em chama de amor constantemente se volta para Deus, com desejo de sofrer por Ele: almeja embrenhar-se nos trabalhos, porquanto são o meio de penetrar na sabedoria divina, sobretudo no mistério da Encarnação Redentora, que o mais puro padecer traz o mais íntimo e puro entender". (ibid. pág. 206, ed. Vozes, 1949)

Cremos por isso, em face dos documentos e do conhecimento directo que tínhamos de sua alma, que a Alexandrina, já por fins de 1938 atingira essa união transformante, que evidentemente se foi intensificando cada vez mais, até voar para o Céu.

Com efeito, já a 4.10.34 encontramos Jesus a declarar-lhe que quer ser seu Esposo:

Nosso Senhor — escrevia ela — pediu-me o meu coração, para o colocar dentro do dele, para que eu não tivesse outro amor a não ser o dele e às suas obras.

— Escolhi-te para Mim: corresponde ao meu amor. Quero ser o teu Esposo, o teu Amado, o teu tudo. Escolhi-te também para a felicidade de muitas almas.

E Jesus promete nunca mais a abandonar:

Ó minha filha, minha amada, Eu estou sempre contigo. Oh como Eu te amo! São tão fortes as cadeias de amor que me prendem a ti, que as não posso quebrar: não te posso abandonar. (carta de l.11.1934)

É notável que, já nesta época, não há sofrimento que ela não aceite com amor e ânsia de mais:

Faz-me preocupação — escreve ela — não saber agradecer tanto amor ao sofrimento. (16.2.35)

Célebre é o convite para o matrimónio místico a celebrar-se na Cruz, de que já falámos e que se repetiu várias vezes:

E, no meio dos seus algozes, queres, minha filha, participar comigo de toda a minha Paixão? Oh, não me dês uma negativa: ajuda-me na redenção do género humano! (11.10.34)

E que delicadas expressões de Esposo lhe dirige desde já Nosso Senhor!

A 8.12.34, fez, como já dissemos, voto de perpétua virgindade: Jesus chama-lhe então:

Meu lindo amor, companheira dos meus Sacrários, meu Céu na Terra!

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E da parte dela cresce a generosidade:

Crucificai-me à vossa santíssima vontade! Crucificai-me a mais não poder ser. (26.12.35)

A 22 de Fevereiro de 1936, pede a Nossa Senhora que ajude Jesus a crucificá-la.

E veio a primeira morte mística, vieram as grandes lutas a braço partido com o inferno, e já nesta altura lhe diz Jesus, como vimos:

Escolhi-te para mim ainda no ventre de tua mãe, para que dentro em pouco, e bem depressa chegou, te pudesse chamar minha esposa. (24.9.37)

Vieram as inflamadas ânsias de amor e os abismos e já então a comunicação dos sofrimentos íntimos de Jesus pelos pecados do mundo.

A alma estava pura para o matrimónio místico. Por isso, não se estranha o que a 16.3.38, escreve ela:

Todo o dia tive o meu coração numa fornalha ardente no amor do meu Jesus; à noite deram-me ânsias muito fortes de O amar. Não pude passar sem as dar a conhecer. Hoje continuo a sentir no meu coração a mesma fornalha de amor...

Por fim falou-me Nosso Senhor:

— Minha filha, belo anjo, pérola resplandecente, estrela brilhante que fazes brilhar toda a coroa do teu Esposo.

Diz ao teu Paizinho: Eu que quero que ele conheça bem o amor com que tu me amas, para o dar a conhecer ao mundo, porque é de muita glória para Mim e proveito para as almas. Eu quero que ele conheça bem o que tu és para mim: que és a minha esposa mais querida…

E termina dizendo:

A minha alma estava toda iluminada, a tanta distância só era luz... Estava cheia, bem cheia. Que alegria, que paz eu sentia na minha alma!

Eis pois Jesus a chamá-la bem claramente esposa.

Porém, a uma outra alma, grande vítima, contemporânea da Alexandrina, também já falecida em França em odor de santidade, declarava Nosso Senhor:

Eu, Esposo crucificado, é crucificando que me desposo. (cfr. Cum Clamore Valido, págs. 45 e 52, Paris, 1943)

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Parece-nos claro que foi sobretudo no célebre 3 de Outubro de 1938, primeira crucifixão da Alexandrina, nesse êxtase de quase seis horas, que se consumaram as suas núpcias com o Cordeiro Imaculado. Foi, crucificando-a, que Jesus a desposou.

Não lhe dizia Ele na véspera:

Aceitas um calvário que Eu só dou às minhas esposas mais predilectas?

E no dia da sua crucifixão, não lhe chama a "sua heroína, uma louquinha, consumida, perdida no amor de Jesus"?

E veremos daí por diante Jesus, nas suas expressões, como que a indicar-nos a íntima relação entre esse desposório e a crucifixão. Por exemplo, imediatamente antes da paixão de 7.4.39:

Ó minha esposinha, minha crucificada, dás a esmola ao teu Jesus?

A 11.5.39, assim lhe chama Jesus:

Loucura do meu amor, loucura do meu Coração, minha crucificada, minha Alexandrina. Eu sou um louquinho, um perdidinho de amor por ti.

E a 16.7.40:

As minhas lágrimas, a minha dor e a agonia do meu Coração é o que Eu mais dou às minhas esposas.Chora, chora, para que o teu Jesus não tenha que chorar a perda eterna das almas.

Ainda a 22.12.38, repete no êxtase o que lhe está dizendo Jesus:

Uma vez que me tomastes para Vós, não me deixareis jamais? Escolhestes-me para esposa e crucificaste-me? Sou um modelo para todos imitarem?... Ó Jesus, isso confunde-me; mas faça-se como quiserdes.

E a 28.12.38, repetindo o que de Jesus vai ouvindo no êxtase:

Mas a vossa Alexandrina, o vosso anjinho querido, como Vós a amais? Quereis dizer bem claro que sou a vossa esposa mais amada? Fui escolhida desde tenra idade para Vós, para virdes mais tarde crucificar-me tão semelhante a Vós?

Logo dois dias depois da primeira crucifixão, dizia-lhe Nosso Senhor:

Do Horto à Cruz, é por onde Eu levo as esposas mais queridas. Então a nossa amada não podia deixar de ir por aí!

E acrescentava:

Perco-me em ti, levo-te ao mais íntimo do meu Coração.

