paulo ghiraldelli jÚnior · 2021. 7. 9. · paulo ghiraldelli jÚnior mariangela cabelo...
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PAULO GHIRALDELLI JÚNIOR
MARIANGELA CABELO
Organizadores
PANDEMIA E PANDEMÔNIO
Ensaios sobre biopolítica no Brasil
CEFA EDITORIAL São Paulo - 2020
Edição Hugo Lopes de Oliveira e Leandro Sousa Costa
Preparação Marlin Rose Jones e Mariangela Cabelo Revisão de texto Eliane Otani – da Bridge3
Capa Mariangela Cabelo
Diagramação Hugo Lopes de Oliveira e Leandro Sousa Costa
CONSELHO EDITORIAL CEFA Paulo Ghiraldelli – USP e CEFA
Ladislau Dowbor – PUC-SP
Marisa Souza Neres – UFT
Luma Miranda da Silva – Universid ade Eötvös Loránd
Leandro Sousa Costa UNESPAR e UNIUV
José Ildon Gonçalves da Cruz – CEFA
Mariangela Cabelo – UFMS e CEFA
Hugo Lopes de Oliveira UFRuralRJ e CEFA
Olgária Matos – USP
Rubens Russomano Ricciardi – USP
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Cabelo, Mariangela; Ghiraldelli Jr., Paulo. (Org.)
Pandemia e Pandemônio: Ensaios sobre biopolítica no Brasil/Cabelo,
Mariangela; Ghiraldelli Jr., Paulo. (Organizadores) – São Paulo: CEFA
Editorial, 2020.
ISBN 978-65-990994-2-7
1. Pandemia 2. Pandemônio 3. I Título
CDD - 100
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia e disciplinas relacionadas 100
É vedada a reprodução de qualquer parte deste livro sem a
expressa autorização da editora – [email protected]
Todos direitos reservados à
São Paulo – SP
Pandemia e Pandemônio: Ensaios sobre
biopolítica no Brasil
Paulo GHIRALDELLI
Natália PASTERNAK
Maria Lúcia FATTORELLI
Carlos ORSI
Mariangela CABELO
Leonardo CAMARGO
Estevão CRUZ
Thiago STADLER
Luma MIRANDA
Hugo OLIVEIRA
Thiago MATTOS
SUMÁRIO
Prefácio........................................................................................................................... 8
Pandemia e Pandemônio: O Bolsovírus................................................................ 9 Paulo Ghiraldelli Júnior
A saúde na era Bolsonaro ....................................................................................... 16 Mariangela Cabelo
Uma aula de como não testar um medicamento .............................................. 27 Natalia Pasternak e Carlos Orsi
O desvaneio de Bolsonaro em tempos de pandemia ...................................... 39 Hugo Lopes de Oliveira
O novo coronavírus no Brasil e sua repercussão na mídia estrangeira . 43 Luma da Silva Miranda
O grande mal e os trabalhos................................................................................... 50 Thiago Ricardo de Mattos
Pandemia e o negacionismo nosso de cada dia .............................................. 54 Estevão Cruz
O papel da responsabilidade na crise sanitária contemporânea ................. 64 Leonardo Camargo
Entre esgotamento e estupidez, um vírus........................................................... 77
Thiago David Stadler
Devemos despolitizar o vírus?............................................................................ 110
Mariangela Cabelo
Oportunismo Trilionário dos Bancos em plena Pandemia...........................123
Maria Lucia Fattorelli Carneiro
Prefácio
Pandemia e Pandemônio: Ensaios sobre biopolítica no Brasil é uma
organização de textos sobre a Covid-19 no contexto brasileiro sem desconsiderar o
panorama global dessa situação. Os textos presentes nesta publicação são de estilos
diversos e foram escritos ao longo das primeiras semanas do despontar da doença no
Brasil, em 2020. São contribuições de pesquisadores e pesquisadoras de várias áreas e
que estão na realidade brasileira: filosofia, história, medicina, biologia, psicologia,
sistemas de informação, jornalismo, economia e letras. Os textos colocam em evidência
os problemas derivados da crise sanitária que surgiram numa situação em que a
realidade brasileira enfrentava uma complexa crise política e econômica. As
perspectivas trabalhadas pelos autores e autoras nesta obra, suscitam uma série de
elementos que nos permitem traçar os cenários da disseminação do novo Corona Vírus
na realidade brasileira e suas nuances.
Essa compilação, iniciativa do CEFA Editorial, pretende ser um escape seguro
diante do bombardeio cotidiano de informações, da paranóia instituída e das políticas de
isolamento impostas pelo estado como medida de resguardo diante do inimigo invisível.
Boa leitura!
Prof. Esp. Hugo Lopes de Oliveira
Diretor Geral
do CAIC Paulo Dacorso Filho UFRRJ – Prefeitura Municipal de
Seropédica
Prof. Dr. Leandro Sousa Costa
Professor do Curso de Filosofia da
Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) – Campus União da Vitória
São Paulo, 08 de julho de 2020.
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PANDEMIA E PANDEMÔNIO: O BOLSOVÍRUS
Paulo Ghiraldelli1
O mundo do Capitão Corona
Você já esteve na feira de Wuhan? Não? Nem eu! Mas, nesses tempos, já li muita
coisa sobre o local. Não à toa! Foi de lá que escutamos os primeiros gritos a respeito do
novo coronavírus. Nessa feira, na cidade de Wuhan, na China, os cuidados higiênicos
são os piores possíveis. O que hoje conhecemos como a pandemia da Covid-19, segundo
uma boa parte dos pesquisadores, teve sua origem lá naquele lugar. Foi de lá que a
Covid-19 decidiu infestar todo e qualquer país. A história da trajetória dessa doença,
que, enquanto escrevo, vem matando muita gente no mundo todo, poderia ser contada
de acordo com a perspicácia de diversos intelectuais. Entretanto, o único que parece
acertar, de fato, a mão, é Stan Lee, o grande produtor da Marvel.
Na ficção da ficção de Stan Lee contando essa história, tudo pode ser entendido
conforme o desdobrar de forças cósmicas. Sabe-se lá por qual razão, irradiações de uma
estrela distante atingiram a China, fazendo nascer em Wuhan um elemento
completamente malévolo: a insaciável Covid-19. Ela não pode ser considerada nem
mesmo um ser vivo, já que é incapaz de apresentar DNA. Mostra-se apenas como um
fio de RNA e, talvez, por isso mesmo, é portadora de um atroz e gigantesco
ressentimento. Por que os homens não lhe deram o status de ser vivo? Dominada por
essa mágoa da subalternização, a Covid-19 saiu devorando o mundo. Então, encontrou
um estranho lugar chamado Brasil. Nesse país, o governante máximo tinha exatamente
a mesma falha em sua estrutura psicofísica, quase como um vírus. E a fusão dos dois foi
imediata. Uma “quase pessoa” uniu-se a um “quase ser vivo”!
1Doutor e mestre em Filosofia pela USP. Doutor e mestre em Filosofia da Educação pela PUC- SP.
Bacharel em Filosofia pelo Mackenzie e Licenciado em Ed. Física pela UFSCar. Pós -doutor em Medicina
Social na UERJ. Titular pela Unesp. Autor de mais de 40 livros e referência nacional e internacional em
sua área, com colaboração na Folha de S. Paulo e Estadão. Foi professor em várias universidades no
Brasil e pesquisador no exterior. Aposentado pela UFRRJ.
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O presidente Bolsonaro contraiu o novo coronavírus e, aparentemente, não
apresentou sintomas. Por isso, passou a acreditar que o correto seria que todos viessem
a ser contaminados para que, então, fossem imunizados. Isso deveria ocorrer a partir do
momento que 50% da população tivesse contraído o vírus. Essa seria a “imunização de
rebanho”, embora alguns especialistas afirmem que isso não é viável, pois o novo
coronavírus não gera uma imunização fácil.
De qualquer maneira, verdadeira ou falsa, a teoria de Bolsonaro implicava a morte
de muitos. Para o presidente, o importante era que os negócios não parassem. E, se os
mais velhos e os mais pobres viessem a morrer, não fariam falta. A lógica neonazista aí
embutida é a de que os fortes sobrevivem e, sem os fracos, o resultado é a depuração da
raça.
A fusão entre o presidente e a Covid-19 assim se fez, e tudo isso se tornou claro
de maneira bem rápida. Logo, o presidente começou a apresentar sintomas não
corriqueiros da doença. Em vez de febre, tosse e falta de ar, ele passou a pensar como o
vírus pensa. Por sua vez, o próprio vírus sentiu que seu hospedeiro queria exatamente o
que ele mesmo queria. Nunca o conceito de biopoder havia encontrado lugar e hora para
se efetivar de maneira tão promissora. O corpo do presidente passou a funcionar sob
ordem do vírus, procurando contaminar outros e criar um combate à política de
isolamento que, enfim, era o único modo de conter a expansão da doença. O presidente
foi apelidado de Capitão Corona.
A população percebeu sua forte conexão com a intenção virótica. De fato, o
projeto de Bolsonaro era (e, no momento que escrevo este texto, ainda é) a criação de
uma sociedade realizada como um pastiche do já pastiche anarcocapitalismo. Para tal,
nada melhor que um caos instaurado em doses homeopáticas. Ora, o vírus comportou-se
como capaz de promover tal caos. O presidente e o vírus vieram a se entender, e o poder
se fez presente no corpo do presidente, que passou a exercer esse poder diretamente
sobre os corpos dos seus cidadãos. A política de saúde, praticamente solapada pelo
Capitão
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Corona, tornou-se a política par excellence. Nada mais foi pensado – como não é, nesse
momento que escrevo – de forma desvinculada do corpo. Foi tomado coletivamente
como “biopolítica da população” e individualmente como “anátomo-política do corpo”,
para bem lembrar dois conceitos de Michel Foucault.
O nosso cotidiano em fins de maio e as antropotécnica
Até aqui, isso é o que pudemos notar da pandemia. A partir de agora, neste texto,
relato o que vivemos cotidianamente, estando em meio à pandemia.
Na perspectiva da biopolítica da população, todas as manhãs, passamos a
contabilizar quantos foram infectados e quantos morreram, e se morreram em casa ou
hospitais. Tentamos calcular o número de leitos e covas necessários e de apetrechos
hospitalares disponíveis. Na perspectiva da anátomo-política do corpo, procuramos
manter a quarentena e nos desdobramos para ficarmos saudáveis. Mas é difícil. A
potencialização do corpo, sua transformação, ganhou novo ritmo. Todos sentem que a
vida se tornou, de fato, naquilo que foi teorizado pelo filósofo italiano Giorgio
Agamben, a vida nua, isto é, a vida puramente biológica. Ou seja, importa mais antes
sobreviver do que viver, ainda que, na classe média, o entendimento se manteve aquele
de que a sobrevivência ainda não é a prioridade – para ela própria, classe média, é
claro. A mera sobrevivência é o que se pode dar aos outros, mas não em épocas de
crise!
Ao mesmo tempo, os corpos começam a se transmutar e a aceitar um novo
conceito de silhueta. A máscara é algo necessário. Já se mostra, até mesmo, como uma
peça de adorno, à semelhança do ocorrido, no passado, com os óculos. Os ocidentais
experimentam o erotismo dado pelos olhos, que só os orientais conheciam. Isso para os
que ainda podem pensar em erotismo em uma sociedade cuja distância social
reordenada vê ocorrer um novo boom de virtualização. Uma juventude de classe
média, talvez até mais sexualizada
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em alguns casos, mas, em geral, menos erotizada, inicia a adoção de uma vida
remodelada. Nessa vida, se ainda alguma tara sexual viesse a ser lembrada, ela arrastaria
junto uma frase de Millôr Fernandes de 1971: “de todas as taras sexuais, não existe
nenhuma mais estranha do que a abstinência”.
Essas mutações corporais podem ser colocadas em uma caixa sob a rubrica de
“antropotécnicas” – técnicas de produção do homem pelo homem. Peter Sloterdijk, que
criou esse conceito, o toma como uma maneira de escaparmos da divisão pouco
produtiva entre cultura e natureza. Na verdade, o homem se faz homem por técnicas que
ele cria, as antropotécnicas. Toda essa reordenação da anátomo-política do corpo nada
mais é do que a criação de antropotécnicas. A máscara é uma antropotécnica, e a
distância social deve ser outra. O zelo com o álcool gel também se insere nessa “caixa”.
Uma vez que o Capitão Corona comandou uma ação contra tudo isso, ele se
mostrou como uma força contrária às antropotécnicas e, portanto, como um
reacionarismo diante do homem, da própria noção de civilização. O biopoder é exercido
sobre o corpo. Gera nova política. Naquilo que tem de reacionário, se faz contra as
antropotécnicas geradas no afã de ludibriar o vírus. A missão do Capitão foi a de não
viabilizar isso. Ele continua no mesmo afã e ritmo.
Se assim olhamos tudo, somos obrigados a admitir que a política chegou ao fim, e
tudo o que temos é a biopolítica, o exercício do biopoder. Lutar pelo impeachment do
presidente deve ser entendido, desse modo, ao menos no momento que escrevo, não
como imperativo político, uma vez que este não mais existe. O que temos é um
imperativo no âmbito da biopolítica. Todavia, é um imperativo da política crivada,
agora, por uma nova conceituação. Nesse caso, tirar Bolsonaro do poder põe-se na
conjuntura de tornar o Brasil livre do vírus e, concomitantemente, da perigosa anomia
social que nos ronda.
Os políticos, ao menos até o momento em que produzo este texto, não entendem
muito bem isso. Atuam como se, de um lado, houvesse a Covid-19 e, de outro, o
presidente. De um lado, a morte pela infecção e, de outro, a morte pelo descaso e
pelo desgoverno. Mas não é isso que ocorre; o descaso é o gerenciador da morte. O
vírus promove o caos pedido por Bolsonaro e este
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abre passagem para o vírus continuar ceifando vidas e executando sua vingança.
Ademais, se computarmos que Bolsonaro também sempre foi um medíocre, deveremos
perceber que ele está se vingando. Ele vinga-se das esquerdas e de todas as forças
iluministas. Vinga-se da sociedade que, enfim, o viu como quem foi expulso do
Exército. O vírus vinga-se da humanidade que
o viu como alguém capaz de ganhar cidadania sem ganhar o qualificativo de ser vivo.
O conceito de imunização
Roberto Espósito desenvolveu o conceito de imunização, que também é utilizado
por Sloterdijk, mesmo que seja de maneira ligeiramente distinta. Posso me aproveitar
desses conceitos como insights para operar com a atual situação brasileira em que o
império do biopoder está sob o descomando do Capitão Corona.
O conceito de imunização remete ao fato de que precisamos de algo que nos ataca
para que, com ele, possamos gerar uma vacina. Ora, a vacina para o novo coronavírus,
no Brasil, dependerá menos de laboratórios do que da compreensão de que todo tipo de
mal já foi causado pelo Capitão Corona. Estamos prontos para a produção de
anticorpos. A imunização diante do biopoder é sempre uma imunização biopolítica.
No momento em que escrevo, há mais de 20 mil mortos no Brasil. Todos são de
responsabilidade do Capitão Corona – o “Bolsovírus”. A imunização pedida por ele é
aquela que, em nome da vida, gera a morte. Segundo Espósito, o conceito de
imunização pode mostrar exatamente isso: o deslize do positivo no negativo. Ele
menciona uma transfiguração da intenção do compromisso de Hipócrates, que fora
levada a cabo pelos médicos que aderiram ao nazismo – e não foram poucos! Ao se
pedir a raça pura por imunização de rebanho, os médicos com tendências nazistas
podem acreditar que a vida da nação e, portanto, do povo que irá ultrapassar o vírus,
é o que
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importa. Quem adota isso talvez acredite que está com Hipócrates. A ideologia é que
permite essa subversão, mas o que se gera é a mortandade.
Essa inversão do compromisso com Hipócrates, que, de fato, ocorreu na
Alemanha entre os médicos nazistas, deveria ser observada pelo nosso ensino de
medicina e precisaria ser estudada pelo nosso ensino de direito. É uma visão em que
a vida é entendida segundo uma conceituação que elimina o rosto da vida individual.
Trata-se de perceber que vivemos na época da biopolítica. Que o poder é exercido pelo
seu entrosamento com os corpos. Mas que o corpo parece estar sob o invólucro de um
imperativo que pode ser explicitado mais ou menos assim: “só vale a pena a vida ser
vivida se ela é a vida mais imune à morte”. Nesse caso, a ideia de vida e de corpo
desloca-se para o plano de um tipo de seleção forjada pela natureza, ao menos em
princípio, mas que, na verdade, é executada pelo Estado, pelos agentes públicos e
privados de uma política de higienização pervertida. Escolhe-se quem deve morrer:
velhos, desnutridos, pobres, populações vulneráveis e assim por diante. Isso é
genocídio, não Hipócrates. No Brasil, o Estado faz isso por desaparelhamento, portanto,
em um sentido diferente do estado hitleriano. Somos o pastiche do neoliberalismo e do
anarcocapitalismo! Não vivemos sob a ditadura nazifascista.
O ideal seria tentar uma imunização que não deslizasse para a morte. Para isso,
seria necessário adquirir anticorpos sociais contra o próprio chefe da tropa virótica, o
Capitão Corona. Teríamos de absorvê-lo em nossas entranhas, a fim de o domesticar. A
nossa chance pode ser o processo de impeachment, durante o qual todos os seus crimes
poderão vir à tona. À medida que a sociedade entender que são crimes mesmo, talvez
surja a oportunidade de anular o vetor que os leva a serem cometidos. Ao fim e ao cabo,
o bolsonarismo não será ejetado do corpo de cada um de nós e da sociedade em geral,
mas, diante de sua permanência, saberemos controlá-lo. É semelhante a controlar o
fascismo que pode haver em cada um de nós e na sociedade.
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Para finalizar, se não decidirmos parar Bolsonaro, não conseguiremos impor a
“nossa” imunização, e ocorrerá a dele. Teremos perdido o próprio Brasil.
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A SAÚDE NA ERA BOLSONARO
Mariangela Cabelo2
No dia 23 de abril de 2020, o inimaginável aconteceu. Em verdade, inimaginável
em outras épocas, mas não na era Bolsonaro. Naquela tarde quente de Campo Grande
(MS), Paulo Ghiraldelli chamou-me para ler a notícia sobre a divulgação do parecer (nº
04/2020) do Conselho Federal de Medicina (CFM), em que este autorizava o uso de
hidroxicloroquina (HDX) para o tratamento da Covid-19, mesmo sem evidências
sólidas que embasassem tal decisão. A própria autarquia e o presidente do CFM
lembraram da falta de comprovação científica. Aliás, um estudo sobre o assunto3, na
época, foi interrompido, pois o grupo de pacientes que tomou HDX apresentou maior
mortalidade. Resta-nos perguntar: qual é o sentido disso? O que fez a entidade médica
mais importante do país autorizar o uso dessa droga para tratar a Covid-19?
O sentido foi o de abaixar a cabeça para a ideologia do presidente Jair Messias
Bolsonaro. Na manhã do mesmo dia, houve uma reunião entre o chefe do Executivo, o
ministro da Saúde e o presidente do CFM; e, então, o que era consenso no mundo todo
foi abandonado pelo CFM. A boa prática médica foi desconsiderada. As diretrizes da
Food and Drug Administration (FDA) e as recomendações da Organização Mundial da
Saúde (OMS) deixaram de valer. O CFM passou a obedecer ao comando do segundo
maior “tosco” da República (Bolsonaro disse que era Mourão o mais tosco!). O
presidente vinha defendendo que o isolamento social, pedido por especialistas de todo o
mundo, era uma medida “histérica” que atrapalhava a economia do país. Assim, havendo
um remédio mágico para a doença, o trabalhador poderia voltar às ruas e o Estado não
precisaria ajudá-lo. A benção do CFM foi-lhe de extrema valia.
2 Graduanda em Medicina pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e criadora do canal Todos
pela Saúde. 3 O estudo que posteriormente era atacado pelo Planalto disponível em:
https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.04.07.20056424v2. Acesso em: 08 de junho de 2020.
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Houve reação dos médicos quando o conselho de maior importância para a
profissão foi maculado por uma ideologia genocida?
Parece que a covardia se apoderou da classe médica. Notei isso quando
permitiram que Drauzio Varella fosse atacado em cadeia nacional e não vieram em
defesa do colega; quando permitiram que o Bolsonaro fritasse o então ministro da Saúde
Henrique Mandetta; quando o “gabinete do ódio” começou a atacar os colegas da
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); quando não reagiram ao desmanche do ministério
da Saúde (MS). Se eu disser que houve um silêncio generalizado, estaria mentindo,
mas a resposta foi fraca e sem união, e, diga-se de passagem, com aquela típica isenção
política por parte de quem não entende o conceito de biopolítica e biopoder4 inerentes a
uma pandemia. Alguns pediram em suas redes sociais que as pessoas ficassem em casa,
outros elogiaram o Mandetta, mas nada falaram do cerne do problema, nada disseram a
respeito de políticas públicas, e poucos5 lembraram que o maior inimigo dos médicos e
dos brasileiros era o próprio presidente, que iniciou sua marcha em favor do novo
coronavírus no dia 24 de março de 2020.
Será que as confrarias existentes há séculos, pelas quais a prática médica surgiu e
se institucionalizou, não significaram nada? Será que os médicos não perceberam que
eles tinham grande força em um momento de pandemia? Talvez a história da ciência
brasileira não esqueça esse silêncio. Alguns órgãos, a exemplo do Instituto Questão de
Ciência, chegaram a enviar cartas à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa),
à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e ao Ministério da Saúde (MS)
alertando sobre as crescentes evidências de que a droga não tinha eficácia. Aliás,
avisaram, ainda, que a droga colocava em risco a vida dos pacientes com Covid-196.
Será que apoiamos como deveríamos os gladiadores da ciência no país, que, apesar das
constantes agressões, continuaram a lutar? O
4 Vide o primeiro capítulo desta obra.
5 O neurologista Miguel Nicolelis referiu-se ao presidente Bolsonaro como um pandemônio que só
piorava a pandemia. 6 PASTERNAK, Natalia; ORSI, Carlos. CFM abandona médicos que seguem a ciência à própria sorte.23
de abril de 2020. Revista Questão de Ciência. Disponível em:
https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/index.php/artigo/2020/04/23/cfm-abandona- medicos-que-
seguem-ciencia-propria-sorte. Acesso em: 13 de junho de 2020.
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silêncio desse momento era o grito mais alto que um profissional, com
responsabilidade ao diploma, poderia dar!
De certo, a opinião médica durante essa pandemia tinha “algum” valor, ou seja,
nós, da área da saúde, tínhamos tudo para ter lutado e defendido nossas instituições,
nosso ministério e nossos médicos contemplando a postura e a ética médicas. Digo isso
pois algumas atitudes do ex-ministro Henrique Mandetta foram, por certo, as que um
médico, à frente do respectivo ministério, tomaria. Outras eram execráveis, oriundas do
mais podre jogo político, como a de permanecer no cargo, mesmo às custas da ruína do
MS. Fato esse que ficou evidente no episódio do dia 25 de março de 2020, em
pronunciamento coletivo para a imprensa. Henrique Mandetta tentou, ao máximo,
racionalizar o discurso do presidente, falando de isolamento vertical (depois, mudou de
opinião), elogiando Bolsonaro em sua fala da noite anterior, ato que nenhuma
associação médica conseguiu fazer. Inclusive, a Sociedade Brasileira de Infectologia foi
a primeira a vir a público (em 25/03/2020) apresentando uma nota que, veementemente,
discordava do discurso e da postura presidencial; atitude oposta à tomada pelo então
ministro.
Para esclarecer o início do fim de Mandetta no ministério da Saúde, temos de
voltar à noite do dia 24 de março de 2020.
Nessa noite, ocorreu o pronunciamento do presidente da República em rede
nacional. Jair Messias Bolsonaro fez um ataque frontal ao MS e a suas decisões
técnicas, que, na época, recebia atenção e elogios do mundo todo. Ao afrontar esse
ministério, ele também atacou a OMS e a boa prática científica, uma vez que o Brasil
vinha se guiando por ela. É que, para Bolsonaro, uma pandemia, capaz de mudar os
paradigmas da história, deixando um rastro de mortes, não poderia ter mais atenção que
o próprio presidente, ou seja, não poderia roubar seus holofotes.
De fato, o nosso país estava atento às orientações do ministério da Saúde.
Começamos bem o isolamento social em março e, a cada dia, estávamos com maior
adesão, até a data cabalística que coincide com o discurso do excelentíssimo.
