maria sylvia zanella di pietro - discricionariedade técnica e discricionariedade administrativa

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  • 8/14/2019 Maria Sylvia Zanella Di Pietro - Discricionariedade tcnica e discricionariedade administrativa

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    Nmero 9 fevereiro/maro/abril - 2007 Salvador Bahia Brasil - ISSN 1981-1861 -

    DISCRICIONARIEDADE TCNICA EDISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

    P r o f a . Ma r i a S y l v i a Z a n e l l a D i P i e t r o

    Professora Titular de Direito Administrativo da USP.

    1. Introduo

    O tema da discricionariedade que nunca deixou de constituir

    preocupao dos estudiosos do direito administrativo, at porque nopermaneceu esttico no tempo da mais alta relevncia porque envolve adefinio de limites ao controle jurisdicional sobre os atos da AdministraoPblica.

    Um dos aspectos que, no momento, vem despertando interesse o que dizrespeito chamada discricionariedade tcnica, que alguns preferem chamar dediscricionariedade imprpria, por entenderem que ela no se identifica com a realdiscricionariedade administrativa, j que no permite a deciso segundo critriosde oportunidade e convenincia.

    O interesse pela questo da discricionariedade tcnica, de sua definio,de sua submisso ou no apreciao judicial, justifica-se por ser tema conexoaos limites da competncia das agncias reguladoras.

    Os dois institutos discricionariedade tcnica e agncia reguladora penetram no direito administrativo brasileiro sob influncia direta do direito norte-americano, ainda que a idia da discricionariedade tcnica tenha se originado naAlemanha e se desenvolvido principalmente no direito italiano.

    A anlise do tema envolve uma definio da prpria discricionariedadeadministrativa, sua evoluo (ainda que bem sintetizada), o conceito de

    discricionariedade tcnica, a sua importncia no direito norte-americano e a suaaplicabilidade no direito brasileiro.

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    2. Discricionariedade administrativa

    difcil, seno impossvel, tratarmos do tema sem levar em consideraoe, s vezes, repetir os conceitos e idias defendidos em nossa tese publicadasob o ttulo de Discricionariedade Administrativa na Constituio de 1988 (2edio. So Paulo: Editora Atlas, 2001).

    Segundo ali expusemos, existe discricionariedade quando a lei deixa Administrao a possibilidade de, no caso, concreto, escolher entre duas ou maisalternativas, todas vlidas perante o direito. E essa escolha se faz segundocritrios de oportunidade, convenincia, justia, eqidade, razoabilidade, interessepblico, sintetizados no que se convencionou chamar de mrito do atoadministrativo.

    Da decorrem os dados fundamentais para definir a discricionariedade: a)envolve a possibilidade de opo entre duas ou mais alternativas; b) essasalternativas decorrem da lei; c) por isso, qualquer uma das alternativas que aautoridade escolha juridicamente vlida; d) a escolha se faz diante do casoconcreto, com base em critrios de mrito.

    Estudando-se a evoluo da discricionariedade, verifica-se que elaacompanhou a prpria evoluo do Estado Moderno.

    No perodo do Estado de Polcia, a discricionariedade era vista como poderpoltico, sinnimo de arbtrio prprio das monarquias absolutas, em que os atosda Administrao no eram subordinados lei nem passveis de apreciao peloPoder Judicirio.

    Com a instaurao do Estado de Direito, a discricionariedade ficoureduzida a um certo tipo de atos, ou seja, ela somente existia em relao aos atosda Administrao que no dissessem respeito aos direitos individuais; isto porque,na fase inicial do Estado de Direito perodo do liberalismo a legalidade s seaplicava para proteger as liberdades individuais. Em todas as demais esferas, aAdministrao continuava a ser titular de poder discricionrio de natureza poltica,porque desvinculado da lei e do controle judicial. Aplicava-se a doutrina davinculao negativa, significando que a Administrao pode fazer tudo o que a leino probe. E a lei s probe as coisas nocivas sociedade, conforme constouexpressamente do artigo 5 da Declarao de Direitos do Homem e do Cidadode 1789.