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No dia 6 chama-lhe "a esposa querida que vive toda no tabernáculo do seu Coração".

Ainda nesse mês, a 9, ia ela repetindo o que ouvia:

Que dita a minha, que felicidade já na Terra, meu Jesus?

São poucas as esposas que escolheis para vossas crucificadas?

Já quando estáveis na Cruz, me tínheis a mim escolhida para ser agora vossa crucificada convosco?

Em Novembro, a 25, depois de lhe dar a beber do sangue de seu Coração, diz-lhe que ficou muito contente com o voto que ela fez de perfeição e vítima e pergunta-lhe:

Queres, meu amor, estar sempre a consolar o teu Jesus e a salvar-lhe almas, muitas almas?... Responde,esposa do Rei divino, encanto do Rei de Amor! Responde, esposa bem amada do teu Jesus!

Longe iríamos, se quiséssemos trasladar todas as passagens de suas cartas e êxtases, em que se confirma o que dizemos.

De 1944 a 1947, culminam as demonstrações desta união inefável. A 1.12.44, escutava ela de Jesus:

Se o mundo conhecesse esta vida de amor, esta união conjugal com a alma que escolhi para esposa!

E a 29 do mesmo mês ainda uma prova que é esta a união que existe entre Ele e ela:

Minha filha, anjo da Terra, flor delicada, recebe ainda (sublinhamos o ainda, porque não foi a única, já tinha havido muitas provas) uma prova do meu desposório contigo, da minha união conjugal.

Neste momento, tomou-lhe a mão, osculou-a e estreitou-a docemente a Si.

Três anos mais tarde, repetir-se-á prova parecida, de 14 para 15 de Abril de 1947. Diz a Alexandrina que veio dar bálsamo ao seu sofrer uma bela visão da Santíssima Trindade que ela contemplava em trono riquíssimo. No alto, o Espírito Santo, que sobre o Pai e o Filho, sentados mais abaixo, deixava cair uma profusão de raios doirados. Pouco depois, uma alma ajoelhada, em sinal de reverência, sentiu que sua mão se unia à de Jesus e que o Pai as ligava. Era tudo luz, luz do Céu: era o Céu e a alma da Alexandrina nadava em gozo indizível. E exclamava:

Ó meu Jesus, vale a pena sofrer tudo, para possuir o Céu! (30.3.45; cfr. Humberto Pasquale, Alexandrina, Elle Di Ci-Torino, p. 272)

Não admira pois que tão íntimo seja, agora mais que nunca, o convívio de Jesus e da sua Alexandrina. Quantas vezes lhe dá o seu divino Coração, para que ela o guarde, para que

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disponha à vontade dos seus tesoiros! Quantas vezes faz desse Coração e do dela um só coração!

Outras vezes dá-lhe a beber do sangue que jorra desse manancial, declarando-lhe que é este o alimento misterioso que a sustenta milagrosamente na vida. De que variados modos nos declara a Alexandrina que já não é ela que vive, que sofre, que ama, mas que é Cristo que vive, sofre e ama e tudo opera nela!

Quem tem seguido com atenção estas páginas, encontrou já muitas passagens a confirmar o que dizemos; mas acrescentemos mais algumas.

A 13.4.1939, por exemplo, num dos raros alívios que lhe vinham do Céu, ouviu de Jesus:

À louquinha do meu amor renovo a entrega dos tesoiros do meu divino Coração, toda a riqueza do meu amor, para poderes dar às almas. Dou tudo o que posso dar à louquinha que Eu mais amo. Tem coragem!

A dor há de pungir o teu coração. O teu corpo, o teu coração, a tua alma são mártires do meu amor.

Eu escolhi a dor; pela dor salvei o mundo. Tu pela dor de novo vens resgatá-lo. Tem coragem!

A 22.9.39, dizia-lhe Jesus que confiasse no seu Esposo, que Ele não a deixaria desgostá-lo:

Quem uma vez entrou no seu divino Coração jamais se pode sujar.

É este um dom do estado do matrimónio místico, como ensina S. João da Cruz e outros autores.

No mês seguinte, a 20, ouve de Jesus que os seus sofrimentos são uma nova invenção para salvar o mundo.

A 1.11:

O teu sofrimento é um mistério de prodígios, é uma nova invenção minha. Se não fosse esse sofrimento, muitos pecadores que se salvam não se poderiam salvar... Dentro em pouco serás contada entre os meus Santos.

Primogénita do meu divino Coração, — chama-lhe Jesus a 20.12.39 — vou desabafar contigo...

Constantemente, depois dos êxtases da paixão, Jesus lhe dá a beber do Sangue de seu Lado aberto. A 1.9.39:

Bebe agora na Chaga bendita do Lado do teu Jesus, para reparar as forças.

E ela responde:

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Essa Chaga bendita dá-me vida.

E Jesus retroca que "é alimento das suas esposas, das suas crucificadas!"

A esposa que se deixa crucificar pelo seu Crucificado vence. (29.3.40)

Nada tem que temer a esposa de Jesus, a vítima que por Ele e pelas almas se deixa imolar. (5.4.40)

E quantas vezes lhe dirige o Salvador palavras que parecem do Esposo à Esposa no Cântico dos Cânticos:

A minha pomba, a minha bela, a minha amada, a minha louquinha, a minha heroína, a florinha da Eucaristia!

A 21.6.40, referindo-se ao Céu, diz-lhe Jesus:

Oh, como é belo, belo, belo o lugar da minha esposa, da minha amada, da minha louquinha!

No dia 15.11.40, assim abria ela a sua alma com Nosso Senhor:

Quero ser pequena para tudo, apenas grande para a dor.

Acode Jesus:

Basta, minha jóia: em pouco disseste tudo. Consolaste o Coração do teu Jesus, consolaste o Coração do teu Esposo.

E continua Jesus:

Se o mundo conhecesse esta crucificada de Jesus, muitos a amariam.

Mas muitos a tratavam como louca, impostora, criminosa... São assim as crucificadas de Jesus: há muito quem as ame e muito quem as odeie.

Mostrando-se-lhe Jesus muito triste, diz-lhe a 24.10.41, três vezes:

Jesus veio consolar-se no coração da sua esposa mais querida! Jesus é tão ofendido! Veio refugiar-se no coração da sua esposa mais amada!