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Você pode estar se perguntando: por que, em meio ao caos do governo Bolsonaro
e ao caos que se instalou em outros ministérios, o problema da Covid-19 no Brasil
conseguiu ser bem encaminhado na pasta da Saúde? A resposta é que tínhamos
competentes médicos e profissionais da área em cargos importantes no ministério da
Saúde, atentos desde 31 de dezembro de 2019, quando foi notificado o primeiro caso à
OMS de uma pneumonia atípica na China. Foi no dia 23 de janeiro de 2020 a primeira
vez que o ministério se pronunciou acerca do novo coronavírus e nos esclareceram
tudo que sabiam da doença até o momento. Isso ocorreu na voz do dr. Julio Croda, o
então diretor do Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis da Secretaria
de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (DEVIT/SVS/MS). Foi uma verdadeira
aula aos jornalistas. Croda é infectologista, foi meu professor na faculdade de medicina
da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Ele e sua equipe foram os primeiros
responsáveis a enfrentar o problema, elaboraram os protocolos iniciais e ensinaram os
passos que deveriam ser tomados dali em diante.
No fim de janeiro de 2020, havia muito desespero; alguns jornalistas confundiram
casos suspeitos com confirmados e alarmaram a população. Havia medo e
desconhecimento por parte das pessoas e dos próprios profissionais de saúde.
Entretanto, o MS iniciou um ótimo trabalho de educação em saúde, com
pronunciamentos transmitidos ao vivo em redes sociais cotidianamente e notícias
atualizadas em seu site. Estávamos adiantados em relação ao vírus, e uma prova disso
foi a ativação no Centro de Operações de Emergência nível 1 (COE) no mês de
janeiro. A título de esclarecimento, o COE é ativado quando uma secretaria convoca
outras da mesma pasta, secretarias de saúde estaduais e órgãos como a Anvisa para um
trabalho em conjunto. Inicialmente, poderia ser um problema do DEVIT, mas, a partir
daquele momento, passou a ser um problema de todos.
Não era histeria, era o trabalho profissional de preparação para a chegada
iminente do vírus que, enfim, chegou. No dia 26 de fevereiro de 2020, o MS confirmou
o primeiro caso brasileiro. Continuou analisando todas as notificações e trabalhando
junto às secretarias estaduais e municipais em uma
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força-tarefa para conter a doença, até sugerir o isolamento social, que se deu na
segunda quinzena de março.
Eram sete horas da manhã de uma segunda-feira, dia 16 de março de 2020, e notei
uma aglomeração em uma parte do hospital universitário em que eu estava. Houve um
problema com o agendamento e o ambulatório geral tinha pegado fogo na última sexta-
feira. Os pacientes deveriam ter tido seus horários remarcados, o que evidentemente não
havia ocorrido. Andei um pouco pelo hospital e cheguei a um corredor que havia mais
de cinquenta pessoas, a maioria em pé. Profissionais de saúde, demais trabalhadores do
hospital e acadêmicos transitando e trabalhando por ali. A situação foi, depois de algum
tempo, regularizada. Mas aquilo já era um alerta: será que o nosso SUS sucateado, com
suas filas enormes, com falta de equipamento e de mão de obra, aguentaria uma
pandemia avassaladora? Enquanto isso, os jornais do mesmo dia noticiavam 2.158
mortes confirmadas na Itália pelo novo coronavírus.
Eu não havia imaginado que, já no dia seguinte, terça-feira, a minha vida
começaria a ficar diferente. De um dia para o outro, a faculdade de medicina pediu para
os alunos não aparecerem no ambulatório na manhã seguinte. Naquela terça-feira, então
dia 17, já não fui mais à universidade e todas as federais fecharam suas portas. Em
sequência, vieram as escolas estaduais e municipais. Nesse período, a Itália mostrava ao
mundo o perigo de atrasar o isolamento social. Meus plantões na Unidade de Pronto
Atendimento (UPA) e no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) foram
cancelados; não podiam mais gastar equipamento de proteção individual (EPI) com os
alunos. De repente, aquelas máscaras que usávamos até então despreocupadamente em
relação à quantidade se mostraram um utensílio muito valioso – fariam uma falta vital
em nosso país. Evidentemente, os internos (acadêmicos dos 5º e 6º anos de medicina)
não pararam, pois, além de estarem mais avançados no curso, residentes e internos são
imprescindíveis em um hospital.
Dia 18 de março de 2020: 2.978 mortos na Itália. A curva logarítmica, que pensei
ter esquecido lá nas aulas de matemática do ensino médio, apareceu. Para nossa
infelicidade, sua ordenada significava vidas interrompidas.
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No dia do primeiro pronunciamento oficial de Jair Bolsonaro sobre o tema, já
havia 6.820 corpos desalmados na península itálica. Antes do final de março, o rastro de
destruição que passou por aquele país já tinha ceifado 12.428 vidas. Assim, a Itália
perplexa chorou. A nação arrependeu-se de subestimar a nova peste.
Por incrível que pareça, diante dessa dor da humanidade, diante de algo que nos
atingiu frontalmente, a autoridade maior brasileira referiu-se à nova peste como uma
gripezinha. Ele, o presidente, no dia 24 de março de 2020, já tinha suficiente informação
para saber que o vírus não estava para brincadeira. Era contagioso e vinha para testar
nossos sistemas de saúde. Colapsando-os, derrotando-os um por um, até a da mais rica
metrópole estadunidense, Nova York. Todos ajoelharam-se: um simples pedaço de
RNA nos havia vencido.
A Covid-19 é uma doença que pode matar por asfixia. Eis uma das razões pelas
quais os sistemas de saúde colapsaram. Eram necessários ventiladores mecânicos para
uma parcela dos pacientes sintomáticos graves.
Diga-se de passagem que os médicos sabem o protocolo e conhecem os
medicamentos e os procedimentos que devem ser utilizados em casos de síndrome do
desconforto respiratório agudo (SDRA) – ninguém estava deixando ninguém morrer.
No entanto, efetivamente, não existia – como não existe até o momento em que escrevo
– um remédio capaz de derrotar o vírus. Nesse cenário, o nosso Capitão Corona7 tinha a
solução, com o seu pseudodiploma de médico, e passou a receitar. O coronel Homero
de Giorge Cerqueira, presidente do Instituto Chico Mendes, foi a público informar que
seguiria os conselhos do Capitão. Tomou hidroxicloroquina. O general Heleno,
ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), se deu alta do hospital depois do
pronunciamento do presidente e foi infestar o mundo, cada vez que abria a boca, com
novos milhões de RNAs mortíferos.
A prova da existência de uma família genocida na presidência da República se
deu com uma propaganda do Planalto, divulgada em massa no
7 Apelido para Jair Bolsonaro, cunhado pelo professor Paulo Ghiraldelli, explicado no início deste livro.
22
dia 27 de março de 2020. O primogênito do clã, senador Flávio Bolsonaro, deu o chute
inicial na campanha #BrasilNaoPodeParar. Depois disso, iniciou-se algo bizarro:
bolsonaristas fanáticos organizaram carreatas e manifestações a favor do vírus, ou
melhor, pedindo o fim do isolamento social. Isso considerando que, até aquele
momento, não havia impedimento legal, por parte de ação dos governadores, quanto à
circulação de cidadãos.
Tudo isso ocorreu em cerca de uma semana – tempo necessário para desmanchar
o trabalho de meses do MS e iniciar sua ruína. O último dos ministérios que ainda
tentava funcionar adequadamente estava com os dias contados. Foram suficientes esses
poucos dias para preparar o óleo no qual Mandetta seria frito nas semanas subsequentes.
Houve um verdadeiro êxodo da equipe técnica do MS durante esse período. No
dia 25 de março de 2020, Júlio Croda, diretor de departamento, deixou o ministério,
sendo o precursor. Ele percebeu, como outros depois dele, que a ideologia bolsonarista
atrapalharia a luta contra a nova peste. É inútil varrer papéis em uma ventania. É inútil
lavar o carro na chuva. Assim como é inútil escrever protocolos pedindo isolamento,
quando o chefe do Executivo fala, em rede nacional, contra o trabalho dos especialistas.
Atenção deve ser dada aqui ao fato de que é a ideologia, e não a política, que
atrapalhou o trabalho científico-médico. Sem política, não há SUS, não há políticas
públicas de saúde, nem há vida em sociedade. Nossa civilização ocidental nasceu da
polis, e, por isso, é impossível tirá-la do nosso cotidiano. Uma política bem feita pode, a
exemplo de outros países, ser a chave para achatar a curva de infectados. Se política não
é a mesma coisa que partido, então os médicos não precisam ter medo de usar essa
palavra. Devemos e podemos utilizá-la em favor da saúde pública.
Em 24 de março de 2020, eu reiterei, em meu canal “Todos pela Saúde”8, que o
avanço do vírus não seria contido apenas com as recomendações médicas de lavar as
mãos e de instaurar a quarentena. Sem a atuação do
8 O canal “Todos pela Saúde” foi criado em 2019 e foi entabulado para servir ao propósito de educação
em saúde e divulgação científica. Ressalta-se que ele não possui qualquer relação com o banco Itaú, que
iniciou uma campanha com o mesmo nome.
23
Estado, seria inviável conter a pandemia, sobretudo porque são cerca de 35 milhões de
brasileiros sem acesso à água tratada. Metade da população não tem acesso aos serviços
de coleta de esgoto. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
mostram que 1.935 municípios brasileiros (34,7% do total) ainda registram epidemias
ou endemias relacionadas à falta ou à deficiência de saneamento básico.
Será que preciso lembrar das favelas? É impossível sete pessoas da mesma família
ficarem juntos, o tempo todo, em um único cômodo. E quando uma janela de sua casa
dá para o interior da casa do vizinho? Que tipo de isolamento seria esse? Considerando
esses pressupostos, no dia 25 de março de 2020, Drauzio Varella, em seu canal no
Youtube, além de desmentir o discurso do presidente, salientando a importância de ficar
em casa, nos lembrou de que aquelas recomendações médicas seriam insuficientes. Ele
disse que o Brasil estava atrasadíssimo em relação às medidas de controle pandêmico.
Expos que o Estado deveria estar há semanas na favela, entregando cestas básicas e
resolvendo o problema da água. Alguns dias antes, o filósofo Paulo Ghiraldelli9 nos
lembrou também dos escritos de Byung- Chul Han10. Esse filósofo sul-coreano escreveu
como o país dele lidou com o novo vírus. Seria uma interessante solução para o Brasil
imitar algumas medidas tomadas na Coreia do Sul. Lá, algumas regiões têm
semelhanças com as favelas brasileiras no que diz respeito às condições de vida. Se a
quarentena é difícil/impossível em uma favela, então, os moradores suspeitos e
contaminados deveriam ser retirados pelo poder público. Deveriam ter uma estadia à
parte. Assim, a mazela não acometeria milhares de pessoas simultaneamente.
Desse modo, o trabalho do MS, seja qual for, já era insuficiente em um país tão
desigual como o nosso. Precisávamos, efetivamente, dos políticos, dos governadores,
dos deputados, dos vereadores e dos senadores, enfim, de todos aqueles que são pagos
com dinheiro público. Naquele momento, eles não poderiam faltar diante das
necessidades da população. Então, qual é a utilidade de isenção política médica se uma
pandemia é toda biopolítica? Ah,
9 Em seu canal no YouTube.
10 Dentre outros escritos, destaca-se a obra Sociedade do cansaço.
24
esqueci! Na verdade, de isento o CFM não tinha nada quando aceitou a ideologia
presidencial. Se o nosso compromisso primeiro é a saúde, qualquer um que tomasse
uma postura anticientífica deveria receber uma admoestação, no mínimo. O silêncio
custa vidas.
Já que o assunto é a aceitação da ideologia bolsonariana, Mandetta deveria ter sido
firme e, no dia 25, não poderia ter amenizado seu discurso. Será que ele não conhecia
realmente o chefe para quem trabalhava? Será que ele não percebeu que um homem, no
qual o “guru” é um tipo como Olavo de Carvalho, não poderia conciliar com
argumentos racionais? Será que não percebia a impossibilidade de tentar qualquer
diálogo lógico com o chefe? Olavo dizia que o vírus não existia, em meio à plena
pandemia. Até mesmo o YouTube removeu de sua plataforma alguns vídeos dele, pois
ameaçavam a vida. Nem é preciso recordar que o bastião da pseudociência e do anti-
intelectualismo, o desescolarizado Olavo de Carvalho, fazia ataques ao Drauzio Varella,
lutava em favor do câncer, defendendo os interesses da indústria tabagista, e falava em
favor do lucro de caixões infantis ao defender campanhas antivacinação. Não era de se
espantar que o Capitão Corona escutasse esse tipo de discurso.
Muitos acharam que seria o fim de Bolsonaro, quando ele atacou mais diretamente
o ministério mais popular e importante do momento. O presidente prometeu, no dia
24/03/2020, que conversaria com Mandetta e iria “dobrá-lo”. O Capitão conseguiu o
que queria. Longe de ser seu fim, ele interferiu o quanto quis no trabalho do MS. Como
um “imperadorzinho”, comparecia às reuniões para dizer seus gostos à pasta da Saúde e,
no dia, concordava com algumas pautas, mas, no dia seguinte, discordava publicamente.
Fez o MS engolir sua cloroquina; no dia 07 de abril de 2020, foi publicado um
protocolo estapafúrdio do MS. Na ocasião, os únicos dois estudos sobre a droga eram
inconclusivos, e um deles era evidentemente uma fraude científica11. Bolsonaro, depois
de fritar e dourar bem Henrique Mandetta, exonerou-o no dia 15 de abril. A essa altura,
o Brasil tinha uma equipe técnica impedida de trabalhar corretamente. Era como se
soldados lutassem uma guerra com seus braços presos para trás
11 Vide o item “Texto II” do próximo capítulo, no qual Natália Pasternak e Carlos Orsi nos
contarão um pouquinho sobre a história de Didier Raoult.
25
e seus olhos vendados. No Brasil, parece que é o próprio coronavírus que tem a caneta.
O “segundo maior tosco” do Brasil não parou com seus pronunciamentos oficiais
criminosos. Além disso, em meio ao isolamento social, o presidente começou a sair às
ruas, causando aglomerações e, assim, as incentivando. Desprezava as máscaras e,
sempre que podia, falava contra as orientações do MS. No momento em que escrevo,
Jair Bolsonaro continua com as mesmas práticas de produção de aglomerações. Enfim,
uma série de crimes contra a humanidade foi cometido em pouco tempo por esse
homem. Nenhum júri e nenhuma sentença seriam suficientes para reverter o mal que foi
feito. Nada devolverá as vidas que foram ceifadas devido à sua política de extermínio.
Entretanto, certamente, isso não tira a necessidade de um julgamento, inclusive, em
tribunal internacional.
Nenhuma exceção ou tentativa de racionalização podia ser feita daqueles
discursos do presidente. O papel da política é fundamental para que a saúde possa se
desenvolver. Aos que achavam que de um lado estava a área técnica e de outro, a
política, digo que esse vírus nos ensinou algumas lições: a lição de que cada política
pública assumida implicaria um número diferente de internações e de mortes; a lição de
que precisamos de mais “Drauzios” lutando pelo SUS, falando dos problemas
decorrentes da desigualdade social e de como isso interfere no trabalho médico.
Enquanto ficarmos curando doenças em consultórios e hospitais, vamos falhar
miseravelmente. Talvez seja relativamente tarde para ouvirmos mais os sanitaristas.
Já que explicitei a importância da política em uma pandemia, tenho de imputar ao
governo federal a responsabilidade para com as mortes que viriam em abril. Elas
efetivamente vieram.
Dia 28 de abril de 2020: 72.899 casos confirmados e mais de 5 mil indivíduos
mortos no Brasil. Nesse dia, os jornalistas confrontaram o chefe do Executivo sobre os
dados do país. Novamente, eclodiu-se mais uma amostra do sarcasmo de Bolsonaro e
sua desconsideração para com a vida da nação.
26
A resposta foi: “O que eu tenho a ver com isso? E daí!? Sou Messias, mas não faço
milagre”. Deveras, o que poderia um presidente ter a ver com o seu país?
Não teremos chances contra a nova peste enquanto existir um Capitão Corona no
governo do Brasil. Como diria o neurologista Miguel Nicolelis, não dá para lutar contra
uma pandemia e um pandemônio ao mesmo tempo!
29 de abril de 2020
27
UMA AULA DE COMO NÃO TESTAR UM MEDICAMENTO
Natalia Pasternak 12 e Carlos Orsi13
Entre a segunda metade de março e a primeira quinzena de abril de 2020, a
população brasileira foi bombardeada por uma bem-orquestrada operação de relações
públicas – envolvendo entrevistas na grande imprensa, comentários em redes sociais e,
até mesmo, intervenções do presidente da República –, dando conta de que o grupo
provado de saúde paulista Prevent Senior “em breve” publicaria um estudo atestando a
utilidade da combinação de drogas hidroxicloroquina e azitromicina no combate à
infecção causada pelo vírus SARS-CoV-2.
As comunidades médica, científica e jornalística, compreensivelmente,
aguardavam, com enorme interesse, a prometida publicação. Apontada, inicialmente,
como tratamento promissor por um pequeno estudo francês, repleto de inconsistências e
defeitos metodológicos graves, a combinação não vinha se saindo bem na maior parte
dos estudos internacionais posteriores e seguia um padrão bem conhecido no universo
dos tratamentos médicos que acabam descartados ou transformados em terapias
alternativas: quanto maior o rigor e a qualidade do estudo, menor o efeito constatado.
A possibilidade de um trabalho de boa qualidade, realizado no Brasil, reverter o
rumo do crescente consenso negativo em torno do uso da combinação de drogas no
contexto da pandemia mantinha leigos e especialistas acordados madrugadas adentro.
Quando o estudo veio a público – não no formato de artigo científico, revisado
pelos pares e publicado em um periódico de prestígio, mas, sim, de um documento
digital distribuído a jornalistas por uma assessoria de marketing –, revelou-se,
infelizmente, uma decepção acachapante. Um artigo
12 Formada em Ciências Biológicas pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo IBUSP,
PhD com pós-doutorado em Microbiologia, na área de Genética Molecular de Bactérias pelo Instituto de
Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, ICB-USP. 13
Jornalista formado pela Escola de Comunicação e Artes. Membro da diretoria do Instituto Questão de
Ciência.
28
publicado originalmente na Revista Questão de Ciência14, e reproduzido a seguir,
explica o porquê.
Pelo menos desde a última quinta-feira, 16, circula entre jornalistas e cientistas
brasileiros um documento em PDF que parece ser o preprint – a versão “quase final” de
um artigo científico, supostamente submetida à revisão dos pares – do trabalho que
descreve os resultados obtidos pelo grupo de medicina privado brasileiro Prevent Senior
com um protocolo de tratamento de Covid-19 baseado em telemedicina (isto é,
consultas remotas) e na perigosa combinação das drogas hidroxicloroquina (HCQ) e
azitromicina (AZ).
Dizemos “parece” porque, até o momento em que escrevemos (manhã de sábado,
18), o documento não se encontra disponível em nenhuma das plataformas usuais de
preprints dedicadas ao conteúdo relativo à nova pandemia. No entanto, jornalistas
receberam nota oficial de divulgação da assessoria de marketing e comunicação do
grupo médico, e representantes do Prevent Senior concederam entrevistas sobre o
assunto – em todo esse material, já disponível ao público, o conteúdo é consistente com
o que vemos apresentado no PDF.
A repercussão do aparente manuscrito na comunidade científica tem sido a pior
possível. Especialistas em medicina baseada em evidências de renome internacional,
como o oncologista norte-americano David Gorski e o geneticista francês Gaetan
Burgio, referiram-se ao material como “execrável” (crappy, no original) e “atroz”.
O desfecho descrito é necessidade de hospitalização: se tomarmos o trabalho pelo
valor de face, ele mostra que o uso de HCQ e AZ em pacientes de Covid-19 reduz a
necessidade de internação hospitalar. O valor real, no entanto, é muito menor do que o
valor de face – tende, de fato, a zero.
As razões para isso são inúmeras. Para dar ao leitor uma visão panorâmica dos
problemas que atingem o que parece ter sido uma desastrada
14 PASTERNAK, Natalia; ORSI, Carlos. Uma aula de como não se deve testar um medicamento. 18
de abril de 2020. Revista Questão de Ciência. Disponível em:
https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/questao-de-fato/2020/04/18/uma-aula-de-como- nao-se-
deve-testar-um-medicamento. Acesso em: 19 de junho de 2020.
29
operação de marketing de uma empresa que sentiu a necessidade de polir a própria
reputação, além de promover a suposta eficácia da plataforma de telemedicina que
oferece aos clientes, dividimos esta análise [capítulo] em seções que vão dos problemas
éticos ao técnicos, e conclui mostrando que as falhas técnicas são, no fim, também
falhas éticas.
Conflito de interesse
Há alguns anos, a Coca-Cola Company viu-se como alvo de duras críticas,
algumas veladas, feitas pela comunidade científica e outras bem explícitas, na mídia,
por financiar uma série de estudos que sugeriam que a falta de atividade física, e não o
consumo excessivo de calorias (como, por exemplo, as calorias do açúcar presente em
refrigerantes como os da Coca- Cola Company), era a principal responsável pela
epidemia de obesidade que atinge os Estados Unidos.
A razão das críticas é a questão do conflito de interesse: é, no mínimo, suspeito
que uma empresa pague para que cientistas investiguem uma hipótese cuja confirmação
pode ter impacto positivo no marketing da companhia.
Isso acontece o tempo todo. Recentemente, descobriu-se que um estudo sobre os
“benefícios” do consumo “moderado” de álcool era bancado por fabricantes de bebidas.
E qualquer médico, cientista ou farmacêutico digno do diploma lhe dirá que estudos
financiados pela indústria farmacêutica tendem a favorecer o remédio ou o tratamento
sendo testado.
Esse favorecimento pode ser bem sutil – um leve exagero nos benefícios
descritos, efeitos colaterais que são apresentados com um pouco menos ênfase do que
seria de se esperar –, mas é sistemático na literatura científica. Muito raramente, ele
descamba para fraude deliberada. Entretanto, é algo que a comunidade científica precisa
levar em conta sempre que um novo estudo sobre intervenções em saúde humana
aparece.
30
É por isso que a boa prática científica requer que autores de estudos que afetam
interesses comerciais declarem conflitos de interesse. Basicamente, se você ou seu
patrocinador têm algo a ganhar (ou perder) dependendo do resultado do trabalho, você
precisa avisar a comunidade científica disso. Não o fazer acende todo tipo de sinal de
alerta e é motivo para pôr em dúvida a integridade e as boas intenções dos envolvidos.
Se isso é verdade para estudos sobre dieta e obesidade conduzidos por
pesquisadores independentes – muitas vezes, em universidades –, mas com algum
aporte financeiro de uma empresa como a Coca-Cola, o que se poderia dizer de um
estudo conduzido dentro de uma empresa privada, por funcionários da empresa, com
dinheiro dos clientes da empresa e testando o produto que a empresa vende e do qual
sua reputação depende?
No entanto, o manuscrito não traz nenhuma menção a conflito de interesse. De
fato, o espaço reservado para declarações de conflitos diz, de modo muito explícito, que
não há nenhum.
Informação de menos
Para determinar se uma terapia “T” é eficaz contra uma doença “D”, o primeiro
passo obviamente necessário é determinar se as pessoas que estão sendo tratadas com
“T” realmente sofrem de “D”. Não faz sentido, por exemplo, dar um antitérmico para
alguém que não está com febre e, meia hora depois, concluir que, se a pessoa não tem
febre, o antitérmico funciona.
Essa necessidade óbvia, no entanto, escapou à equipe do Prevent Senior. Os
pacientes envolvidos no estudo tinham “suspeita” de Covid-19, mas nenhum resultado
de exame que confirmasse a presença do vírus. De fato, o manuscrito diz que o
critério inicial de seleção para o estudo era a presença de flu-like symptoms, ou seja,
sintomas semelhantes aos da gripe. A presença desses sintomas era avaliada por
consultas remotas.
A variedade de condições que produzem sintomas semelhantes aos da gripe talvez
só não seja maior que o número de anjos que podem dançar na
31
cabeça de um alfinete. Além da gripe propriamente dita, há resfriado, asma, excesso de
poeira no ar, rinite, alergias diversas, sinusite, um sem-número de infecções bacterianas
e assim por diante. Em pacientes idosos e com comorbidades, como os clientes da
Prevent Senior, a prevalência desses sintomas pode ser ainda maior.
Resumindo: o Prevent Senior não sabia o que estava tratando. Apenas
conjecturava que parte dessas pessoas talvez estivesse contaminada pelo vírus SARS-
CoV-2. Alguns pacientes passaram por tomografias de tórax, o que talvez pudesse ser
visto como uma tentativa de aferir a plausibilidade da conjectura, mas as tomografias
não foram feitas de modo consistente e o manuscrito não diz quando foram
obtidas (se antes, durante ou depois do “estudo”).
Um representante da empresa declarou que os exames para detectar a presença do
vírus demorariam muito para ser completados e que o objetivo do estudo era avaliar a
eficácia da intervenção precoce.
Ninguém explicou, no entanto, por que os exames não foram feitos de qualquer
forma, e seus dados integrados depois, na fase de análise dos resultados. Seria, no
mínimo, interessante saber se, dos vinte pacientes que acabaram internados (oito do
grupo-tratamento e doze do grupo-controle), quantos realmente estavam infectados pelo
vírus, e, se estavam, qual era a carga viral, se precisaram de oxigênio, ventilação, UTI,
etc.