    Mais um avano e a legalidade passou a abranger todas as atividades daAdministrao, adotando-se a doutrina da vinculao positiva, pela qual aAdministrao Pblica s pode fazer o que a lei determina. Nesse passo, adiscricionariedade passou a ser vista como um poder jurdico, ou seja, limitadopela lei.

    Ocorre que o prprio princpio da legalidade evoluiu e, juntamente com ele,a idia de discricionariedade. Quando a lei era vista, sob a tica do positivismo

    jurdico, dentro de um sistema lgico-jurdico, despido de qualquer contedo

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    axiolgico, a discricionariedade administrativa resultava forte, porque aAdministrao s tinha que observar a lei em sentido formal, nico aspecto a serconsiderado pelo Poder Judicirio. Alm disso, com o crescimento das atividadesdo Estado, no perodo do chamado Estado Social de Direito, houve um

    fortalecimento do Poder Executivo, que recebeu funo normativa a ser exercidapor meio de regulamentos autnomos, leis delegadas, decretos-leis, medidasprovisrias. Vale dizer que o princpio da legalidade passou a abranger no s alei mas tambm os atos normativos do Poder Executivo. Por outras palavras, oprincpio da legalidade experimentou duas espcies de ampliao: passou aabranger tambm os atos normativos do Poder Executivo e passou a vinculartoda a atividade da Administrao Pblica. S que os atos normativos, tanto doLegislativo como do Executivo, eram vistos em seu aspecto puramente formal,sem qualquer preocupao com seu contedo de justia. Por isso, o controle peloJudicirio tambm era puramente formal, limitando-se, em regra, a apreciar osvcios de competncia, forma e objeto.

    Quando, porm, lei formal se acrescentam consideraes axiolgicas oque aconteceu com a instaurao do Estado de Direito Democrtico amplia-se apossibilidade de controle judicial, porque, por essa via, podero ser corrigidos osatos administrativos praticados com inobservncia de certos valores adotadoscomo dogmas em cada ordenamento jurdico. Desse modo, hoje, falar emprincpio da legalidade significa abranger no s a lei, em sentido formal, mastodos os valores e princpios contidos implcita ou explicitamente no ordenamento

    jurdico. Esta uma idia inerente ao prprio conceito de Estado Democrtico deDireito, adotado no ordenamento jurdico brasileiro a partir do Prembulo daConstituio e em seu artigo 1.

    Isto significa que a discricionariedade administrativa sofre maioreslimitaes, ficando muito mais complexa a atividade de controle. Na medida emque a lei foi reconquistando o seu sentido axiolgico perdido por influncia dopositivismo jurdico, novos princpios foram sendo elaborados como formas delimitar a discricionariedade administrativa e, paralelamente, ampliar a esfera decontrole pelo Poder Judicirio.

    Hoje, a discricionariedade administrativa vista como uma liberdade deopo entre duas ou mais alternativas vlidas perante o direito, e no apenasperante a lei. uma concepo herdada da Constituio alem de 1949, cujo

    artigo 20 expressamente estabelece que o Poder Executivo se submete lei e aodireito. Desse modo, quando o sistema jurdico adota princpios como os dointeresse pblico, da razoabilidade, da proporcionalidade entre meios fins, damoralidade, da boa-f, da dignidade do ser humano, entre tantos outros, aconseqncia inevitvel que a discricionariedade sofre limitaes decorrentesda aplicao desses princpios. Em uma hiptese na qual, perante a lei, aAdministrao teria duas opes, uma delas pode ser excluda pela aplicao deum princpio, como o da razoabilidade, por exemplo, de tal forma que adiscricionariedade desaparece porque uma nica soluo resulta vlida perante oDireito. Reduzindo-se a discricionariedade, amplia-se a possibilidade de controle

    judicial, tendo em vista que os valores e princpios constitucionais se impem aos

    trs Poderes do Estado. O Legislativo, ao elaborar uma lei, sujeita-se aosmesmos, sob pena de inconstitucionalidade; o Executivo, na prtica dos atos