Saltemos para 18.9.43:

Minha filha: amor, amor, amor! O teu coração e o meu é um só; estás toda transformada em mim. Eu sou a tua vida: não tens a vida humana, tens a vida divina. Não tens a vida da Terra, tens a vida do Céu!

Mas ao mesmo tempo declara-lhe Nosso Senhor que "esta vida terá sempre espinhos... E assim crucificada à minha semelhança, passarás ao Céu cravada na cruz por amor de mim".

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Em 3 de Julho de 1944, dá-lhe Jesus de novo o seu Coração, para que lho defenda dos pecadores. E, na sexta-feira Santa de 1947, a 4 de Abril, depois de sofrimentos inexplicáveis, ouve Jesus:

És a minha esposa mais querida, a maior vítima que tenho na Terra; és a continuadora da minha Paixão, da obra da Redenção...

A 17 de Junho de 1955, festa do Coração de Jesus, escreve ela:

O dia do Sagrado Coração de Jesus, o dia da minha loucura! Mas não foi desta vez: a morte, as trevas, a inutilidade, a incerteza escondeu tudo, tudo...

Meu Deus meu Deus, estou sozinha nestes mundos de morte, de trevas, de escuridão!...

Socorro, socorro, se puder haver!... Eu creio, meu Deus, eu creio, embora este meu creio seja tão doloroso que me arranca o coração...

E eis que de longe começa a ouvir Jesus:

Sou amor, sou amor, sou amor e aqui estou, ó vítima e esposa minha.

Sou amor que tu não sentes, mas que amas; sou sabedoria que tu não compreendes, mas acreditas.

Coragem! A tua vida é divina. Não pode ser vivida nem sentida na Terra. São maravilhas da Sabedoria divina. É missão tão nobre a que te confiei! Só neste estado de alma a desempenhas com perfeição.

Coragem, filha, coragem: é a última fase...

Olha: hoje, dia do meu divino Coração, renovo a minha oferta: aqui o tens embutido no teu, cheio com todo o amor, com todos os tesoiros que ele encerra. É a mesma vida: somos dois num só coração. Dá com abundância este amor, estes tesoiros aos que te rodeiam, aos que tu amas e trabalham por ti e por mim. Dá-lhes tudo na abundância que eles quiserem; e depois a todo o mundo, a todo o mundo que é teu.

E a Alexandrina continua:

Com esta oferta de Jesus o meu coração dilatou-se. Era uma sala infinita, iluminada com luz de Jesus. Senti que a minha vida era a dele e que o seu sangue corria em mim, como água que verte das rochas. Jesus falou de novo:

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— Minha filha, este sangue é o sangue da vida divina que tu vives sem a compreenderes, mas vou dar-te a gota que costumo dar-te, para que vivas a semana fortalecida com ela...

Prolongaríamos sem medida este capítulo a citar todas as numerosas passagens de seus escritos que confirmam de variados e saborosos modos o que tentámos demonstrar.

Mas fique para quando um dia se venha a publicar todo esse manancial de luz, calor e beleza.

CAPÍTULO 32

ALMAS, DÁ-ME ALMAS!

1933-1955

"Quem não zela não ama" — disse Santo Agostinho. Correm a par amor a Deus e zelo das almas: por um podemos avaliar o outro.

Não seria, portanto, mister discorrermos agora sobre o zelo da Alexandrina pelas almas, depois do que aí fica escrito do seu ardente e apaixonado amor a Jesus, que a levou a abraçar generosamente, "loucamente" todos os excessos de dor e sofrimentos místicos, sem uma recusa, sem uma hesitação, antes ficando sempre com fome de mais, para desagravar, consolar a Jesus e lhe converter e salvar os pecadores do mundo inteiro.

Mas deparamos em seus escritos com passagens tão belas que não julgamos prolixo focar neste capítulo, ao menos ao de leve, até que extremos atingiu esse seu zelo das almas.

Ainda jovem, afirmava que queria ser "missionária", para ir converter "os pretinhos".

A doença incurável impossibilitou-a de realizar esse ideal. Mas, no seu leito de dor, interessava-se vivamente por tudo o que dizia respeito à salvação das almas: pelas obras da sua paróquia, missões, tríduos, catecismo, Apostolado da Oração, Cruzada Eucarística e pelas Missões de além-mar. Lá tinha junto do leito um pretinho de barro para recolher esmolas para as Missões que ela regozijada enviava periodicamente para o seu destino.

Quando chegava ao seu conhecimento que alguém, na freguesia, andava afastado de Deus, era de ver quanto orava, quanto se sacrificava e se industriava para trazer essa alma ao bom caminho.

Mas, depois que começou a receber as grandes graças místicas, subiu ao auge este seu zelo. Afinal, a razão de todo o seu sofrer vai cifrar-se na salvação das almas. Quantas vezes lho afirmou Jesus durante a vida, até à morte! E ver o que lhe diz Jesus, na sexta-feira de 29 de Abril de 1951:

Minha filha: estás já a continuar a minha obra redentora, a obra da salvação... Pelas tuas chagas, pela tua crucifixão, continuas a dar ao mundo, a dar às almas o que outrora Eu dei pelas minhas Chagas, pela minha Crucifixão no alto do Calvário.

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Confia, minha filha, no que te diz Jesus. Duvidares, é desgostar-me e tu não queres entristecer o meu divino Coração...

E mais adiante:

Na seara da tua alma, Eu recolho para mim, à semelhança do lavrador, todos os grãozinhos sem que eu perca um só. Ao lavrador é-lhe impossível recolher tudo, mas a Mim não é. Tudo colho, tudo recolho para as almas.

Seara loira, como é linda e abundante! Nada tens, porque as almas possuem tudo o que é teu; tudo lhes dou, para as salvar.

Neste momento — diz a Alexandrina — via a grande seara, vasta, vasta, loira, loira. Que formosa ela era! Por detrás dela, lá caminhava Jesus, coroado de espinhos, curvado sob o peso da Cruz. Fui logo ao seu encontro. Ele ia a soluçar.

— Ó Jesus, ó Jesus, não vos quero na Cruz, não vos quero ver coroado de espinhos e a chorar lágrimas!...

Jesus fitou-me docemente e disse-me:

— Ó minha filha, e continuas tu na cruz crucificada, cingida de espinhos e a chorar lágrimas? Os espinhos são muitos, são do mundo inteiro. A dor é infinita, porque é minha!

