mariangela carvalho dezotti

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  • 7/25/2019 Mariangela Carvalho Dezotti

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE EDUCAO

    MARINGELA CARVALHO DEZOTTI

    Indivduo com sndrome de Down:histria, legislao e identidade

    So Paulo2011

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    MARINGELA CARVALHO DEZOTTI

    Indivduo com sndrome de Down:histria, legislao e identidade

    So Paulo2011

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    MARINGELA CARVALHO DEZOTTI

    Indivduo com sndrome de Down:histria, legislao e identidade

    Dissertao apresentada Faculdadede Educao da Universidade de SoPaulo para obteno do ttulo de

    Mestre em Educao Especial.

    rea de Concentrao:Educao Especial

    Orientadora:Prof. Dr. Edna Antonia de Mattos

    So Paulo2011

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    AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTETRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO,

    PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    Catalogao na PublicaoServio de Biblioteca e Documentao

    Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo

    371.92 Dezotti, Maringela Carvalho

    D532i Indivduo com sndrome de Down: histria, legislao e identidade /Maringela Carvalho Dezotti; orientao Edna Antonia de Mattos. SoPaulo: s.n., 2011.

    165 p. il.; tabs.; anexos

    Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao emEducao. rea de Concentrao: Educao Especial) Faculdade deEducao da Universidade de So Paulo.

    1. Sndrome de Down 2. Poder Relao 3. Identidade 4.

    Legislao 5. Histria 6. Escola I. Mattos, Edna Antonia de, orient.

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    Folha de Aprovao

    Nome: DEZOTTI, Maringela Carvalho

    Ttulo: Indivduo com sndrome de Down: histria, legislao e identidade

    Dissertao apresentada Faculdade de Educao da

    Universidade de So Paulo para obteno do ttulo

    de Mestre em Educao Especial.

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. Edna Antonia de Mattos Instituio: Universidade de So Paulo

    Julgamento:_________________ Assinatura:_______________________

    Prof. Dr. urea Maria Paes Leme Goulart Instituio: Universidade Estadual de Maring

    Julgamento:____________ Assinatura:___________________

    Prof. Dr. Leny Magalhes Mrech Instituio: Universidade de So Paulo

    Julgamento:___________________ Assinatura:______________________________

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    Poema ao meu marido:

    Perguntei a um sbio,a diferena que haviaentre amor e amizade,

    ele me disse essa verdade...O Amor mais sensvel,a Amizade mais segura.O Amor nos d asas,a Amizade o cho.

    No Amor h mais carinho,na Amizade compreenso.O Amor plantadoe com carinho cultivado,a Amizade vem faceira,e com troca de alegria e tristeza,

    torna-se uma grande e queridacompanheira.

    Mas quando o Amor sinceroele vem com um grande amigo,e quando a Amizade concreta,ela cheia de amor e carinho.Quando se tem um amigoou uma grande paixo,ambos os sentimentos coexistemdentro do seu corao.

    William Shakespeare

    Ao meu marido, Ricardo, e queridos filhos, Pedro

    e Luiza, com amor, admirao e gratido por suacompreenso, carinho, presena e incansvelapoio, ao longo do perodo de elaborao destetrabalho. Percebi, de tantas formas e a cadamomento, que vibravam com minhas alegrias.

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    AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais, pelos momentos que me impuseram e ensinaram a resistncia, anegao do rtulo da rejeio e a f nas possibilidades.

    Aos meus irmos que, como eu, lutam para superar uma histria de vida,descobrindo que podem mais e de forma diversa concretizar seus sonhos.Agradeo principalmente a minha irm Cristina, pelo retorno grato naconvivncia, estando a meu lado durante este perodo.

    A meu sogro, Oswaldo Dezotti, e minha sogra, Concilia Terezinha Dezotti, peloacolhimento em sua famlia, amor e cuidado.

    Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, pela oportunidade departicipao no curso de Mestrado.

    Profa. Dra. Edna Antonia de Mattos, minha querida orientadora, pelos anos deconvivncia, pelo muito que me ensinou, contribuindo para meu crescimento edesenvolvimento neste trabalho, apontando a reviso de conceitos e correesnecessrias.

    s Professoras Doutoras urea Paes Leme Goulart e Leny Magalhes Mrech,pelas esclarecedoras orientaes e valiosas contribuies bibliogrficas, noexame de qualificao.

    Aos Professores Doutores Elie George Guimaraes Ghanem Junior e SoniaTeresinha de Sousa Penin, pelos profcuos momentos de formao no Mestrado.

    A Llian A. Facury e Cllia Riquino, pelo trabalho incansvel de leitura e revisodeste trabalho.

    Ao carinho e confiana dos profissionais da escola estadual, que possibilitaram apesquisa, e dos queridos alunos que me receberam de braos abertos.

    A Ana S. de Toledo e seu filho, meu querido aluno Marcelo de Toledo, pelaalegria com que corria em minha direo, por ter me ensinado a olhar alm doslimites, apontando caminhos e possibilidades durante o fazer pedaggico.Depois dele, descobri muitos alunos, que me ajudaram a aprofundar as ideiascontidas neste trabalho.

    minha primeira orientadora escolar, Cllia Pastorello, que cultivou em mim asemente da observao e pesquisa e Diretora Maria Ilone Weisheimer, peloapoio no processo inicial desta caminhada e f em Deus transmitida em nossarelao.

    A Meire Viegas Vicentini e Ana Jlia Martins, amigas inseparveis.

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    s minhas colegas de Mestrado: Cibelle C. S. Lima, Maria de Ftima N. daSilva, Maria Luisa dos S. Pereira, Marina R. Silveira, Tnia P. Abate e,principalmente, a Marly K. Moraes, pelas orientaes, leituras, revises e apoio,durante esta caminhada.

    Aos profissionais do Centro de Apoio Pedaggico Especializado CAPE, pelotrabalho dinmico e orientao norteadora na Educao Especial da Secretaria daEducao do Estado de So Paulo.

    s minhas amigas de trabalho, Tnia Regina, Tnia Sheila, Adriana e Salvadora,por perceberem a importncia, para mim, da realizao deste sonho e meapoiarem neste momento de amadurecimento profissional.

    E a Deus, por ter colocado tantos amigos e amor no meio do caminho.

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    Todas as crianas, jovens e adultos, em sua condio deseres humanos, tm o direito a uma educao orientadaa explorar os talentos e capacidades de cada pessoa e adesenvolver a personalidade do educando, com oobjetivo de que melhore sua vida e transforme asociedade.

    Marco de Ao de Dakar, abril de 2000.

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    RESUMO

    DEZOTTI, M. C. Indivduo com sndrome de Down: histria, legislao eidentidade. 165 p. Dissertao de Mestrado em Educao Especial Faculdade de

    Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011.

    Esta pesquisa estuda as prticas da convivncia introduzidas na relao do aluno comsndrome de Down com a escola pblica do Estado de So Paulo, e aponta para asmarcas forjadas pela histria, leis e espaos, impressas nas condies e possibilidadesno cotidiano escolar. Revela, nas formas de conduo do processo de desenvolvimentodo aluno com deficincia intelectual, a existncia de um indivduo possvel, planejado epreviamente definido. Com o apoio da observao do aluno com sndrome de Down, noespao escolar, rompe com os limites do indivduo possvel e desvela para alm dortulo de um indivduo nico, real, tecido pela convivncia, pela conscincia de suaposio no grupo, dialogada e negociada. Pensa na escola e nas aes empreendidaspelo desejo de pertencer, de cada sujeito da pesquisa, que refletem sobre os limites quese impe sobre as foras e possibilidades ali apresentadas. O desenvolvimento internodo indivduo, gerado por desejos e reflexes, elabora uma aquisio criativa a partir deajustes do vivenciado, revelado na ao, na convivncia do espao escolar. O desafio,neste estudo, responder a seguinte questo: as aes dentro da escola contribuem paraa construo de um indivduo possvel, tornando a formao do indivduo real refmdestas foras? Nesse sentido, o trabalho se estrutura a partir da conjugao de vriospontos de partida. Assim, busca: detectar marcos histricos que se repetem, onde o

    poder de uma rea se desenvolve e se fortalece a partir de um campo de saber,identificando e caracterizando servios e indivduos; localizar, na legislao, como soconfiguradas a pessoa, e a pessoa com deficincia intelectual; definir o indivduo real,que persiste alm do rtulo, do estigma, formado na contradio, em uma dialtica deexcluso e incluso; identificar mecanismos construdos diariamente, e a clareza que afamlia e indivduos tm destes. Na anlise da realidade investigada, vai alm da meradescrio dos dados observados e faz a opo por uma abordagem qualitativa, ou seja,captar a escola pelo olhar dos sujeitos e suas manifestaes. Elementos de pesquisa ereflexo, como registro fotogrfico e vdeo elaborado por aluno so utilizados como

    mediadores e organizadores de temas, estes, desta forma, centrados e desenvolvidos apartir da reflexo sobre fatos observados na relao com os sujeitos. Conclui que asforas produzidas pelo ambiente fazem parte da viso histrica da constituio doindivduo com sndrome de Down, enquanto as tcnicas de contorno e superao soconstrudas por ele, na vivncia dos limites, e concorrem para a construo de umindivduo nico, nem sempre percebido pela escola.

    Palavras-chave:sndrome de Down, relaes de poder, identidade, legislao, histria.

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    ABSTRACT

    Dezotti, M.C. Down Syndrome Individual: history, legislation and identity. 2011.165 p. Master's Thesis in Special Education Education College University of So

    Paulo So Paulo, 2011.