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    normativos e dos atos administrativos propriamente ditos, sujeita-se tambm sua observncia; em conseqncia, o Poder Judicirio, ao apreciar a validade deuma lei ou de um ato da Administrao, deve analisar a sua validade perante a leie perante os valores e princpios que esto na base do ordenamento jurdico,

    estejam ou no consagrados no direito positivo.No que diz respeito discricionariedade tcnica, a grande questo que se

    coloca : o emprego de conceitos jurdicos indeterminados, na lei, geradiscricionariedade administrativa, ou seja, a possibilidade de escolha entre duasou mais alternativas ou o conceito jurdico indeterminado envolve apenas trabalhode interpretao, suscetvel de apreciao judicial?

    3. Discricionariedade tcnica

    3.1. Direito europeu cont inental

    A expresso discricionariedade tcnica foi utilizada, pela primeira vez, em1864, por Bernatzik, um dos autores da Escola de Viena. Nas palavras deAntnio Francisco de Sousa (em seu livro Conceitos Indeterminados no DireitoAdministrativo. Coimbra: Livraria Almedina, 1994, p. 105-106), Bernatzikpretendia, sob o conceito de discricionariedade tcnica englobar todo aquele tipode decises que, no sendo discricionrias, deveriam contudo ser, pela sua altacomplexidade tcnica (elevada complexidade das premissas factuais), retiradasdo controlo jurisdicional, porque, como ele dizia, de administrao percebem osadministradores, e s eles, pela sua formao tcnica. Acresceria que, pela suaexperincia e pelo seu contacto directo com a realidade do dia-a-dia, estariam osadministradores em melhores condies para reagir, eficazmente e comoportunidade, s circunstncias mais variadas com que se defrontavam. Por isso,no poderiam os juzes, com outra funo, outra preparao e distanciados dasrealidades da vida administrativa, fazer substituir a sua opinio, tardiamente, daautoridade administrativa.

    Ainda segundo o autor, a natureza e a dimenso desta discricionariedadetcnica varia, porm, de pas para pas, e mesmo dentro de cada pas que aadota ela permanece obscura. Para uns, trata-se de um poder livre, para outros,

    de um poder vinculado mas que no suscetvel de ser controlado pelos tribunaisadministrativos, para outros, de um poder vinculado que deve ser, ainda que nointegralmente, controlado judicialmente para outros ainda, a sua natureza varia decaso para caso(ob. cit., p. 307).

    A idia de discricionariedade tcnica no subsistiu muito tempo nem naustria, onde teve origem, nem na Alemanha. Nesses pases, o que se nota queo tema foi tratado de forma conexa com o tema dos conceitos jurdicosindeterminados, oscilando entre aceitar ou no, nesses casos, uma certa margemde discricionariedade. Para alguns, o conceito indeterminado confere Administrao uma liberdade de opo; para outros, o emprego do conceito

    indeterminado, na lei, constitui mero problema de interpretao, cabendo Administrao a escolha da nica soluo correta. Sendo problema de

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    interpretao, ao Judicirio sempre possvel apreciar o ato. Esse foi oentendimento que acabou por prevalecer nos tribunais administrativos alemes.

    Essa posio restritiva influenciou o direito espanhol, onde prevalece nadoutrina e na jurisprudncia o entendimento de que os conceitos indeterminadosno geram discricionariedade, cabendo Administrao encontrar a melhorsoluo. Segundo Garca de Enterra e Toms Ramn Fernndez, com a tcnicado conceito jurdico indeterminado, a lei refere-se a uma esfera de realidade cujoslimites no aparecem bem precisos em seu enunciado, mas que podem serdeterminados no caso concreto, por via de interpretao; por outras palavras, aaplicao desses conceitos nos casos concretos no admite mais do que umasoluo: ou se d ou no se d o conceito; ou h boa-f ou no; o preo justoou no ; ou se faltou probidade ou no faltou: Tertium non datur (cf. Enterria eFernndez. Curso de derecho administrativo. Madri: Civitas, 1988, t. I, p. 433-439).