— Não me importa, Jesus, sede a minha força!...

Vi tantos espinhos, tantos, tão amontoados e tão agudos! Mas cheia de coragem, disse:

— Fazei que eles caibam na minha cabeça e no meu coração, assim como couberam no vosso. Passai-os para mim e amontoai espinhos sobre espinhos...

A 10.4.53:

Coragem, coragem, filhinha, a tua missão é esta: abraçar o mundo, abraçar os pecadores, conduzir a Mim o rebanho, as ovelhas tresmalhadas. Coragem, coragem!

Deixa sangrar misticamente os teus pés, as tuas mãos, o teu coração, a tua cabeça, todo o teu ser.

Crucifiquei-te, porque me consentiste. Preparei-te para este acto heróico, para esta aceitação.

Correspondeste; foste e serás sempre fiel ao teu Senhor.

Filhinha, filhinha, ó esposa minha, fala, fala, fala com clareza. Diz, diz que Jesus está triste com as ameaças de Seu

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Pai. Não quero que os meus filhos sejam punidos, mas eles, pobrezinhos, não atendem a tantos, tão repetidos pedidos...

A 1.5.53:

Faz, minha filha, esposa minha, que Eu seja o Rei, que Eu seja o amor de todos os que se abeiram de ti.

Estás neste calvário, coloquei-te neste calvário para bem, para seres útil a toda a Humanidade.

Minha filha, faz conhecer às almas quanto Eu as amo. Tu és o porta-voz de Jesus. Tenho-o dito muitas vezes: falo no teu coração e pelos teus lábios. E por ti que Eu falo ao mundo...

A 9.3.51:

O que opero em ti não é para ti — diz-lhe Jesus — é para o mundo, é para o fim da tua missão, da mais alta e digna missão, a missão das almas.

A 21 de Agosto de 1953, recebe de Jesus o doce título de Missionária. Era no colóquio, após os sofrimentos da Paixão:

Coragem, coragem, filhinha querida, florinha eucarística, coragem! Um pouquinho mais.

Fala às almas, fala às almas. Estão famintas, famintas de receber de ti o que por Mim através de ti lhes é dado.

— Ó Jesus, ó Jesus, não sei o que fazer. Eu não tenho força, bem o sabeis. Todo o meu ser está moribundo. Quero aceitar sempre, aceitar com a vossa divina vontade. Só Vós, só Vós sois o meu tudo.

— Filhinha, mimo celeste, toda a tua vida lhes fala. Toda a tua vida é uma pregação contínua. O teu sorriso forçado, os teus gemidos, todo o teu sofrimento resignado fala aos seus corações, cativa-os, atrai-os e eles vêm a Mim. És a Missionária de Jesus e esta missão sublime continua com mais pompa, com mais brilho, quando estiveres no Céu. Jesus não falta, Jesus não falta. Eu quero que uma vez lá, muitos, todos os pecadores sejam entregues à tua missão.

Coragem, coragem!...

Já em 3 Outubro de 1952 ouvira o mesmo título de missionária:

O mundo, o mundo, os pobres pecadores obrigam-me a todas as exigências, obrigam-me a crucificar-te com a mais dolorosa crucifixão.

Coragem, minha filha, sê apóstola.

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Coragem, coragem, minha filha, sê missionária no teu leito de dor.

É nobre a tua missão; é nobilíssima a tua dignidade de esposa de Cristo, de vítima de Cristo, de florinha eucarística, de mãe dos pecadores.

Catorze anos são passados. Foi neste lugar, a esta hora, que há catorze anos foste crucificada e neste momento tinha contigo os meus desabafos.

São catorze anos de glória, catorze anos de salvação, catorze anos de heroísmo, de amor às almas.

Bem hajas, esposa minha, pela tua generosidade. Estreito-te ao meu divino Coração pela tua entrega total. És minha, toda minha, pertences-me, amas-me e Eu amo-te!..

Nem há agora porque insistir que a esta missão de apóstola, de missionária, a Alexandrina correspondeu fidelíssima, generosissimamente.

E que ânsias de ver Jesus conhecido e amado! Que ânsias devoradoras de lhe salvar todos os pecadores!

Saboreemos esta passagem a 4 de Maio de 1951:

Não sei falar, a minha ignorância não me deixa saber exprimir a minha dor. E causa-me horror falar da dor, falar de mim.

Ah, se permitissem eu ficar neste silêncio e morte, nada dizer, mesmo nada, não sei, mas parece-me que eu então sentiria alegria apesar da grande necessidade, da grande ansiedade que o meu coração tem de falar do Céu, de falar de Jesus, do seu amor, da sua misericórdia, das suas coisas.

Ah, sim! O coração anseia sair para fora do meu peito e voar pelo mundo e possuir uma voz que a cada momento, incessantemente se fizesse ouvir em toda a Humanidade, a pedir a todas as criaturas para não pecarem, para todas virem a Jesus! Ah, se eu pudesse compenetrar a todos de quanto Ele nos ama e como só Ele é bom! Ai de mim! Nem posso, nem sei…

Quantas vezes se sentia toda em fogo ao pensar nas almas!

A 3 de Março de 1951, primeiro Sábado, assim a confortava Nosso Senhor, depois da Comunhão:

Minha filha, aqui está o Jardineiro divino a trabalhar no terreno que escolheu desde toda a eternidade para ser o seu jardim formoso.

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Minha filha, que trabalhos, que maravilhas divinas Eu aqui opero! Delicio-me no aroma de todas as flores da virtude.

Recebe o conforto do meu divino Coração: junta o meu amor a estas encantadoras flores.

As virtudes são armas que afastam o mal, que combatem todos os crimes e iniquidades e atraem para Mim as almas. Conforta-te para sofreres: com virtudes, dor e amor, curam-se as almas. Saem da morte do pecado, renascem para a graça, para Deus.

Neste momento — diz ela — passou por mim um mar de fogo; não digo mar imenso, mas mais ainda, mar infinito que me arrebatou não sei para onde. Eu era toda fogo, era toda amor de Jesus. Mergulhei-me, perdi-me: não podia aguentar mais tempo.

Jesus cessou, por uns momentos e repetiu o mesmo até terceira vez.

E Jesus explica:

Minha filha, este amor divino por ti é dado às almas, ao mundo...