    This research evidences the companionship practices introduced in the relation to Downsyndrome student and shows the forged marks through history, laws and spaces, printedin the conditions and possibilities in the public school from So Paulo State. It revealsin the ways of leading the process of the development of the student who hasintellectual deficiency, the existence of a possible individual planned and previouslydefined. Supporting the study of the Down syndrome student in the school space, itbreaks the limits of the possible individual and unveils the label of unique individual,who is real, formed by companionship, conscious of his position in the group, dialoguedand negotiated. Such individual thinks about school and executed actions hoping tobelong to every subject of the research which reflects over the imposed limits, strengthand possibilities there where it is presented. The internal development of the individual,generated by wishes and reflections elaborates a creative acquisition from adjustmentsof the subject revealed in the action, in the companionship of the school space. Thechallenge, in this study, is to answer the following question: do the actions inside schoolcontribute to build a possible individual becoming the character of a real individual whois hostage of this strength? In this way the study itself from several starts points. Itpursuits detecting historical boundaries which are repetitive where the power of an areadevelops itself and becomes strong from knowledge identifying and showing servicesand individuals; localizing in the legislation the way the person is configured and the

    intellectual deficiency person; defining the real individual who persists beyond label,the stigma, ,formed in the contradiction in a dialectic of exclusion and inclusion;identifying mechanisms daily built concerning family and individuals as well. In theanalysis of the investigated reality, it goes farther on the simple description of observeddata and decides for a qualified approach, that is, it looks at through the way thesubjects look and their manifestations. Such elements of research and reflection, itmeans, photos and videos created by the student are used as mediators and organizers ofthe themes, these ones, this way, centered and developed after reflection about observedfacts in the relationship with such subjects. I concluded that the strength produced bythe environment makes part of the historical view of the Down syndrome individualconstitution while the contour techniques and overcoming are built by him living his

    limits and contributing to build a unique individual who is not always noticed by school.

    Keywords:Down syndrome, power relationships, identity, legislation, history.

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    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Porcentagem de ocorrncia de caractersticas fsicas ...................................42

    Tabela 2 Porcentagem de nveis de habilidades educacionais.....................................44

    Tabela 3 Frequncia das palavras na Constituio da Repblica, do Estado de SoPaulo e no Estatuto da Criana e do Adolescente ...........................................................46

    Tabela 4 Relao de escolas apontadas no Quadro Diagnstico da Diretoria de EnsinoSul I .................................................................................................................................97

    Tabela 5 Relao entre idade e nmero de alunos em SRDI.......................................97

    Tabela 6 Alunos com Deficincia Intelectual atendidos pela APAE na zona sul de So

    Paulo ................................................................................................................................98

    Tabela 7 Caractersticas fsicas dos sujeitos da pesquisa ..........................................104

    Tabela 8 Horrios dos sujeitos da pesquisa na escola ...............................................106

    Tabela 9 Tempo de permanncia na escola e tipo de sala .........................................107

    Tabela 10 Frequncia dos fenmenos na Constituio da Repblica, do Estado de SoPaulo e do Estatuto da Criana e do Adolescente somados Conveno dos Direitos das

    Pessoas com Deficincia, Lei de Diretrizes e Bases da Educao 1996, Plano Nacionalde Educao/Subsdios 2001 .........................................................................................158

    Tabela 11 Palavras mais utilizadas nos documentos oficiais ....................................159

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    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AAIDD American Association on Intellectual and Developmental Disabilities(Associao Americana de Deficincias Intelectual e de Desenvolvimento)

    ACM Associao Crist de MoosAEE Atendimento Educacional EspecializadoAPAE Associao de Pais e Amigos dos ExcepcionaisCAPE Centro de Apoio Pedaggico EspecializadoCEB Coordenadoria de Educao BsicaCENP Coordenadoria de Estudos e Normas PedaggicasCNE Conselho Nacional de EducaoCOGSP Coordenadoria de Ensino da Regio Metropolitana da Grande So PauloCORDE Coordenadoria Nacional para Integrao da Pessoa Portadora de DeficinciaCRPE Classe Regida por Professor EspecializadodB decibis (unidade de frequencia)DE Diretoria de EnsinoDRE Diretoria Regional de EnsinoECA Estatuto da Criana e do AdolescenteEJA Educao de Jovens e AdultosHTPC Hora de Trabalho Pedaggico ColetivoHz hertz (unidade de frequencia)LDB Lei de Diretrizes e BasesLDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educao NacionalLIBRAS Lngua Brasileira de SinaisLOAS Lei Orgnica da Assistncia Social

    MEC Ministrio da EducaoOFA Ocupao de Funo AtividadeONU Organizao das Naes UnidasPNPA Plano Nacional de Promoo da AcessibilidadePCNs Parmetros Curriculares NacionaisPCOP Professor Coordenador de Oficina PedaggicaPNE Plano Nacional de EducaoSAPE Servio de Apoio Pedaggico EspecializadoSARESP Sistema de Avaliao de Rendimento Escolar do Estado de So PauloSE Secretaria da Educao

    SEE Secretaria de Educao EspecialSEESP Secretaria da Educao do Estado de So PauloSNPD Subsecretaria Nacional de Promoo dos Direitos da Pessoa com DeficinciaSR Sala de RecursosSRDA Sala de Recursos de Deficincia AuditivaSRDF Sala de Recursos de Deficincia FsicaSRDM Sala de Recursos de Deficincia MentalSRDV Sala de Recursos de Deficincia VisualUNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization

    (Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura)

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    SUMRIO

    1. INTRODUO .................................................................................................................. 14

    2. A CONCEPO DO INDIVDUO E DO INDIVDUO COM DEFICINCIAINTELECTUAL .................................................................................................................... 232.1. Aspectos histricos da deficincia intelectual................................................................... 272.2. A sndrome de Down ........................................................................................................402.2.1. Causas.............................................................................................................................402.2.2. Questes cromossmicas................................................................................................ 402.2.3. Caractersticas fsicas ..................................................................................................... 412.2.4. Aspectos afetivo e social ................................................................................................ 422.2.5. Comunicao .................................................................................................................. 43

    3.A LEGISLAO................................................................................................................453.1. O indivduo regido por Leis...............................................................................................453.2. Definio de pessoa pela Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988......... 473.3. Definio de pessoa pela Constituio do Estado de So Paulo de 1989..........................513.4. Definio de pessoa de acordo com o Estatuto da Criana e do Adolescente de 1990..... 523.5. Definio de pessoa com deficincia na Conveno sobre os Direitos das Pessoas comDeficincia (2007). ................................................................................................................... 553.6. Definio de pessoa relacionada Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDBEN). PlanoNacional da Educao (PNE)............................................................................................................ 62

    4.O INDIVDUO COM SNDROME DE DOWN..............................................................70

    4.1. As marcas histricas .........................................................................................................704.2. As marcas cotidianas .........................................................................................................784.3.OIndivduo possvel e o indivduo real ............................................................................ 82

    5. ORGANIZAO DOS SERVIOS DE EDUCAO ESPECIAL NO ESTADO DE

    SO PAULO ........................................................................................................................... 86

    5.1. Alguns aspectos sobre o processo de encaminhamento na Escola Pblica Estadual ........ 87

    5.2. As possibilidades da educao do aluno com sndrome de Down na Escola PblicaEstadual ...................................................................................................................................88

    6. METODOLOGIA...............................................................................................................956.1. A pesquisa, o campo de investigao e os sujeitos envolvidos.........................................966.2. O aluno como foco ............................................................................................................986.3. A entrevista semiestruturada ...........................................................................................1006.4. A escola como locusda pesquisa.......................................................................................... 1026.4.1. Sujeitos da pesquisa: alunas com sndrome de Down.................................................. 1046.4.1.1. Condies familiares ................................................................................................. 104

    6.4.1.2. Caractersticas fsicas e de sade...............................................................................1046.4.1.3. O espao escolar ........................................................................................................105

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    6.5. A identidade e as formas de pertencer do aluno com sndrome de Down na escola....... 1086.5.1. O que aprendem e como aprendem ..............................................................................1106.5.2. A aprendizagem de conceitos.......................................................................................1116.5.3. O jogo e a observao...................................................................................................1216.5.4. A linguagem e o pensamento .......................................................................................1236.5.5. O desejo e a dificuldade de expresso.......................................................................... 1256.5.6. A sndrome de Down e a surdez...................................................................................1316.5.7. As caractersticas pessoais............................................................................................ 1356.5.7.1. O entendimento das regras ........................................................................................1356.5.7.2. A fuga e a docilidade................................................................................................. 1396.5.7.3. A segurana no espao restrito ..................................................................................142

    7. CONSIDERAES FINAIS...........................................................................................144

    REFERNCIAS ...................................................................................................................149OBRAS CONSULTADAS ...................................................................................................156

    ANEXOS ...............................................................................................................................157

    ANEXO 1 Tabela 10 Frequncia dos fenmenos na Constituio da Repblica, do Estadode So Paulo e no Estatuto da Criana e do Adolescente somados Conveno dos Direitosdas Pessoas com Deficincia, Lei de Diretrizes e Bases da Educao de 1996, Plano Nacionalde Educao/Subsdios 2001 .................................................................................................. 158

    ANEXO 2 Tabela 11 Palavras mais utilizadas nos documentos oficiais........................159ANEXO 3 Fotos da escola .................................................................................................. 160

    ANEXO 4 Carta ao Comit de tica ..................................................................................164

    ANEXO 5 Termo de Consentimento Livre e Esclarecimento............................................165

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    1. INTRODUO

    Posso dizer que as relaes de fora e poder, envolvendo pessoas e ambientes,

    foram sempre um foco constante em minha vida. A criao rigorosa e aspectos ligados a

    caractersticas individuais imputados s pessoas permearam minha infncia.

    A minha formao inicial, perpassa por nove escolas, conforme registro em meu

    histrico escolar, at o ensino mdio, em diversos territrios, entre capital, cidades do

    interior e vida no stio.

    Pude perceber, neste trajeto, que as relaes mediadas pelas regras, nas vrias

    escolas, produziam diferentes formas de desenvolvimento e expectativas em relao ao

    futuro.

    Aprendi que para viver o diverso preciso negociar, entrar no jogo, deixar-se

    envolver. Entendi rapidamente que os colegas traziam situaes variadas para a escola e

    este jogo de pertencer e se fazer presente com sua histria de vida, o ser eu e o ser

    grupo, sempre me encantou.

    Em meio a pessoas e ambientes pautados por regras, constitu minha vida

    profissional. Como professora, foram trs estruturas de ensino em trinta anos: rede

    particular, municipal e estadual. Nessa caminhada, desenvolvi um olhar sensvel para a

    troca, na relao de grupo, num jogo de enlaar, de pertena e apego.