    Segundo esses autores, a discricionariedade envolve uma liberdade deescolha entre alternativas igualmente justas, porque a deciso se funda emcritrios extrajurdicos (de oportunidade, econmicos etc.), no includos na lei eremetidos ao juzo exclusivo da Administrao; ao contrrio, a aplicao dosconceitos jurdicos indeterminados um caso de aplicao da lei em que se cuidade subsumir em uma categoria legal determinadas situaes reais; justamente porisso, um processo vinculado, que se esgota no processo intelectivo decompreenso de uma realidade, processo no qual no interfere nenhuma decisode vontade do aplicador, como prprio de quem exercita um poderdiscricionrio.

    A conseqncia que o juiz tem ampla liberdade para apreciar a aplicao,pela Administrao, dos conceitos indeterminados, sejam eles de experincia oude valor. o que ocorre com os conceitos de urgncia, ordem pblica, justopreo, calamidade pblica, medidas adequadas ou proporcionais, necessidadepblica, utilidade pblica, interesse pblico. Essa a doutrina adotada pelostribunais espanhis. No existe discricionariedade nos conceitos indeterminados.

    No direito italiano, um dos autores que melhor colocaram o tema foi RenatoAlessi (Instituciones de Derecho Administrativo. Buenos Aires: Bosch, 1970, t. I, p.195-198). Segundo suas lies, existem casos em que a apreciao do interesse

    pblico exige exclusivamente a utilizao de critrios administrativos, hiptese emque se tem a discricionariedade administrativa, que se d, por exemplo, quandose tenha que conceder uma licena para uso de armas, uma licena comercial,um certificado de boa conduta, aplicar uma sano disciplinar etc. E, ao contrrio,existem casos em que a referida apreciao exige a utilizao de critriostcnicos e a soluo de questes tcnicas que devem realizar-se conforme asregras e os conhecimentos tcnicos, como, por exemplo, quando se trata deordenar o fechamento de locais insalubres, ordenar a matana de animaisatacados de enfermidades infecciosas, ordenar o fechamento de umestabelecimento em que se exera uma atividade perigosa sem meios suficientesde proteo, ordenar a construo de uma ponte, adotar certo tipo de aeronave

    etc.

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    Nesses casos, a soluo diferente conforme os conceitos tcnicosestejam ou no ligados a critrios administrativos. Quando haja essa vinculao,a Administrao faz um juzo de valor; caso contrrio, no.

    Ele cita duas hipteses em que os conceitos tcnicos esto ligados acritrios administrativos:

    a) quando, com base em dados fornecidos por rgo tcnico, aAdministrao deve, no caso concreto, decidir fazendo uma apreciao emconsonncia com critrios administrativos de oportunidade e convenincia. Porexemplo: um rgo tcnico manifesta-se no sentido de que um prdio ameaacair; Administrao cabe resolver se essa ameaa representa ou no perigopara o interesse pblico, de modo a exigir ou no a demolio; nesse caso, aquesto tcnica fica absorvida pela questo administrativa;

    b) em outros casos, a deciso baseia-se em critrios administrativos,embora considerando tambm aspectos tcnicos; por outras palavras, aAdministrao tem que escolher os meios tcnicos mais adequados parasatisfazer ao interesse pblico. Exemplo: a escolha de critrios tcnicos para aconstruo de uma obra pblica.

    Em todas essas hipteses, a discricionariedade tcnica constitui verdadeiradiscricionariedade, porque h sempre, por parte da Administrao, umaapreciao em face do interesse pblico. Em outras hipteses, no h avinculao de critrios tcnicos a critrios administrativos: diante da manifestaodo rgo tcnico, a Administrao no pode valorar em que medida o fato afeta o

    interesse pblico; a ela caber decidir em consonncia com as condies tcnicaspreviamente definidas pela lei. Por exemplo, quando a lei determina a destruiode mercadorias deterioradas, Administrao cabe apenas constatar aocorrncia de deteriorao e determinar sua destruio; no lhe cabe valorar amedida em face do interesse pblico.