A 3.7.53, primeira sexta-feira, depois de Nosso Senhor lhe dizer que a sua vida era um portento das maravilhas do Senhor, ela humildemente responde:

Só por Vós e para Vós tenho vivido. Só em Vós tenho confiado. Nunca, nunca confiei em mim. Pela vossa graça, nunca, nunca nada a mim atribui; o meu nada, a minha miséria imensa, a minha inutilidade é a que me está sempre, sempre presente.

E Jesus:

— Minha filha, pupila dos meus olhos, florinha eucarística, adorno do meu divino Coração, avante, avante por Deus e pelas almas!

Pede amor, pede amor para o meu divino Coração. Não deixes as almas perderem-se. Convida-as a virem a Mim.

O teu sofrimento fala-lhes ao coração, o teu sorriso, o teu silêncio, fala-lhes, fala-lhes sempre.

Coragem, coragem! Tudo isto é uma revolução das almas.

Coragem, coragem! Tudo isto são provas do meu divino amor para com elas.

Acode-lhes, não as deixeis perder; não as deixeis cair no inferno!

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— Isso quero eu, meu Jesus. Ah, se eu pudesse pôr um aloquete no inferno, para ele não mais se abrir! Eu não quero, não, meu Jesus, que nenhuma alma se perca, eu não quero, não, meu Amor, ver o vosso Coração ferido.

Tenho fome, muita fome, meu Jesus, de vos dar todas as almas e toda a consolação. Só vivo por Vós, porque Vos amo, Jesus. Não tenho outro fim na minha vida a não ser amar-vos e dar-vos almas...

Agora esta bela passagem, de 15 de Maio de 1953, em que nos aparece, por um lado, a sua repugnância máxima em ser vista e por outro a sua loucura de amor às almas:

Nunca poderei dizer o martírio novo, o martírio cruel, o martírio nunca dito que me causam as numerosas visitas que vêm junto de mim.

Não me causa martírio ouvir, sentir e compreender as suas misérias; não, não é isso: porque, em impulsos de amor, parece até em excessos de loucura de amor, quero abraçá-las a todas e introduzi-las no Coração divino de Jesus.

O que se passa em mim quando lhes falo, o que sinto quando lhes quero fazer compreender a grandeza do pecado, uma ofensa feita ao nosso Pai do Céu e o quanto Ele nos ama, não sei: parece que estou fora de mim, parece que me passo para outro mundo, parece que o meu espírito está mergulhado em Deus, na luz de Deus. Estes sentimentos e compreensão tinham dizeres infinitos. E como hei de dizê-lo eu, sendo tão má e nem sequer um vermezinho da Terra?

Mas esse martírio novo de que acima falei, é depois que estou sozinha: depois de tanto ter dito de dentro da minha ignorância, depois de tanto ter ansiado de meter bandos, bandos de almas no Coração do meu Jesus, sinto a necessidade de lhes fugir, de a todas afastar e repelir de mim. Fico a tremer de pavor: é o mundo contra mim, é o ódio, é a iniquidade, é tudo o que é mal…

Causava-lhe pois grande martírio ver tanta gente a visitá-la e só o consentia, por ver nisso a expressa vontade de Deus.

Tem coragem, tem coragem, minha filha: deixa que se abeirem de ti os milhares, os milhares de almas que para ti encaminho. Vêm beber à fonte divina que em ti fiz nascer. Elas por ti recebem as minhas riquezas, as minhas graças. (6.3.53)

De facto, ultrapassou tudo o que se podia imaginar a multidão sempre crescente de pessoas que acudiam a ver a Alexandrina, para lhe contarem suas mágoas, pedirem suas orações, escutarem seus conselhos. Baste para fazermos uma ideia, a seguinte estatística:

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No dia de S. José, 19.3.53, recebeu 570 pessoas adultas, 50 crianças e 50 peões. Todas estas pessoas, menos os peões, foram transportadas em 14 camionetas, 6 automóveis, uma motocicleta e algumas bicicletas. Recebeu nesse dia 24 cartas.

No dia 9 de Maio desse mesmo ano, acudiram umas 2.000. Nesse mesmo mês, a 29, 6.000, em 100 camionetas e 150 automóveis e deixaram sobre a cama 130 cartas.

Extraímos de uma carta que nos escreveu D. Conceição Proença — a Sãozinha — a 10 de Julho de 1953, o seguinte:

O número das visitas é tão grande que V. R. não calcula. Desde o dia de S. José têm aumentado extraordinariamente. O dia em que recebe menos é às sextas-feiras. Nos outros dias, recebe continuamente, desde manhã à noite, tendo um pequeno intervalo ao meio-dia, para a família poder tomar a refeição. Ela recebe aos grupos de 40, 50, 70 pessoas. Enche-se o quarto e o corredor pegado. Fala àqueles grupos com uma facilidade espantosa. Conforme o Divino Espírito Santo a inspira, fala do amor, da justiça de Deus. Pede oração, penitência, emenda de vida em termos que são poucas as pessoas que se retiram sem as lágrimas nos olhos. Isto dá-se com toda a classe de visitas; não é só com o povinho aldeão. São tantas as pessoas a pedirem que as ajude a salvarem as suas almas, a sair do pecado, a legalizar situações difíceis. São tantas a virem agradecer os benefícios que recebem por intermédio da Alexandrina...

À volta da Alexandrina andam várias pessoas que a ajudam na distribuição das visitas… São precisas cinco ou seis para este movimento.

De forma que Balasar, nos últimos anos da Doentinha, estava em missão perene, e a pregadora era a Alexandrina. Poucos pregadores se podem lisonjear de ter tão numerosos auditórios e sobretudo tão ávidos de escutar a palavra de Deus. Havia dias em que chegava a falar nove horas e meia. Autêntico milagre, para quem há tantos anos estava sem comer nem beber e vivia em contínuo e indizíveis martírios.

CAPÍTULO 33

NÃO CHOREM, QUE EU VOU PARA O CÉU!

13 de Outubro de 1955

Nos últimos tempos, sobretudo nos colóquios das sextas-feiras, ouvia a Alexandrina a afirmativa categórica de que o seu fim estava próximo: em breve iria para o Céu.

A 5.11.54:

Coragem! — diz-lhe Jesus — Eu te afirmo que o teu Céu está perto. Coragem!