    Todas estas questes ganharam um novo recorte e sentido quando recebi meu

    primeiro aluno com deficincia, especialmente porque pensar a escola enquanto

    ambiente para atender a diversidade h muito tempo fazia sentido para mim: nessa

    perspectiva, colocamos que a diversidade no diz respeito s a pessoas, mas a toda aescola que, pelas regras, deve acolher a todos, potencializar descobertas e proporcionar

    a busca de aprendizagem no grupo, na troca, pela negociao dentro de estruturas, como

    ponto de fortalecimento do indivduo e abertura de processos para a construo de

    identidade.

    Em muitas escolas, essa inteno de negociao existe, mas est encoberta pela

    prpria estrutura, pelo fazer repetitivo, pelo o que possvel fazer, opondo este possvel

    ao que necessrio fazer. No caso do aluno com sndrome de Down, a busca por

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    caminhos diversos pode possibilitar a negociao e o reconhecimento da identidade por

    trs do rtulo, abrir as portas aprendizagem do indivduo real, rompendo os limites do

    apenas possvel.

    No Estado de So Paulo, os mecanismos da legislao vm apontando para a

    definio do pblico alvo na Educao Especial1, ao qual o aluno com sndrome de

    Down pertence. As justificativas para desenvolver o atendimento voltado a um pblico

    especfico visam garantir melhor qualidade no atendimento, com apoio de profissionais

    especializados.

    A escola o ambiente presente em todas as regies, dando educao um poder

    capilar2na cidade. tambm quem diariamente, vive, ao lado das famlias, as condies

    sociais e as possibilidades da regio onde est inserida. Esta proximidade, somada

    ausncia dos servios no lugar onde alunos com deficincia residem e dificuldade de

    locomoo, faz com que a escola passe a ser o nico local com possibilidade de apoio, e

    que a ela sejam direcionadas todas as expectativas de desenvolvimento dos jovens.

    Os termos escola e diversidade tm andado lado a lado, apontados nos discursos

    sobre Educao, principalmente quando se referem garantia do direito educao com

    qualidade. A diversidade aqui diz respeito a todos os alunos, inclusive queles comqualquer tipo de deficincia, mas principalmente aos com sndrome de Down. Sob o

    prisma da diversidade, leis foram desenvolvidas para possibilitar o acesso e

    permanncia, em condies favorveis, da pessoa com deficincia na escola. No

    entanto, apenas o fato de definir espaos e possibilidades de ao no garante que o

    educando seja tratado como indivduo3, somente imputa-lhe, na legislao, o rtulo de

    pessoa com deficincia.

    O aluno com sndrome de Down, por sua vez, vem buscando na escola um lugar

    de proteo e de possibilidades reais de aprendizagem e reagindo diante do vivido, traz,

    1O pblico alvo da Educao Especial definido na Resoluo SE n11/2008 (BRASIL, Estado de So Paulo).2Este poder capilar foi identificado por Foucault em As verdades e as formas jurdicas ao se referir a um conjuntode tcnicas polticas e tcnicas de poder que ligavam o homem ao trabalho no sculo XIX: preciso que, ao nvelmesmo da existncia do homem, uma trama de poder poltico microscpico, capilar, se tenha estabelecido fixando oshomens ao aparelho de produo, fazendo deles agentes da produo, trabalhadores. (FOUCAULT, 2003, p.125). Oque se pretende ao utilizar este termo realar a proximidade da escola e o poder exercido por ela nos bairros, assimcomo a fora que envolve a vida das famlias e expectativas em relao ao futuro dos seus filhos.3 Chama-se de indivduo, ou seja, o que numericamente uno, aquilo que no divisvel em muitas coisas e sedistingue numericamente de qualquer outra [...] em seu modo de ser, em sua singularidade, caracterizado por umadeterminao ltima ou realidade ltima da natureza que o constituiu. (ABBAGNANO, 2007, p. 639).

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    para o ambiente escolar, como todos os outros, sua histria de vida, suas formas de

    vivenciar o jogo do pertencer, seus sonhos e possibilidades.

    A questo da identidade desse grupo deve, ento, ser pensada, pois no

    ambiente escolar que a vida ir tomar forma, onde ser potencializada a construo da

    pessoa4, no intercurso com o outro, desvelando, aprofundando marcas, construdas e

    negociadas.

    Os fatores relacionados anteriormente fazem parte de um ambiente real, no qual

    anseio e interesses pessoais convivem com as estruturas e regras da escola. Podemos

    ento refletir sobre estes seres nicos, pensar sobre a identidade5, que se assemelha a

    uma lente por meio da qual vrios aspectos da vida so salientados.

    Identidade qualidade de idntico (FERREIRA, 1986b, p. 913), de ser

    reconhecido, em um grupo, como igual. Constitui-se numa fora, no sentido de

    responder ao social de forma igual, em um esforo para estar entre os seus, que garante

    proteo no grupo, autoestima, referencial de comportamento e atitude.

    Voltando a ateno para as caractersticas reveladas pela aparncia fsica, a

    sndrome de Down diferencia-se das outras deficincias. Alm de ter o trao fsico

    salientado como primeira marca na comunidade, apresenta, ligada a ele, uma concepo

    histrica impregnada no social, assim como a ideia antecipada das possibilidades de

    desenvolvimento intelectual do indivduo.

    No trabalho com o aluno com sndrome de Down, dois modos distintos se

    interpenetram na construo da identidade. O primeiro pensa nas marcas identitrias

    deste indivduo como caractersticas fechadas, configurando o estigma, a identidade

    proveniente do registro histrico construdo pela humanidade o que, porconsequncia, desenvolve e cria caminhos pr-determinados na escola. O segundo

    entende que mesmo aspectos to fortes e fechados no conseguem impedir trajetos

    4[...] pessoa deriva deper + sonare: ressoar. Em Roma,persona era a mscara que cada ator de teatro usava durantea representao, a fim de que sua voz ou a da personagem fosse identificada. Munida de lminas de metal, a mscarafazia com que a voz do ator ressoasse cristalinamente nos vastos anfiteatros. Com o tempo, o vocbulo personapassou a denominar o papel representado pelo ator; e como cada pessoa representa um papel nesta vida, o termopassou a designar o prprio homem. (ACQUAVIVA, 1993, p. 939). Ao comentar a definio de pessoa, nas cinciassociais, Abbagnano escreve que pessoa [...] o indivduo provido de status social, faz referncia rede de relaessociais que constituem o status da pessoa. [...] agente moral, sujeito de direitos civis e polticos ou, em geral,membro de um grupo social (ABBAGNANO, 2007, p. 890).5Em sentido essencial, as coisas so idnticas no mesmo sentido em que so unas, j que so idnticas quando uma s sua matria (em espcie ou em nmero) ou quando sua substncia una. (ABBAGNANO, 2007, p. 612).

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    diferenciados de possibilidades, na construo social. Trajetos que implicam, na relao

    com o outro, o ensejo de o aluno efetivamente pertencer escola, negociando,

    experimentando os caminhos da aprendizagem, tornando este aprender um ato de

    socializao, de descoberta dos outros e, no menos importante, possibilitando prpria

    escola a aprendizagem de novos fazeres metodolgicos a partir da observao.

    Outro fator importante a maneira como a famlia vai se estruturando,

    construindo assim uma histria de vida acompanhada, muitas vezes, pelo sofrimento,

    com desgastes provenientes da falta de recursos e da ausncia de polticas sociais

    efetivas. Um em cada 20 habitantes, no mundo inteiro, tem alguma deficincia, e,

    destes, mais de trs, em cada cinco, vivem em um pas em desenvolvimento (METTS,

    2000). A questo fica mais complicada quando pensamos que as garantias bsicas comosade, trabalho e lazer no atendem a demanda necessria para muitos indivduos, sendo

    mais graves para os ncleos familiares que possuem uma pessoa com deficincia.

    Estas esto envolvidas, diariamente, em encontrar mecanismos sociais de

    sustentao das condies mnimas, assim como apoio para o desenvolvimento dos

    filhos. Perceber a associao entre deficincia e pobreza possibilitar a identificao de

    posturas da famlia no como ausncia dos responsveis, mas como dificuldade real da

    sua presena na escola. Pais envolvidos no sustento e na busca de apoio, em outros

    setores da sociedade, nem sempre conseguem ver, com clareza, os meandros dos

    caminhos desenvolvidos na trajetria escolar, assim como as consequncias na vida do

    filho.

    A questo da incluso no simples. Sete documentos internacionais, de 1990 a

    2003, acompanhados, no mesmo perodo, de catorze declaraes de outros organismos

    mundiais, versaram sobre garantia de direitos para todos. No Brasil, foram nove leis,desde a Constituio Federal, de 1988 at 2002; dezesseis decretos, de 1993 a 2008, e

    seis portarias, de 1994 a 2006.6

    Todas essas declaraes e mecanismos legais vm dividindo opinies: h

    aqueles que percebem o indivduo com sndrome de Down, a deficincia; e h aqueles

    que, prioritariamente, percebem nele a pessoa, com direitos legais e oportunidades

    iguais s dos outros, com caractersticas individuais. Esse campo de dilogo vem

    6MEC Ministrio da Educao. Legislao. Educao Especial: Legislao Especfica / DocumentosInternacionais. Disponvel: .

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    marcando a sociedade e a escola pblica, h vinte anos, buscando viabilizar mudanas

    por meio da formao de professores, elaborao de relatrios, adequao de espaos e

    materiais, na tentativa de integrar a escola s questes da comunidade em que o aluno

    est inserido, assim como viabilizar a participao deste em diferentes espaos,

    garantindo-lhe acesso com qualidade, na construo da pessoa.

    No basta, porm, apenas incluir a todos: necessrio elucidar os percursos de

    construo do indivduo, na escola; perceber como o aluno com deficincia convive

    com as regras que o envolvem; e, ainda, identificar os caminhos e decises

    educacionais. Esta questo, importante para qualquer aluno, de fundamental

    relevncia para aquele com sndrome de Down, que, precisamente pela dificuldade em

    entender os processos e regras da escola, pode se tornar refm da estrutura educacional,das instituies ou de posturas mais fechadas da famlia em relao s suas expectativas

    de vida.