    Nesses casos, no existe discricionariedade propriamente dita, porque aAdministrao no tem liberdade para apreciar a oportunidade e convenincia doato; aparecem, ento, como inconciliveis, os vocbulos discricionariedade etcnica. Por outras palavras, a distino entre discricionariedade administrativa ediscricionariedade tcnica ou imprpria est em que, na primeira, a escolha entre

    duas ou mais alternativas vlidas perante o direito se faz segundo critrios deoportunidade ou convenincia (mrito) e, na segunda, no existe propriamenteliberdade de opo, porque a Administrao tem que procurar a soluo corretasegundo critrios tcnicos. As decises sobre se um prdio ameaa ou no cair,se um alimento est ou no deteriorado, se um paciente est ou no com doenacontagiosa, no envolvem critrios de oportunidade e convenincia; somente umrgo especializado poder dar a resposta correta, segundo critrio puramentetcnico.

    Tambm Massimo Severo Giannini (in Il potere discrezionale della pubblicaamministrazione. Milo: Giuffr, 1939, p. 42) dedicou-se ao estudo do tema.

    Afirma que aderiu doutrina dominante que distingue entre atividadeadministrativa e atividade tcnica, segundo a qual a discricionariedade tcnica

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    entendida no em relao ao interesse pblico, mas em relao s regras, aosensinamentos das disciplinas tcnicas, enquanto a discricionariedade em sentidoprprio entendida somente em relao ao interesse pblico: reconhece-se queem ambas se encontra uma apreciao de oportunidade, mas a

    discricionariedade tcnica d lugar a uma valorao de tipo cientfico,concernente ao fenmeno natural em si, no em coordenao com os outrosfenmenos sociais: a discricionariedade em sentido prprio d lugar a umavalorao de tipo poltico, em que o fenmeno no mais do tipo natural, massocial, relacionado a um grupo de outros fenmenos sociais.

    No direito francs, o Conselho de Estado, rgo de cpula da jurisdioadministrativa, tem enfrentado o tema das noes vagas ou indeterminadasem relao aos motivos do ato, ou seja, em relao aos pressupostos de fato. Efaz trs tipos de controle:

    a) o controle mnimo, que diz respeito materialidade dos fatos: o que severifica se os fatos existiram ou no existiram;

    b) o controle normal, que diz respeito qualificao jurdica dos fatos:verifica-se se est correta a qualificao que a Administrao deu aos fatos, porexemplo, se um fato imputado ao funcionrio uma infrao, se uma praa podeser considerada de perspectiva monumental; nesse tipo de controle, o Conselhode Estado examina as noes imprecisas com que o legislador designa o motivodo ato administrativo, como imoralidade, interesse para a ordem pblica, perigopara a sade pblica, declarao de urgncia em uma desapropriao, existnciade um stio pitoresco, ruptura do equilbrio biolgico; nos casos em que a deciso

    administrativa se baseia em dados tcnicos ou cientficos, como na definio danatureza txica de um produto ou da qualidade de um vinho por rgoespecializado, o Conselho de Estado s exerce o controle para anular a decisoadministrativa se houve um erro manifesto(cf. Georges Vedel e Pierre Delvolv.Droit Administratif. Paris: Presses Universitaires de France, 1984, p. 97);

    c) o controle mximo, em que o Conselho de Estado verifica a adequaoda deciso aos fatos; somente se aplica em relao s medidas de polciarestritivas da liberdade e em caso de circunstncias excepcionais, que autorizama Administrao a afastar o princpio da legalidade diante de uma situaoanormal e exorbitante, na medida em que isso seja necessrio para atender ao

    interesse pblico; nesses casos, aplicado o princpio da proporcionalidade dosmeios aos fins.

    No que diz respeito s questes tcnicas, o Conselho de Estado adota ateoria do erro manifesto, aplicvel nos trs tipos de controle referidos. Istosignifica que a apreciao dos fatos, se tem carter tcnico, reconhecida comofaculdade discricionria da Administrao, excluda, portanto, do controle

    jurisdicional. No entanto, naqueles casos de erro manifesto, que salta aos olhossem necessidade de um perito na matria, a excluso de apreciao judicialpoderia conduzir ao arbtrio. Com base nessa teoria, o Conselho de Estado temanulado atos, em matria de apreciao do mrito do funcionrio em uma

    promoo, de aptido profissional, de fixao do valor de uma tarifa parafiscal e,inclusive, em matria de sano disciplinar, em que o colegiado j decidiu ter sido

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    a pena escolhida excessiva em relao infrao praticada.