E a 24.12.54:

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Estás na fase mais dolorosa, a última da tua vida. Eu virei depressa, depressa, buscar-te para o Paraíso.

E no ano seguinte, em Junho de 1955, por exemplo, a 10:

É a última fase, tremenda fase. O auge do sofrimento a enfrentar com o auge do pecado e do crime.

A 8.7.55:

A tua fase, a última fase da tua vida não pode ser mais dolorosa. Mas assim é quando escolho uma alma para o mais alto grau de perfeição, de amor e união comigo. Confia: tu amas-me e fazes-me amar e o teu Céu está perto!

Esta derradeira fase mostrava-se realmente atroz:

As dores eram nos últimos meses horríveis — há-de escrever-nos o Médico, a 1 7.10.55 — Ultimamente estava a sofrer imenso, e parece-me que a sua doença, as suas dores eram de origem sobrenatural, daquela origem a que se refere Henri Bon, quando fala das enfermidades sobrenaturais.

Já a 10 de Janeiro de 1955, é o mesmo ilustre Clínico que, por este caso raro para a Ciência e para a Mística, afirmava a respeito da Alexandrina:

Está prostrada como nunca. Está a chegar ao cimo do seu calvário... Parece que tudo tem evolucionado nesse sentido.

Uma fotografia que lhe tiraram a meados de Agosto desse ano mostra bem o desfalecimento e dor em que se encontrava.

Até 2 de Setembro, ainda que com muito custo, ia ditando, como de costume, os seus sentimentos da alma. Mas não mais o pôde fazer daí por diante.

E o Céu apressa-se para a receber. A 2 de Outubro, disse:

Hoje, dia dos Santos Anjos, senti que me tocaram no ombro e ouvi cantar os Anjos. Perguntei:

— Quem cantará com os Anjos?

Nosso Senhor respondeu:

— Tu, tu, tu, em breve, em breve, em breve.

Sentindo que o fim estava próximo, pensou pedir a Extrema-Unção.

A 12 de Outubro, pelas 8 da manhã, depois de comungar, ouviu estas palavras:

Faz, minha filha, o que desejas (pedir a Extrema-Unção). Tu vais para o Céu, tu vais para o Céu!

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Durante toda a manhã desse dia, repetia frequentemente:

Eu queria o Céu. Eu não tenho peninha nenhuma de deixar a Terra!

Acabaram todas as trevas da alma. Acabaram todos os sofrimentos da alma.

É sol, é vida, é tudo, é Deus!...

A irmã Deolinda perguntou-lhe:

— Tu que querias?

— O Céu; na Terra não se pode estar.

Eu queria receber a Extrema-Unção, enquanto estou viva...

Vai ser muito bonito aqui...

Ó Jesus, seja feita a vossa vontade e não a minha!

Pelas 15 horas, feito um acto de resignação e de aceitação da morte, ministrou-lhe o Rev. Pároco da freguesia, Padre Leopoldino Mateus, o sacramento da Extrema-Unção. Antes de o receber, pediu perdão à mãe, à irmã, ao Confessor, R. Padre Alberto Gomes, ao Pároco, aos Médicos, às primas, às pessoas amigas e à criada. Depois assim se expressou:

Já estarei com a minha alma pura, para receber a Extrema-Unção?

Ai, Jesus, não posso mais na Terra!

Ai, Jesus! Ai, Jesus! Ai, Jesus! A vida, o Céu custa, custa!...

Sofri tudo nesta vida pelas almas. Mirrei-me, triturei-me nesta cama, até dar o meu sangue pelas almas.

Perdoo a todos, perdoo, perdoo. Foram instrumentos para meu bem. Ai, Jesus, perdoai ao mundo inteiro!

Depois de ministrada a Extrema-Unção, exclamou:

Ai, estou tão contente por ir para o Céu!...

Sorriu-se com os olhos no Céu:

Ai, que claridade! É tudo luz!

Sorriu-se.

As trevas, as trevas, tudo desapareceu!...

Às 6 horas da manhã do dia 13:

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Meu Deus, eu amo-Vos! Sou toda vossa!

Tenho necessidade de partir?... Não gostava de morrer de noite... Morrerei hoje?... Gostava.

Na verdade o dia era muito ao sabor espiritual dos seus grandes amores: Nossa Senhora e o Santíssimo Sacramento (era quinta-feira, a 13 de Outubro). Quantas vezes nas suas cartas chamava à quinta-feira o seu dia e quantas manifestou desejo de morrer numa quinta-feira!

Pediu à imã que lhe desse a beijar o Crucifixo e a Mãezinha. A irmã perguntou-lhe: "Para quem te sorrias?", porque lhe notara no rosto um sorriso angelical, ao dizer que gostava de morrer nesse dia. Respondeu: "Para o Céu".

Durante esta manhã foi visitada por várias pessoas. Quando entrou um grupo, exclamou com voz mais forte:

Não pequem! O mundo não vale nada. Isto já diz tudo.

Rezem o Terço todos os dias.

Às 11 horas disse para o Médico:

Eu sou muito feliz, porque vou para o Céu...

Às 11h35 pediu que lhe rezassem o ofício da agonia, às 17, disse para uma visita:

Adeus, até ao Céu!

Quis a Providência que Mons. Mendes do Carmo, Professor do Seminário da Guarda e antigo Reitor do Colégio Português em Roma, assistisse aos últimos momentos da Alexandrina. Ele mesmo nos narra o facto:

No passado dia 10, saí da Guarda com vontade de seguir para Fátima, a passar o dia 13 de Outubro, um dos maiores dias da História de Portugal, e para muitos e para mim o maior.

Chegando a Coimbra, deixei os distintos companheiros de viagem, que lá seguiram para o grande Santuário e eu parto para Balasar. Queria visitar pela terceira vez a conhecida doentinha, a Alexandrina.

Na tarde do dia 11, entro em sua casa. Encontro-a gravissimamente doente, mergulhada em dores, doçura e silêncio, dando a impressão de que a sua vida terrena estava a findar: poucos dias, horas apenas talvez.

No dia 12, depois da Missa longa, longa, dei-lhe a Comunhão divina. Recolheu-se no silêncio eloquente e profundo da sua acção de graças. Seguiram-se horas de sofrimentos asfixiantes, respondendo a algumas perguntas com palavras quase imperceptíveis. Cerca das 3 horas da tarde, pede o Sacramento da Extrema-Unção, pedido espontâneo que ninguém lhe sugeriu.