    O interesse da pesquisadora em mergulhar nos estudos somou-se ao seu ingresso

    no Programa de Ps-Graduao em Educao, Faculdade de Educao na Universidade

    de So Paulo, rea temtica Educao Especial, e ao fato de passar a compor a equipe

    de Educao Especial da Secretaria de Educao do Estado de So Paulo, no CAPE

    Centro de Apoio Pedaggico Especializado, onde as visitas s classes especiais e o

    desenvolvimento da formao de Supervisores e Professores Coordenadores de Oficinas

    Pedaggicas da Educao Especial das 91 Diretorias do Estado de So Paulo, puderam

    apoiar minhas reflexes e amadurecimento deste tema.

    Este estudo buscou observar a formao do indivduo com sndrome de Down,

    identificar sua percepo de espaos, fatos da escola e referncias no grupo. E responder

    seguinte questo: os aspectos histricos; a legislao, tanto no mbito federal quantoestadual; os espaos; e, por fim, as palavras e aes que envolvem o indivduo com

    sndrome de Down mobilizam-se na constituio de um indivduo possvel dentro da

    escola, dificultando o desenvolvimento do indivduo real?

    O primeiro passo foi identificar a influncia das aes, espaos e palavras que

    so construdos pela presena do rtulo sndrome de Down e que concorrem para o

    estabelecimento, determinado antecipadamente, de uma identidade possvel, isto ,

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    previamente pensada dentro da estrutura. Possvel, aqui, subentende isto possvel

    fazer e esperar de um aluno que tem sndrome de Down.

    Tal maneira de configurar espaos, aes e palavras de forma apriorstica um

    paralelo com o que Goffman descreve como identidade social virtual, e coloca a

    presena de um estigma, cuja caracterstica distinta j conhecida, tem um efeito de

    descrdito, um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrdito muito

    grande (GOFFMAN, 1988, p.12). Portanto, o termo possvel dentro deste trabalho

    repercute uma frase bastante ouvida nas escolas: isto que possvel fazer por ele.

    Possibilidade fechada, identidade determinada de antemo, identidade possvel,

    conferida a todos os alunos que entram e trazem como rtulo a sndrome de Down.

    Por outro lado, pretendeu-se, atravs deste estudo, descobrir a identidade real

    que persiste e que emerge da relao com os colegas e grupo e revela o sujeito capaz de

    ultrapassar as estruturas, flagrar a identidade real observada, que no esconde a

    sndrome de Down, mas se constri com ela e cria um olhar de grupo, um sinal de

    pertena.

    Nessa perspectiva, buscou-se enfocar os temas atravs do levantamento de

    possibilidades de construo de um sujeito real, cidado, pessoa social, partindo dedireitos, aes e espaos destinados a todos, em vez de olhar apenas os mecanismos

    construdos no indivduo, e as concepes pr-determinadas pela presena da

    deficincia (sndrome de Down) o que levaria a um forte direcionamento, quase uma

    negao dos direitos comuns. Para tanto, os temas foram apresentados na seguinte

    sequncia: indivduo, pessoa, deficincia, deficincia intelectual e, de forma extensiva,

    o aluno com sndrome de Down.

    O trabalho de investigao traduz como fora a escola e o aluno, este

    apresentado nas situaes de ptio, com os colegas: desvela o que diz, como se

    relaciona, quais as interaes reais e como as negocia com os outros, no grupo. Seu eixo

    central determinar o quanto o indivduo real (sujeito da pesquisa) encoberto pela

    marca do indivduo com sndrome de Down.

    Para melhor entendimento dos estudos de pesquisa, o registro da dissertao foi

    subdesenvolvido em seis captulos:

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    No primeiro, a autora faz uma insero no campo, utilizando o percurso

    acadmico pessoal, na identificao do tema a ser estudado.

    No segundo, apresentado o O indivduo com deficincia intelectual,

    entendendo-se que as caractersticas fsicas so marcas que se revelam e antecedem e

    configuram decises e espaos, antes que a pessoa (ser social) ou sujeito (observado

    pela pesquisa) possa se revelar. Em Aspectos histricos da deficincia intelectual,

    buscar-se- os dados ligados formao de espaos destinados deficincia, assim

    como decises ligadas tentativa de proteo e ateno, traos estes atuais e comuns

    aos encontrados nas razes histricas do Brasil, nos Hospitais dos Alienados. Sua

    atualidade revelada pelo texto, na construo do pensamento social, como demarcador

    de foras na luta de espao, empoderamento7

    de pessoas e delimitao de possibilidadescomo proteo social. Os pontos abordados so reveladores de uma condio

    educacional atual. Neste apresentada A sndrome de Down com caractersticas

    marcadas por uma diversidade que no permite delimitar um padro nico na

    constituio do indivduo.

    A Legislao, como terceiro captulo, desenvolve o tema O indivduo regido

    por Leis onde so apresentados os aspectos legais e a configurao dos espaos,

    palavras e aes que envolvem a pessoa com sndrome de Down. Os direitos da pessoa

    j estariam garantidos em mecanismos legais como Constituio da Repblica

    Federativa do Brasil, de 1988, a Constituio do Estado de So Paulo, de 1989, e, por

    ltimo, o Estatuto da Criana e do Adolescente, de 1990, e o fato de serem construdas

    legislaes especficas, voltadas deficincia, contribuem para a formao de

    discriminantes pessoais. Procedendo ao mecanismo de contagem de palavras nos

    referidos documentos, foi identificado que o termo pessoa ocorre com grande

    frequncia, assim como a palavra ensino, salientando que dentro deste grupo esto

    inseridas as pessoas com sndrome de Down. Aprofundar as questes relacionadas s

    pessoas, atravs das leis e do ensino, o objetivo deste captulo. Foi possvel verificar

    ainda uma grande ocorrncia das palavras famlia e proteo, no Estatuto da

    Criana e do Adolescente, de 1990. Assim, dentro destes mecanismos, todas as pessoas

    teriam seus direitos garantidos.

    7 O termo empowerment embora no tenha uma traduo perfeita, tem sido usado como empoderamento e seusignificado seria transferir ou devolver o controle da prpria vida para as pessoas com deficincia (MENDES, 2006,p. 390).

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    Na sequncia, ainda neste captulo, desenvolvida a anlise de questes

    legislativas especficas s pessoas com deficincia. Neste contexto, selecionada a

    Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia (2007), assinalando-se aqui o

    fato de que a necessidade de uma lei construda para uns j demonstra uma delimitao:

    preciso que a pessoa seja caracterizada, demarcada, enquanto grupo de referncia para

    ser atendida, com o objetivo de normaliz-la e negar assim sua diferena. Em

    Definio de pessoas relacionada s Leis da Educao, prossegue-se examinando o

    tratamento da pessoa dado pelo suporte legal: observam-se aes e espaos relacionados

    deficincia, demarcando o papel da famlia e as palavras que configuram a deficincia,

    refletindo sobre as questes educacionais, enquanto poltica de Estado.

    No quarto captulo, O indivduo com sndrome de Down, desenvolvida, emAs marcas histricas, a concepo social que emerge da convivncia diria com a

    pessoa com deficincia, mostrando sua correlao com um processo de foras

    historicamente construdas. A esta, soma-se o fechamento legal, que fixa espaos e

    possibilidades da famlia no encaminhamento de opes para o desenvolvimento de seu

    filho. Fazem parte deste tpico, os aspectos cognitivos como emblemtica que envolve a

    famlia, a escola e a sociedade, apontando as relaes de fora. Em As marcas

    cotidianas, aprofundam-se as questes familiares ligadas morte do filho esperado e asconsequncias para o indivduo com sndrome de Down, abordando o estigma na

    construo da sua identidade. Como ltimo foco, em o Indivduo possvel e indivduo

    real, so apresentados os temas ligados Escola Pblica Estadual e s possibilidades

    para o indivduo com sndrome de Down.

    O quinto captulo, Organizao dos servios de Educao Especial no Estado

    de So Paulo, apresenta a estrutura da Educao Especial com pontos que abordam o

    nmero de alunos atendidos, encaminhamentos para a Sala de Recursos, relatrios e

    avaliaes.

    Referindo-se Metodologia, no captulo 6, est dividida em: A seleo da

    escola e dos participantes, O aluno como foco, A entrevista semiestruturada, A

    escola, Formas de agir e de pertencer. No desenvolvimento destes temas

    apresentada a pesquisa qualitativa, com coleta de dados no ptio, obtida atravs de

    questionrio desenvolvido com os alunos. Busca informaes sobre o tema, com

    profissionais na escola, visando compreender o significado que o aluno com sndrome

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    de Down tem de suas experincias. So desenvolvidos: um questionrio, registro de

    filmes construdos pelos alunos com sndrome de Down, assim como fotos, como apoio

    para os dilogos.

    Finalmente, cabe esclarecer que os dados da pesquisa referem-se a partes de uma

    observao ampla. No recorte apresentado, buscou-se registrar os dados e pontos de

    discusso que melhor representassem e se coadunassem com o campo terico

    desenvolvido. Vale salientar que as gravaes em DVD, elaboradas pelos alunos com

    sndrome de Down, por questes ticas, no puderam ser apresentadas, mas os dilogos,

    resguardadas as identidades, foram aqui reproduzidos.

    A relevncia deste estudo se deve necessidade de identificar a influncia das

    aes, espaos e palavras na construo da identidade do aluno com sndrome de Down.

    Apontar como estas aes, espaos e palavras se colocam antecipadamente,

    configurando uma identidade possvel. Descobrir a identidade real8, que persiste na

    caracterizao de um indivduo uno, encoberta pelo estigma.

    8Goffman, ao apontar a caracterizao do indivduo na sociedade, descreve: A categoria e os atributos que ele, narealidade, prova possuir, sero chamados de sua identidade social real (GOFFMAN, 1988, p. 12). [...] asdiscrepncias entre as identidades virtual e real sempre ocorrero e sempre criaro a necessidade de manipulao de

    tenso (em relao ao desacreditado) e controle de informao (em relao ao desacreditvel). (GOFFMAN, 1988,p. 149).

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    2. A CONCEPO DO INDIVDUO E DO INDIVDUO COM DEFICINCIA

    INTELECTUAL

    Neste captulo, ser abordado o tema indivduo, por entendermos que este

    antecede as questes relacionadas deficincia.

    A concepo de indivduo parte da ideia de espcie. Caracteriza-se por um

    ncleo prprio, construdo em um espao e na relao com outras pessoas, possui

    caractersticas nicas, configurando um ser completo e indivisvel. As marcas sociais

    so construdas pela famlia, histria e ambiente social no qual o indivduo est inserido.