Informação demais
Se ninguém sabia o diagnóstico, todos sabiam quem estava recebendo a
combinação HCQ+AZ e quem não. Cerca de 600 pacientes com os tais flu-like
symptoms receberam a oferta de ter acesso às drogas; 400 disseram sim, 200 disseram
não. Os 200 que disseram não foram usados como grupo-controle (não está claro se
alguém fez a gentileza de avisá-los).
32
O manuscrito não diz se houve algum monitoramento da taxa de adesão ao
protocolo – isto é, se alguém viu os pacientes tomando os remédios –, o que já é um
problema, mas está longe de ser o maior.
A questão é que, em princípio, todos, de pacientes às equipes de telemedicina que
iriam decidir se eles precisariam ser internados ou não, tinham um forte investimento
emocional (e, no caso das equipes do Prevent Senior, interesse financeiro) em que o
número de hospitalizações fosse o menor possível.
Do outro lado, as equipes que acompanhavam os pacientes-controle tinham o
incentivo oposto. Para além de considerações egoístas (provavelmente de natureza
inconsciente), se as equipes que acompanhavam os controles realmente acreditavam na
eficácia da HCQ+AZ, era natural considerarem que os pacientes sem medicação
corriam maior risco e, também, serem mais rigorosas na interpretação dos sintomas que
poderiam levar à hospitalização.
Do lado dos pacientes que recebiam as drogas, o investimento emocional e o
desejo de agradar os cuidadores – às vezes, chamado de “efeito Hawthorne”, o que nos
leva a escovar os dentes com cuidado especial antes de ir ao dentista – também pode
ter influenciado o resultado. É justamente para evitar dificuldades desse tipo, além da
exacerbação do efeito placebo, que os testes clínicos de melhor qualidade são chamados
de duplos-cegos, nos quais nem pacientes nem cuidadores sabem quem recebe o
tratamento e quem está no grupo de controle.
À falta de cegamento, soma-se a autosseleção: foram os próprios pacientes que
escolheram fazer parte do grupo de tratamento. Em termos do controle do efeito
placebo, isso é muito diferente do que o paciente que aceita ser randomizado – isto é,
que concorda em ser designado, por sorteio, para o grupo que vai receber a droga ou
para algum dos controles.
Não apenas o investimento emocional é de outra ordem, como também se
quebra uma condição fundamental para a validade de qualquer teste
33
clínico – a de que os grupos comparados sejam o mais parecidos possível,
diferindo, no caso ideal, apenas na natureza do tratamento recebido.
É possível, por exemplo, que parte dos pacientes que recusaram o tratamento
tenha tomado a decisão por conta de problemas cardíacos ou histórico cardíaco na
família – questões que os colocam num grupo de maior risco de complicações causadas
pela Covid-19.
As tabelas fornecidas junto com o manuscrito indicam, por exemplo, que mais
pacientes do grupo de tratamento entraram no estudo se queixando de febre, tosse,
coriza, diarréia e dor de cabeça. Talvez, essas pessoas tenham aceitado as drogas por
estarem assustadas. Mas, se parte delas estava no auge de um resfriado comum, podem
apenas ter sarado naturalmente no curso da pesquisa – afinal, “resfriado passa com
repouso e canja de galinha”.
Informação nenhuma
Uma das possíveis definições para informação é “aquilo que reduz nossa
ignorância”. Nesse aspecto, o estudo conduzido pelo Prevent Senior tem valor
informativo zero. As eventuais dúvidas da comunidade médico-científica sobre a
eficácia e a conveniência do uso de HCQ+AZ no tratamento da Covid-19 continuam
exatamente como estavam. Nada foi agregado.
Ruído, por sua vez, pode ser definido como algo que ocupa espaço num canal de
comunicação, mas não conduz informação: estalos e zumbidos num telefonema,
chuvisco numa televisão, caracteres ao acaso no meio de um texto. O “estudo” do
Prevent Senior pode ser definido como ruído científico, o que, numa situação de
pandemia, é condenável – já que consome recursos, tanto financeiros quanto cognitivos,
que poderiam ser muito melhor aplicados.
Representantes do grupo médico em questão têm tentado defender o resultado
afirmando que fizeram o melhor possível. Se quisessem mesmo fazer o melhor possível,
poderiam ter seguido princípios básicos de ética médica e registrado seu desenho
experimental no site internacional de registro de testes
34
clínicos, para que a comunidade científica pudesse opinar e, até mesmo, orientar
sobre as graves falhas metodológicas.
Essa prática é uma praxe em estudos de medicamentos justamente para respeitar a
transparência da ciência e para que os demais especialistas possam avaliar se o trabalho
foi desempenhado de acordo com a proposta inicial; desvios entre o projeto registrado e
o trabalho executado não são bem vistos. Infelizmente, o registro desse “estudo” do
grupo médico foi feito após a elaboração e a divulgação do manuscrito e descreve
um estudo bem diverso do apresentado.
Estudos clínicos controlados sobre medicamentos existem para tentar eliminar
fatores de confusão que podem comprometer os resultados. O estudo do Prevent Senior
fez o oposto: gerou confusão com a desculpa de que qualquer tipo de informação é
melhor do que nada. Qualquer turista que já tenha ido parar num bairro violento após
seguir indicações falsas do GPS sabe que isso está longe de ser verdade.
Texto II
A onda global de entusiasmo com os fármacos cloroquina (CQ) e
hidroxicloroquina (HCQ) como possíveis remédios para a Covid-19 eclodiu a partir de
um único “estudo” em humanos sobre o assunto; porém, esse estudo contém tantos
defeitos, erros e imprecisões que o coautor de maior prestígio dentro da comunidade
científica, o médico e microbiologista francês Didier Raoult, rapidamente passou a ser
tratado como maluco excêntrico pela mídia internacional.
Dentre os problemas do ensaio conduzido por Raoult, publicado num periódico
que tem, como editor, um de seus coautores, estão a ausência de um grupo de controle
significativo, o número minúsculo de pacientes envolvidos, a mixórdia experimental (no
início, era sobre hidroxicloroquina e, depois, transformou-se num estudo sobre a
associação entre a HCQ e o antibiótico azitromicina) e a manipulação excessivamente
liberal dos dados gerados (os
35
pacientes que pioraram depois de receber HCQ foram, convenientemente, excluídos da
análise final).
O choque entre a reputação construída e a realidade do trabalho publicado foi
tamanho que inclusive o currículo acadêmico de Raoult ficou sob novo escrutínio: o
jornal Le Figaro resgatou uma acusação feita no livro Malscience, do biólogo
Nicolas Chevassus-au-Louis, que aponta que o número de publicações científicas
atribuídas ao francês, num período de quinze anos (1996-2011) supera 12 mil. Segundo
a base de dados de artigos científicos da área médica PubMed, só em 2020 já saíram 36
artigos onde seu nome consta como autor, o que dá uma média aproximada de uma
publicação a cada dois dias. “Demais para ser honesto?”, questiona Le Figaro.
Esse despertar do senso crítico, porém, chegou tarde e fora muito lento, sobretudo
diante do estrago causado pela recepção inicial dada ao “estudo”, divulgado no fim de
março de 2020. Até mesmo cientistas sérios e comunicadores da ciência experientes,
aparentemente ofuscados pela reputação prévia de Raoult e abalados pelo custo humano
da Covid-19, optaram, de início, por fazer vista grossa para os problemas óbvios que
invalidam o trabalho e, então, saudaram a publicação como uma contribuição relevante
para o combate à pandemia.
A opção preferencial pela complacência ignorou uma lição que deveria ser o
bê-á-bá de qualquer cientista ou comunicador da área: a dos indícios clássicos de
crackpottery, expressão da língua inglesa quase intraduzível para o português que
define um espectro de distorções da prática científica que vai desde a incompetência
ingênua ao charlatanismo desbragado, sempre em parceria com obstinação e soberba.
Alguns dos indícios clássicos são: pesquisador que apresenta seus resultados de
modo espetacular ao público leigo, antes de buscar a revisão dos pares; pesquisador que
faz alegações grandiosas com base em amostras pequenas ou na ausência de estudos
formais; pesquisador que faz alegações grandiosas sobre um assunto científico fora de
sua área de expertise; pesquisador que se mostra mais preocupado em convencer o
público leigo e
36
lideranças políticas do que em responder às críticas técnicas dos demais
especialistas da área.
Exemplos comumente citados são a recomendação do uso de superdoses de
vitamina C como panaceia, o fiasco da fusão a frio, a conexão espúria entre vacinas e
autismo e, aqui no Brasil, a famigerada “pílula de câncer”, a fosfoetanolamina sintética.
Embora o uso da CQ ou da HCQ como antiviral não seja, em si, uma ideia
crackpot – há pelo menos um bom estudo in vitro, isto é, envolvendo células em
cultura de laboratório, que sugere a possibilidade –, o trabalho específico do grupo
de Raoult, se não chega a completar o bingo da crackpottery (o pesquisador,
afinal, é da área), emitia, desde o início, claros sinais de alerta. Indícios como o fato de
Raoult ter optado por ir ao YouTube para se gabar da “descoberta” antes da publicação
do artigo científico e a amostra muito pequena (grupo de tratamento inicial com apenas
26 pessoas) já deveriam ter deixado todo mundo com o pé atrás.
Depois, a mera leitura do artigo, tal como apresentado, deveria ter sido suficiente
para eliminar toda e qualquer dúvida de que se tratava de um caso de crackpottery da
mais fina estampa: dentre os diversos problemas do estudo, salta aos olhos a informação
de que os pacientes que pioraram (e o que morreu!) durante o tratamento foram
desconsiderados. É como se os autores tivessem partido do princípio de que o remédio
só poderia fazer bem.
E mesmo o “bem” constatado é duvidoso. Em entrevista, o virologista alemão
Christian Drosten, principal consultor do governo Angela Merkel em sua bem-sucedida
resposta à pandemia, diz que “os resultados possivelmente teriam sido os mesmos se os
pacientes tivessem tomado um comprimido para dor de cabeça”.
A complacência inicial de comunicadores e cientistas para com a publicação teve,
e segue tendo, consequências nefastas: a perspectiva de uma cura fácil e ao alcance da
mão encantou líderes populistas, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, que têm uma
visão pragmática do que conta como evidência científica – o pragmatismo, nesse caso,
é dar relevância apenas ao
37
que pode ser usado para promover suas agendas políticas. Tanto Trump quanto
Bolsonaro, aliás, são reincidentes: o mandatário estadunidenseflertou, quando lhe foi
conveniente, com o movimento antivacinação, e o brasileiro foi um promotor da “pílula
do câncer”.
Se, nos Estados Unidos, as autoridades sanitárias, após uma hesitação inicial,
demonstraram a altivez necessária para conter os arroubos presidenciais – tanto a FDA
quanto o médico Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças
Infecciosas, não se furtaram ao dever de contradizer, sem meias palavras, as falsidades
proferidas por Trump sobre o assunto –, no Brasil, não tivemos a mesma sorte: o nosso
então ministro da Saúde Henrique Mandetta chegou a dizer que havia “validado” a
cloroquina para ser usada no Brasil em pacientes graves de Covid-19.
Hospitais privados, como o Albert Einstein, de São Paulo (SP), dispuseram-se,
bovinamente, a conduzir testes do “protocolo” apresentado por Raoult. Dada a péssima
qualidade dos dados oferecidos em defesa do tal “protocolo”, tratou-se de uma escolha
difícil de ser justificada em bases científicas. De acordo com um levantamento feito
pelo jornalista Carl Zimmer para o The New York Times, existem pelo menos 69
fármacos promissores a serem testados contra o SARS-CoV-2. A
cloroquina/hidroxicloroquina é apenas mais um deles, e um dos menos relevantes.
O hype teve que, dentre outras consequências, distorcer as prioridades de
pesquisa em todo o mundo: mais de um mês depois da publicação original, a
cloroquina era o fármaco mais pesquisado no mundo em relação à Covid-19.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), que, em primeira avaliação, havia
considerado a cloroquina e a hidroxicloroquina inadequadas para um teste em escala
mundial de fármacos promissores para o combate ao SARS-CoV-2, viu-se coagida a
incluí- las.
Muito provavelmente, isso tudo representa perda de tempo e um trágico
desperdício de recursos. Ouvida pela revista Science, a especialista Susanne Herold
lembra que “pesquisadores vêm testando essa droga contra um vírus
38
atrás do outro, e ela nunca funciona em humanos”. O fracasso mais recente envolveu
o vírus chicungunha.
Diversos países passaram a sofrer desabastecimento de medicamentos à base de
cloroquina, usada no combate à malária, e de hidroxicloroquina, usada contra lúpus e
artrite reumatoide.
Na Nigéria e nos Estados Unidos, foram registradas mortes causadas pela
automedicação com cloroquina/hidroxicloroquina contra o vírus. Não se trata de um
fármaco inócuo; ele é capaz de causar efeitos colaterais graves, atacando, por exemplo,
os olhos e o coração. Uma dose de apenas dois gramas pode matar um homem
adulto.
Há quem defenda que, em condições de guerra, os rigores usuais da ciência não
se aplicam mais. É um raciocínio profundamente falacioso, visto que os rigores da
ciência não são luxos, e sim salvaguardas que reduzem – mas jamais eliminam – o risco
de mentirmos para nós mesmos, de permitirmos que medos ou esperanças nos ceguem
para os fatos. Ademais, condições de guerra não nos tornam menos vulneráveis a esses
riscos. Muito pelo contrário.
Pode ser que a CQ seja eficiente para combater a Covid-19. No entanto, as
evidências que vêm se acumulando desde a desastrada publicação original sugerem,
cada vez mais, que ela não é. Cumprindo um padrão que é, infelizmente, um velho
conhecido de quem estuda a parte da história da Medicina que dá conta das fraudes, dos
erros e das falsas esperanças, a cloroquina contra a Covid-19 refaz o caminho da
fosfoetanolamina, da homeopatia e de tantos outros tratamentos “aprovados” por clamor
popular: como já mencionado, quanto mais bem desenhado e conduzido o estudo,
menor o efeito constatado – que tende a zero à medida que a qualidade da avaliação
aumenta.
A priorização da CQ e da HCQ na pandemia de 2020 entrará para a história como
um momento em que políticos e parte da comunidade médico- científica resolveu jogar
roleta-russa com a saúde da população.
39
O DESVANEIO DE BOLSONARO EM TEMPOS DE PANDEMIA
Hugo Lopes de Oliveira15
Em novembro de 2016, quando os delegados do estado de Wisconsin (EUA)
foram computados e o republicano Donald Trump ultrapassou o número mínimo de 270
delegados, muita gente não imaginava o que viria dali em diante. Os analistas estavam
surpresos com a vitória de um candidato do Partido Republicano que era um outsider
da política, sem nenhuma tradição de militância em qualquer área. Os EUA estavam
prestes a ganhar mais do que um presidente republicano, um presidente de extrema
direita, mais radical, inclusive, do que a ala do Freedom Caucus, do próprio Partido
Republicano.
Para alguns analistas, Donald Trump aproveitou uma onda conservadora e
nacionalista que já vinha percorrendo parte da Europa e da América. Para outros, Trump
inaugurou, por si só, um estágio em vários setores, como na política externa dos EUA,
rompendo várias barreiras. De fato, não se pode negar que a eleição de Trump como um
presidente de extrema direita na nação mais poderosa e influente do mundo é um divisor
de águas. Nesse embalo, uma parte considerável da América Latina viveu uma guinada
à direita após um considerável período de governos à esquerda. A Argentina nomeou o
neoliberal Maurício Macri em 2017 e a Venezuela constatou o enfraquecimento do
chavista Nicolás Maduro. O Brasil não ficou de fora desse movimento e elegeu Jair
Bolsonaro, que tem um discurso de extrema direita e pautas de combate à esquerda e ao
que ele chamava de comunismo.
Desde o início da campanha eleitoral em 2018, Bolsonaro fez questão de se
aproximar de Donald Trump. Eram frequentes às menções ao líder estadunidense não
fazendo nenhuma questão de esconder a simpatia pelas ideias dele. Já eleito, Bolsonaro
alinhou a política externa brasileira aos princípios e desejos dos estadunidense Recebeu
o então Conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, John Bolton, em sua
residência para um
15Licenciado em História pela UFRuralRJ e Especialista em Ensino de História pelo Colégio Pedro II.
Diretor Geral do Centro de Atenção à Criança e ao Adolescente Paulo Dacorso Filho (UFRualRJ e PMS)
e Coordenador Geral do Núcleo Municipal de Seropédica do SEPE – Sindicato Estadual dos Profissionais
em Educação do Rio de Janeiro.
40
café da manhã mais do que simples, simplório! Viajou para os EUA quatro vezes em
menos de quinze meses de mandato, quebrando o recorde de todos os presidentes
anteriores. Cedeu aos estadunidenses em disputas comerciais e alinhou-se a eles em
votações na ONU. Pela primeira vez na história, o Brasil rompeu a tradição e votou,
junto com EUA e Israel, favoravelmente ao embargo econômico à ilha de Cuba.
Agora, em 2020, o mundo está diante daquela que pode ser a mais terrível das
pandemias da era moderna. Um vírus que começou na China alastrou-se, em poucas
semanas, para o mundo inteiro e desvendou uma consequência perversa da
globalização: a velocidade com que as doenças podem percorrer o planeta. Sem uma
vacina eficaz, o novo coronavírus tornou- se mortal para muitas pessoas. Sobrecarregou
os sistemas de saúde públicos e privados, em países ricos e pobres. Atingiu a todos, mas
mostrou sua face mais perversa entre os mais pobres, em especial nas periferias da
América Latina e nos países pobres da África.
O novo coronavírus permitiu que o mundo se unisse no enfrentamento da
pandemia. Ampliação das pesquisas, trocas de informações e compartilhamento de
equipamentos e insumos foram algumas das medidas tomadas pelas autoridades na
tentativa de conter o vírus e evitar mais mortes. A Organização Mundial da Saúde
(OMS) conquistou uma espécie de soberania mundial, em especial se esquadrinharmos
os escritos do filósofo italiano Giorgio Agamben. Conquanto, para além dessa
concórdia, o mundo presenciou Donald Trump e Jair Bolsonaro, presidentes da
República e líderes de duas das nações mais atingidas pela Covid-19, em uma união
quase impensável em torno das críticas ao isolamento social.
Trump e Bolsonaro juntaram-se para, entre outras coisas, defenderem o uso do
medicamento cloroquina no tratamento da doença, criticar os efeitos econômicos do
isolamento social e acusarem a China de ter criado o vírus. Trump disse que tinha
evidências de que o vírus seria uma criação de Pequim, mas não apresentou provas. Já
Bolsonaro, seguindo seu ídolo, afirmou que estaria convencido de que o vírus era um
plano do governo chinês. Em tese, Trump acreditava que a China queria se aproveitar
economicamente do vírus e
41
Bolsonaro – um militar expulso do Exército, que se formou na Academia Militar das
Agulhas Negras (Aman) nos anos de 1980 e que ainda pensa de acordo com o que
aprendeu no quartel – julgou o vírus como uma possível ameaça comunista. Ele acredita
friamente de que há um inimigo em comum a ser combatido: o comunismo. Dessa
forma, Bolsonaro apega-se às lições aprendidas na Doutrina de Segurança Nacional do
General Golbery do Couto e Silva, na Aman, e as repete até hoje. Entretanto, Bolsonaro
e Trump estão errados.
O filósofo germano-coreano Byung-Chul Han escreveu recentemente um artigo
publicado no jornal El País16 mostrando que não há motivos plausíveis para que a
China tire algum proveito do vírus. Essa conjectura deve-se, em parte, ao fato de vários
analistas ocidentais, em especial os europeus, viverem com o passado nazista nas costas
e, assim, temerem medidas antidemocráticas por parte dos Estados no combate ao vírus.
Giorgio Agamben, filósofo italiano, tem se preocupado com as decisões tomadas pelos
governos da Itália e de outros países europeus no que concerne ao isolamento social.
Apesar de seus esforços estarem concentrados na reflexão sobre a ética que surgirá
após essa pandemia, Agamben não deixa, de certo modo, de alfinetar os europeus para
que não se esqueçam dos horrores do totalitarismo.
As alfinetadas de Agamben não surtem efeito na China porque – como explica
Byung-Chul Han –, na Ásia, medidas como o controle da população por chipes
eletrônicos, a identificação em câmeras de reconhecimento facial ou o monitoramento
remoto não são vistas como uma invasão do Estado na vida privada do cidadão, uma
vez que os asiáticos já teriam uma tradição mais autoritária em decorrência da sua
história cultural ligada ao confucionismo. Por terem uma vida mais regrada e
disciplinada, as populações desses países aceitariam mais passivamente políticas de
controle social adotadas em tempos de pandemia, diferentemente da maior parte da
Europa e da América, onde há forte resistência a adoção desse tipo de política.
Enquanto no Brasil se discutem questões éticas em torno da tecnologia de
reconhecimento facial, em
16 HAN, Byung-Chul. O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã, segundo o filósofo Byung- Chul
Han. 22 de março de 2020. El País. Disponível em: https://brasil.elpais.com/ideas/2020- 03-22/o-
coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html. Acesso em: 02 de
junho de 2020.
42
alguns países asiáticos quase a totalidade da população já é monitorada por esses
sistemas, sem nenhuma resistência.
O pensamento bolsonarista, amparado nas ideias de Trump de que o vírus seria
uma criação chinesa, avistou o perigo de um possível domínio comunista no mundo –
algo que não se sustenta empiricamente – e sustentou a ideia de que os chineses usariam
a pandemia para imporem à população medidas de controle social. Todavia, como bem
lembra Byung-Chul Han, os países asiáticos já possuem um forte esquema de
controle da população a partir do uso de tecnologias, de modo que o governo chinês
não tem necessidade de criar um vírus para poder controlar sua população através da
imposição de medidas totalitárias. As ideias de Bolsonaro, calçadas tanto na Doutrina de
Segurança Nacional aprendida durante seu serviço ao Exército quanto nos
“ensinamentos” de Donald Trump, não passam de puro desvaneio ideológico, pois a
China já controla sua população há tempos por meio da tecnologia.
43
O NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL E SUA REPERCUSSÃO NA
MÍDIA ESTRANGEIRA
Luma da Silva Miranda17
A cobertura da mídia sobre a Covid-19 no mundo dominou a programação de
grande parte das empresas de comunicação. A pandemia do novo coronavírus foi
anunciada no dia 11 de março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e,
desde então, temos testemunhado, em vários países dos cinco continentes, um
crescimento vertiginoso do número de infectados e de óbitos em decorrência da doença
por ele causada.
A primeira cidade que registrou a epidemia da Covid-19 foi Wuhan, que fica na
província de Hubei, na China, e que foi também a primeira cidade a entrar em
confinamento social. Em 23 de janeiro de 2020, a China adotou, em Wuhan e em outras
cidades nos arredores, o lockdown, isto é, o bloqueio total de circulação de pessoas,
incluindo fechamento de vias e proibição de deslocamentos e viagens não essenciais.
Após 76 dias de confinamento total, a cidade de Wuhan voltou a abrir suas portas
gradualmente, por conta da diminuição tanto dos casos de transmissão local do tal vírus
quanto do número de mortes. Foi somente no dia 08 de abril que Wuhan reabriu18.
Mais tarde, no dia 13 de março de 2020, o epicentro da já reconhecida pandemia
passou a ser a Europa, mais especificamente a região da Lombardia, no norte da Itália,
sendo esse um dos países da Europa mais afetados pela Covid-19. Recentemente, o
Brasil começou a se tornar o epicentro da enfermidade, ao lado dos EUA. Apesar de o
Brasil ter tido pelo menos três meses de acompanhamento midiático sobre a pandemia
em países como China, Itália e Espanha, não houve, por parte das autoridades
públicas,
17
Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente trabalha como
Leitora de Português do Brasil na Universidade Eötvös Loránd, em Budapeste, Hungria. 18
Conforme LEMOS, Vinicius. 'Parece uma cidade após a guerra': brasileiros em Wuhan descrevem
recomeço em primeiro epicentro do coronavírus. 06 de maio de 2020. BBC News. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-
52554336?at_custom2=twitter&at_custom3=BBC+Brasil&at_medium=custom7&at_custom4=01
7A7096-96D2-11EA-9941E3DDFCA12A29&at_custom1=%5Bpost+type%5D&at_campaign=64. Acesso
em: 18 de maio de 2020.
44
uma preocupação em tomar medidas preventivas mais rígidas, a fim de que
minimizar o impacto dela na população brasileira.
Diferentemente de países mais desenvolvidos, como os da Europa, o Brasil é um
país que apresenta uma gigantesca desigualdade social e uma enorme quantidade de
cidadãos vivendo na miséria. No que concerne à experiência com o novo coronavírus, o
resultado não poderia ser outro a não ser o próprio Brasil se tornar um dos países do
mundo mais afetados pela Covid-19. Em 18 de maio de 2020, o Brasil ocupava o
terceiro lugar do mundo em número de infectados19.