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Tudo preparado já no quarto-calvário, quer antes espontaneamente também fazer o seu acto de resignação e disse perante todos:

— Ó Jesus Amor, ó divino Esposo da minha alma, eu que na vida só procurei dar-vos a maior glória, quero na hora da minha morte, fazer-vos um acto de resignação e assim, meu amado Jesus, se neste acto dou maior glória à Trindade Santíssima, jubilosamente me submeto aos vossos eternos desígnios... para só querer e implorar da vossa Misericórdia o vosso Reinado de amor, a conversão dos pecadores, a salvação dos moribundos e o alívio das almas do purgatório.

Meu Deus, como sempre vos consagrei minha vida, vos ofereço agora o fim dela, aceitando resignadamente a morte, acompanhada das circunstâncias que vos derem maior glória.

Depois em voz clara pediu perdão, agradeceu e perdoou a todos. Recebeu em seguida, em calma angélica, o Sacramento depurador dos últimos vestígios e a Alexandrina moribunda diz:

Não chorem, que eu vou para o céu!

E repetiu:

Não chorem, que eu vou para o Céu.

Disse ainda brevíssimas frases...

O sofrimento aumentava e a noite de 12 para 13, a sua última na Terra, foi uma noite de agonia.

De manhã, pelas 8 horas, fez a sua última Comunhão.

Às 11h35, espontaneamente também, pede que lhe rezem o Ofício da agonia. De joelhos, junto do seu leito, acompanhado de outras pessoas, recito essas orações e súplicas inspiradas e comoventes.

A agonia intensificava-se; eu sugeria-lhe com frequência palavras divinas... Tantas vezes lhe dei a beijar o Crucifixo e a medalha de Nossa Senhora das Dores e sempre os seus lábios se moveram a esse beijo... Quando pela última vez lhe dei a beijar essas Jóias, os seus lábios ficaram imóveis.

Em artigo posterior, referindo-se a esse instante supremo, diz o mesmo ilustrado Sacerdote:

Quando lhe pedi que repetisse comigo: Santíssima Trindade, no vosso Coração encomendo o meu espírito, a agonizante docemente sorriu. Expirou!...

Eram 19h52 minutos.

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Na manhã de 14, estava o cadáver em câmara ardente, vestido de tecido alvíssimo, no caixão por dentro todo alvíssimo também.

Ainda de manhã, começou a romagem da visita ao cadáver da que por tantos já em vida era tida como uma santa. Mas o que houve de singular, e que parece único nos anais da morte, pois jamais li facto semelhante, foi essa romagem de milhares e milhares de pessoas que, começada à uma hora da tarde, continuou sem pausa, sem interrupção, durante a noite inteira até às dez da manhã, hora da partida do cortejo fúnebre para a Igreja...

Eram pessoas vindas de muitas terras vizinhas e longínquas, do Porto, de Braga, de Guimarães, de Famalicão, da Póvoa de Varzim. Eram pessoas de todas as categorias sociais: lentes de Medicina, médicos, advogados, comerciantes, industriais, capitalistas, artistas e enorme massa de povo modesto e humilde. Milhares? De certo (uns cinco mil)...

De tarde, no dia 15 em que o corpo da Alexandrina baixou à sepultura, dizia um cavalheiro do Porto: "Hoje no Porto, não há rosas brancas, foram todas para Balasar".

E na verdade o cadáver mais parecia estar num riquíssimo jardim em flor do que na câmara mortuária, na câmara ardente. Aquela que em criança, bem criança ainda, fora por alguns meses, como tantas filhas da aldeia, uma pastorinha, que não frequentou a terceira classe, era alvo de homenagens tão sentidas, tão afectuosas, tão extraordinárias na hora da morte que através os séculos só as lemos nas biografias dos grandes Santos.

Que episódio comovente até às lágrimas eu poderia contar, de médicos e sacerdotes distintos, que nessa hora vieram ao meu encontro, em narrativas agradecidas ou desabafos dolorosos, por causa da Doentinha de Balasar!

Quarenta Sacerdotes, e tantos bem comovidos, tomaram parte nos seus funerais. Quanto ela venerava, amava e crucificada no leito, orava pelos Sacerdotes, saber-se-á um dia.

E lá ficou, em sepultura sua oferecida por corações amigos e agradecidos, o corpo mártir da virgem de Balasar, de rosto voltado para a Igreja (como ela tinha pedido em seu testamento)...

Tinha razão a Alexandrina, quando, nas vésperas da morte, afirmava:

— Vai ser aqui muito lindo.

Já há muitos anos antes Nosso Senhor lhe tinha asseverado o mesmo, por outras palavras:

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— Ditosos os que assistirem à tua morte, à morte da minha crucificada!

Sua irmã Deolinda escrevia-nos a 19.11.55:

A sua morte foi de uma santa. O seu enterro foi coisa nunca vista. Milhares de pessoas passaram pela sua urna e centenas delas lhe beijavam os pés, a mão ou o rosto. Todos lhe queriam tocar terços ou tirar pétalas dos cravos brancos sem conta que à sua volta estavam. Dizem as pessoas velhinhas:

Nunca vimos nem voltamos a ver coisa igual!

Toda a gente de Balasar se cobriu de luto e de luto continuam ainda. Dizem que é um sinal de gratidão pelo muito que lhe devem.

Agora vai muita gente ao cemitério, ajoelham junto da campa a rezar. Uns levam-lhe ramos de flores, outros velas, outros dinheiro.

Também bastantes pessoas continuam a vir visitar o seu quarto, que conservamos na mesma. Tem dias que é uma romaria contínua...

Dá a impressão que era já a aurora da glorificação que Nosso Senhor tantas vezes prometeu à Alexandrina, para depois da sua morte.

Logo após a tua passagem para o Céu — ouvia ela a 5.8.55 — junto do trono da Santíssima Trindade vais logo implorar, vais logo fazer descer orvalhos fecundantes, chuvas de bênçãos e graças.

Confia, confia!

E no dia 26 do mesmo mês:

Oh, como esta causa, que é a minha, triunfará depois de tanto ódio, de batalha tão renhida!