    Igualmente, a maneira como vai reagindo s solicitaes do meio sedimenta formas de

    agir em grupo. Um indivduo , pois, constitudo na relao, no convvio caractersticoda humanidade; ser diferente, pensar, agir e caminhar na construo e definio de um

    eu, pelo lao social, no enlaar de relaes (GOFFMAN, 1988).

    Melucci (2004) aponta tambm a influncia das construes sociais como forma

    de energia e construo de sentido do que somos:

    As experincias cotidianas parecem minsculos fragmentos isolados da vida,to distantes dos vistosos eventos coletivos e das grandes mutaes queperpassam a nossa cultura. Contudo, nessa fina malha de tempos, espaos,

    gestos e relaes que acontece quase tudo o que importante para a vidasocial. onde assume sentido tudo aquilo que fazemos e onde brotam asenergias para todos os eventos, at os mais grandiosos (MELUCCI, 2004,p.13).

    Quem se diz pertencer a um grupo, reclama o direito de poder se fortalecer

    enquanto ser nico nele, de ser aceito por suas caractersticas, e, por isso, valorizado; de

    ser enlaado e integrado, como o fio de uma renda. Quer ter o privilgio no s de

    pertencer, mas de ser necessrio, de poder dialogar, influenciar e ser influenciado.

    Ainda segundo Melucci (2004):

    A identidade define, portanto, nossa capacidade de falar e de agir,diferenciando-nos dos outros e permanecendo ns mesmos. Contudo, a auto-identificao deve gozar de um reconhecimento intersubjetivo para poderalicerar nossa identidade. A possibilidade de distinguir-nos dos outros deveser reconhecida por esses "outros". Logo, nossa unidade pessoal, que produzida e mantida pela auto-identificao, encontra apoio no grupo ao qualpertencemos, na possibilidade de situar-nos dentro de um sistema de relaes.A construo da identidade depende do retorno de informaes vindas dosoutros (MELUCCI, 2004, p. 45).

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    Claro que este ser nico no to diverso assim, pois se constitui no social, em

    seu ncleo familiar, herdou de seus pais um nome de famlia, uma cultura, um

    conhecimento de mundo. J nasceu enredado na vida. Conforme afirma Elia:

    [...] o ser humano chega ao mundo e se insere na ordem humana que o espera,que no apenas precede sua chegada como tambm ter criado as condiesde possibilidade de sua insero nesta ordem (ELIA, 2004, p. 38).

    Esta construo do ser histrico imprime nos indivduos e principalmente

    naqueles com sndrome de Down, as marcas ratificadas da deficincia, junto com os

    ritos, expectativas, crenas e valores, e formas de comunicar e dialogar dos lugares aos

    quais pertence.

    Fica fcil pensar que esta elevada forma de construir a pessoa, o ser social,

    concorre para definir possibilidades e oportunidades futuras. No entanto, a autonomia e

    a conscincia de suas aes s haver de se cumprir quando neste tecer puder

    experimentar as regras, o respeito, a conscincia grupal, e, acima de tudo, dialogar sua

    existncia.

    No livro A identidade nacional e outros ensaios, de Kujawski (2005), a

    identidade est relacionada pertinncia:

    Eu me identifico com aquilo que a que eu perteno a famlia, a escola, aclasse social, a regio [...]. Identificao significa pertinncia, pertencer a,estar includo nesta ou naquela comunidade, mesmo sem solidariedadesubjetiva com ela [...]. Existem incluses que eu posso escolher, como aescola, igreja, grupo de amigos, [...]. E existem incluses que eu no escolho,que se impem minha revelia, como, em princpio, minha famlia, [...](KUJAWSKI, 2005, p. 12-13, grifo do autor).

    Ao comentar sobre a identidade, ressalte-se que mesmo no guardando

    solidariedade subjetiva por um grupo de pessoas com sndrome de Down, uma vez que

    ao nascer no fizeram opo de pertencimento, mesmo assim, at as posturas de

    acobertamento, rebeldia e esquiva marcam os indivduos, tornando-se traos identitrios

    daqueles com deficincia.

    No entanto, pensar sobre as marcas que definem o indivduo diferente de

    acentuar suas caractersticas e, antecipadamente, delimitar seus espaos e aes,

    diferindo-o de um grupo. Neste estudo, a proposta verificar a existncia de tais

    aspectos: o que construdo pela cultura escolar e pela realidade formatada na

    legislao; quais as decises da escola e na escola, como formao de um indivduo

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    possvel, dentro de uma realidade previamente traada, como seleo de objetivos e

    delimitao na construo da identidade.

    Uma das ideias apontadas por Mattos (2003) sobre o foco a ser observado,

    dentro das escolas, a respeito da incluso, que:

    O paradigma da incluso que desejamos dever compreender, respeitar evalorizar cada ser humano como , e no como gostaramos que fosse. Alis,atender diversidade consiste justamente na aceitao das diferenas(MATTOS, 2003, p. 52).

    O indivduo respeitado nas suas caractersticas nicas definido neste trabalho

    como indivduo real, prprio da diversidade humana, que pode mais e de formas

    diversas compreender espaos e buscar caminhos entre aberturas e descobertas na

    relao com as pessoas, na construo de possibilidades de pertencimento nos diversosambientes.

    Diferentemente e quase em oposio a este, temos o indivduo possvel, aquele

    que possvel desenvolver diante de expectativas previamente determinadas, em

    espaos distintos, antecipadamente organizados e planejados para seu desenvolvimento.

    Por este prisma, o indivduo com sndrome de Down entra nas relaes para responder

    ao esperado, tendo pouco espao para negociaes a partir de sua diversidade, desejos e

    caractersticas.

    Assinala-se, aqui, que a discusso sobre identidade no um fato isolado, est

    no centro das principais discusses sociais e polticas. No caso da Educao Especial,

    alteraes provocadas por documentos internacionais, conforme registrados a seguir,

    geraram movimentos das chamadas minorias, num progressivo reconhecimento da

    necessidade de mudanas na legislao, na sociedade e no relacionamento com a pessoa

    com deficincia. A Declarao Universal dos Direitos Humanos, elaborada pelaOrganizao das Naes Unidas (ONU)9e sancionada em 1948, defende o respeito a

    cada indivduo, independente de religio, etnia, sexo, lngua, opinies polticas, e serve

    como referncia para a convivncia civil.

    9 A Organizao das Naes Unidas (ONU) uma instituio internacional, formada por 192 Estados soberanos,unidos em torno da Carta da ONU, um tratado internacional que enuncia os direitos e deveres dos membros dacomunidade internacional. Como agncia especializada da ONU para a educao, a cincia e a cultura, a UNESCO

    (Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura) identificou desafios educacionais paraconstruir suas estratgias de contribuio ao Brasil, elencando objetivos para garantir o direito fundamental educao de qualidade, ao longo da vida, a todos os brasileiros (Disponvel em: ).

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    Outros documentos tm sido apontados, com insistncia, na mobilizao para

    mudanas efetivas no reconhecimento dos direitos da pessoa com deficincia10:

    1) Declarao dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficincia.Assembleia Geral da Organizao das Naes Unidas, em 9 dedezembro de 1975;

    2) Conferncia Internacional do Trabalho. Conveno 159, 1 de junhode 1983. Genebra, Sua;

    3) Declarao de Salamanca, 7 a 10 de junho de 1994. Espanha;

    4) Carta para o Terceiro Milnio, 9 de setembro de 1999. Londres, Gr-Bretanha;

    5) Declarao Internacional de Montreal sobre Incluso, 5 de junho de

    2001, pelo Congresso Internacional "Sociedade Inclusiva";6) Conveno da Guatemala. Conveno Interamericana para a

    Eliminao de todas as formas de Discriminao contra as PessoasPortadoras de Deficincia, 26 de maio de 1999;

    7) Conveno sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia, adotadapela ONU, em 13 de dezembro de 2006 (aprovada pelo CongressoNacional por meio do Decreto Legislativo n 186, de 9 de julho de2008 e ratificada em: 1 de agosto de 2008).

    A deficincia intelectual e as discusses sobre polticas pblicas e educaoconvidam a pensar sobre preconceitos e concepes de aprendizagens, assim como

    sobre o lugar da famlia na escola e na sociedade. A dificuldade extrema de mudar a

    concepo dos atores que convivem com a pessoa com deficincia intelectual, assim

    como de transformar a noo de identidade esperada, so questes urgentes nesta

    discusso.

    Sero assinaladas, mais adiante, as marcas histricas que, definindo saberes em

    relao ao indivduo, encontram-se presentes no pensar e agir social, induzindo formas,

    definindo espaos com o poder de controlar e acarretando julgamentos fechados nas

    relaes. Utilizaremos, igualmente, as questes referentes ao papel do rtulo, do

    estigma, desenvolvido por Goffman, para identificar, no indivduo, as marcas do

    possvel em conformidade com o poder exercido pelas leis, palavras e espaos,

    definidos por Foucault.

    10MEC Ministrio da Educao. Legislao. Educao Especial: Legislao Especfica / DocumentosInternacionais. Disponvel: .

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    As prticas da convivncia definem as condies e possibilidades marcadas pela

    histria, leis e espaos. Perceber como estas marcas se desenham na escola pblica

    estadual, com referncia aos alunos com sndrome de Down, pode ajudar na busca de

    novos caminhos e possibilidades.

    2.1. Aspectos histricos da deficincia intelectual

    A caracterstica que define as pessoas com deficincia intelectual est

    relacionada reduo notvel das habilidades cognitivas. Fazem parte deste grupo, as

    pessoas com sndrome de Down.

    Antes de aprofundar os aspectos referentes a este grupo de indivduos,apresentaremos as marcas histricas relativas aos alienados, ou seja, aos deficientes

    intelectuais no Brasil, destacando neste relato quatro pontos observados e construindo, a

    seguir, um paralelo entre estes e a atualidade de nossas escolas.

    O referencial terico do sculo XIX ser utilizado para mostrar questes

    relacionadas a espao e poder, e como a caracterizao de um grupo e as decises que

    os envolvem podem gerar o emponderamento e disputa por espaos de profissionais e

    instituies. A delimitao de espaos associada ao poder no pertence ao passado.