    Como se verifica, no direito europeu, o tema da discricionariedade tcnicaconstitui objeto de preocupao para definir os limites do controle judicial sobre osatos administrativos.

    3.2. Direito norte-americano

    No direito norte-americano, embora o tema envolva tambm o aspecto doslimites do controle jurisdicional, na realidade a chamada discricionariedadetcnica constitui um dos pilares em que se baseou a tese da funo normativadas agncias reguladoras.

    Com efeito, no direito norte-americano o tema da discricionariedade tcnica

    teve importncia fundamental na delimitao da competncia das agnciasreguladoras, seja para definir os limites de sua funo normativa, seja paraestabelecer os limites do controle jurisdicional.

    Sendo adotado o princpio da separao de poderes, houve a necessidadede criar uma doutrina que desse fundamento delegao de funo legislativa sagncias reguladoras. Sabe-se que as agncias so criadas por lei, que define assuas atribuies, estabelece o procedimento a ser obrigatoriamente obedecidopara a tomada de suas decises e para a elaborao de suas normas, bem comopara o controle pelo Congresso.

    As agncias que exercem funo normativa recebem esse poder mediantedelegao da lei instituidora. Essa funo considerada quase legislativaporque suas normas tm fora de lei, sendo obrigatrias para os cidados, porm,na escala hierrquica, colocam-se abaixo da lei, podendo ser invalidadas peloPoder Judicirio se contrrias lei ou Constituio.

    Desenvolveu-se nos Estados Unidos a tcnica dos standards, pela qual alei se limita a estabelecer parmetros, diretrizes, princpios, conceitosindeterminados, ficando para as agncias a funo de baixar normas reguladoras,que devem se conformar aos standards contidos na lei e na Constituio.Segundo Bernard Schwartz, o poder legislativo pode ser conferido ao ramoexecutivo, desde que a outorga de autoridade seja limitada por determinadospadres....O arbtrio conferido no pode ser to amplo que se torne impossveldiscernir os seus limites. Outrossim, precisa haver certa inteno legislativa com aqual se deve harmonizar o exerccio do poder delegado.(in Direito ConstitucionalAmericano. Rio de Janeiro: Forense, 1966, p. 350).

    No livro Parcerias na Administrao Pblica. Concesso, permisso,franquia, terceirizao e outras formas(4 edio. So Paulo: Editora Atlas, 2002,p. 143-150), fizemos um estudo sobre o modelo norte-americano das agnciasreguladoras, mostrando que, em um pas que repudiou o direito administrativo porlongo tempo, por entender que a lei deve ser a mesma para todos (da aexpresso common law) e que o tribunal deve ser tambm comum para todos (emrepdio ao sistema francs de dualidade de jurisdio), acabou-se por adotar

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    sistema que, de certa forma, coloca em risco maior os direitos do cidado, namedida em que reconheceu funes quase legislativase quase judiciaisa rgosque compem a Administrao Pblica e que no so dotados de garantias deimparcialidade semelhantes s que protegem o Poder Judicirio.

    Algumas idias constituram os pilares do modelo das agnciasreguladoras norte-americanas (regulatory agency agncias com funesreguladoras): a) a idia de especializao; b) a idia de neutralidade; e c) a idiade descentralizao tcnica.