Não passavam ainda cinco anos após a morte da Alexandrina e a sua vida já corria mundo em português, francês, italiano, alemão. Saíram ao todo até hoje do prelo, nas várias edições e línguas referidas onze volumes, sem falarmos em múltiplos artigos em revistas e jornais portugueses e estrangeiros.

Parece demais para tão pouco tempo! É que o dedo de Deus está aqui.

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EPÍLOGO

E chegamos ao ponto final.

Na redacção destas páginas, dominou-nos persistentemente a preocupação de não darmos a lume um livro volumoso. Por isso, não dissemos tudo: longe disso. E fugimos a todo o custo de nos demorarmos em exposição de doutrina que se supõe conhecida do leitor esclarecido. Uma biografia não é um retrato de Psicologia, de Ascética ou de Mística.

Só quando de todo em todo se impunha, aludimos, uma vez ou outra, a princípios da Vida Espiritual, para melhor focar o que de si nos ia dizendo a nossa biografada.

De mais a mais — como a princípio notámos — pretendíamos que, quanto possível, fosse a própria Alexandrina a falar-nos, para que este livro valha o mais possível por uma autêntica autobiografia.

O nosso trabalho, portanto, ante o acervo imenso de escritos preciosos por ela legados, reduziu-se especialmente a seleccionar e ordenar o material, seguindo quase estritamente o seu desenrolar cronológico, por nos parecer que assim melhor iríamos acompanhando o despontar, desabrochar, florir e frutificar dessa delicada planta do Paraíso.

Mesmo sem dizermos tudo, cremos que o que aí fica deixa suficientemente vincada a fisionomia espiritual da Alexandrina: antes, a sua expressão inocentíssima, sumamente acessível e tratável, bondosa em extremo, delicadamente sensível e terna, sem pieguices nem exageros, sem sombra de desequilíbrios, acolhendo, sempre com um sorriso angelical, a todos os que dela se aproximavam, ainda nos momentos em que mais estava sofrendo; inteligência lúcida e pronta em compreender; faculdade extraordinária, carismática, em expressar e traduzir os mais profundos e misteriosos sentimentos da alma e as luzes e graças recebidas do Alto; a sua humildade a toda a prova, nunca desmentida, a sua constante e perfeita conformidade com a vontade de Deus, o seu amor "louco" a Jesus e às almas.

Mas esperamos que, acima de tudo, ficasse bem patente a nota que principalmente define a feição e vocação espiritual da Alexandrina, em que culmina e se centraliza todo o seu viver e destino na Terra: a Vítima.

À Alexandrina foi sobretudo destinada a vocação de vítima de expiação, em união com Cristo Crucificado, e não de vítima qualquer vulgar, a que afinal somos chamados todos os Cristãos; mas em grau tão eminente que, ao vermos a generosidade heróica com que a realizou, nos sentimos verdadeiramente pigmeus.

Repetidas vezes lemos nos seus escritos que Nosso Senhor lhe chamava a maior vítima que tinha na Terra. Quem leu e meditou o que fica neste livro não se surpreenderá com esse superlativo tão encomiástico.

Nem se perguntará agora a que propósito vem, nesta hora, uma vítima deste calibre, em Portugal?

Para grandes males, grandes remédios.

O mundo vai de tal sorte que só a golpes de santidade poderá acordar... Os pecados e males hodiernos ultrapassam todos os limites. S. Santidade Pio XII, por mais de uma vez, lamentou que hoje, como nunca, já o pecado é apresentado com foros de virtude. Admirar-nos-emos que o sobrenatural e, em

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especial, a virtude, se nos mostrem, também hoje, em pujança jamais vista? Onde abunda o pecado, não terá de superabundar a obra da graça? — escreveu o Con. Dr. Molho de Faria. (A Devoção aos Servos de Deus, 1959, pág. 20-22)

Foi em Portugal, na Cova da Iria, que Maria Santíssima veio provocar "golpes de santidade" e não qualquer, mas heróica, até entre os pequeninos, quando lhes pedia oração e penitência, para acudir ao mundo prevaricador, pois quase não podia já suster o braço da Justiça divina prestes a descarregar punições sobre a Terra.

Quereis oferecer-vos a Deus — pergunta a Virgem aos Pastorinhos — para suportar os sofrimentos que Ele quiser enviar-vos, em acto de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores?

— Sim, queremos! — foi a resposta que logo é aceita pela Mãe de Deus, pois lhes anuncia, como resultado, muitos sofrimentos:

— Ides pois ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto.

É incontestável que os acontecimentos de Fátima provocaram, em toda a nação, como nunca na história religiosa de Portugal, um intenso movimento de Reparação que se revestiu de todas as formas: reparação nacional, reparação paroquial, reparação nas famílias, reparação dos indivíduos, atingindo nestes, por vezes, proporções gigantescas de imolação.

Entre esses gigantes, campeia incontestavelmente a Alexandrina, como porta-bandeira, modelo perfeito de reparação, a atrair-nos, a ensinar-nos, com o seu exemplo heróico e a luz de seus maravilhosos escritos, o que é a reparação e a sua necessidade inadiável no momento presente.

— Minha filha, coragem! — ouvia ela de Nosso Senhor, oito meses antes de falecer, a 18.2.55 — Eu sou teu Pai. Vem a Mim como filha, vem a Mim como esposa amada. Tem coragem! A tua vida é o maior suplício que se pode imaginar, é o maior tormento que Eu posso dar às minhas vítimas. Se as tivesse em maior número!... Oh, se Eu tivesse mais como tu, com tal generosidade! Mas não tenho. Quando lhes aperto o sofrimento, deixam de me amar.

Desprendi-te de tudo da Terra, para só a Mim te unir e para as almas prenderes a Mim. Só no Céu se verá o que tens feito por elas. Quantas por ti têm sido salvas!

A tua missão é a mais árdua, a maior de todas as missões: as almas, as almas!... Eu estou ferido e a justiça de meu Pai quer punir.

Ó mundo, o que te espera, se não vives outra vida!...

Damo-nos por bem pago deste trabalho que agora concluímos se, com ele, não só fizermos conhecer melhor a Alexandrina, mas, sobretudo, se concorrermos para que ecoe no mundo e nas almas a sua mensagem: Penitência, Penitência, Penitência! Reparação, Reparação,

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Reparação! Para que, em vez dos tremendos castigos que pairam ameaçadores e eminentes sobre a Terra, venha o perdão, a paz e a salvação eterna das almas.

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