    Nos anos de 1858, os psicopatas, os alienados (idiotas, imbecis) e doentes

    mentais faziam parte de um grande grupo conhecido e estudado no mundo. Trabalhos

    com essas pessoas j haviam sido desenvolvidos em outros pases e acabaram por

    influenciar as pesquisas no Brasil.

    O primeiro ponto a ser observado, nos textos da poca, quanto ao espao

    delegado ao alienado e motivao que levou ao seu aprisionamento.

    A ideia de criar um lugar para conter e tratar os alienados, um hospcio no

    Brasil, iniciou-se em 1830, com a Sociedade de Cirurgia e Medicina do Rio de Janeiro.

    Com o objetivo de proteger a sociedade foram criadas leis, decretos e resolues sobre

    como identificar, curar e quais procedimentos desenvolvidos com os loucos ao dar

    entrada nos hospcios. Para identificar a loucura foram utilizados discriminantes sociais,

    reconhecidos, na citao, por Albuquerque:

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    O reconhecimento da loucura depende da poca em que vivemos, do carter egrau de instruo das pessoas que nos rodeiam: a nossa razo a medida daloucura alheia (ALBUQUERQUE11, 1858 apud OLIVEIRA, REGO eSILVA, 2007).

    Pensar no tema da loucura como caracterstica delimitada, a partir do espao

    onde est inserida, no uma questo centrada no ano de 1858, atual. Este o

    segundo ponto, a definio da loucura. A referncia de Albuquerque, selecionada

    anteriormente, aponta a influncia do meio na enunciao de qualidades caractersticas

    deste grupo. Assim, em 1830, como resultado de concepes e da cultura da poca, a

    caracterizao de loucura era relacionada necessidade de proteo social. A proposta

    dessa linha de pensamento sustentou os argumentos dos higienistas, que queriam

    convencer as autoridades pblicas da premncia de uma interveno em nvel de

    polticas de saneamento bsico.

    A disputa por verbas e poder girava em torno dos hospitais, igrejas e polcia.

    Como a causa da deficincia intelectual se fundava em fatalidades genticas, congnitas

    ou neonatais e, portanto, relativas rea mdica, o poder de decidir sobre o alienado foi

    centrado nos hospitais. Sendo vista como um problema de sade pblica, com causas

    hereditrias, sem cura, determinou-se, como preveno, a recluso, alm da proibio de

    casamento e de reproduo dos deficientes mentais.

    A primeira posio dos mdicos, na poca, era o isolamento do indivduo para

    control-lo, tratando a questo como doena, ligada a aes na rea da medicina. Uma

    segunda postura era a de relacionar a anomalia a uma conjuno de fatores, como os

    sociais, morais, religiosos, climticos e econmicos. Dependendo da circunstncia, do

    lugar e das caractersticas e convenincias, certas pessoas poderiam ser consideradas em

    estado de loucura e insanidade e, assim, aprisionadas. A deciso sobre quem poderia ser

    um perigo passou a ser uma funo do poder local. Qualquer um podia denunciar umapessoa por insanidade, e a fora local a encaminharia ao hospcio para averiguao e

    observao, por quinze dias.

    Nas duas questes apontadas, o controle do que ocorre na sociedade e a relao

    da pessoa com deficincia intelectual, com seu entorno, passa a funcionar como um

    jogo de poder, que vem sendo aprendido atravs da histria, e pelo qual um segmento

    profissional no caso da poca, os mdicos desenvolve uma teoria sobre quem

    11ALBUQUERQUE, F.J.F. A monomania. Faculdade de Medicina da Bahia, 1858.

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    pertence ao grupo de risco na sociedade e a forma de encaminhar e curar. Assim,

    temos o terceiro ponto de reflexo: o poder de algumas pessoas, que utilizam o

    indivduo com deficincia intelectual para obteno de recursos e prestgio.

    A deciso sobre o que fazer com o outro, o diferente, percorre os sculos. Da

    Antiguidade Idade Mdia, a pessoa com deficincia era vista como um subumano ou

    concebida como sobrenatural, digna de atitudes antagnicas extremas; por isso as

    atitudes dispensadas a ela eram de negligncia e maus tratos (ARANHA, 2001).

    Do sculo XV ao XIX, surge a concepo organicista. Movidos por um grande

    interesse no funcionamento do corpo humano, mdicos buscaram explicar as doenas

    mediante estudos cientficos de anatomia e fisiologia, fazendo das pessoas com

    deficincia um campo de estudo, dentro de instituies fechadas (ARANHA, 2001).

    Em oposio poca organicista, temos o mdico Jean-Marc-Gaspar Itard, tutor

    de Victor, que inicia a educao e o tratamento de O garoto selvagem de Averyon

    (SMITH, 2008, p. 176). O menino, com cerca de 12 anos de idade, quando achado,

    estava sozinho, sem roupa, andava de quatro e no falava uma palavra. Foi resguardado

    em um lar, e os cuidados delegados ao mdico, assim como a responsabilidade por sua

    educao.

    At ento, no se acreditava nas possibilidades educacionais de pessoas como o

    garoto selvagem. Na perspectiva mdico-organicista-fatalista de Pinel, ele no passava

    de um idiota, mas, para Itard, se tornou um desafio. A convico filosfica de Itard

    permitiu que ele embarcasse nesse empreendimento educativo com Victor, afrontando a

    teoria das ideias inatas e contrariando importantes intelectuais de sua poca, como Pinel,

    que ao avaliar Victor, desacreditou de sua educabilidade, pressupondo uma idiotia

    congnita (CORDEIRO, 2006).

    As questes do isolamento vivido por Victor so apontadas, aqui, como um fator

    significativo para a no aprendizagem. No caso, o garoto selvagem de Averyon no

    pde ser encaminhado s instituies que educavam pessoas com deficincia pelas

    divergncias filosficas de Itard.

    Entre a poca de Itard, 1799, e a poca da fundao do primeiro hospcio no

    Brasil, so 42 anos de diferena. Nesta poca, as questes mdicas tambm marcaram a

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    vida das pessoas com deficincia e definiram sua educao. No sculo XIX, dia 18 de

    julho de 1841, fundado, pelo Decreto n 82, um hospital destinado, privativamente,

    para tratamento de alienados12, com denominao de Hospcio de Pedro Segundo. Este

    estabelecimento de pblica beneficncia, anexo ao Hospital da Santa Casa de

    Misericrdia, na Corte do Rio de Janeiro (Coleo das Leis do Imprio do Brasil), era

    destinado ao asilo, tratamento e cura dos alienados de ambos os sexos, sem distino de

    condio de naturalidade e religio.

    Onze anos depois, em 4 de dezembro de 1852, so escritos os Estatutos do

    Hospcio de Pedro Segundo13, com a administrao confiada a trs irms da Santa Casa

    de Misericrdia, um tesoureiro e um procurador. Podemos observar que as questes de

    organizao diria dos servios e espaos esto centradas nas mos da igreja e do poderpblico.

    Com os estudos e leitura deste Estatuto, verificamos que o servio do hospcio

    era dividido em econmico, religioso e sanitrio, sendo que este ltimo ficava a cargo

    de clnicos de cirurgia e medicina, enfermeiro e um farmacutico boticrio.

    Neste local, eram admitidas pessoas indigentes, senhores de escravos falidos,

    marinheiros e alienados pensionistas que tivessem meios de pagar suas despesas. Todos,no hospcio, eram divididos em classes, com aposentos diferenciados, assim como tipo

    de alimentao, segundo o estado de alienao mental e condies para manter o

    tratamento. Hierarquias sociais regiam os profissionais que trabalhavam nos asilos e os

    pacientes que davam entrada no hospcio.

    Os doentes davam entrada com documento de atestado de demncia, emitido por

    ofcio de requisio do chefe de polcia ou delegado, e petio assinada por Juiz dos

    rfos, que houvesse julgado a demncia, ou facultativo clnico. Quando no possuam

    a declarao escrita, eram observados por quinze dias, por um clnico. Assinale-se, aqui,

    12Alienado: nomeao vinculada teoria do pensamento alienista francs sistematizado por Philippe Pinel, onde suasdiretrizes fundamentais baseavam-se no isolamento e no tratamento moral. Iniciou com o recolhimento dos doentess celas e enfermarias das Santas Casas de Misericrdia em todas as Provncias da Corte. A Sociedade de Medicina eCirurgia do Rio de Janeiro desencadeou um movimento identificado como "Razes da medicalizao", do qual surgiuo projeto de psiquiatrizao definindo a loucura como objeto da Medicina, o que proporciona o nascimento daMedicina Mental no Brasil. Ao tratamento dos loucos os hospcios.(Disponvel em: )13Os Estatutos do Hospcio de Pedro Segundo, mandados executar pelo Decreto n. 1.077 de 4 de dezembro de 1852,tratam da origem e fim da instituio. Contm VI Captulos, 36 Artigos e trs tabelas referentes alimentao. Neste

    trabalho, so utilizadas partes do texto relevantes para o entendimento do contexto da poca. Os mesmos pertencem Coleo das Decises do Imprio do Brasil, Tomo XV. 1852. Rio de Janeiro. Tipografia Nacional. Disponvel em:.

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    que qualquer pessoa poderia apontar os traos de alienao, com base em circunstncias

    sociais e convenincias, precisando somente convencer a autoridade local.

    As irms e enfermeiros deveriam regular a instruo, ocupao, trabalho manual

    nas oficinas e recreio dos alienados e aplicar meios repressivos e coercitivos, obrigando-

    os obedincia. Essas formas de represso consistiam em proibio de visitas,

    diminuio de alimentos, recluso na solitria, por dois dias, coletes de fora e banhos

    de emborcao.

    No momento da alta, ou sada, os alienados deveriam apresentar, por escrito, os

    preceitos e cautelas que seriam observados pela famlia para prevenir a recada,

    garantindo, assim, a continuidade da conduta esperada, o controle das relaes sociais e

    modos de agir. Com isto, o poder passava do controle pessoal ao controle moral e de

    conduta de toda uma sociedade.

    O ltimo item a ser destacado o registro de toda a conduo e procedimentos,

    durante o tratamento. Tambm neste estabelecimento, eram organizadas, anualmente, as

    estatsticas dos alienados que lhe tinham sido confiados, designando-os, nominalmente,

    assim como o relatrio dos mtodos teraputicos por eles empregados para a cura de

    cada um dos doentes. Este saber foi constituindo, na poca, a fora de grupos ligados rea da medicina e da psiquiatria.