Enquanto este livro está sendo escrito, ao acompanhar a mídia internacional, nota-
se que, de modo geral, as agências de notícias estrangeiras declaram que o Presidente da
República Jair Messias Bolsonaro não está ajudando, de maneira responsável e efetiva,
o Brasil a passar por essa crise de saúde. Constantemente, os noticiários informam que
Bolsonaro adota uma atitude populista, dizendo que está defendendo a liberdade do povo
brasileiro, ao se posicionar contra o isolamento social. Diversos jornais declaram que a
economia do país está sendo priorizada, em vez da saúde da população20, e que o Brasil
viverá uma hecatombe anunciada21,22. Vejamos, agora, alguns casos que aconteceram
no Brasil e que ganharam repercussão na mídia internacional.
19 Agência AFP. Brasil pasa AL Reino Unido y se convierte em El tercer país com más casos de COVID-
19. 18 de maio de 2020. Mundo, El País. Disponível em:
https://www.elpais.com.uy/mundo/coronavirus-brasil-pasa-reino-unido-convierte-tercer- paiscasos-
covid.html. Acesso em: 19 de maio de 2020. 20
Al Jazeera. Bolsonaro called bigges tthreatto Brazil's coronavirus response. 09 de maio de 2020. Al
Jazeera. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2020/05/bolsonaro-called- biggest-threat-
brazil-coronavirus-response200509054352022.html. Acessoem: 19 de maio de 2020. 21
Agência AFP. Coronavirus: Le Brésil face à une hecatombe annoncée. 02 de maio de 2020. Le Point
International .Disponível em: https://www.lepoint.fr/monde/coronavirus -le-bresil-face-a- une-
hecatombe-annoncee-02-05-2020-237380224.php. Acesso em: 18 de maio de 2020. 22
MEYERFELD, Bruno. Coronavirus: Le Brésil desarme face àl’effondrement sanitaire. 18 de maio
de 2020. Le Monde. Disponível em:
https://www.lemonde.fr/international/article/2020/05/18/coronavirus -le-bresil-desarme-face-a-
leffondrement-sanitaire_6039978_3210.html. Acesso em: 19 de maio de 2020.
45
Histeria da mídia e “gripezinha”
O ataque à mídia brasileira23 foi uma estratégia adotada por Bolsonaro em seus
pronunciamentos. No dia 22 de março de 2020, por exemplo, Bolsonaro declarou que a
mídia era responsável por criar pânico na população em relação à chegada da Covid-19
no país, além de enganar os brasileiros. Dois dias depois, em entrevista coletiva24, o
nosso presidente da República referiu-se à Covid-19 como uma “gripezinha”,
subestimando o alto grau de letalidade do novo coronavírus. Nada tem de original, pois
Bolsonaro imitou o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que também deu
diversas declarações sobre a pandemia sem embasamento científico nenhum. Trump
chegou a falar que os Estados Unidos tinham tudo sob controle e que não era necessário
se preocupar. Sem o menor pudor, o presidente estadunidense também disse que a
Covid-19 iria desaparecer. Ambos os países enfrentam, agora, uma das maiores crises
de saúde pública de suas histórias.
“E daí?”
Pouco tempo após o registro do primeiro caso de Covid-19 no Brasil, o número de
mortes começou a crescer. Ao ser questionado pela imprensa brasileira sobre as 5 mil
mortes em decorrência do novo vírus no país, Bolsonaro disse: “E daí? Sinto muito. O
que eu posso fazer?”. Essa resposta dada por Bolsonaro gerou uma intensa revolta na
população brasileira e também repercutiu em diversas agências de notícias
estrangeiras25, fazendo do Brasil um modelo a não ser seguido no combate à
Covid-19. Além disso,
23 PHILLIPS, Tom. Brazil's Jair Bolsonaro says coronavirus crisisis a media trick. 23 de março de
2020. The Guardian. Disponível em:
https://www.theguardian.com/world/2020/mar/23/brazils -jair-bolsonaro-says-coronavirus-
crisisis-a-media-trick. Acesso em: 18 de maio de 2020. 24
FOLHA DE S. PAULO. De 'gripezinha' a pacto, compare pronunciamentos de Bolsonaro na crise do
coronavírus. 08 de abril de 2020. Folha de S. Paulo. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/de-gripezinha-a-pedido-por-uniao-compare-
ospronunciamentos-de-bolsonaro-na-crise-do-coronavirus.shtml. Acesso em:18 de maio de 2020. 25
PHILLIPS, Tom. 'Sowhat?': Bolsonaro shrugs off Brazil's rising coronavirus deathtoll. 29 de abril
de 2020. The Guardian. Disponível em:
https://www.theguardian.com/world/2020/apr/29/so-what-bolsonaro-shrugs-off-brazil- risingcoronavirus-
death-toll. Acesso em: 19 de maio de 2020.
46
mesmo depois que o novo coronavírus começou a fazer suas vítimas no país, o
presidente Bolsonaro nunca restringiu as aglomerações ao redor dele. Sem vestir
máscaras de proteção, ele caminhou inúmeras vezes até as grades do Palácio do
Planalto, onde compareciam multidões de manifestantes e seus apoiadores, e os
cumprimentava, inclusive com apertos de mão. Chegou, até mesmo, a tirar fotos junto
com crianças.
Amazônia e índios em perigo
Grande parte da mídia estrangeira noticiou a situação vulnerável que os povos
nativos da floresta amazônica enfrentava em face da Covid-19. Em entrevista ao vivo na
rede internacional CNN, no dia 04 de maio de 2020, o fotógrafo brasileiro Sebastião
Salgado falou do potencial genocídio dos povos indígenas da Amazônia em razão da
Covid-19. Sebastião Salgado também denunciou a invasão de grupos de mineradores na
Amazônia e afirmou que o governo brasileiro não está tomando medidas cabíveis para
solucionar o problema. Tanto a mídia internacional quanto organizações internacionais
de defesa do meio-ambiente expressaram preocupação com a total falta de ação do
governo brasileiro para proteger a vida dos índios e a floresta.
A fixação pela cloroquina
A mídia internacional exprime uma grande apreensão quanto ao discurso e às
atitudes da autoridade máxima do Brasil acerca do combate ao novo coronavírus,
especialmente no que concerne ao tratamento da doença26 com uso da cloroquina27 – um
medicamento produzido no Brasil, já utilizado, por exemplo, no tratamento da malária.
Apesar de Trump já ter parado de flertar com a cloroquina, Bolsonaro continua dizendo
que a cura para a Covid-19 tem relação com essa medicação. Trump agora foca seu
discurso na vacina contra
26
WOOD, Vincent. Coronavirus: Bolsonaro defies healthad vice topose with supporter sãs Brazil
becomes fourth most-infected country. 18 de maio de 2020. Independent. Disponível em:
https://www.independent.co.uk/news/world/americas/coronaviruslatestbraziljairbolsonarolockdo wn-
economy-chloroquine-health-minister-a9519411.html. Acesso em: 18 de maio de 2020. 27
A cloroquina é tema de outros capítulos deste livro.
47
a Covid-19, enquanto Bolsonaro insiste no uso da cloroquina. Isso, inclusive, gerou
vários conflitos entre o presidente Bolsonaro e seus ministros da Saúde que, baseados
em sua formação médica e bom-senso, não endossaram o uso da cloroquina.
A troca de ministros da Saúde
O cargo de ministro da Saúde tornou-se palco de uma das mais lamentáveis
situações da pandemia. O ministro que cuidava da gestão da crise ainda em seu início
era Luiz Henrique Mandetta, médico de formação. No entanto, à medida que o
presidente Bolsonaro incitava o uso da cloroquina no combate à doença, criava um
conflito com as determinações do seu próprio ministro. Após muito desgaste, Mandetta
saiu. O cargo foi assumido pelo médico Nelson Teich, mas, em menos de um mês, esse
novo ministro pediu demissão28. É notável a denotação de um caos na administração do
governo em meio à pandemia da Covid-19 e de um país que segue sem rumo quando
deveria estar salvando vidas.
O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta alega que Bolsonaro usa a
cloroquina como uma maneira de iludir a população de que é seguro sair às ruas e voltar
a trabalhar, pois, com o uso dela, haveria tratamento para a doença. Mais grave do que
isso é a denúncia de Mandetta de que Bolsonaro, junto com uma equipe do governo
federal, queria assinar um decreto que alteraria a bula da cloroquina, inserindo a
informação de que essa medicação é indicada no tratamento de Covid-19. Esse seria um
ato criminoso, pois uma decisão desse teor poderia ser deliberada somente pelo
Conselho Federal de Medicina (CFM), e não pelo presidente da República, que não tem
formação na área, acompanhado de apenas um médico. No entanto, no dia 20 de maio de
2020, o Ministério da Saúde do Brasil, mesmo sem comprovação científica,
28
LONDOÑ O, Ernesto. Another Health Ministerin Brazil exit samid chaotic coronavirus response. 15
de maio de 2020. The New York Times. Disponível em:
https://www.nytimes.com/2020/05/15/world/americas/brazilhealthministerbolsonaro.html. Acesso em: 18
de maio de 2020.
48
liberou um protocolo que libera o uso da cloroquina para o tratamento precoce de
Covid-1929.
Considerações finais
Esses cinco casos ocorridos no Brasil, especialmente, repercutiram na mídia
internacional em grande parte do mundo, inclusive na Hungria, país onde eu, autor deste
capítulo, vivo. O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, embora seja de um partido
de extrema direita, assim como Bolsonaro, agiu de maneira mais responsável em relação
ao avanço da Covid-19 na Hungria. Todavia, o chefe de Estado húngaro aproveitou-se
desse momento da pandemia para aumentar seu autoritarismo e decretou o fechamento
do congresso húngaro por tempo indeterminado.
A justificativa de Orbán é que seria mais eficiente implementar medidas de
combate à Covid-19 se ele não tivesse que gastar muito tempo com reuniões
envolvendo todos os parlamentares para fazer as deliberações. Contudo, a maioria das
nações não apresentou esse problema levantado pelo governo húngaro e não precisou
alterar o funcionamento da democracia por causa da Covid-19. Recentemente, Orbán
anunciou que reabrirá o congresso e exige que todos aqueles líderes que fizeram críticas
ao seu governo por causa desse decreto autoritário peçam desculpas por terem afirmado
que ele não o revogaria.
No Brasil, embora o distanciamento social tenha sido aplicado por determinação
de vários governadores e prefeitos, o número de casos de Covid-19 no Brasil cresce
assustadoramente. Além disso, sabe-se que o Brasil coloca em risco não apenas a sua
população, mas também de outros países da América do Sul. A negligência a estudos
científicos nos discursos presidenciais tem um efeito direto nas deliberações de
instituições públicas que deveriam estar protegendo a população contra a pandemia
do coronavírus.
29 Agência AFP. Brazil recommend schloroquine totre ateven mild COVID-19 cases. 20 de maio de
2020. France 24. Disponívelem:
https://www.france24.com/en/20200520brazilrecommendschloroquine-to-treat-even-mild- covid19-cases.
Acesso em: 21 de maio de 2020.
49
Isso significa que a situação que estamos testemunhando não é algo que permanece
exclusivamente no discurso. Essa confusão, regada com desinformação, está custando
milhares de vidas.
Convém lembrar que, no âmbito internacional, o Brasil tem um íntegro histórico
de combate a crises de saúde30. A última crise enfrentada pelo Brasil de grande
repercussão internacional foi em 2014 com o surto do Zika vírus. Os acontecimentos
atuais no Brasil durante a pandemia do coronavírus diminui sua importância no
cenário mundial, uma vez que sua trajetória outrora bem sedimentada no combate a
epidemias está se deteriorando.
30 LONDOÑ O, Ernesto. Brazil, on cealeader, struggles to contain vírus amid political turmoil. 16 de maio
de 2020. The New York Times. Disponível em:
https://www.nytimes.com/2020/05/16/world/americas/virusbrazildeaths.html. Acesso em: 19 de maio de
2020.
50
O GRANDE MAL E OS TRABALHOS
Thiago Ricardo de Mattos31
Hoje, quando escrevo este texto, o número de mortes pelo coronavírus passa dos
300 mil no mundo e dos 15 mil no Brasil. É um grande mal que se abate sobre a raça
humana, comparável ao que foram a peste negra, a epidemia de cólera e o holocausto.
Para se protegerem da nova ameaça, alguns países europeus fecharam suas
fronteiras a países vizinhos. O filósofo italiano Giorgio Agamben, sem nenhum prejuízo
à proteção, não pôde deixar de perceber nessa fronteirização a expansão do estado de
exceção, noção que designa o modo moderno de gestão populacional que deixa
determinada parte da população sem direitos. O medo do contágio apoia-se,
irracionalmente, em um antigo medo ao estrangeiro.
No Brasil, em seu cotidiano e sua construção dos modos de viver, o eu e o outro,
o asfalto e a favela são inseparáveis entre si. A ordem de isolamento social não é
investida por nenhuma libido. Aqui, a mentalidade social e as políticas diferenciam
entre aqueles que devem trabalhar e, por conseguinte, não podem se isolar e aqueles que
não precisam trabalhar. Em um momento em que se deve buscar reduzir a velocidade
dos novos casos de coronavírus, o governo brasileiro insiste que o principal mal a se
evitar é a destruição da economia. Por isso, ele pressiona estados a abrirem seu
comércio e serviços, e lança sucessivas sugestões e ameaças de perda de emprego à
população mais pobre, aquela sobre a qual o trabalho sempre foi usado como medida de
controle social.
Uma sabedoria antiga sobre como o ser humano deve lidar com os males que
sobre ele se abatem é narrada no famoso poema épico “Odisseia”, de Homero. Zeus
ordena que todos sejam hospitaleiros com o estrangeiro que lhe vem. Ulisses e sua
tripulação chegaram a uma terra que lhes pareceu acolhedora e provedora, e esperavam
a hospitalidade dos locais. Entretanto, os
31 Estudante de Filosofia. Graduado em Psicologia pela Universidade Estácio de Sá.
51
Ciclopes, que não respeitavam Zeus, aprisionaram e devoraram os visitantes. Textos
como esse são proveitosos não para os comparar com a atualidade, mas, sim, para fazer
questionamentos como “Por que Zeus quer que sejamos hospitaleiros com o
estrangeiro?” ou “Por que se deve reprovar os governantes que não favorecem a
equanimidade entre os homens?”.
Talvez haja uma resposta para essas perguntas no texto sobre o mito das duas lutas,
constante no também poema épico “Trabalho e os dias”, de Hesíodo.
Hesíodo evoca as Musas, que falarão, através da boca do poeta, a sabedoria de
Zeus. De acordo com Zeus, a vida do homem sobre a Terra conhece duas lutas: a
primeira delas é odiosa para os mortais, pois é má e, ao ser combatida, só amplia, jamais
abrevia, o combate. Lembre-se do quanto os combatentes em Troia ansiavam pelo
encerramento da guerra e seu consequente retorno para casa. A guerra estendeu-se por
10 intermináveis anos, e pouquíssimos sobreviveram. A segunda luta nasce das raízes
da terra e desperta nos homens o desejo de trabalho. O homem vê o seu vizinho
enchendo sua despensa, melhorando sua casa e, então, o inveja. Isso o faz se engajar
nessa mesma luta, que o louva. A sabedoria de Zeus diz que entrar em disputas diretas
com o seu vizinho é desaconselhável, pois desperta a primeira luta e distrai o homem da
segunda. Também diz que os governos devem favorecer a justiça entre os homens, para
que eles não se destruam. Por isso, deve-se acolher o estrangeiro e estimular os cidadãos
a não entrarem em disputas por víveres ou posições, mas, sim, a se concentrarem em
seus próprios trabalhos. Nesse ínterim, à cidade e aos homens que promovem injustiças,
Zeus manda guerras e pestes.
Hoje, tendemos a julgar esses males como naturais ou, então, causados pelos
homens. A Guerra de Troia foi causada pelo rapto de Helena pelos troianos, mas
também se pode dizer que esse rapto foi incitado por Afrodite. A causa foi humana ou
divina? Essa pergunta nos cabe: em que medida temos conhecimento daquilo que
pensamos conhecer e controle daquilo que pensamos controlar?
52
Até o momento da publicação deste capítulo, ainda não havia uma delimitação
clara sobre a causa do surgimento do coronavírus. Talvez, nunca se chegue a delimitá-
la.
A tarefa dos governos engloba a abertura e o equipamento de leitos hospitalares e
o provimento de condições para que todos possam ficar fisicamente isolados e também
para que fiquem sem trabalhar aqueles de trabalhos considerados não essenciais nesse
momento. O governo brasileiro está falhando nisso, visto que não cuida da
desaglomeração de pessoas em lugares de baixa renda e não fornece a elas um aporte
financeiro que permita seu isolamento. Isso é o que o governo não faz. Já o que ele tem
feito é mandar os pobres ao trabalho, expondo-os à doença contra a qual eles não terão
recursos para se tratarem, e promover enormes filas em frente a agências bancárias, por
pessoas que buscam uma quantia que não será suficiente para mantê-las em casa.
A incumbência que se impõe à população mundial – inclusive, é claro, a brasileira
–, ou seja, o seu atual trabalho ou luta louvada, é a prevenção contra o próprio
adoecimento e dos outros: usar máscara, lavar as mãos, higienizar os ambientes, deixar
de visitar os entes queridos e, até mesmo, deixar de exercer o próprio trabalho. No
Brasil, apesar de grande parte da população estar empenhada nisso, o número de casos
está em franco crescimento e, por isso, talvez seja necessário exercer um isolamento
social ainda maior. O governo ainda parece ignorar a letalidade do vírus e as suas
próprias atribuições. Nos discursos presidenciais, a retração da economia aparece
como o verdadeiro mal a ser combatido, atribuindo-se ao trabalhador a responsabilidade
pelo seu enfrentamento. A população não é deixada, por nenhum momento, desgarrar-
se da identidade de trabalhador; ela não pode deixar de trabalhar e deve adaptar a isso
suas medidas de proteção contra a contaminação. A vida nua, vida reduzida ao biológico
e preocupada antes com a sobrevivência. Assim é, por aqui, o organismo de um pobre,
um pulmão de trabalhador que não pode parar de funcionar, sob a ideia de que não é a
sobrevivência dele próprio que se arrisca, mas a do país.
53
O mal do coronavírus tomou uma dimensão tão grande no Brasil que é
considerado um dos maiores do mundo em relação à essa pandemia. O seu governo
também é um mal, pois atua conjuntamente com o vírus.
O trabalho de enfrentamento da doença só é possível com a luta contra aquele que
trouxe o mal. Hesíodo diz que o povo tem um forte aliado contra o rei desatinado e
injusto:
Alinhai as palavras, ó reis comedores-de-presentes, esquecei de vez tortas
sentenças! A si mesmo o homem faz mal, a um outro o mal fazendo: para quem a
intenta, a má intenção malíssima é32.
Rio de Janeiro, 22 de maio de 2020.
32 HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Tradução estudos e notas Luiz Otávio de Figueiredo Mantovaneli. São Paulo: Odysseus, 2011. vv. 260-266.
54
PANDEMIA E O NEGACIONISMO NOSSO DE CADA DIA
Estevão Lemos Cruz33
Certa vez, nos idos tempos da minha graduação em Filosofia, um professor muito
estimado contou a seguinte história acerca da importância e do problema da inutilidade
da Filosofia e do filósofo: “todos sabem da importância do piloto de avião. Se ele erra
em seu ofício, é um grande problema! O avião cai e pessoas morrem. O mesmo ocorre
com o neurocirurgião. Se ele comete um erro, o paciente pode morrer ou ficar com
sequelas terríveis. E o filósofo? Se ele erra em seu ofício, o que ocorre? Não há mortos,
não há comoção e é bem provável, aliás, que ninguém perceba ou se chateie. Nada mais
inofensivo do que errar a interpretação de um poema ou um texto filosófico. Entretanto,
o que ocorre depois de duzentos ou trezentos anos de má interpretação e leituras
equivocadas? O fundamental do texto é perdido. Não porque suas linhas foram
esquecidas, já que ele pode continuar sendo recitado com frequência e, até mesmo, se
tornar um lugar-comum. Ele é perdido porque o que há de fundamental nele se tornou
inacessível, obliterando-se toda a compreensão de mundo que há em jogo nele.
Duzentos anos de má interpretação e toda uma possibilidade de interpretação de mundo
e de realidade se perde. Mas não só isso. A má interpretação sempre é acompanhada por
justificativas e reelaborações que buscam perpetuar sua leitura de mundo até, por fim,
sufocar e enterrar definitivamente toda possibilidade de acesso à compreensão de
mundo anterior. Essas reelaborações confundem-se com a própria história da filosofia e
elas acontecem de tal modo que o que hoje compreendemos como mundo ou realidade
não passa de um apinhado de más interpretações. O filósofo, ao errar, não mata pessoas
como o cirurgião ou o piloto, ele mata o mundo”.
O leitor pode até imaginar o quanto eu ficava perturbado com isso. Eu não queria
assassinar nenhuma compreensão de mundo! Eu pensava: “Malditos filósofos e suas
interpretações equivocadas!”. E, assim, todo zelo na leitura dos textos parecia pouco.
Confesso que já não me lembro bem do contexto da fala,
33 Professor adjunto do curso de Filosofia e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da
Universidade Estadual do Paraná – [email protected]
55
mas é bem provável que ele estivesse se referindo ao platonismo e suas interpretações
acerca da obra platônica. Concordando ou não com as premissas e conclusões de meu
antigo professor, há um fato inegável em sua fala: o filósofo detém a grande
responsabilidade de interpretar mundo.
O que é interpretar mundo? É dispor-se a tentar compreender o que faz da
realidade tal como ela se apresenta, e isso pode se deixar dizer sob diversos matizes
explicativos que, por sua vez, podem assumir contornos da metafísica, da política, da
ética, enfim. Agora, se a tarefa de interpretar o mundo e a realidade já é, por si só,
árdua, propor-se a fazer isso quando o mundo que conhecemos parece se revelar de
modo distinto torna-se uma tarefa descomunal. Tal é a responsabilidade do filósofo da
qual não se pode abrir mão sem abdicar de seu título. Assim, da combinação entre as
dificuldades que uma nova realidade apresenta e o imperativo que obriga ao filosofar,
algumas apostas filosóficas acabam por ser propostas.
Por mais das vezes, as apostas costumam se mostrar totalmente fracassadas, e não
são raras suas ocorrências na história da filosofia. Um exemplo clássico de aposta
fracassada advinda da combinação entre as dificuldades de uma nova realidade e a
necessidade do filosofar foi o caso de Martin Heidegger e o nazismo. Muito se discute
se o filósofo alemão era um nazista de carteirinha ou “apenas” detinha uma leitura
distinta acerca do que era ou do que deveria ter se tornado o nacional-socialismo. No
entanto é inegável que seus discursos sobre o destino histórico da Alemanha
demonstram uma aposta filosófica muito torpe no contexto político de sua época34. Por
outro lado, são desconcertantemente precisas as considerações e previsões que
Heidegger faz acerca do fenômeno da técnica, que influenciará toda uma geração de
pensadores35. Outro filósofo a se equivocar em algumas
34 Sobre o tema, ainda vale a pena conferir a biografia feita por Rüdiger Safranski, intitulada
Heidegger:um mestre na Alemanha entre o bem e o mal. 35
Uma famosa previsão de Heidegger, feita em 1935, diz: “Quando o mais afastado rincão do globo tiver
sido conquistado tecnicamente e explorado economicamente; quando qualquer acontecimento em
qualquer lugar e a qualquer tempo estiver tornado acessível com qualquer rapidez; quando um atentado a
um reina França e um concerto sinfônico em Tóquio puder ser ‘vivido’ simultaneamente; quando tempo
significar apenas rapidez, instantaneidade e simultaneidade, o tempo, como História, houver desaparecido
da existência de todos os povos; quando o pugilista valer, como o grande homem de um povo; quando as
cifras em milhões dos comícios de massa forem um triunfo, então, justamente então continua ainda a
atravessar toda essa assombração, como um fantasma, a pergunta: para quê? Para onde? E o que
agora?”
56
de suas leituras e previsões face às transformações que se faziam presentes no mundo
foi Marx. Sua previsão sobre a inevitável revolução nos países industrializados nunca
chegou a acontecer. Em contrapartida, são inúmeros os acertos que prediziam a atuação
do capitalismo, tal como o processo de globalização, a recorrência das crises
econômicas, a tendência da concentração e da centralização do capital, enfim. Os
exemplos citados aqui servem ao propósito de ilustrar que a demanda de se pensar uma
nova realidade sempre esteve presente na história da filosofia e que tais reflexões, como
é de se esperar, trazem apostas por vezes equivocadas e outras muito precisas.