    A idia de especializao que foi a mesma que inspirou a criao dasentidades da Administrao Indireta no sistema europeu continental surgiucomo conseqncia do crescimento do Estado, que se transformou em Estado doBem-Estar ou Estado Providncia ou Estado Social, em modelo que exigiu aampla interveno do poder pblico na ordem econmica e social. Nas palavras

    de Rosa Comella Dorda, ante a magnitude e a urgncia da interveno naeconomia, acreditou-se necessrio aprovar leis com amplas clusulas dedelegao de competncias, repletas de frmulas vagas e conceitos jurdicosindeterminados, que permitissem aos correspondentes rgos administrativosarticular as frmulas concretas de interveno e ir adaptando-as s cambiantescondies do mercado (cf. Dorda. Limites del Poder Reglamentario em elDerecho Administrativo de los Estados Unidos: evolucin de los modelostradicionales, controle judicial y tcnicas de negociacin. Barcelona: CedecsEditorial, 1977, p. 25). Por outras palavras, a multiplicidade e a complexidade defunes assumidas pelo Estado do Bem-Estar tornava difcil ao Estado, porintermdio de seus trs Poderes, exercer as suas atribuies sobre temas to

    variados, que poderiam ser melhor desempenhadas por entes especializados, aosquais se atribuiu, limitadamente, uma parcela de cada uma das trs funes doEstado.

    Com relao neutralidade, havia crena de que as agncias estavam foradas influncias polticas, porque gozavam de grande parcela de independnciaem relao ao Presidente da Repblica, exatamente pelo fato de serem dotadasde estabilidade em suas funes; no podiam perd-las exclusivamente a critriodo Chefe do Executivo, mas apenas pelas causas expressamente indicadas emlei.

    Como decorrncia da especializao, reconhecia-se s agncias largo graude discricionariedade tcnica, abrangendo uma esfera em que seus atos, mesmoos regulatrios, por envolverem conhecimentos tcnicos, estavam fora do controle

    judicial. Isto significa que os aspectos tcnicos das decises eram decompetncia normativa da agncia, escapando inclusive reviso judicial, a noser que se tratasse de ato manifestamente arbitrrio, absurdo, caprichoso,contrrio inteno do legislador. A Lei de Procedimento Administrativo, de 1946,contm norma expressa incluindo entre as causas de reviso judicial de decisoadministrativa, as hipteses em que as decises, consideraes e conclusesadministrativas se julguem arbitrrias, caprichosas, ditadas no exerccio abusivoda discricionariedade... (Seo 706). Alm disso, toda a matria de fatoera de

    apreciao exclusiva da agncia, ficando tambm fora do mbito de apreciaojudicial.

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    curioso como o direito norte-americano, de incio to crtico do direitoadministrativo francs (negando, por muito tempo, a existncia de um direitoadministrativo nos Estados Unidos, o que tambm ocorreu nos demais pasesintegrantes do sistema da common law), tenha chegado a solues to parecidas.

    Essa sua tese de s permitir a reviso dos aspectos tcnicos quando se tratassede ato manifestamente arbitrrio, absurdo, caprichoso, no difere muito da teoria,acima exposta, do erro manifesto, adotada pelo Conselho de Estado francs. Epelo que ser a seguir demonstrado, tambm no difere da soluo pretorianaadotada na Frana em relao apreciao dos fatos (motivos do ato daAdministrao).

    Os trs grandes pilares em que se baseou a instituio de agnciasreguladoras nos Estados Unidos especializao, neutralidade ediscricionariedade tcnica- comearam a ser grandemente afetados j a partir dadcada de 60 (cf. Di Pietro, Parcerias, p. 146).

    Com relao especializao, mudou o enfoque do interesse a proteger,porque, ao invs de proteger interesses setorias, prprios de cada agncia,deveria toda a Administrao Pblica passar a preocupar-se com o interessepblico. A complexidade dos novos interesses e dos problemas sociais nocondizia mais com a idia de especializao estrita das agncias; os novosinteresses exigiam conhecimentos multidisciplinares. Da a paulatina submissodas agncias poltica governamental e o conseqente controle do PoderExecutivo sobre as normas por elas baixadas.

    A idia de neutralidade, no inteiramente abandonada, foi acrescida da

    idia de necessidade de juzos polticos de valor. Cresce a desconfiana emrelao s agncias, exatamente pelo fato de, tradicionalmente, atenderem ainteresses e presses de grupos determinados. A to apregoada independnciadas agncias foi sendo minada por novas leis, aumentando as exignciasrelativas ao procedimento administrativo, com vistas a garantir a transparncia e aparticipao do cidado, alm da demonstrao de que a medida observa arelao custo-benefcio (razoabilidade).