    O hospcio, em 1890, desmembrado da Santa Casa de Misericrdia pelo

    Decreto n 141-A, assinado por Manoel Deodoro da Fonseca e Aristides da Silveira

    Lobo, completando seus servios com a adoo de uma atividade agrcola. Por questes

    financeiras de manuteno dos hospcios, os loucos deveriam trabalhar e produzir

    alimentos: a deciso de desenvolver uma ocupao no fazia parte do tratamento, mas

    era uma deciso de convenincia econmica da poca.

    Mendes (2002) ressalta o carter das instituies do sculo XIX:

    No final do sculo XIX houve declnio dos esforos educacionais e docuidado meramente custodial; a institucionalizao em asilos e manicmiospassou a ser a meta de tratamento dos alienados, sendo que instituiespassaram a ser uma espcie de priso para suposta proteo da sociedade(MENDES, 2002, p. 62).

    Tal declnio do carter educacional, na poca, est relacionado ao crescimento

    das instituies como poder de proteo social. Podemos, mesmo, salientar que os fatos

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    ocorreram quase de forma simultnea, em outros continentes e no Brasil, segundo Smith

    (2008):

    Em meados do sculo XIX, apareceram as escolas-residncias na Europa eGr-Bretanha. Em 1848, Samuel Gridley Howe, o primeiro diretor do

    Instituto Perkins para cegos em Boston, expandiu-o para incluir indivduoscom retardo mental. Mais tarde, este seguimento tornou-se uma instituioseparada, a Walter E. Fernald State School. Ironicamente, Howe viu de pertoos perigos das instituies residenciais: o isolamento da comunidade,geogrfica e socialmente, das pessoas com deficincia resultou em separao,medo desconfiana e abuso(SMITH, 2008, p. 176).

    Em 10 de setembro de 1854, temos o Decreto n 781, que cria, no Rio de

    Janeiro, o Instituto de Cegos e destina verbas para sua fundao.

    So seis anos de diferena entre a expanso, para atendimento de indivduos com

    retardo mental, no Instituto Perkins, em Boston, e a criao do Instituto de Cegos no

    Brasil.

    Nesta poca, acompanhando pensamentos da Europa, podemos salientar que, no

    Brasil, a psicopatologia expe, em documentos, observaes sobre a influncia de certos

    alimentos e bebidas na moral do homem e publica, em 1854, o livro Investigaes de

    Psicologia, apresentando a classificao das faculdades mentais em cinco grandes

    grupos: modificabilidade, motividade, faculdades intelectuais, instintos (fsicos,intelectuais, morais e sociais) e vontade ou atividade livre (JAIME, 2007).

    O controle evidente de vrias formas: pela comida, costumes, maneiras de agir,

    espao. de Carl Von Martius a frase:

    A nica doena mental de que ouvi falar deveria ser comparada com alicantropia, isto , com a alienao, na qual o indivduo, fora de si de raiva,corre ao ar livre imita a voz do co ou do lobo, transformando-se emlobisomem [...]. Os missionrios consideram sempre necessrio separar osdoentes da sociedade, para que o mal no se alastre mais (MARTIUS, 2004

    apud DALGALARRONDO; SONENREICH; ODA, 2004).

    Desse modo, conforme argumentam os autores, uma tentativa de controle de

    aes, espaos, desejos envolvidos por uma proteo social, cujo foco estava

    relacionado a questes morais e disputas de controle social envolvendo a poltica, igreja

    e medicina.

    No sculo XIX, por volta de 1816, surge o primeiro ensaio classificatrio

    alienista, feito pelo Dr. Domingos Jos Cunha, diretor da Santa Casa de Misericrdia,em So Joo Del Rei, Minas Gerais:

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    [...] alienao mental, muito pouco cizo, abuso de cachaa, bebedeira, doidofurioso, desordenado do juzo, vida debochada, melancolia histrica,melancolia hipocondraca, delirante, epilepsia conseqente a embriaguez,monomania, alienado por grande queda de cabea, idiotismo completo(JAIME, 2007).

    A loucura vista, ento, como objeto da medicina, sendo este o incio daMedicina Mental no Brasil. Muitas pessoas foram internadas em hospitais para

    alienados, em instituies religiosas ou prises.

    As questes ligadas doena mental e loucura esto no centro da luta entre o

    clero e hospitais da poca, no cuidado e comando da pessoa alienada. O diagnstico e

    relatrios de observao eram obrigaes do mdico, mas, dentro das instituies, a

    organizao e o trato dirio dos pacientes internados passam a ser executados por irms

    religiosas.

    Em 1866, a concepo do tratamento apresenta traos do trabalho de Pinel e

    Esquirol, e fica clara, em artigo publicado na Gazeta Mdica, na sesso da Higiene

    Pblica (RIOS, 2008): a loucura uma questo de desordem do comportamento e o

    seu tratamento implica na reformulao dos padres morais pervertidos, das paixes

    desvirtuadas. Assim, cada paixo ou distrbio moral comporta identidade prpria e

    tratamentos morais especficos, constituindo, atravs da organizao do espao e dasprescries de tratamento, a alienao, a insanidade tomada como uma questo mdica,

    uma doena:

    Para alguns, o movimento em prol dos asilos fazia parte da luta que setravava entre os mdicos e a administrao pblica, pela conquista de espaoe de poder no projeto de civilizao, reordenao do espao urbano e seussujeitos, estabelecendo de forma definitiva a relao entre o insano e sualoucura [...]. Essa luta no seria travada apenas entre mdicos e poderpblico, mas, numa escala muito maior, entre os mdicos e as Santas Casas,isto , entre mdicos e o poder secular da Igreja (RIOS, 2008).

    Em um discurso, o doutor Jos Ges Siqueira (15 de outubro de 1873), traduzia

    o pensamento de toda a classe mdica da Escola de Medicina do Rio de Janeiro, e de

    toda a corte, apresentando a fora do tratamento como domnio do pensamento, das

    aes e lugares para obter a melhora dos homens:

    [...] tornar a populao mais robusta, e vigorosa, exercer uma elevada esalutar influncia sobre sua moralidade: que a alma assim como abate-se, ehumilha-se, quando mergulhada no plago da desgraa, e da adversidade,fortifica-se [...] que desenvolver, e argumentar a aptido para o trabalho concorrer para desviar e aniquilar causas poderosas de molstia de misrias e

    vcios, e de embrutecimento (RIOS, 2008).

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    Assim, o louco fica confinado ao asilo, um ambiente controlado e propcio ao

    tratamento moral, sendo excludo da sociedade e da famlia. Controlar espaos e

    configurar a proteo social passa a ser uma forma de garantir o poder da medicina e do

    clero na organizao das cidades.

    Podemos ainda retomar as questo histricas, fazendo-se um paralelo entre os

    crimes sem causa aparente, estudados por Michel Foucault e apresentados no livro Os

    anormais, no Curso no Collge de France (1974-1975). Este texto trata dos poderes

    mdicos e jurdicos na codificao da loucura e do surgimento da psiquiatria como ramo

    especializado da higiene pblica como domnio particular da proteo social, das

    questes do poder mdico e do poder judicirio (FOUCAULT, 2001):

    De fato, foi preciso, por um lado, codificar a loucura como doena; foipreciso tornar patolgicos os distrbios, os erros, as iluses da loucura; foipreciso proceder anlise (sintomatologia, nosografia, prognsticos,observaes, fichas clnicas, etc.) que aproximam o mais possvel essahigiene pblica, ou essa precauo social que ela era encarregada de garantir,do saber mdico e que, por conseguinte, permitem fazer esse sistema deproteo funcionar em nome do saber mdico (FOUCAULT, 2001, p. 148).

    Nesse texto, tambm apontado que o fato de dominar um saber e demonstrar

    sua capacidade de detectar o anormal d psiquiatria poder para antecipar-se a

    possveis problemas sociais, diagnosticando o anormal por meio da observao de

    condutas.

    Tomar posse do louco credenciar poder de cura a uma determinada instituio

    e seus profissionais, estabelecer domnio sobre o outro fazendo uso de observaes e

    mtodos configurados em uma viso especfica, onde s apontado aquilo que faz

    sentido para a manuteno e perpetuao dos hospcios. Um controle e luta por manter

    espaos definidos. Podemos transpor estas concluses para a atualidade: criar ambiente

    com aprendizagens especficas, desenvolver critrios discriminantes em relao deficincia intelectual, elaborar relatrios e registrar processos de desenvolvimento e

    metodologia, conferir poder a um grupo, ou seja, aos profissionais da Educao

    Especial.

    Transpondo o primeiro item (referente ao espao dos alienados) aos espaos

    destinados aos alunos com deficincia intelectual, podemos dizer que faz parte do

    contexto educacional atual uma grande disputa entre escolas comuns e instituies

    especiais voltadas a pessoas com deficincia intelectual.

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    As novas concepes educacionais, relacionadas a espaos mais inclusivos,

    amadurecidas por legislaes e textos internacionais, entendem que o mesmo espao, o

    da classe comum destinado a todos e, portanto, onde os alunos com deficincia

    devem aprender, fazendo parte do mesmo grupo, como todos os outros. Como pano de

    fundo, tem a seu favor a busca de uma sociedade que possibilita a formao do cidado

    com direitos garantidos e que, para isso, v suas aes dependentes da reorganizao de

    servios e verbas, assim como de reais oportunidades para todos na escola.

    Desta forma, pois, os alunos com deficincia intelectual passam a fazer parte dos

    mesmos espaos educacionais destinados aos demais. Nesse panorama, a escola

    ferramenta e tambm contexto social, no qual possibilidades e mudanas devem ser

    negociadas, utilizando como ponto de referncia o grupo de alunos (com deficincia ouno), recaindo sobre cada um desses a responsabilidade pelo desenvolvimento de suas

    potencialidades.

    Gostaramos de chamar a ateno para as questes de direito, igualdade e

    liberdade propaladas nas legislaes, convenientes aos contextos econmicos:

    promoo de polticas de bem-estar social, com reduo de custos, seleo de

    indivduos, baseada em processos mais naturais, que trazem o discurso da aptido da

    inteligncia, impossibilitando a alguns as reais oportunidades como cidado produtivo

    em um mercado competitivo, principalmente se nesse contexto colocarmos a pessoa

    com deficincia.