É certo que houve, e ainda há, inúmeros impactos na realidade que obrigaram os
filósofos a levantarem suas canetas. Além nacional-socialismo e a ascensão do
capitalismo industrial, já citados, poderiam ser dados exemplos que iriam desde o
estabelecimento da democracia ateniense até o surgimento das redes sociais ou o
desenvolvimento de inteligências artificiais. Tais acontecimentos que bombardeiam
nossa realidade são comuns e cabe ao filósofo interpretá-los.
O ano de 2020 trouxe mais um desses acontecimentos. No dia 11 de março de
2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o surto de Covid-19
passava a ter o status de pandemia. Com centenas de milhares de mortos, a Covid-19 já
é responsável por mais mortes que a SARS, a MERS ou mesmo a gripe A (H1N1)36. Tal
cenário fez os mais diversos pensadores contemporâneos sentirem-se obrigados a se
manifestar e traçar os seus prognósticos. Foram tantas as perspectivas mostradas, as
possibilidades aventadas, os diagnósticos sugeridos que o leitor mais costumaz da
literatura filosófica hodierna pode ter se sentido mais perdido ao final das leituras do
que quando embarcou nelas. Não faltou nenhuma perspectiva possível: previsões
apocalípticas foram bradadas, caixões foram encomendados para enterrar o sistema
capitalista, o “novo normal” foi prescrito, sociedades alternativas foram
(HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. 4.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. p.64-
65). 36
Cf.SIMONSEN, Lone; SPREEUWENBERG, Peter; LUSTIG, Roger; et al. Global mortality estimates
for the 2009 influenza pandemic from the GLaMOR Project: a modeling study. PLOS Medicine,
10(11): e1001558, 2013. Disponível em:
https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1001558. Acessoem: 08 de junho de 2020.
57
inventadas, teorias da conspiração desveladas, teses políticas confirmadas, o ano de
2020 foi batizado como o mais importante da história da humanidade, rupturas com o
passado próximo tornaram-se irrecuperáveis, o bom-senso foi chamado para debate e
depois excluído do debate por acreditar que ele já não tem lugar no mundo. Enfim,
ergueu-se uma miscelânea de posturas filosóficas que acredito, inclusive, ser sempre
sadia ao pensamento. No entanto uma postura perniciosa vez ou outra se fez presente na
discussão, e é sobre ela que eu gostaria de refletir: o negacionismo.
Sou daqueles que gostam de textos provocativos, dos que preferem ler as previsões
malucas e com o humor genial de SlavojŽižek37às corretas e sóbrias análises do filósofo
sul-coreano Byung-Chul Han38. Em um texto de 27 de fevereiro de 2020, quando a
Covid-19 sequer começava a engatinhar no continente europeu, Žižek apontava o
coronavírus como um golpe mortal no capitalismo que poderia culminar em uma
reinvenção do comunismo. É claro que é uma proposição provocativa, embora não se
resuma a isso. Trata-se, sobretudo, de um exercício filosófico que busca pensar um
cenário possível e que, ao mesmo tempo, serve de pretexto para pensarmos sobre nossa
realidade. O escrito de Žižek é genial e não deve ser confundido com um delírio alucinado
de um filósofo comunista. Han, por sua vez, quase um mês mais tarde, é direto e
certeiro em sua análise: “o vírus não vencerá o capitalismo”, ao contrário, o capitalismo
haverá de se alimentar mais uma vez da crise e sairá mais forte. O texto de Han é muito
mais sóbrio, mas apenas nos entrega o óbvio. Não é propriamente um exercício
filosófico e também não há nada ali que, de modo mais ou menos claro, já não
saibamos. O escrito de Han também é genial, mas, pela sua clareza, e não pelo que
propõe.
Embora sejam dois textos de proposituras e métodos bem diferentes, ambos se
dispõem à função de pensar a nova realidade que se apresenta. O negacionismo não faz
isso.
37Cf.ŽIŽEK, Slavoj.El coronavirus es un golpe al capitalismo a loKill Bill.In: AGAMBEN, Giorgio et al.
Sopa de Wuhan: pensamientocontemporáneoentiempos de pandemias. ASPO (Aislamiento
Social Preventivo y Obligatorio), 2020. 188p. p.21-28.Disponível em: https://www.medionegro.org/pdf-
sopa-de-wuhan/. Acesso em: 22 de junho de 2020. 38
Cf. HAN, Byung-Chul. La emergencia viral y el mundo de mañana.In: AGAMBEN, Giorgio et al.
Sopa de Wuhan: pensamientocontemporáneoentiempos de pandemias . ASPO (Aislamiento
Social Preventivo y Obligatorio), 2020. 188p.p.97-112 .Disponível em: https://www.medionegro.org/pdf-
sopa-de-wuhan/ . Acesso em: 22 de junho de 2020.
58
O que é o negacionismo? É a posição de negar fatos ou argumentos verificáveis
sem apresentar uma contraprova que detenha alguma validade. É um posicionamento
filosófico? Não. O negacionismo representa justamente o oposto de toda pretensão
filosófica. Ele não figura como uma possibilidade filosófica tal como o ceticismo, o
dogmatismo, o criticismo, etc.39. O negacionismo é o antipensamento. Trata-se
exatamente da recusa da responsabilidade que a atividade filosófica demanda, aquela
mesma responsabilidade para qual meu velho professor chamava atenção. O
negacionismo não quer interpretar a realidade, pois ele já o fez; o que lhe interessa é
liquidar as demais possibilidades. Se o real se mostra diferente de sua leitura, pior para
o real. O negacionista usa de todos os subterfúgios à sua disposição para fazer valer sua
posição e, portanto, não compartilha do método filosófico ou científico.
Como nasce o negacionismo? Essa é uma pergunta complexa e de resposta
sempre insatisfatória, porque a postura negacionista tem várias origens.
A mais banal tende a ser um mecanismo psicológico de defesa contra qualquer
verificação da realidade que seja deletéria a uma compreensão de mundo já
consolidada40. A negação do evolucionismo – ou de que a Terra tenha mais de 10 mil
anos – por parte de alguns grupos religiosos se enquadra bem em tal perfil. Não se abre
mão de uma compreensão de mundo já fixada desde a infância por meras evidências
científicas. Medo, culpa e orgulho costumam acompanhar a negação de fundo religioso.
A mesma origem negacionista é perceptível também no “culto à personalidade”
de alguns líderes ou chefes de Estado. Depois de confirmada na mente negacionista que
tal líder detém caráter irretocável, um messias escolhido de Deus, todo deslize será
justificado; todo comportamento, insuspeito; toda acusação contrária, ilegítima; a
mídia, mentirosa e
39 É muito importante demarcar tal diferença porque muitas vezes o negacionista acredita ser um cético e,
não poucas vezes, costuma-se tratar o negacionismo como sinônimo de ceticismo. O ceticismo é, sem
dúvida, uma das mais rigorosas posturas filosóficas e encontra suas características fundamentais na
dúvida, na suspensão de juízo, jamais na negação. 40
É possível encontrar também algumas boas justificativas acerca dessa origem em estudos sobre
irracionalidade motivada e sobre autoengano, frequentes na filosofia da mente e na psicologia política.
59
conspiratória; os adversários políticos, verdadeiros demônios transvestidos de pessoas
para serem pedras de tropeço na jornada sagrada de ilibação moral da nação.
Origem semelhante também pode ser encontrada no meio acadêmico. Ela, no
entanto, é mais sutil nesse ambiente e se alimenta, sobretudo, do subproduto mais
daninho da universidade, o orgulho acadêmico. O negacionismo pode se expressar entre
os docentes quando rejeitam imediatamente os argumentos ou resultados de pesquisa
que se verificam contrários àqueles defendidos em suas trajetórias acadêmicas. Deve-se
confessar que não é fácil admitir que a teoria que você defendeu por anos não parece
mais encontrar respaldo na realidade. Esse tipo de negacionismo tende a ter pouca
sobrevida no campo das ciências empíricas em razão do avanço das novas pesquisas,
mas é frequentemente longevo nas humanidades. No entanto é possível identificar o
negacionismo nas humanidades quando há o uso recorrente de argumentum ad
personam, evidências incompletas (cherry picking) e, por vezes, a negação de
conceitos básicos.
Há ainda uma segunda origem possível do negacionismo que costuma vigorar não
entre os docentes, mas entresos estudantes e que, muitas vezes, é insuflado por
professores que se pretendem politicamente incorretos. Veja, não tenho absolutamente
nada contra o politicamente incorreto. Ao contrário, penso que toda filosofia só é
filosofia quando politicamente incorreta, isto é, subversiva, quando não está a serviço
da mera defesa partidária e tem a coragem de colocar em jogo seus próprios
pressupostos. Contudo os que geralmente se proclamam politicamente incorretos não
compreendem o significado da incorreção política e nada têm de subversivos; ao
contrário, são notoriamente reacionários, e suas concepções têm mais afinidade com os
“guias politicamente incorretos” vendidos em bancas de jornais, bem como seus apelos
intelectuais encontram sustentação quase exclusivamente em frases de efeitos. Tais
frases de efeitos e a imagem do “politicamente incorreto” ganham facilmente guarita nos
corações dos jovens estudantes que, inexperientes, julgam que filosofia ou ciência têm
algo a ver com vencer debates e discussões.
60
Nota-se que o negacionismo aqui demarcado não encontra abrigo somente entre
estudantes, mas entre todos que querem dar algum tom cientificista às suas “teses”.
Como as pseudociências negacionistas ainda não encontram solo propício em
universidades, resta a tais discursos se espalharem pelas redes sociais, pelo YouTube,
pelo WhatsApp, etc. Alguns negacionismos clássicos se encaixam bem aqui, tais como
os que negam a eficácia das vacinas, a ida do homem à Lua ou o formato esférico da
Terra. Os que se deixam seduzir por esses tipos de “teses” são motivados, em geral, pelo
sentimento de que estão indo contra o sistema. Nesse sentido, nem sequer importa
identificar o que é o sistema e como ele atua, importa apenas ir em direção contrária.
Eles são os antiacadêmicos; os que não se confundem com o intelectual engomadinho;
os que, heroicamente, não se rendem aos caprichos da academia. Contudo tal prática
negacionista explicita na verdade uma vontade de destruição, que não se confunde nem
mesmo com o desejo do novo pelo novo ou da crítica pela crítica, mas que se esforça
apenas em destruir sua fonte de descontentamento, seja uma teoria consolidada ou
mesmo os conceitos básicos de uma ciência. Mas não só isso. O negacionismo que busca
algum tom cientificista se fundamenta, historicamente, na compreensão de que as
pessoas só devem aceitar como válidas as teorias que se mostrarem evidentes a elas por
meio de seus próprios experimentos, recursos e conhecimentos prévios. A proposta soa
tentadora, democrática, mas é completamente irreal. Por exemplo, eu não posso
pretender dominar e entender o mecanismo de criação e o funcionamento de uma vacina
com base apenas em minhas experiências (aliás, com as minhas, sequer chegaríamos a
ter descoberto algo como vacina). Todavia, o deslumbre da defesa de uma posição
contra o sistema é o suficiente para criar, entre as pessoas que a compartilham, um
sentimento de pertencimento a um grupo, uma ideia de que, juntas, lutam contra um
inimigo maior e mais bem armado.
O sentimento de pertencimento é base dessa segunda origem que leva ao
negacionismo, e não nos enganemos acreditando que o negacionismo oriundo do
sentimento de pertencimento a um grupo é algo meramente inocente. Nessas
circunstâncias, também podem ser verificados os negacionismos perversos que
rejeitam, por exemplo, o holocausto, a tortura na
61
ditadura militar brasileira e, até mesmo, a escravidão – negações que, muitas vezes, hão
de se transformar na tentativa de um revisionismo.
Por fim, há ainda uma terceira origem do negacionismo que encontra exemplos no
negacionismo climático e da Covid-19. Essa origem é percebida na dificuldade de se
aceitar mudanças de comportamentos, alterações do cotidiano. Se a primeira origem
indicada tem a ver com a não aceitação de uma realidade que contradiga uma
compreensão de mundo já estabelecida, essa terceira origem diz respeito à negação da
realidade que implica uma mudança no comportamento da pessoa no mundo.
O que torna a aceitação do aquecimento global difícil não é a falta ou a
imprecisão das pesquisas sobre o assunto, mas a mudança de comportamento que ela
implica. Ademais, mudança de comportamento não diz respeito somente às pessoas em
particular, mas às práticas governamentais, que, ao aceitar a realidade das mudanças
climáticas, precisariam alterar suas estratégias de ação, intervindo no setor privado e
investido em políticas ambientais.
A pandemia de 2020, de modo bem mais flagrante, impôs subitamente a
necessidade de uma mudança de comportamento. Isolamento social, quarentena, uso
constante de máscaras e álcool em gel, ensino à distância, aumento do desemprego,
fechamento de comércios, superlotação de hospitais, contagem diária de mortos, tudo
isso parece ter nos tomado de assalto em tamanha velocidade que não fomos capazes de
processar a natureza da realidade que nos atingia – e justamente por não entender,
negamos. O particular nega para não ter que usar máscara ou ficar confinado em casa, o
governo nega para não alterar seu comportamento neoliberal. No entanto os
particulares, ao se obrigarem a uma mudança de comportamento, impedem que as
políticas governamentais permaneçam as mesmas. Assim, o governo negacionista, para
manter seu comportamento, necessariamente agirá de modo a minimizar a pandemia e
a convocar as pessoas de volta ao trabalho, mesmo que isso represente o colapso do
sistema público de saúde e a morte milhares de cidadãos. O mesmo governo há também
de negar número de mortos, propor recontagens, ocultar informações. Não é difícil
prever seus passos. Realmente o ano de dois mil e vinte traduziu e escancarou o
sentido
62
de necropolítica. Mas é fundamental que tenhamos em alerta que tradução não implica
em aprendizagem. Há ainda muito trabalho a ser feito pela filosofia nos países
governados por líderes negacionistas, pois nenhum governo é eleito sem um
eleitorado que compartilhe seu modo de pensar.
Pois bem, até aqui, falamos do negacionista como se ele fosse um conhecido
distante, um parente de quem não gostamos e que, só com muito esforço, admitimos
compartilhar o mesmo DNA. No entanto, talvez mais do que qualquer outro fenômeno
histórico recente, a pandemia de 2020 revela o negacionista que se esconde em nós. Não
porque negamos a pandemia e o número de mortos, apesar de muitos o fazer, mas
porque negamos que vivemos vidas precárias, descartáveis. É preciso reconhecer que
não é a morte de 500 mil pessoas que está nos comovendo. Morrem quase 4 mil
pessoas no mundo todos os dias só por diabetes e não há nenhuma cruzada midiática
contra a indústria alimentícia. O que temos, no máximo, é a exploração comercial de
produtos e do estilo de vida fitness. O que nos comove, na verdade, é a mudança
obrigatória em nosso comportamento, o sentimento de privação de liberdade e o
medo de tal situação se prolongar indefinidamente ou de voltar a se repetir. Apenas
queremos voltar à vida normal e, aqui, não basta apenas não refletir sobre a
precariedade de nossa existência, mas, diante da forçosa mudança em nosso
comportamento, chegamos mesmo a desejar a ter de voltar nossa precariedade como
nunca antes. Em meio a pandemia descobrimos que não nos importamos em vivermos
vidas precárias, desde que eu possa continuar vivendo minha vida como sempre vivi. Se
o mesmo número de mortes tivesse acontecido não por uma doença infectuosa, mas por
um aumento no número de cânceres que em nada tivesse alterado nossa rotina, teríamos
apenas uma nota de jornal – e vida que segue. Mas, que tipo de vida? Quando a
pandemia passar, provavelmente pouco teremos aprendido com ela. O “novo normal”,
de que tanto se fala, não passará de, quando muito, uma maior conscientização de
higiene, mudanças em protocolos de viagem, utilização de ferramentas à distância que,
em proveito de um produtivismo questionável, surrupiará ainda mais o tempo de vida
do trabalhador, transformando sua casa uma extensão do local de trabalho.
63
Não me entendam mal. Quero voltar à minha vida normal tanto quanto todos e
também não gosto da ideia de que os acontecimentos da vida devam ser acompanhados
de uma “moral da história” – não, não devem e não precisam. Contudo, em prol de uma
honestidade existencial, não devemos negar o negacionismo que há em nós. Só
queremos ir de volta para nossas vidas, nossas vidas precárias.
64
O PAPEL DA RESPONSABILIDADE NA CRISE SANITÁRIA
CONTEMPORÂNEA
Leonardo Nunes Camargo41
Do final do século XIX até meados do século XX, a pergunta filosófica
predominante na Europa, mais precisamente na Alemanha, era sobre o papel do homem
na natureza. A preocupação dos pensadores da chamada Antropologia Filosófica, como
Scheler, Gehlen e Plessner, era determinar qual aspecto antropológico diferenciava a
espécie homo sapiens dos demais seres vivos. Por detrás desses sistemas filosóficos e
narrativas, sempre prevaleceu um tipo de antropocentrismo que privilegiava a
capacidade intelectiva do homem em detrimento dos demais. No entanto, as tentativas
em reestabelecer os laços vitais com o mundo natural abriram perspectivas e caminhos
para poder se pensar o ser humano nos dias de hoje.
Desse modo, também no século XXI, o objeto da filosofia é pensar a questão
antropológica diante dos avanços da tecnologia e das paulatinas crises sanitárias. O
poder técnico conferido ao homem, pelo humanismo do século XV, conforme afirmado
por Pico della Mirandola, em seu Discurso sobre a dignidade do homem, mostra
que o homem é a coisa mais admirável para se contemplar no mundo. Intermediário de
todas as coisas da natureza, o homem poderá ser “o modelador e escultor de si mesmo”
conforme sua vontade.
Fizemos uma criatura nem dos céus nem da terra, nem mortal nem imortal,
para que você possa, como o modelador livre e orgulhoso de seu próprio ser,
formar-se na forma que preferir. Estará em seu poder para descer para as
formas inferiores, formas brutais da vida; você será capaz, por meio de sua
própria decisão, subir novamente às ordens superiores cuja vida é divina42
.
41 Doutorando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), bolsista da
CAPES. E-mail: [email protected] . 42
MIRANDOLA, 1989, p.7-8.
65
Entretanto, essa criatura apta a modelar sua existência e decidir a sorte dos
demais seres vivos tornou-se inoperante e impotente diante da presença de novos vírus
e bactérias, como o da Covid-19, por exemplo. Assim, em um cenário de crise sanitária,
aquele ser vivo, dotado de racionalidade, capaz de ascender ao divino, revela sua
fragilidade e precariedade existencial.
Nesse ambiente contemporâneo, onde se manifesta a impotência do ser humano,
este capítulo pretende fazer alguns questionamentos sobre a urgência de um novo agir
ético que seja capaz de guiar nossas ações no presente e, por meio das próximas
gerações, no futuro.
A marca ontológica da vida e sua fragilidade
Quando pensamos na vida enquanto fenômeno, portadora de uma marca
ontológica, queremos refletir sobre algo que a aproxime de sua dimensão natural, cuja
finalidade é o rompimento com o antropocentrismo ocidental. Pensar a humanidade
longe desses padrões tornou-se indispensável para a filosofia nos dias de hoje. Desse
modo, o primeiro passo para tentar definir a vida é eliminar de sua categorização a não
essencialidade, isto é, não podemos pensá-la enquanto substância dada e fixa.
Um dos fatores que contribuiu para esse rompimento da universalização do
conceito de natureza humana foi a tecnologia. Ela gerou um problema ético na medida
em que passou a influenciar as ações humanas, moldando-as de acordo com seus
interesses econômicos e políticos. Nesse sentido, a própria vida converteu-se em um
produto tecnológico, ou, como Heidegger havia sugerido em seu texto A questão da
técnica, de 1953, uma Gestell ou, ainda, uma interpelação produtora, um estágio
transitório.
Qual seria a marca ontológica da vida mencionada no subtítulo dessa seção?
Seguindo o pensamento de Hans Jonas, sugere-se que essa marca seja a liberdade,
enquanto dimensão fenomênica que extrapola os limites da consciência humana e se
insere em todo reino da vida. A liberdade deve ser entendida como um “conceito-guia
capaz de orientar-nos na tarefa de
66
interpretar a vida”43. Se a intenção é pensar em uma nova posição do homem no
cosmos, isto é, como agente portador da responsabilidade, e por isso, responsável por
salvaguardar as gerações futuras de possíveis ameaças que atingem sua integridade e
autenticidade, é preciso repensar o fenômeno vida e atribuir a ela uma característica que,
até então, era exclusiva do ser humano.
Jonas sustenta que o surgimento da vida ocorre enquanto um acontecimento que
parte de uma escolha da própria vida, de uma decisão que a própria vida teve de tomar a
fim de manter sua “sobrevivência”. Por meio de uma ação primária, a substância viva,
ao se separar da interação geral das coisas da natureza, portanto, ao se desprender da
matéria inerte, introduziu no mundo a tensão entre ser e não ser. Jean Monod confirma a
tese jonasiana ao enunciar que “apenas o acaso é a origem de cada novidade, de cada
criação da biosfera. O acaso puro, apenas o acaso, a liberdade absoluta, mas cega, para a
raiz própria do prodigioso edifício da evolução”44. Com essa escolha (ação primária),
surge uma série de consequências com as quais a vida terá que conviver, bem como
contradições que, até então, eram impostas apenas ao ser humano, como autonomia e
dependência, vida e morte, relação e isolamento, entre outros45.
A vida, desse modo, passa a ser marcada pela liberdade (ou seja, ela escolhe viver,
dá o “sim” necessário para continuar a existir) e pela necessidade (caso a vida não
quisesse viver e não optasse pelo sim, ela teria escolhido a morte, sua negação). A cada
novo estágio que a vida opta por um sim, mais livre ela se torna. Entretanto, junto com
sua possibilidade de conquista, há, em mesmo grau, o risco de fracasso; a cada grau de
desenvolvimento da vida, maiores o perigo e a ameaça. Nesse sentido, pode- se afirmar
que a vida só é o que é porque ela arrisca, mesmo sabendo da sua fragilidade e das
adversidades que ela encontra.
43 JONAS, 2004, p.106.
44 MONOD, 1976, p.96. 45
A polaridade fundamental que Jonas considera é a entre ser e não ser. O organismo deve,
constantemente, afirmar sua identidade, fazendo um esforço contínuo para adiar sua contradição
eminente, o não ser, uma vez que essa é a regra das coisas do universo. Entretanto, apesar de todo o
esforço que o organismo empreender ao se opor à sua contradição, ele, no fim, sucumbirá perante a
morte. Dessa forma, a mortalidade torna-se característica essencial da própria vida.
67
A liberdade na história da vida representa o desprendimento que o organismo
(forma viva) tem em relação à matéria. O corpo vivo não é simplesmente corpo
material, há algo nele que transcende. Essa liberdade nasce no metabolismo como
independência do orgânico para com a matéria e termina nos níveis mais elevados da
evolução orgânica, ou seja, passa pela imediaticidade das plantas, pelas capacidades de
sensação, pelo movimento e pela emoção dos animais, e chega aos seres humanos,
último estágio da escala evolutiva de Jonas.
A liberdade encontra seu substrato básico no metabolismo, que se revela como
“um poder da forma orgânica, o poder de mudar sua matéria, mas que, ao mesmo
tempo, implica também a inevitável necessidade de fazer exatamente isto”46. A vida é
livre e, como tal, “carrega nos ombros o fardo da necessidade”47. Trata-se de uma
“liberdade dialética”48: ao mesmo tempo em que é livre, a vida também é obrigada à
liberdade, na medida em que precisa intercambiar com o ambiente para que possa
continuar vivendo. Desse modo, a atividade metabolizante torna-se, no pensamento de
Jonas, a característica fundamental da existência orgânica. A audácia da liberdade da
forma viva carrega consigo o fardo da necessidade.
O próprio ser orgânico passa a ser pensado como uma atividade, isto é, a vida, a
fim de se afirmar, precisa manter, constantemente, uma relação equilibrada entre as
polaridades em que ela se encontra. Portanto, tal atividade passa a estar ligada ao
conceito de vida e, dessa forma, inaugura-se uma nova filosofia voltada ao organismo,
em que tanto o espírito como a matéria passam a fazer parte do mesmo ser. Segundo
Jonas, a vida é um modo de ser e o organismo é a parte visível do universo na qual esse
modo de ser se realiza, é onde a vida se manifesta.
A vida possui necessidade do mundo, está relacionada com ele, depende dele, está
disposta ao encontro dele, experimenta o mundo e, através dessa “experiência, possui o
mundo”49. O mundo torna-se elemento constitutivo da
46 JONAS, 2004, p.107.
47 Idem, p.14.
48 Idem, p.106.
49 Idem, p.108.
68
atividade orgânica. Enquanto o ser vivo depender da matéria para se renovar, o mundo
se abrirá para a forma viva a fim de suprir suas necessidades e carências50. Liberdade,
no âmbito ontológico da vida, é a tensão entre dever e necessidade para se auto-afirmar.
Hans Jonas, nesses tempos de crise sanitária, parece acertar em sua proposta
fenomenológica ao analisar a vida em sua dimensão frágil e precária. Em outras
palavras, somos produtos da natureza, dependentes de Gaia. Para entender a dimensão
da crise que agora se vive, é preciso nos colocarmos, enquanto seres vivos, dentro de
um macrocosmo copertencente e interligado a outros seres que habitam e coexistem
conosco. O que a atual adversidade nos revela nada mais é que precisamos mudar
nossos hábitos de consumo e de relacionamento com o meio ambiente, e que, se não
mudarmos nosso comportamento, seremos facilmente eliminados por novas agruras. O
vírus da Covid-19 desvela justamente a nossa fragilidade existencial e, ao mesmo
tempo, desmascara, de um ponto de vista epistemológico, a racionalidade humana.
Portanto, uma saída para a crise é pensá-la a partir de um viés ético e moral, em que é
necessário abandonar as antigas formas e prescrições e instituir novos valores.
A insuficiência das éticas tradicionais perante as crises sanitárias
Para que as mudanças de comportamento diante das atuais crises sanitárias
produzam efeito no plano ético e ontológico, é preciso ter ciência que tais debates não
faziam parte das discussões e dos modelos éticos até o século XX. Em um cenário de
incertezas e de fake news, o conhecimento é um “dever primário”51, não apenas no
sentido de instituir um novo modelo ético, mas também para direcionar e guiar nossas
ações. Nesse novo contexto, a
50 Jonas refere-se à carência como uma das propriedades do ser orgânico, como uma característica
exclusiva da vida, portanto, não pertencente ao resto da realidade. De acordo com o autor, um átomo, por
ser um elemento autossuficiente, existe independentemente do que aconteça com o mundo à sua volta,
entretanto, “a essência do organismo, ao contrário, incluía não autarquia” (JONAS,1998,p.93). Por poder
usar o mundo, a vida encontra sua polaridade, ou seja, sua necessidade, se ela pode atuar no mundo, ela
deve, pois senão fizer pode deixar de existir. Dessa forma, a vida é dependente da sua própria ação. “A
dependência que impera aqui é a dívida que a substância primordial assumiu quando, ao invés de
permanecer na matéria inerte, se aventurou ao iniciar o caminho da identidade orgânica, uma identidade
que se constitui a si mesma” (JONAS,1998,p.93). 51
JONAS, 2017, p.33.
69
ética precisa assumir conotações diferentes das anteriores; para isso, é imprescindível
estabelecer uma nova teleologia além da esfera humana, isto é, precisamos incluir
valores no âmbito da ética e reconhecer fins como inerentes à própria natureza. Já
saímos do plano antropocêntrico e reconhecemos o dever de responsabilidade e cuidado
para com os demais seres vivos.
A vida, ao longo de anos de evolução, é resultado de um processo de
desenvolvimento de funções orgânicas e sensoriais e encontra seu ápice no ser humano,
que passa a ser responsável pela existência e pela manutenção da vida. Desse modo,
compreende-se a responsabilidade como um produto da liberdade. Ora, se a liberdade é
um elo que liga todo o reino da vida e é conferida à existência do ser, ela encontra seu
ápice de desenvolvimento na responsabilidade. Sem responsabilidade, não podemos
pensar em uma ideia ontológica de homem. “O que constitui o horizonte relevante da
responsabilidade é o futuro indefinido, antes do contexto contemporâneo da ação. Isso
exige imperativos de um novo tipo”52.
Quais imperativos colocam a responsabilidade em uma dimensão ontológica e
ética? O primeiro imperativo da responsabilidade diz que deve existir um futuro
adequado para abrigar a existência da vida humana e que esse futuro deve ser
habitado por humanos; porém, não qualquer tipo de humanos, mas seres humanos
dignos.
Uma das questões que a crise da Covid-19 suscita é sobre o tipo de ser humano
que existirá em uma era pós-pandemia. Seremos pessoas com mais humanidade ou mais
mesquinhos e egoístas? Que tipo de ser humano existirá no futuro? Por mais que
admitamos que a natureza humana não está fixada em essências, como sustentou as
ontologias até na contemporaneidade, temos de nos debruçar sobre a ideia de que,
mesmo em estado transitivo da condição natural do homem, existem elementos que
precisam ser preservados indubitavelmente, como a liberdade e a responsabilidade.
Jonas afirma que esse imperativo (o de que deve existir) é uma “proposição
moral – a saber, uma obrigação prática em relação à posteridade
52 Idem, p.36.
70
de um futuro distante e um princípio de decisão para a ação atual”53. Na crise
vivenciada hoje, esse futuro não é tão distante, mas, mesmo assim, o imperativo da
responsabilidade precisa possuir a mesma grandeza e o mesmo poder como na atual
crise.
Um segundo imperativo da responsabilidade que deve ser apresentado aqui refere-
se à presença do ser humano no mundo. Esse imperativo sugere que é necessário
preservar e garantir a existência do homem no futuro, como uma obrigação de ordem
moral. Por isso, devemos evitar apostas que comprometem o futuro da humanidade.
Saber se as futuras gerações serão felizes ou infelizes, se alcançarão a imortalidade ou
se ainda terão de conviver com a mortalidade é outro assunto. Esse imperativo obriga
que a humanidade deve continuar. No entanto, diante de governos autoritários e
negacionistas que pregam a inexistência de um vírus capaz de se espalhar em uma
velocidade enorme e de matar mais que o previsto, é mais do que urgente garantir e
gerar politicas públicas responsáveis que favoreçam primeiramente a vida, e não a
economia de seus países.
Apenas com esses dois imperativos apresentados, já se percebe que a proposta
jonasiana é um avanço em relação aos imperativos éticos e morais propostos por outros
pensadores, como Kant, uma vez que os de Jonas superam a dimensão privada e se
voltam à esfera pública, pois deve ser pensada com vistas ao futuro das gerações. Por
isso, em face a essas questões aqui levantadas, sustentamos que agir com ética exige
que os homens do presente ajam visando a ordenar, direcionar e regular o poder
tecnológico para garantir a existência da vida futura. “Novos poderes de ação requerem
novas normas éticas”54.
A responsabilidade como saída a crise sanitária
Em épocas de pandemia, quais elementos fundamentais precisam ser considerados
para mobilizar o senso de responsabilidade nas pessoas?
53 Idem, p.37.
54 Idem, p.49.
71
Também com base nos conceitos de Hans Jonas, podem ser destacadas duas
características fundamentais – expressas em sua obra O princípio responsabilidade:
ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, de 1979: o conceito de
futurologia comparativa e a heurística do temor. Para Jonas, a tecnologia moderna
apresenta, como principais características, a ambivalência de seus efeitos e a
extrapolação das dimensões globais de tempo e espaço, e isso exige da sociedade uma
nova ciência, tanto no aspecto prático quanto no ideal, capaz de superar o tempo
presente, ou seja, uma ciência de “previsão hipotética”55. Em outras palavras, diante de
um futuro ameaçado e da inexperiência, na história humana recente, com um vírus tão
poderoso que sucumbe diariamente com a vida de milhares de pessoas e para o qual
ainda não há um tratamento eficaz para o seu controle, o primeiro dever da ética da
responsabilidade é visualizar os efeitos que nossas ações podem provocar a longo prazo,
de preferência produzindo um cenário negativo capaz de mobilizar a ação.
Destarte, em épocas de crise sanitária, a ciência nunca foi tão exigida quanto
agora, pois, além de ter instrumentos capazes de encontrar uma cura e um tratamento
adequado, ela fornece pistas sobre como as nossas atitudes e comportamentos podem
comprometer e colocar em risco a vida das pessoas, inclusive a própria. Todavia,
quando se sugere que o tipo de prognóstico futuro deve favorecer os efeitos negativos
de nossas ações, não significa que se deve ser alarmistas; pelo contrário, o efeito
negativo da previsão deve mobilizar a prudência e a responsabilidade.
Dessa previsão hipotética de que possíveis danos podem ser gerados por não se
agir de maneira correta, sobrevém o segundo dever da ética do futuro, que é mobilizar o
sentimento correto. Se formos capazes de imaginar um mal que ameaça a autenticidade
da vida e da humanidade, precisamos de um sentimento que desperte no ser humano a
capacidade de ação; desse modo, pode-se dizer que, no reino do ser, o agir se insere
como agente apto para salvaguardar a vida futura. Esse sentimento é o temor, ou seja,
um sentimento que, ao mesmo tempo em que alerta para os perigos, impulsiona a agir.
Nesse
55
JONAS, 2006, p.70.
72
ínterim, tanto a futurologia comparativa como a heurística do temor têm como objetivo
orientar a ação do homem, ainda que de maneira hipotética. De acordo com Oswaldo
Giacóia Junior,
“é nesse sentido que o medo pode ter um efeito heurístico, levando - nos a
procurar e descobrir novas possibilidades e estilos de vida, assim também
como produzir o efeito benéfico de chamar-nos a responsabilidade perante
nós mesmos e as próximas gerações de seres humanos e não humanos”56
.
O caráter coletivo da responsabilidade é evidente nas palavras de Giacóia Junior,
visto que somos responsáveis não apenas pela vida humana, mas também pelos seres
não humanos e, por isso, o alcance do princípio responsabilidade de fato assegura a
permanência de uma autêntica vida sobre a Terra.
Uma vez que “ser responsável por”, do ponto de vista ético, implica uma
capacidade de decidir por uma ação, pode-se dizer que a responsabilidade é produto da
liberdade, pois somos livres para agir ao mesmo tempo que obrigados a agir a fim de
garantir a vida. Jonas diz: “é esse o fardo da liberdade próprio a um sujeito ativo: eu sou
responsável por meus atos enquanto tais (mesmo por minha omissão) e pouco me
importa a circunstância de quem de demanda a resposta, se agora ou mais tarde”57. Isso
não quer dizer que o ser humano pode optar ou não pela responsabilidade; ela impõe-se
à natureza humana. Assim como a ferramenta, a imagem e a tumba, a responsabilidade
também está inserida na escala evolutiva de desenvolvimento das funções e das
capacidades do orgânico, o que faz da responsabilidade a essência do ser humano.
Em sua obra Matéria, Espírito e Criação58, Jonas adverte que um dos aspectos
que permitem uma diferenciação antropológica é o salto qualitativo da subjetividade
encontrada no ser humano. Isto é, da mesma forma que a tumba
56 GIACÓIA JUNIOR, 2019, p.220.
57 JONAS apud PINSART, 2019, p.76-77.
58 JONAS, 2010.
73
é um artefato da transanimalidade, a experiência subjetiva de um eu substancial permite
ao homem se tornar o sujeito agente da ação moral. É nesse sentido que a
responsabilidade assume o status de liberdade que nos impele para a ação. Desse
modo, pode-se afirmar que o ser humano dispõe do último grau de liberdade necessária
(que o próprio Jonas não previu na sua escala evolutiva), a responsabilidade.
Ainda de acordo com essa obra de Jonas, há um tipo de liberdade que pesa sob a
existência humana, a liberdade moral, considerada pelo autor a mais transcendente e
perigosa, “pois é também a liberdade de negar-se, de surdez voluntária e, inclusive, de
escolher uma contra opção que pode chegar até o mal radical que (como temos
aprendido) pode, ademais, adornar-se com a aparência do bem supremo”59. É justamente
o mal da omissão que mais ameaça a existência da vida no planeta, principalmente
quando essa omissão, esse desrespeito e a negação dos fatos científicos partem de
políticos e governantes.
Portanto, o ponto fulcral da fundamentação do princípio responsabilidade diz
respeito à heurística do temor. Jonas propõe que é necessária uma “previsão de uma
deformação do homem”60, um tipo de saber que gere no ser humano uma ideia clara
daquilo que o ameaça e, assim, o convoque para a ação. Assim como a tecnologia hoje
confere poderes inimagináveis ao ser humano,
“o conhecimento do bem e do mal, o poder de distingui-los, é também a
capacidade para o bem e o mal. Fica claro que o “eros” em ação, enquanto
fator de impulso necessário em qualquer escolha entre bens, não oferece
ainda, mesmo como guia, garantia alguma para vislumbrar e perseguir seu
verdadeiro objeto [grifos do autor]”61.
Marie-Genevière Pinsart, em Vocabulário Hans Jonas, diz que
“não somente a capacidade de ser responsável obriga a exercer essa
capacidade sob o olhar de todos os objetos contingentes da ação,
59 Idem, p.31.
60 Idem, p.70.
61 Idem, p.31.
74
mas ela impõe igualmente a responsabilidade de colocar-se, ela mesma,
como seu próprio objeto de exercício”62
.
Verificou-se, antes, neste texto, que o primeiro imperativo da responsabilidade
deve assegurar que exista uma humanidade, isto é, que não se pode transferir a
responsabilidade da existência da humanidade das futuras gerações para elas, pois
também a responsabilidade teria como dever o zelo pela imagem do ser humano, ou
seja, sua representação no mundo, tanto hoje como no futuro.
Uma vez que a responsabilidade teria como dever garantir a presença do humano
no planeta, ela também garantiria a liberdade. Assim, evidencia-se o caráter ontológico
e ético da responsabilidade. Ao passo que a responsabilidade, em uma dimensão que
chamamos de substancial, deve garantir que exista uma humanidade, ela também
afirma, em uma dimensão formal, que é preciso haver uma vida humana autêntica.
Essas duas características da responsabilidade são complementares entre si.
No princípio responsabilidade, a atividade reflexiva do sujeito cognoscente, à
medida que transforma o homem no único indivíduo no reino do ser em portador da
responsabilidade, também o converte em objeto de “avaliação e vontade axiológica”63.
Esse sujeito, ao se tornar responsável por um objeto externo a ele, “também implica, por
si só, o cuidado bem pelo interior, e pela possibilidade e obrigatoriedade do valor da
própria pessoa”64.
Para concluir, ressalta-se que, para Jonas, a afirmação original do ser é, de fato,
sua tendência a um propósito, e o primeiro propósito de ser é continuar a ser. Ser é
melhor que não ser, ter objetivos é melhor do que não ter. É essa superioridade de ter
propósito na ausência de metas, de estar no não ser, de constituir o axioma ontológico
fundamental que permite Jonas interpretar o propósito intrínseco de ser, não apenas
como um fato, mas também como um valor. Se ser é preferível a não ser, significa que o
propósito para o qual o próprio ser tende, isto é, a sua conservação, é também um valor
a ser salvaguardado. Por essa razão, até mesmo diante da precariedade e da
vulnerabilidade que a existência pode apresentar, a liberdade vai se
62 PINSART, 2019, p.137.
63 JONAS, 2010, p.32.
64 Idem, ibidem.
75
constituindo e aumentando em diferentes graus, perpassando o vegetal, o animal e o
humano.
Esse valor a ser salvaguardado tem a ver com a imagem de homem que
precisamos estabelecer e que nos orienta a afirmar a necessidade de fundamentação
ontológica da ética.
”Somente então, com a antevisão da desfiguração do homem, chegamos ao
conceito de homem a ser preservado. Só sabemos o que está em jogo quando
sabemos que está em jogo. Como se trata não apenas do destino do homem,
mas também da imagem do homem, não apenas de sobrevivência física, mas
também da integridade de sua essência, a ética que deve preservar ambas,
precisa ir além da sagacidade e tornar-se uma ética do respeito”65
.
Somente o homem é capaz de assumir a tarefa de garantir a existência e a
continuidade da vida, pois ele é o único ser cuja liberdade pode assumir a forma para
agir com responsabilidade. De acordo com Paolo Becchi e Roberto
F. Tibaldeo,
”o aparecimento do homem na Terra não constitui apenas um aspecto
adicional do mundo já variado de ser, porque, em sua natureza, algo
qualitativamente diferente é revelado: o ser capaz de responsabilidade. Nisso
consiste basicamente sua constituição ontológica, que é caracterizada por sua
própria natureza “transanimal” e por uma forma de liberdade sem
precedentes66
”.
Portanto, a existência é confiada aos humanos, e o ser humano é responsável em
garantir as condições de vida e lutar contra as ameaças que poderiam causar o seu
desaparecimento do mundo.
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política, XII. 2015. Disponível
em: https://www.researchgate.net/publication/304778572_Natura_natura_uman
65JONAS, 2006, p.21.
66 BECCHI; TIBALDEO, 2015.
76
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GIACÓIA JUNIOR, Oswaldo. Responsabilidade. In.: OLIVEIRA, Jelson;
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Tradução de Carlos Almeida Pereira. Petrópolis: Vozes, 2004.
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(Orgs.). Vocabulário Hans Jonas. Caxias do Sul: Educs, 2019.
77
ENTRE ESGOTAMENTO E ESTUPIDEZ, UM VÍRUS
Thiago David Stadler67
Penso que, atualmente, se vive um momento de esgotamento das diversas relações
de sociabilidade e das estruturas formais do governo, mas também de enorme
estupidez68 e maldade69 propagadas tanto por representantes das mais altas esferas do
poder governamental quanto por cidadãos que tem na família o trato mais básico da
cotidianidade.
No que diz respeito ao esgotamento das estruturas formais do governo, faço um
rápido levantamento de realidades políticas latino-americanas que dão o tom dos
esgotamentos.
Já em 2019, sucederam-se os levantes populares chilenos contra toda uma
estrutura liberalizante derivada dos tempos ditatoriais de Augusto Pinochet e com a
presença de uma insensata violência e repressão policial70. O povo chileno foi às ruas
reivindicar a troca e a revisão da atual Constituição do Chile, que ainda é legatária de
uma das mais sangrentas ditaduras latino-americanas.
O caricato venezuelano Nicolás Maduro, sucessor incompetente de uma herança
revolucionária, mantém o poder exclusivamente por um aparato militar-repressivo de
Estado. A autoproclamação de Juan Guaidó, em janeiro de 2019, como presidente
interino da Venezuela, com apoio aberto dos EUA,
67Doutor em História. Professor do Colegiado de Filosofia da Universidade Estadual do Paraná (UFPR),
campus de União da Vitória. Professor efetivo do Programa de Mestrado Profissional em Filosofia
(PROF-FILO) e Professor colaborador do Programa de Pós -graduação em História da UFPR. Contato:
[email protected] . 68
Quando digo estupidez, o que quero dizer? Refiro-me ao princípio de Hanlon: “nunca atribua à
maldade o que pode ser explicado pela estupidez”. Assim, a estupidez é o domínio dos idiotas, tontos,
néscios, bobos, imbecis, mentecaptos, obtusos, etc. Indico a leitura do texto: MORENO CASTILLO,
Ricardo. Breve tratado sobre La estupidez humana. Madri: Fórcola Ediciones, 2018. 69
Quando digo maldade, o que quero dizer? Agir e/ou discursar a partir da negação de princípios
científicos; negar a necessidade de uma educação da sensibilidade; negar a manutenção de um estado de
paz; negar a existência da diferença; negar a figura do adversário e tomá-lo com o inimigo. 70
Com mais de 2 mil denúncias de violação dos direitos humanos (torturas, restrições ilegítimas, abuso
sexual,etc.), por parte do aparato repressivo do Estado chileno.
78
da União Europeia e dos países do Grupo de Lima, legitimou a derrocada
democrática com vistas à exploração petrolífera venezuelana71.
Os seguidos escândalos ocorridos na Bolívia de Evo Morales – desde a validação
pelo Tribunal Constitucional Plurinacional (TPC) da possibilidade de reeleição
(contrariando tanto a Constituição Boliviana quanto o plebiscito popular de 2016, que
rejeitaram tal medida), a qual permitiu, por consequência, a reeleição de Evo em 2019 –
acabaram, dentre outros fatores, por evidenciar diversos problemas na condução da
contagem dos votos. Esse contexto levou Morales a uma renúncia caracterizada pelas
típicas tomadas de poder na América do Sul e influenciada por pressões estadunidenses.
Tal como na Venezuela, a Bolívia presencia a autoproclamação da presidente Jeanine
Áñez e promessas de rápidas eleições – que, desde novembro de 2019, não aconteceram.
A eleição de Jair Bolsonaro no Brasil – após a somatória de um processo de
impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff sem comprovação de crime, de ajustes
fiscais e monetário abruptos72 e da prisão do ex-presidente Luís Inácio “Lula” da Silva
sem provas materiais – determinou um clima antissistema nutrido por ódios populares e
uma retórica que evoca preconceitos, militarização e novidades advindas de um velho
representante do poder legislativo brasileiro. Ministros incultos, criminosos e cínicos
compuseram o
71 De acordo com o rank ing das maiores empresas da América Latina, a Petróleos de Venezuela S.A.
(PDVSA) figura no terceiro lugar, atrás apenas da Petrobrás (Brasil) e PEMX (México) – todas de
exploração do petróleo e gás (AMÉRICA ECONOMÍA. Ránking América Latina – Lugares 1 al 50. Disponível em:
https://rankings.americaeconomia.com/2010/500/ranking-500-america-latina.php. Acesso em: 08 de
junho de 2020). 72
Sobre este ponto: “A política econômica do primeiro governo Dilma Rousseff tinha atendido a várias
das bandeiras defendidas pela FIESP ao longo dos anos, no que se chamaria de ‘nova matriz econômica’:
redução de taxas de juros e tarifas de energia elétrica; desonerações tributárias e crédito subsidiado;
desvalorização cambial e protecionismo industrial seletivo; concessões de serviços públicos para a
iniciativa privada. Algumas dessas iniciativas foram, inclusive, solicitadas em documento entregue ao
governo e assinado em conjunto com outras organizações empresariais e centrais sindicais em 2011. No
segundo governo, contudo, a presidenta reeleita Dilma Rousseff resolveu realizar um ajuste fiscal e
monetário abrupto que surpreendeu muitos dos que, em sua base eleitoral, acreditaram em suas críticas de
campanha à disposição de cortar e cortar dos candidatos de oposição. Dessa vez, atendia ao clamor de
grupos empresariais que se colocaram contra a chamada ‘nova matriz econômica’ e, além de motivos
econômicos que podem ser discutidos, a virada parecia ter razões políticas” (BASTOS, Pedro Paulo
Zahluth. Ascensão e crise do governo Dilma Rousseff e o golpe de 2016: poder estrutural, contradição e
ideologia. Revista de Economia Contemporânea, v.21, n.2, e172129, 2017. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/198055272129. Acesso em: 24 de junho de 2020).
79
primeiro escalão do governo brasileiro com uma coleção de escândalos e intrigas
nacionais e internacionais. Em menos de um ano e meio de governo, já foram nove
ministros trocados, além de Jair Bolsonaro abandonar o partido pelo qual foi eleito
(PSL) e anunciar a criação de outro partido (Aliança pelo Brasil).
A Argentina presenciou a curta duração, por absoluta inabilidade econômica e
falência de princípios democráticos, do governo liberal de Mauricio Macri, eleito
enquanto oposição ao kirchnerismo; e, consequentemente, o retorno de Cristina
Fernández de Kirchner como vice- presidente, com projetos assemelhados àqueles que a
deslegitimaram tempos atrás.
No Equador, houve seguidas crises políticas, desde 2010, com o ex- presidente
Rafael Correa, até a chamada crise do combustível em 2019, sob a presidência de Lenin
Moreno, que compôs o velho quadro de medidas de austeridade advindas de acordos
nefastos com o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Poderiam ser citados tantos outros exemplos pitorescos e desconcertantes de
nossa realidade que deixariam Macondo de Gabriel García Márquez com inveja. No
entanto, esses poucos exemplos são suficientes para assinalar que, atualmente, parece
evidente e notória a quebra multifacetada das bases de sustentação do neoliberalismo
asseguradas por Estados corrompidos, empresariado transnacional e empresariado
privado nacional.
No campo do esgotamento da sociabilidade entre indivíduos ordinários, penso que
o papel das redes sociais é determinante. O filósofo francês Alain Badiou afirmou que
as redes sociais tão presentes na propagação de tudo mostram, uma vez mais,
que são espaços de propagação da paralisia mental fanfarrona, dos rumores fora de
controle, do descobrimento das “novidades” antediluvianas, e, no mais, um espaço que
nada mais é do que um obscurantismo fascista73. Basta participar de um grupo de
WhatsApp e prezar
73 Indico a leitura: BADIOU, Alain. Sobre La situación epidémica. 21 de março de 2020. Lavoragine.net
.Disponível em: https://lavoragine.net/sobre-la-situacion-epidemica/. Acesso em: 08 de junho de 2020.
80
por um mínimo de dignidade para entender Badiou e, talvez, concordar com ele.