    Podemos resgatar, a partir daqui, o segundo ponto e demarcar a identificao do

    aluno com deficincia intelectual construda a partir de contextos educacionais. A

    eleio de aspectos que podem servir como discriminantes, levando em conta um

    padro de aprendizagem esperado, pode favorecer a seleo de muitos, como sendoalunos com deficincia. O que induz a um erro, pois nem todos os que fogem ao padro

    so deficientes intelectuais. A elaborao de um parmetro discriminante revela a

    concepes de normalidade, pode rotular indevidamente alguns indivduos, pois, neste

    caso, todos os alunos que saem do padro esperado para o grupo podem ser rotulados

    como deficientes intelectuais.

    O controle da aprendizagem no grupo e a relao estabelecida com os aspectos

    discriminantes para a caracterizao da deficincia so usados para identificar aquele

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    que est fora da norma e servem a um jogo de poder que visa potencializar aes de

    melhora no grupo para a manuteno de resultados positivos, com consequente

    isolamento de indivduos, que passam a ser vistos como, pertencentes a outro grupo, o

    de deficientes intelectuais. Estes, devido poltica educacional de atendimento a todos

    os alunos, devem continuar a conviver com seus pares de idade, mas exigem formao

    e apoios, ali mesmo, onde esto inseridos.

    O terceiro item est relacionado ao poder que um grupo de pessoas recebe ao

    oferecer um discriminante mais seguro para indicar quem deficiente intelectual. So

    observadas divergncias na forma como observar, descrever e registrar as caractersticas

    dos alunos com deficincia intelectual.

    A rea mdica com procedimentos clnicos que quantificam a deficincia, a

    partir de exames e testes, aponta a doena e diz pouco sobre as possibilidades

    diversas, presentes em cada pessoa.

    As instituies especiais (escolas especiais) preocupadas com habilidades

    bsicas relacionadas a ambientes e situaes fechadas, tm mais duas preocupaes: a

    manuteno de seus servios atravs do repasse de verbas e a atualizao de seus

    profissionais.

    Na escola comum, o professor de classe comum recebe uma formao

    universitria para desenvolver um trabalho pedaggico que contemple todos os alunos,

    mas os parmetros que definem este todos foram construdos com base em um padro

    de normalidade, ou seja, dentro de uma viso generalista que carece de um olhar

    especfico. Desse modo, em relao aprendizagem, ele olha o deficiente intelectual a

    partir do aluno comum, e busca formas para normaliz-lo e lev-lo a responder ao

    padro esperado. Ao fazer isso, parte de uma igualdade, de uma norma, amenizando a

    diferena. O discriminante passa, assim, pela questo do ensinar a todos, recaindo

    sobre o aluno com deficincia o peso do todos, que o leva a encontrar formas de se

    desenvolver, partindo de suas especificidades ou caminhar em direo a normalizao,

    buscando amenizar suas deficincias.

    Dentro da escola, foram construdos espaos para atendimento educacional

    especializado, com profissionais formados em reas especficas para cada deficincia.So estes que utilizam o fator discriminante na seleo de quem ou no deficiente

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    intelectual, observando, nos alunos selecionados pelo professor de classe comum,

    defasagens significativas em duas ou mais reas do conhecimento. A partir de seu

    diagnstico, os relatrios individuais so assinados para que o aluno com deficincia

    intelectual, aps o trabalho em classe comum e em perodo complementar, possa

    receber atendimento com professor especializado. Suas observaes a respeito do aluno

    com deficincia intelectual fazem parte de uma legislao que organiza o atendimento

    especializado: delimitando o espao, horrio, profissional, e tipo de relatrio a ser

    registrado para o ingresso, assim como os registros de metodologias, e atividades

    realizadas, e o desenvolvimento do aluno durante os anos em que estiver na escola.

    O professor de classe comum, aquele que trabalha diariamente com o aluno

    dentro do grupo classe, junto aos outros, recebe desse professor com especializaoapoio durante as reunies de trabalho na escola; porm, a autorizao para o

    atendimento especializado, os procedimentos voltados de forma especfica deficincia

    intelectual, assim como relatrios de registros precisam da assinatura de profissionais da

    Educao Especial. dessa forma que um novo grupo de profissionais vem crescendo e

    construindo saberes dentro da educao.

    Um paralelo aqui se faz necessrio entre o passado da alienao, descrito, e a

    educao atual, no em relao ao termo alienao, mas sim a hierarquias que existiam

    e existem tambm hoje, para identificar alunos com deficincia intelectual: os relatrios

    desenvolvidos pela escola devem seguir um padro construdo pelo Servio de

    Educao Especial, apontado na Resoluo SE N 11/200814, e ser validado pelos

    professores especializados de sala de recursos ou pelo Professor Coordenador de

    Educao Especial da Diretoria de Ensino. Note-se que outros profissionais so

    indicados para tecer observaes avaliativas discriminantes em relao ao aluno com

    deficincia intelectual, em detrimento do professor de classe comum, embora seja este

    que elabore o registro pedaggico e que, no dia a dia, receba o aluno matriculado, sendo

    ainda o responsvel por ele, nas escolas onde o servio de Educao Especial no

    desenvolvido.

    14 Legislao Estadual. Resoluo SE N 11/2008 dispe sobre a educao escolar de alunos com necessidades

    educacionais especiais nas escolas da rede estadual de ensino e d providncias correlatas.

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    A partir deste ponto, podemos levantar o ltimo item que envolve as formas de

    conduo de todo o processo de desenvolvimento do aluno com deficincia intelectual,

    ao longo da vida escolar. Pode-se verificar que os procedimentos dirios, em classe

    comum, alm das decises tomadas sobre o encaminhamento desse aprendiz, esto

    ainda centrados na escola. Por outro lado, muitas vezes faltam, a esse fazer pedaggico,

    a clareza e o envolvimento familiar: nem sempre procedimentos so discutidos e

    construdos a partir de uma troca de informaes, relatrios e orientaes so

    transmitidos, na maioria das vezes, num caminho de mo nica, de julgamento de aes

    feito pela escola sobre a famlia.

    Reconhecer o papel da famlia e, mais que isso, reconhecer que o indivduo

    uma pessoa, uma clula social, que possui caractersticas complexas, ligadas suahistria familiar, escola e sociedade, mostra a dificuldade desta discusso, mas tambm

    marca o carter mais sociolgico da questo, permeando vrios universos.

    este o ponto de partida da anlise da deficincia intelectual: a tomada do

    indivduo como pessoa, como ser social e parte da humanidade diversa. O objetivo,

    aqui, apontar o fato de que o recorte e a definio de um espao servem a foras de

    conteno dentro das escolas, e padronizao, favorecendo a tipificao de problemas.

    De forma contrria, espaos e servios abertos servem a todos, podendo aprofundar

    diferentes respostas e percursos, humanizar e apontar estratgias e trabalhos em

    ambientes escolares.

    Segundo aAmerican AssociationonIntellectualandDevelopmentalDisabilities, em traduo

    livre para o portugus, Associao Americana de Deficincias Intelectual e de

    Desenvolvimento:

    [...] pode-se definir deficincia mental como o estado de reduo notvel dofuncionamento intelectual inferior mdia, associado a limitaes em pelomenos dois aspectos do funcionamento adaptativo: comunicao, cuidadospessoais, competncia domstica, habilidades sociais, utilizao de recursoscomunitrios, autonomia, sade e segurana, aptides escolares, lazer etrabalho. Segundo critrios das classificaes internacionais, o incio daDeficincia Mental deve ocorrer antes dos 18 anos, caracterizando assim umtranstorno do desenvolvimento (AAIDD/MR, 2010)15.

    15H diferentes maneiras de ordenar deficincia intelectual: definio, classificao e sistemas de suporte. A AAIDDapresenta sua primeira definio oficial do termo deficincia intelectual (retardo mental, anteriormente) na 11edio (2010) do seu Manual, escrito por um comit de 18 especialistas internacionais em deficincia.

  • 7/25/2019 Mariangela Carvalho Dezotti

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    Apesar dos grandes progressos, nos conhecimentos terico e prtico, a definio

    de deficincia intelectual permanece controversa. Na base das dificuldades est a

    impossibilidade de incluir, em definies unitrias, a heterogeneidade dessa populao,

    quer em termos etiolgicos, quer ao nvel comportamental e das necessidades

    educativas. Em outras palavras, deve-se considerar o fato de se tratar de um problema

    complexo, multideterminado e multidimensional que no se reduz a uma definio

    nica (RAPOSO; MACIEL, 2006).

    Os registros apresentados anteriormente colocam a sociedade em busca de

    respostas de qualidade de vida, a toda e qualquer pessoa, assim como respostas mais

    diversas dentro dos espaos e aes da escola.

    Werneck (2006) destaca que a questo saber se uma pessoa tem o mesmo valor

    humano quando notamos nela uma parte do corpo diferenciada e buscamos ressignific-

    la. Nesse processo, diante do outro, a tentativa a de encobrir uma educao na qual

    fomos criados e que nos fez acreditar que existe uma hierarquia entre condies

    humanas:

    Refiro-me a formas sutis de discriminao que, mesmo com o propsito devalorizar pessoas com deficincia, acabem segregando-as cada vez mais. Osimples fato de consider-las especiais j as distancia do gozo incondicionaldos Direitos Humanos, gozo que antecede qualquer norma nacional ouinternacional (WERNECK, 2006, p. 325).

    Toda esta mentalidade sobre a imagem da pessoa com deficincia intelectual

    fruto de uma construo herdada em nossa formao, atravs dos tempos.

    fundamental analisar os elementos aqui abordados, para focar, na atualidade, o

    indivduo com sndrome de Down, a forma como a lei concebe este indivduo, seus

    espaos, relaes e fatos, reforando que ele marcado por estes, mas tambm ator,

    neste ambientes.

    Assinalamos, um pouco antes, os traos histricos na formao do saber social,

    nas ideologias que envolvem o indivduo com sndrome de Down e suas relaes com a

    escola, atravs de um paralelo com Os Anormais de Foucault, apontando um saber

    demarcado, na poca, para