Também afirmei que vivemos um tempo de estupidez e maldade (alguns preferem o
termo perversão). Aqui, o papel das mídias sociais e, novamente, das redes sociais dá
todos os indicativos para entender o que afirmo. O rebaixamento do já rebaixado, a
imbecilização plena e completa de assuntos relevantes para o bem comum, o ataque
frontal a instituições históricas e consagradas por suas conquistas científicas e humanas,
o negacionismo histórico, o cinismo enquanto postura política, o esfacelamento de
frágeis conquistas no campo dos direitos humanos, a naturalização de discursos racistas,
homofóbicos e machistas, a absoluta ausência e ineficácia de uma chamada oposição,
“memes” e mais “memes” que provocam um riso imediato e nada mais, partidarismos
envoltos até mesmo em desejos de bom dia, a propagação diária de notícias falsas, a
desinformação, a aceitação de limites culturais impostos por uma indústria interessada
em divulgar um aparato (in)formativo raquítico, ameaças de morte, xingamentos
enquanto ferramenta de debate, empresas especializadas em divulgar notícias falsas e
alimentar a irracionalidade coletiva, a passiva aceitação de um vocabulário sem
memória histórica. Tudo isso compõe uma paisagem de estupidez e maldade que,
somada ao esgotamento da sociabilidade ordinária e das estruturas formais do governo,
torna as práticas do cotidiano agressivas e sem muito espaço para o tesão de viver (os
filósofos gregos diriam sobre paixão, afeto; eu, brasileiro, digo, tesão).
É justo perguntar: essa reflexão não leva a Covid-19 em conta? Ora, é diante todo
esse panorama sócio-político-afetivo que se acrescenta a chegada da Covid-19. Soma-
se, a essa insensata realidade, a presença de uma determinação natural, isto é, um vírus
que, até então, não mostrou nada de excepcional, nada que a natureza de um vírus já não
tenha revelado noutros momentos vivenciados por tantos animais na história natural do
mundo. As principais características elencadas até agora sobre o vírus versam sobre o
alto poder de contágio e de disseminação; a possibilidade de transmissão por
assintomáticos, dificultando o rastreamento de quem está contaminado; e a falta de
proteção natural do corpo humano, já que se trata de um vírus novo. Dados do dia 21 de
maio de 2020 indicam que o número de mortos no mundo
81
gira em torno de 328 mil e mais de 5 milhões de infectados e, no Brasil, 19.156 mortos
e mais de 296 mil infectados. Em face dessas características, os Estados e os
conglomerados da saúde reprogramaram os caminhos das ciências para centralizar
esforços na construção de uma nova vacina. Novamente, ficou claro que o tempo da
ciência não é o tempo da sociedade. Novamente, ficou claro que é preciso entender que
se trata de uma determinação natural e, portanto, haverá de se compreender o limite da
técnica diante da sempiterna natureza74.
Com o choque dessas quatro realidades (esgotamento da sociabilidade,
esgotamento das estruturas formais do governo, escalada da estupidez e maldade,
chegada da Covid-19), potencializaram-se as crises já instauradas no mundo (falo,
principalmente, da realidade latino-americana). Quando digo crise, o que quero dizer?
Primeiramente, é preciso distinguir as crises gerais, que envolvem um colapso
generalizado das relações econômicas e políticas de reprodução, das crises parciais, que
constituem um traço regular da história do capitalismo. Ao se falar das crises gerais, ter-
se-ia como consequência a erosão ou a destruição das relações societárias que
determinam os limites da transformação da atividade econômica e política. Já as crises
parciais envolvem surtos de prosperidade aparentemente intermináveis, seguidos de
graves declínios da atividade econômica75. Desse modo, no meu entendimento, a crise
potencializada pelo choque dos elementos que levantei é uma crise parcial que ainda
não gestou as forças contraditórias suficientes para colocar em colapso o modo de
produção do capitalismo76. Há, sim, um esgotamento das políticas liberais, dos
resquícios de um estado de bem-estar social europeu e do modelo das esquerdas
reformistas e de coalização da América do Sul, mas todas as mudanças, até então,
oriundas da atual crise estão absolutamente dentro dos marcos do capitalismo. A crise
revela-se como uma
74 Não se trata de uma comemoração macabra, nem de um culto aos deuses da natureza. Espero e confio
que as(os) cientistas desenvolverão uma vacina eficaz contra a Covid-19. Contudo, é um bom momento
para entender que os preceitos científicos de dominar e controlar a natureza são danosos e falhos. Indico a
leitura: STADLER, Thiago David. O valor das humanidades em um tempo técnico-científico. Diálogos,
v.20, n.2, p.205-217, 2016. 75
BOTTOMORE, Tom (Ed.); HARRIS, Laurence; KIERNAN, V.G.; MILIBAND, Ralph (Coeds.).
Dicionário do pensamento marxista. 2.ed. Tradução de Waltensir Dutra. Org. (ed. brasileira) de
Antonio Monteiro Guimarães. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p.123. 76
Nome e entendimento, a análise da Covid-19 por Slavoj Žižek foi um erro (ou uma esperança
exagerada?). Falarei sobre isso mais adiante.
82
intensificação do colapso de princípios básicos do funcionamento de uma sociedade
pautada em valores liberais, mas sem inferir desse colapso alterações da contradição
fundamental do capitalismo, qual seja, a produção social em benefício de interesses
particulares.
Noutras palavras, a chegada da Covid-19 é um ingrediente a mais no plantel das
crises parciais já vivenciadas pelos latino-americanos. O poder de dano do vírus é
potencializado diante de um sistema de saúde público historicamente menosprezado e
de um sistema privado de saúde excludente. Ao chegar, a Covid-19 encontra um país
como o Brasil com cerca de 12 milhões de desempregados e mais de 38 milhões de
trabalhadores informais. Um país que extinguiu o Ministério do Trabalho, aprovou uma
reforma da previdência sem escrúpulos com as(os) trabalhadores e destruiu a
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) com as chamadas Medidas Provisórias da
Liberdade Econômica e do Contrato Verde e Amarelo, enfrenta um vírus novo com um
projeto de precarização intensivo. Desculpem-me os confinados, mas, se não
vincularmos o cenário de destruição de direitos básicos vivenciados em toda a América
Latina com a chegada da Covid-19, teremos uma realidade falseada. A realidade não
falseada é aquela que revela os Estados e a iniciativa privada mentindo e roubando ao
dizer que não possuem meios nem dinheiro para atender aos empobrecidos. Bastou a
chegada de um vírus que também mata o rico e bloqueia o mercado para aparecerem
fundos e linhas de crédito salvaguardando as grandes corporações e, de modo
humilhante, o auxílio de 600 reais por mês para os mais de 30 milhões de brasileiros
sucateados por um Estado criminoso (lembrem-se que, nas primeiras discussões no
Senado, falava-se do perigo dos 600 reais, pois o Ministério da Economia havia
indicado inicialmente um auxílio de 200 reais).
Nessa realidade, ainda me pergunto como sustentar as ladainhas das(os)
confinadas(os) de geladeira cheia que afirmam que o antigo mundo acabou, que o
normal não existe mais, etc. Penso que, para afirmar coisas assim, somente comprando
(ou seria mendigando?) os discursos que não tocam a nossa realidade.
83
O que exatamente não voltará a ser mesmo? O ex-presidente do Uruguai, José
“Pepe” Mujica, afirmou em artigo escrito para o periódico El País:
Haverá aqueles que pedem solidariedade econômica e financeira com os
pobres do mundo e aqueles que pedirão algum gesto dos milionários. Os dois
estarão cantando para a lua. Os bancos centrais do mundo rico inundarão de
dólares e euros os seus próprios países77
.
A conta continuará sendo a mesma. Parece-me uma ingenuidade que beira a
incompetência não se atentar aos discursos proferidos por médicos e políticos do “velho
mundo”, assim como dos políticos, empresariados e conglomerados dos países
periféricos, que sustentam as mais velhas estruturas de poder e preconceito nutridos
secularmente (antes e depois da gripe espanhola, da tuberculose, da Aids, da gripe
asiática, etc.).
Pergunto-me, quase me repetindo, o que mudará especificamente? Analisemos o
discurso do médico francês racista Jean-Paul Mira, que, no canal televisivo LCI, afirmou
sobre os testes de possíveis vacinas contra a Covid-19:
Se posso ser provocador, não devíamos fazer esses estudos na África, onde
não há máscaras, tratamento ou cuidados intensivos, um pouco como se faz,
aliás, para certos estudos da Aids ou com prostitutas? Tentamos coisas
porque sabemos que elas estão altamente expostas e não se protegem78
.
77 MUJICA, Pepe. Uma advertência a los ‘sapiens’. Mundo, Ideas, El País. Disponível em:
https://elpais.com/especiales/2020/coronavirus -covid-19/predicciones/una-advertencia-a-los- sapiens/.
Acesso em: 08 de junho de 2020. 78
FARIA, Luís M. Médico que sugeriu testar em África a utilização da vacina BCG contra o corona
vírus pede desculpa. 04 de abril de 2020. Internacional, Expresso. Disponível em:
https://expresso.pt/internacional/2020-04-04-Medico-que-sugeriu-testar-em-Africa-a-utilizacao- da-
vacina-BCG-contra-o-coronavirus-pede-desculpa. Acesso em: 08 de junho de 2020.
84
O que há de novo nisso? Nem mesmo a retratação do médico francês deplorável e
racista se deu com novidade, pois afirmou que “exprimiu desajeitadamente” algumas
ideias.
Afinal, qual é a nova realidade que todos estão esperando? O que será
radicalmente distinto? Qual é o “novo normal”? Será que os estúpidos e imorais que
pedem intervenção militar a cada semana pararão por ocasião de uma quarentena
ocasionada por um vírus? Será que os apologistas da nova ordem pós-Covid-19 não
estão se confundido com os problemas já anteriores à chegada do vírus? Será que
políticos e grandes conglomerados colocarão o bem-estar da população antes da
ferocidade econômica? Será que haverá uma diminuição radical de consumo ou tudo foi
transferido para o ambiente virtual e aqueles que já consumiam continuam consumindo
e aqueles que não consumiam continuam sem consumir? Ou, novamente, a população
caíra no encanto do progresso tecnológico como algo novidadeiro? Lavar as mãos, usar
máscara, ter celular rastreado (novidade?), ter aulas a distância (EAD), pedir comida por
aplicativos, ter governos que vigiam a população (?!); seriam essas as mudanças do
novo mundo? Para quem exatamente acontecerão as propagadas mudanças?
Talvez, para aprofundar as questões do dito “novo normal”, seja oportuno debater
com dois autores que se posicionaram de modo oposto quanto a esse tema. Como são
autores estrangeiros, farei algumas intervenções com os aspectos da realidade vivenciada
por mim. Do lado dos entusiastas das mudanças que a Covid-19 trará, está o filósofo
esloveno Slavoj Žižek. Ele afirmou, no texto “El coronavírus es un golpe al
capitalismo al estilo de ‘Kill Bill’ y podría conducir a la reinvención del
comunismo”, que este seria um momento para aproveitar as possibilidades das grandes
transformações políticas e econômicas e nos encaminharmos para uma espécie de
cooperação global e solidária79. Do outro lado dessa discussão, dentre aqueles que
apostam que não há basicamente nada de novo na condução e na gestão dessa
pandemia, está o filósofo francês Alain Badiou. Ele indicou, no texto “Sobre la
situación
79 Indico a leitura: ŽIŽEK, Slavoj. Slavoj Zizek: Coronavirus is ‘Kill Bill’-esque blow tocapitalism and
could lead tore invention of communism. 27 de fevereiro de 2020. Russia Today. Disponível em:
https://www.rt.com/op-ed/481831-coronavirus-kill-bill-capitalism-communism/. Acesso em: 08 de junho
de 2020.
85
epidémica”, que não vê, na atuação dos Estados, nada que já não seja próprio de sua
natureza. O seu espanto advém mais da quantidade de coisas que estão sendo
(mal)ditas sobre a pandemia e da inadequação disso tudo perante uma situação
francamente simples do que da previsibilidade de ações descoordenadas e classistas dos
Estados.
Naturalmente, vejo um exagero por parte de Slavoj Žižek. Apesar de o mercado
agir deslavadamente sem fronteiras, os Estados ainda não dão sinais de um
desmoronamento dos preceitos do Estado moderno (dentre eles, as fronteiras). Pode-se
privatizar tudo, até mesmo os serviços aduaneiros e a produção das moedas, mas esperar
solidariedade de Estados nações por questões de determinação natural penso ser
absolutamente inviável80. Há, sim, ao olhar para o movimento histórico, um
recrudescimento das fronteiras louvado pela estupidez generalizada. Quando os
europeus fecharam as suas fronteiras para que ninguém mais pudesse entrar na Europa,
pensei na eficácia da medida, mas de modo contrário: o bom é não deixar ninguém sair
de lá. Quem, afinal, iria para o epicentro de uma pandemia? Tal como as ironias ácidas
de Žižek, por aqui circulou a proposta tardia de que esse isolamento preventivo europeu
deveria ter ocorrido já em meados do século XIV e ter proibido o vírus do colonialismo
na América. A respeito dessa exacerbação discursiva de Žižek, que previa a
reconfiguração de uma espécie de comunismo no período pós-Covid-19 (para o delírio
do insano chanceler Ernesto Araújo), exponho um quadro muito mais realista advindo
do coletivo chileno “Iniciativa 18 Octubre”:
Falar de um colapso do capitalismo é, ainda, mais um desejo do que uma
realidade. Pode-se recordar a frase que “está nascendo algo novo enquanto o
velho não termina de morrer” [...], mas, além disso, novos e velhos valores,
novas formas de organização da sociedade humana, a consciência ecológica
e a mudança climática, puseram
80 Vide: HIBOU, Béatrice. De la privatización de las economías a la privatización de los estados:
análisis de a formación continua del Estado. México: FCE, 2013.
86
tudo em discussão, a gestão e a manipulação da natureza tem limites que
devem ser respeitados pela sociedade humana81
.
Vejo com grande desconfiança a aposta em transformações políticas positivas pós-
pandemia. Não há nenhuma evidência, até então, que possa corroborar com tal anseio
(talvez por residir no Brasil, talvez). Para não pensar que estou sozinho nessa descrença,
pois, de acordo com as redes sociais, estamos “noutro mundo”, uso o exemplo sem
censuras da anarcofeminista e psicóloga boliviana María Galindo:
Dirão, mais uma vez, que estou louca [por afirmar algo contrário ao
momento; grifo do autor] quando sabemos que nessa sociedade nunca teve
camas de hospital no número que necessitamos e que, se vamos às suas portas,
ali mesmo morremos rogando”82
.
O mesmo poderia ser dito por qualquer cidadã ou cidadão brasileiro que já é
atropelado e deglutido pela realidade crua do preconceito e da pobreza estrutural. Esse é
outro cuidado diante da pandemia: as mídias oficiais e grande parte da divulgação
irresponsável das redes sociais sucedem-se tanto pela voz de uma pequena burguesia
acomodada como pela voz de uma esquerda naïf. Os indivíduos de ambos os grupos
tiveram, na quarentena, um triste encontro: encontraram-se consigo mesmos. Não
aguentando a própria estupidez, perceberam-se acorrentados tal como Prometeu. A
quarentena, para essa parcela que infesta as redes sociais com discursos desconexos e
sofríveis, é mais um sinal de que muitas coisas mudam para permanecer igual. Essa
parcela acomodada que não sofre na pele os efeitos econômicos da quarentena (podendo
sofrer, como todos, os efeitos da perda de queridos) perdem a enorme oportunidade de
calar-se, de silenciar-se. Como acertadamente disse o dramaturgo e cineasta Juan
Cavestany, teria chegado o momento de finalmente e verdadeiramente ficar calado sem
culpa, mas com fundamento; de poder estar em silêncio não apenas como dever, mas
também
81 Carta aberta do coletivo “Iniciativa 18 Octubre”, publicada em Santiago no mês de abril de 2020. Trata-
se de uma citação que aborda tanto as questões oriundas dos movimentos sociais chilenos quanto da atual
situação de crise sanitária. 82
Indico a leitura de: GALINDO, María. Desobediencia, por tu culpa voy a sobrevivir. Radio Deseo.
Disponível em: http://radiodeseo.com/desobediencia-por-tu-culpa-voy-a-sobrevivir- maria-galindo/.
Acesso em: 08 de junho de 2020.
87
como emancipação (com a visível contradição entre a pandemia e experiência
particular)83. No fundo, tenho a triste sensação de que a histeria desse grupo se
resolverá quando acabar a abstinência de consumo84.
No que concerne às afirmações feitas por Alain Badiou, penso que ele acerta
quando fala das redes sociais como um lugar de paralisia mental fanfarrona. Muitos
defensores das redes sociais falam que basta saber usar, saber quem seguir, saber o que
procurar, que se trata de espaços democráticos (?!), que há muita coisa boa entre as
poucas ruins. Aqui, é a ideologia das tecnologias que fala. Digo ideologia no sentido
tradicional: a representação de problemas reais de forma mistificada. É claro que há
boas possibilidades e um pouco de vida honesta85 nas redes sociais, mas até quando
ficaremos fingindo que isso é o suficiente ou que isso é a maior parte do que se
consome nas redes sociais? Percebo que, desde fevereiro, há gráficos, estudos
científicos, previsões, especialistas tocando as trombetas do apocalipse no Brasil;
morrerão 1 milhão de brasileiros; morrerão entre 700 a
2.000 brasileiros; isolamento funciona; isolamento não funciona; beber desinfetante
funciona; beber desinfetante mata; tomar sol e água é fundamental; correr maratona em
uma sacada; assistir lives (transmissões ao vivo) de cantores e cantoras bêbedos ou
missa do papa e ópera em catedral; mostrar o que está comendo, bebendo, lendo; etc.
Um espaço de paranoia e desinformação travestidos de diversão e passatempo. Já as
mídias tradicionais restringem-se ao papel de contabilizar mortos, infectados e curados.
Trabalham incessantemente a partir de uma pedagogia dos milhões de mortos que visa
exclusivamente à criação de signos do medo, que serão devidamente bem aproveitados
por instituições religiosas e por aventureiros da realidade virtual.
Já quando Alain Badiou fala da plena continuidade das práticas estatais em torno
da pandemia, penso que há um rasgo intransponível entre a realidade europeia e a
realidade latino-americana. É preciso aceitar que há diferenças entre uma gestão política
levada a cabo por Macron e outra, por Jair Bolsonaro,
83 CAVESTANY, Juan. Micuarentena. 08 de maio d e2020. El País. Disponível em:
https://elpais.com/cultura/2020-05-08/mi-cuarentena.html. Acesso em: 08 de junho de 2020. 84
Indico os quadrinhos e as ilustrações de Leandro Assis, no site: www.moluscomix.com.br.
85 Por honesto, digo: sem embocadura/freio partidário, religioso, místico.
88
e que há diferenças entre a continuidade do modelo político-econômico tal como é na
Europa e tal como se degenera na América Latina. A continuidade das práticas estatais
no Brasil significa o aprofundamento da precarização absoluta dos trabalhadores, mas
significa também a restrição e o encolhimento dos espaços públicos de debate, das
manifestações e das práticas de liberdade. Estou em concordância com Badiou na
perspectiva de que a pandemia da Covid-19 não trouxe grandes elementos novos para o
campo político; no entanto, a confusão ocasionada pelas alterações no cotidiano da
população acaba potencializada por uma estrutura podre de poder. Ordens de
confinamento a partir da militarização em cidades marcadas pela absurda violência é
algo nocivo. A destruição dos protestos sociais que incendiavam a América Latina a
partir da supressão das liberdades individuais (mascaradas por uma ideologia sanitária)
será reconstruída com dificuldades e, provavelmente, com mais signos de violência. O
que aconteceria na França se as pessoas resolvessem desobedecer para sobreviver? A
mesma pergunta deve ser feita para as mais diversas realidades latino-americanas. Penso
que Badiou entenderia as sangrentas distinções.
Encerro minhas reflexões afirmando que há muito pouco de novo sob o sol da
América Latina (infelizmente, em termos econômicos e políticos). Que os apocalípticos
e novidadeiros me perdoem, mas prefiro seguir ao lado de María Galindo, dizendo que
espero que, no tempo oportuno, voltemos à mesmice, ao mesmo espírito revolucionário,
ao mesmo convite à resistência, ao mesmo cantar, ao mesmo celebrar e ao mesmo fazer
amor que nenhuma nova ordem retirará.
A sentença “politizaram o vírus”, preferida e proferida por médicos, cientistas e
jornalistas, segundo eles mesmos, explica a causa do mal. A politização da pandemia é a
responsável pelo sucesso de marketing da hidroxicloroquina. O desprezo à opinião dos
especialistas, os ataques de todo tipo à ciência e ao isolamento social seriam também
frutos dessa “politização”. Será que é correto pensar assim?
A resposta é, enfaticamente, não! Por que não? Primeiro, pela falsa relação de
causa e efeito que a frase gera. Segundo, porque ela elimina a
89
possibilidade de um diálogo mais esclarecedor, que poderia ajudar a traçar rotas
mais claras para resolver o grande caos que se apoderou do país.
110
DEVEMOS DESPOLITIZAR O VÍRUS?
Mariangela Cabelo
“Politizaram o vírus”. Proferida e preferida dos médicos, cientistas e jornalistas,
essa sentença, segundo eles mesmos, explica a causa do mal. A ideia é a de que a
politização da pandemia é a responsável pelo sucesso de marketing da
hidroxicloquina. O desprezo à opinião dos especialistas, os ataques de todo tipo a
ciência e ao isolamento social seriam também frutos
dessa “politização”. Será que é correto pensarmos assim?
A resposta é enfaticamente um não! E podemos citar alguns motivos para isso:
primeiro pela falsa relação de causa e efeito que a frase gera. Segundo que ela elimina a
possibilidade de um diálogo mais esclarecedor, que poderia ajudar a traçar rotas mais
claras para resolver o grande caos que se apoderou do país.
Na verdade, fica claro, para os que estudam filosofia política, a confusão feita com
os conceitos básicos. Por exemplo, muitos desses médicos e cientistas acertariam se
tivessem dito “ideologia” no lugar de “politização”. Ideologia significa uma falsa
consciência. Na ideologia, existe uma certa verdade; não é puramente uma fake news.
Evidencia-se a ideologia na questão do isolamento vertical. Para que o isolamento
vertical pudesse ter força, seria necessário que ele seguisse alguma lógica. Assim, usou-
se uma certa verdade: a chance de o vírus ceifar mais a vida dos idosos. Se assim o é, por
que todos devem pagar o preço do isolamento social? Essa foi a ideologia do Planalto.
Isso foi o que Bolsonaro queria que o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta
defendesse.
Nós, da ciência, deveríamos ficar atentos à ideologia e às suas meias verdades. A
ideia do isolamento vertical estenderia a duração da pandemia se fosse colocada em
prática. Colocaria a população jovem e adulta em risco, pois eles podem morrer com a
doença, apesar de em menor número se comparado aos que possuem alguma morbidade.
Esses adultos, uma vez livres do isolamento vertical, chegariam em casa, pondo seus
familiares mais velhos em risco, expondo-lhes ao vírus e aumentando as chances de
infecção. O isolamento vertical foi descartado pela maior parte dos países, pois
geraria
111
mais mortes, um aumento do tempo para a pandemia passar e, inclusive, uma piora na
economia.
Agora entendemos que a ideologia era e é, se não notada, uma inimiga da ciência.
Quero enfatizar aqui que o problema não é meramente de nomenclatura ou uma disputa
mesquinha de terminologias acadêmicas. O problema é começarmos uma conta
utilizando a fórmula errada e as variáveis erradas. Não chegaremos a um bom resultado.
Devemos tentar evitar nosso comprometimento com a ideologia, mas não com a
política. Se afastarmos a política, afastaremos justamente a chave que poderia revolver
os nossos problemas.
Outro motivo, e talvez o mais importante é a ideia de que a associação do
especialista com a política o macularia. A palavra política parece ser um palavrão, um
par de óculos embaçador que tira a clareza do discurso médico. Usar a palavra política
de maneira positiva, na mentalidade dos especialistas, os deixa com pouca autoridade
para falar de seus assuntos técnicos. Na verdade, nesse caso, o partidarismo é o grande
medo do médico, e não propriamente a política. Digo isso pois penso no exemplo do
Drauzio Varella, que, apesar de não ter medo da palavra política, não é um médico
partidário. De fato, o médico partidário perde a liberdade de poder criticar todos os
partidos e suas políticas. Afinal, ele não irá criticar o próprio partido. Será que todas as
políticas públicas, principalmente as da saúde, merecem passar ilesas das críticas?
As vozes da ciência e da medicina devem apontar todo e qualquer erro. Se não
temos isso em mente, o médico fica com medo de falar que é o presidente quem está
ferrando tudo. Aliás, isso é óbvio, todos veem. Hoje, até mesmo as revistas científicas,
como a Lancet, alertam que Bolsonaro precisa sair.
Portanto, o médico e o cientista que puxarem o coro a favor do
impeachment não serão partidários. Prezarão, antes, pelo seu ministério, pelas
instituições, pela medicina e pela própria profissão. Saber que a medicina
112
tem um casamento profundo com políticas públicas de saúde faz parte da
formação de um bom médico.
Além disso, a nossa cultura ocidental nasceu da polis e, por isso, não podemos
fugir da política, pois é com ela que podemos estancar o número de almas levadas. A
seguir, explico-me melhor.
Os problemas de saúde de um país não se revolvem dentro de um consultório, mas,
sim, junto e justamente com políticas. Exemplos incontestes são o diabetes e a
obesidade, que afligem tantos brasileiros e dispensam tantas consultas no SUS e nas
clínicas particulares. A política pública de saúde que obrigou que refrigerantes,
biscoitos, bolos e etc. tivessem suas quantidades de açúcar diminuídas fez mais pelo
país do que anos do nosso trabalho no consultório em relação ao diabetes e à obesidade.
No quesito coronavírus, isso se repete. O trabalho do médico ajudando paciente
por paciente no hospital é como um passarinho que enche o bico de água para apagar
um incêndio na floresta. Já o presidente da República está com um maçarico acesso,
com 10 km de diâmetro, mirando para as árvores. Será que é tão difícil ter essa clareza
que as revistas internacionais tiveram?
Médicos, prestem atenção! Escutem a Lancet. Nenhum trabalho de vocês será
suficiente para estancar o mal da Covid-19 do país, quando a própria peste usa a faixa
presidencial, quando o próprio SARS-CoV-2 tem suas vontades atendidas pelo
Bolsonaro.
Enfim, do meu ponto de vista, parece que há uma falsa “isenção” da parte dos
médicos. Sabemos bem o que eles fizeram “no verão passado”. Não estou tirando o
mérito de os médicos irem para as ruas e protestarem contra o governo do PT e de
lutarem pela sua profissão. Foi um ato lícito. No entanto, hoje, os cidadãos pedem,
como brasileiros, para que lutem também pela saúde e pela ciência, pois, se elas
acabarem, a própria profissão de vocês já não precisará mais ser defendida!
Campo Grande, 30/05/2020
113
O placar da vida
Das tantas piadas feitas pelo governo Bolsonaro, uma das mais cruéis, sem
dúvida, é a que se refere ao “Placar da vida”108.
Para contextualizar, sabe-se que a Organização Mundial da Saúde (OMS) já
declarou o Brasil como epicentro da pandemia da Covid-19, o que, consequentemente,
significa que o nosso país está em uma situação muito frágil e complicada. Com uma
alta taxa de contágio, o vírus encontrou aqui um habitat ideal para se multiplicar. Apesar
da brutal subnotificação, os dados oficiais indicam meio milhão de infectados pela nova
doença. O sistema de sepultamentos está em apuros, com máquinas tendo de abrir
grandes valas na terra. No cemitério, os corpos que se acumulam em suas instalações
frias, pedindo alguma vaga para o descanso final, perfazem 30 mil ex-cidadãos.
O “Placar da vida” são posts que aparecem nas publicações tanto da Secretaria
Especial de Comunicação Social (Secom) quanto, agora, do Ministério da Saúde. Esse
placar informa o número de pacientes que tiveram a doença e não faleceram pelo
coronavírus. Esses posts fazem um serviço ideológico par excellence, ou seja,
trabalham com uma falsa consciência. Trazem a ideia de que o Brasil tem um governo
“da vida”, não “da morte”, com o argumento de que o Planalto não faz a histeria da
mídia anunciando o número dos mortos.
A falsa consciência que o governo federal deseja passar é que a Covid-19 é uma
“gripezinha”, que a maioria não morrerá e que muitas pessoas pegaram a doença e não
morreram. Visto que toda ideologia tem uma parte de verdade, os posts trazem um
número verdadeiro de pacientes sobreviventes até então.
Em verdade, tudo não passa de um grande escárnio, pois é o governo de
Bolsonaro que está usando a palavra “vida”.
Além disso, esse placar não apenas esconde as mortes por Covid-19, mas
também ameniza a culpa do responsável por elas. Agora, talvez você pense: o
responsável pelas mortes desses brasileiros é o agente etiológico, o
108 https://covid.saude.gov.br/.
114
SARS-CoV-2, nome de uma fita odiosa de RNA. Se seu pensamento é esse, e somente
esse, você está [meio] errado. O tópico agente etiológico é uma meia verdade.
O SARS-CoV-2 é uma estrutura tão simples que divide a opinião dos cientistas
sobre se é ou não um ser vivo. Ele não sobrevive muito tempo fora de nossas células
e, com uma boa esfregada de detergente, sabonete ou álcool, é destruído. Como é que
essa coisa ínfima, comparada à majestade e à organização do corpo humano, conseguiu
o que conseguiu?
Bem, esse pedacinho de RNA conseguiu o que conseguiu porque encontrou
pernas e braços humanos. Outrossim, aqui, no Brasil, o vírus vestiu a faixa
presidencial. Em uma espécie de simbiose entre o desejo do vírus e o do presidente,
nasceu o “Bolsovírus”. Similarmente à série infantojuvenil Power Rangers, o SARS-
CoV-2 encontrou no Brasil um Megazord, ou seja, aqui, teve seus poderes ampliados
pelas instituições republicanas. Elas estavam à sua disposição e ao seu serviço.
Foi assim que o “Bolsovírus” corroeu o Ministério da Saúde, o Conselho Federal
de Medicina (CFM), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e estruturas
que, em outros países, ajudaram a derrubar o coronavírus. Enquanto algumas nações
encerram suas quarentenas, o Brasil tem um SARS-CoV-2 realizando plenamente sua
vontade. Friedrich Nietzsche ficaria orgulhoso de ver um conceito vivo, a “vontade de
potência”, circulando sorridente, enquanto espalha um caminho de corpos (como
costuma dizer o filósofo Paulo Ghiraldelli em seu canal no YouTube). Aqui, o SARS-
CoV-2 povoou as ruas e os pulmões, tanto quanto há estrelas no firmamento.
Um dia, “Bolsovírus”, com seu corpo humano, terá de pagar o preço da destruição
causada por ele. Em Haia, no Tribunal Internacional de Justiça, esse “Placar da vida”
não servirá para amenizar a culpa do responsável pela morte dos nossos irmãos
brasileiros. Afinal, o SARS-CoV-2 não abraçaria tantas pessoas com seu manto sombrio
se não tivesse recebido a espetacular ajuda de Bolsonaro!
Campo Grande, 31/05/2020
123
Oportunismo Trilionário dos Bancos em plena Pandemia
Maria Lucia Fattorelli Carneiro119
O privilégio do setor financeiro é estrutural no Brasil. Apesar da crise que
derrubou o PIB em cerca de 7% em 2015 e 2016, provocou a quebra de milhões de
empresas e aumentou o desemprego, o lucro dos bancos seguiu batendo novos recordes
a cada trimestre. Em 2020, em meio ao tumulto gerado pela pandemia do Covid-19 e
por crise política insana, o privilégio do setor financeiro avança e atinge trilhões de
reais.
No primeiro dia útil seguinte ao reconhecimento do estado de calamidade
pública pelo Congresso Nacional, no dia 23/03/2020, o Banco Central autorizou um
pacote de apoio de R$ 1,2 trilhão aos bancos. Essa medida veio antes de qualquer outro
apoio destinado às pessoas,instituições de atendimento médico-hospitalar ou aos
Estados e municípios.
Em seguida, o Congresso aprovou graves mecanismos financeiros que
comprometem tanto as finanças nacionais (a PEC 10/2020 autorizou gasto sem limite
para que o Banco Central compre papéis podres de bancos), como as finanças dos
estados e municípios (o PLP 39/2020 inseriu esquema que desvia recursos públicos, a
chamada securitização).
Além disso, em apenas 5 meses, o Banco Central acumulou perdas de mais de
R$ 65 bilhões em contratos que garantiram a alta do dólar para bancos e investidores
privilegiados – quantia superior à que a Lei Complementar 173/2020 destina aos 26
estados, DF e mais de 5.800 municípios, para o combate à pandemia.
Esses trilhões destinados aos bancos irão provocar o crescimento da dívida
pública em proporções gigantescas, cuja contrapartida estará refletida
119 Possui Especialização (MBA) em Administração Tributária pela FGV-EAESP (2009), Graduação em
Ciências Contábeis pela Fundação Educacional Machado Sobrinho (1986) e Graduação em
Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (1978). Atualmente é Coordenadora da
Auditoria Cidadã da Dívida. Foi membro da Comissão de Auditoria Integral da Dívida Externa
Equatoriana - CAIC - Subcomissão de Dívida Externa com Bancos Privados Internacionais (2007-2008).
Atuou como Assessora Técnica da Comissão Parlamentar de Inquérito CPI da Dívida Pública na Câmara
dos Deputados Federais em Brasília (2009-2010). Auditora Fiscal da Receita Federal do Brasil de 1982 a
2010. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Auditoria da Dívida Pública e Administração
Tributária.
124
em papéis podres e demais danos patrimoniais, econômico-financeiros e morais.
É preciso amplo conhecimento acerca desses mecanismos financeiros que
aprofundam o privilégio dos bancos em plena pandemia, caso contrário, depois ainda
irão dizer que a destruição das finanças públicas decorreu dos míseros 600 reais pagos
aos pobres. Espero que o presente artigo contribua para esse necessário registro
histórico.
Pacote de R$ 1,2 trilhão
O pacote de R$ 1,2 Trilhão para bancos120 foi anunciado pelo presidente do
Banco Central Roberto Campos Neto em 23/03/2020, sob a justificativa de que seria
necessário injetar liquidez dos bancos para facilitar a concessão de empréstimos a juros
baixos para as empresas durante a pandemia.
Essa justificativa não se concretizou. A dificuldade de obtenção de empréstimos
e a elevação dos juros121,que já levou mais de 600 mil empresas a fecharas portas e
demitir122, tem sido objeto de inúmeras notícias.O próprio ministro Paulo Guedes
declarou que o dinheiro ficou “empoçado” nos bancos123.
Os bancos não cumpriram o combinado. Em vez de punidos, ainda estão sendo
premiados! Isso mesmo! O dinheiro que os bancos não
120 Vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=4plBToPhD8w&feature=youtu.be, referente
às medidas detalhadas em relatório do Banco Central disponível em
https://www.bcb.gov.br/content/publicacoes/ref/202004/RELESTAB202004-secao2_2.pdf, e resumidas
em notícia publicada pelo Correio Braziliense
http://blogs.correiobraziliense.com.br/vicente/banco-central-detalha-pacote-de-r-1216-tri-contra- a-crise-
do-coronavirus/. 121
Diversas notícias, por exemplo,
https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/26/coronavirus -juros-alta-prazo-corte- linha-
credito-antecipacao-recebivel.htm> e
https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/05/09/sem-verba-criada-para-salarios-associacao- estima-
em-1-milhao-ja-demitidos 122
https://gazetabrasil.com.br/economia/sebrae-mais-de-600-mil-empresas-fechadas-e-9-
milhoes-de-desempregados/ 123
https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2020/04/05/ internas_economia,1135804/guede
s-diz-que-dinheiro-esta-empocado-nos-bancos-e-sinaliza-medidas.shtml
125
emprestam continua sendo depositado voluntariamente no Banco Central e é
remunerado diariamente, à custa do orçamento público124.
Não há previsão legal para essa remuneração diária, que custou cerca de R$ 1
trilhão durante 10 anos (2009 a 2018) aos cofres públicos.
Mesmo sem amparo legal, atualmente, quantia superior a R$ 1,3 trilhão que
sobra no caixa dos bancos é depositada voluntariamente no Banco Central e remunerada
diariamente, como o antigo overnight, às nossas custas.
Se o Banco Central não remunerasse essa montanha de dinheiro, os bancos iriam
se esforçar para emprestar, e para isso teriam que reduzir drasticamente os juros de
mercado. Portanto, é o próprio Banco Central que, ao remunerar a sobra de caixa dos
bancos, está incentivando a alta dos juros de mercado e provocando dificuldades para o
crédito às empresas.
Somente agora os bancos passarão a emprestar às pequenas empresas, porque o
Tesouro Nacional resolveu garantir para tais empréstimos125. Dessa forma, a atividade
mais lucrativa do país não irá correr risco algum para exercer a sua atividade fim, que é
prestar crédito. Fácil, não? Capitalismo sem risco para bancos, que continuam de posse
do pacote de R$1,2 trilhão, sem ter que cumprir a sua parte.
Trilhões de reais em troca de papéis podres
Outra benesse injustificável dada aos bancos em plena pandemia constou de
dispositivo inserido no Art. 7o da Emenda Constitucional 106/2020, que tramitou no
Congresso Nacional como PEC 10 e escancara o que denominamos Sistema da
Dívida126, isto é, a geração de dívida pública sem contrapartida alguma.
124Folheto resumido disponível em https://auditoriacidada.org.br/conteudo/temos-dinheiro- sobrando-
para-remunerar-diariamente-a-sobra-de-caixa-dos-bancos-essa-e-a-prioridade-do- pais/
125https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-06/governo-oferece-garantia-em-
emprestimo-para-pequena-e-media-empresa 126
https://auditoriacidada.org.br/conteudo/pec-10-2020-escancara-sistema-da-divida-por-maria- lucia-
fattorelli/
126
A Emenda Constitucional 106 rebaixou o Banco Central a mero agente
independente do mercado secundário (mercado de balcão), o qual funciona de forma
desregulada, como uma negociação informal entre 2 agentes financeiros
independentes,sem a supervisão da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) ou de
qualquer bolsa de valores.
O Banco Central será uma das pontas desse negócio, porém, atuando com
dinheiro público e comprando qualquer tipo de ativo privado de bancos em volumes que
poderão alcançar vários trilhões de reais.
O presidente do Banco Central informou aos senadores, em 09/04/2020, que o
valor desse negócio bizarro seria de R$972,9 bilhões127. Porém, levantamento elaborado
pela Ivix Value Creation, publicado128 em novembro/2019, já havia revelado que esse
valor de quase R$ 1 trilhão corresponde a papéis financeiros que vêm sendo acumulados
ao longo de 15 anos na “carteira podre” de bancos, e esse valor não considera a
atualização pela inflação.
127https://www.moneytimes.com.br/ativos -privados-que-bc-pode-comprar-caso-pec-seja-
aprovada-somam-r-9729-b ilhoes/ 128
https://auditoriacidada.org.br/conteudo/carteira-podre-de-trilhoes-dos-bancos-nas-costas-do- povo-
brasileiro/
127
Se considerarmos a atualização monetária sobre essa “carteira podre” dos
bancos, estamos falando de um gasto no valor de VÁRIOS TRILHÕES DE REAIS, que
irá afetar de forma drástica tanto o orçamento púbico como o endividamento, mais uma
vez, sem contrapartida alguma!
O risco de o Brasil virar o lixão dos papéis podres do mundo é elevadíssimo,
diante da falta de restrições aos tipos de papéis, falta de transparência, e falta de limite
para o gasto de dinheiro público a ser destinado para a compra de questionáveis ativos
privados.
No Senado, algumas modificações foram feitas no texto, em especial a
discriminação dos tipos de créditos privados que o Banco Central passaria a comprar: a)
debêntures não conversíveis em ações; b) cédulas de crédito imobiliário; c)
certificados de recebíveis imobiliários; d) certificados de recebíveis do
agronegócio; e) notas comerciais; e f) cédulas de crédito bancário.
A Câmara dos Deputados suprimiu tal discriminação e não retornou o texto para
o Senado, gerando uma inconstitucionalidade formal que é objeto da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 6417 junto ao Supremo Tribunal Federal129.
Ao suprimir a discriminação dos papéis, o texto aprovado na Câmara acabou
autorizando a compra de qualquer ativo privado, sem limite, abrindo-se a oportunidade
para negócios completamente obscuros, como revela a notícia130 “O Banco Central
avalia comprar cestas de títulos privados.
Não será possível conhecer ou estabelecer qualquer tipo de controle sobre o tipo
de papel efetivamente comercializado, pois uma “cesta de títulos” pode conter inúmeros
tipos de distintos papéis financeiros, inclusive títulos sem valor comercial algum, podres
ou já prescritos (superiores a 5 anos) que sequer poderão ser identificados, pois estarão
“empacotados” na referida cesta.
129https://auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2020/05/peca_1_ADI_6417.pdf
130https://valor.globo.com/financas/noticia/2020/05/20/bc-avalia-comprar-cestas-de-titulos-
privados.ghtml
128
Esse “empacotamento” torna sem sentido falar em “risco de crédito” ou “preço
de referência”, pois cestas de títulos misturam diversos tipos distintos de papéis
financeiros, de naturezas diversas, riscos diversos e preços de referência diversos e até,
em muitos dos casos, inexistentes, escondendo a verdadeira identidade e qualidade dos
títulos que estão sendo de fato negociados.
Os operadores desse negócio estão livres de punição, pois foram colocados
acima da lei de responsabilidade administrativa. Durante a tramitação da PEC 10 no
Senado, os senadores chegaram a exigir a revogação do Art. 3o da MP 930, que garantia
imunidade aos diretores e alguns servidores do Banco Central.
Vários senadores fizeram a ligação: se as operações a serem feitas com base na
PEC 10 fossem legítimas, qual seria a necessidade de conceder imunidade aos diretores
e operadores do Banco Central? Senadores disseram que não votariam a PEC 10
enquanto não fosse revogado o Art. 3o da MP 930. Tal revogação ocorreu no dia
15/4/2020, com a edição da MP 951, o que viabilizou a aprovação da PEC 10 no
Senado em 17/04/2020. Porém, logo após a promulgação da EC 106, por encomenda
do BC131, foi editada nova MP 966que coloca todos os agentes públicos acima da Lei de
Improbidade Administrativa, inclusive os do Banco Central.
Qual seria a justificativa para que o Banco Central gaste trilhões de reais para
comprar papéis privados que ninguém compraria? Porque a classe política brasileira
aprovou esse mecanismo em plena pandemia, e segue entregando as riquezas do país e a
possibilidade de desenvolvimento socioeconômico? Quem eles representam ao aprovar
isso? Não é o interesse social, definitivamente!
O ministro da Economia Paulo Guedes tem conhecimento do impacto trilionário
dessa operação no endividamento público, e já vem anunciando que pretende vender
reservas internacionais (possuímos cerca de US$ 360 bilhões em reservas
internacionais, equivalente a quase R$ 2 trilhões) para pagar
131
https://oglobo.globo.com/brasil/equipe-economica-bc-pediram-mp-que-livra-autoridades-de-
punicao-por-erro-na-pandemia-24426628
129
dívida pública132, além de acelerar privatizações no valor de R$ 2 trilhões, referentes à
entrega de imóveis públicos e participações em estatais, também para pagar a dívida
pública133.
Em resumo, a dosagem desse mecanismo aplicada ao Brasil é cavalar e vai gerar
trilhões de reais de “dívida pública”, que terá que ser paga com sacrifício social e
entrega de patrimônio público. Por isso, durante a tramitação da PEC10 a Auditoria
Cidadã da Dívida enviou notificação extrajudicial134 aos deputados federais e produziu
várias notas técnicas alertando sobre os graves problemas de ordem jurídica,
constitucional, econômico-financeira e social envolvidos na PEC 10/2020, assim como
os seus impactos danosos à sociedade brasileira. Não adiantou! Os interesses
financeiros falaram muito mais alto e a PEC 10 foi aprovada em poucas sessões virtuais.
A Securitização permite que o mercado se apodere de recursos que
sequer alcançarão os cofres públicos
Outro mecanismo aprovado em plena pandemia foi o da chamada Securitização
de Créditos, que corresponde a uma nova forma de geração de dívida pública, porém, de
forma camuflada e super onerosa.
A dívida securitizada é paga por fora dos controles orçamentários, ou seja,
estamos diante de um esquema fraudulento.
Toda a legislação de finanças do país, fundamentada no princípio da unidade
orçamentária, é rasgada pelo esquema da securitização, pois o fluxo de recursos
arrecadados é parcialmente desviado para o mercado financeiro durante o percurso do
dinheiro pela rede bancária, e antes de alcançar os cofres públicos.
132https://www.infomoney.com.br/economia/guedes -defende-reducao-de-reservas-
internacionais-para-diminuir-divida-bruta/ 133
https://www.esmaelmorais.com.br/2020/04/paulo-guedes-quer-repassar-mais-r-2-trilhoes-
aos-bancos-enquanto-o-povo-se-humilha-para-receber-r-600/ 134
https://auditoriacidada.org.br/notificacao-extrajudicial-alerta-deputados-dos-graves-danos-
envolvidos-na-pec-10-2020/
130
O ente federado perde o controle sobre parte de suas receitas, tendo em vista que
o desvio do fluxo de recursos públicos se dá durante o percurso do dinheiro pela rede
bancária resguardada pelo sigilo.
O mercado financeiro vem tentando aprovar o esquema de securitização de
créditos públicos há vários anos, por meio do PLP 459/2017135, cuja votação foi
obstruída várias vezes por mobilizações intensas e várias outras iniciativas, destacando-
se a interpelação extrajudicial136 a todos os líderes partidários e a denúncia sobre os
danos comprovadamente apurados por CPI da PBH Ativos S/A em Belo Horizonte137.
Em votação virtual realizada no sábado à noite, dia 02/05/2020, entre o feriado
de 1o de maio e o domingo, o Senado incluiu o esquema da securitização no PLP
39/2020 e o aprovou, juntamente com o congelamento de salários de servidores e a
exigência de implantação de medidas de arrocho fiscal. A relação é direta:
investimentos públicos ficarão inviabilizados diante do vazamento de recursos para o
mercado financeiro antes de alcançarem o orçamento público.
Esse é mais um negócio que só beneficia o mercado financeiro. Bancos
agenciam o processo de securitização, cobram taxas exorbitantes (em Goiás essas taxas
superavam R$ 350 milhões), e acabam adquirindo a totalidade dos ativos financeiros
(debêntures) gerados pela securitização. No caso da PBH Ativos S/A, por exemplo, em
2014 o BTG Pactual estruturou a operação e adquiriu a totalidade das debêntures que
pagavam juros de 23% ao ano!
Em vez de empacotar as dívidas dos entes federados e oferecê-las em processo
fraudulento de securitização, em linha com a perversa financeirização que está dando
errado no mundo todo, o Congresso deveria obrigar a União a socorrer estados e
municípios, onde vive a população, pois possui muito dinheiro em caixa; mais de R$ 4
trilhões em caixa: saldo de R$ 1,4 trilhão na
135https://auditoriacidada.org.br/conteudo/apelo-pela-rejeicao-de-projetos-fraudulentos-que-
desviam-recursos-publicos-plp-459-2017-e-pec-438-2018/ 136
https://auditoriacidada.org.br/conteudo/interpelacao-extrajudicial-sobre-o-plp-459-2017-
entregue-a-parlamentares-em-21-11-2018/ 137
https://auditoriacidada.org.br/conteudo/relatorio-preliminar-especifico-de-auditoria-cidada-da- divida-
no-2-2017/
131
conta única do Tesouro Nacional138, mais de R$ 1,7 trilhão em Reservas
Internacionais139, e mais de R$ 1 trilhão no caixa do Banco Central140.
Esse mesmo PLP 39/2020 autorizou a destinação de apenas R$ 60 bilhões para
todos os 26 estados, DF e mais de 5.500 municípios, para ações de combate à pandemia
do coronavírus. A liberação de recursos não é automática e passa por diversos trâmites
burocráticos.
O desrespeito à vida e ao federalismo fica escancarado quando se verifica que
quantia superior a R$ 65 bilhões foi destinada pelo Banco Central, no período de janeiro
a maio deste ano, ao seleto grupo de bancos e grandes corporações que têm acesso aos
sigilosos contratos que paga a diferença decorrente da alta do dólar (swap cambial).
Conclusão
Os dispositivos mencionados neste artigo não têm nada a ver com o drama da
pandemia do coronavírus e descaradamente representam mais privilégios para o setor
mais lucrativo do país, às custas de geração exponencial de dívida pública sem
contrapartida alguma, com graves consequências sociais e econômicas para toda a
população e para a economia do país.
Por trás da desculpa de resolver problemas da pandemia, os bancos conseguiram
aprofundar seus privilégios na ordem de trilhões, comprometendo a geração atual e as
futuras com os pagamentos exorbitantes de juros sobre tal obrigação.
É inaceitável esse oportunismo que se aproveita do drama da pandemia do
coronavírus para suicidar de vez as finanças e adiar por muitas décadas qualquer
possibilidade de desenvolvimento socioeconômico do nosso rico país.
138 https://www.bcb.gov.br/content/estatisticas/docs_estatisticasfiscais/Notimp3.xlsx - Tabela 4 -
Linha 44 139
https://www3.bcb.gov.br/sgspub/localizarseries/localizarSeries.do?method=prepararTelaLoca
lizarSeries, Série Temporal nº 13621. 140
https://auditoriacidada.org.br/conteudo/fonte-da-informacao-de-r-144-trilhao-no-caixa-do-
tesouro-nacional-em-dez-2019/
Seguiremos lutando e exigindo a realização da auditoria integral, com
participação cidadã, a fim de desmascarar esse golpe financeiro de trilhões que
aprofunda o Sistema da Dívida em plena pandemia, pois é urgente redirecionar os rumos
para outro modelo econômico que coloque o ser humano no centro e respeite o
ambiente.