    Com relao chamada discricionariedade tcnica, que levava a excluir docontrole judicial os aspectos tcnicos da deciso e, inclusive, da matria de fato,tambm foi afetada pela ampliao do controle judicial sobre os atos das

    agncias. Para isso concorreu a aplicao dos princpios da motivao, daracionalidade e razoabilidade dos atos normativos (devido processo legal emsentido substantivo) e da proporcionalidade da medida em relao aos finscontidos na lei. E importante ressaltar que a ampliao do controle judicial sedeu tanto em relao adjudication(deciso do caso concreto) como regulation(ato normativo).

    Com relao motivao, o Judicirio passou a exigi-la, para permitir oexame dos fatos levados em considerao pela agncia para a sua tomada dedeciso e para possibilitar a verificao da racionalidade da deciso em relaoaos fatos; o Judicirio no faz um juzo de oportunidade e convenincia, mas se

    limita a verificar se a deciso da agncia levou em considerao todos os dados econhecimentos obtidos. Enfim, se a deciso razovel. Para permitir esse

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    exame, a exigncia de motivao de todos os atos das agncias tornou-sefundamental. O anterior procedimento informal de elaborao dos regulamentospelas agncias baseado na idia de sua especializao acabou por setransformar em procedimento altamente formal, na medida em que, para facilitar o

    controle judicial, o Judicirio passou a exigir a demonstrao de cada um dospontos em que a agncia se baseou para chegar deciso final.

    Segundo Rosa Comella Dorda (ob. cit., p. 46), o controle judicial ampliou-se, na medida em que a tradicional distino entre questes de fato (deapreciao privativa da agncia) e questes de direito (passvel de apreciaopelos Tribunais) foi parcialmente abandonada pelas chamadas questes mistas.Essas questes, segundo a autora, supem a aplicao de um conceito jurdicoindeterminado a um pressuposto de fato e requerem, portanto, uma interpretaoinicial do significado do conceito e uma posterior subsuno do pressuposto defato no rol das atuaes abrangidas pelo conceito, que alcana, assim, uma

    determinao precisa. Alis, as decises discricionrias (que no se distinguemconceitualmente dos conceitos jurdicos indeterminados) so revistos em funode critrios como a racionalidade da deciso, que casam dificilmente com aseparao entre reviso de considerao de fato e de direito.

    Em resumo, embora se continue a reconhecer s agncias competncianormativa para disciplinar aspectos tcnicos inseridos em sua esfera de atuao,o processo de elaborao das respectivas normas tem que ser documentado comtodos os dados que permitam ao Poder Judicirio examinar a racionalidade daregulao diante dos fatos, ou seja a correlao entre os fatos (motivos) e adeciso, sem falar na razoabilidade das normas diante do standardcontido na lei.

    Vale dizer, o procedimento de elaborao das normas se formalizou de formaintensa, seja porque a agncia tem que conformar-se poltica governamental,seja porque tem que sujeitar-se a controle por outras agncias ligadas ao PoderExecutivo e Poder Legislativo, seja porque tem que contar com a participao dosinteressados no procedimento, seja ainda porque suas normas tm que seramplamente motivadas, com o objetivo de demonstrar a correlao entre fatos enormas e a razoabilidade das normas diante dos parmetros contidos na lei.

    3.3. Direito brasileiro

    No direito brasileiro, a questo da discricionariedade tcnica pode seranalisada sob duplo aspecto:

    a) em relao aos atos administrativos propriamente ditos, hiptese emque importa distinguir a discricionariedade administrativa da discricionariedadetcnica, para fins de controle judicial;

    b) em relao aos atos normativos de rgos ou entidades daAdministrao Pblica direta ou indireta, hiptese em que importa definir apossibilidade de adoo, no direito brasileiro, do sistema norte-americano em que

    o Poder Legislativo legisla por meio de standards, princpios, normas gerais,diretrizes, deixando para a Administrao Pblica a competncia para

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    desenvolver os conceitos indeterminados contidos na lei. Trata-se, na realidade,de funo que se insere no conceito de regulamento e que, quando baixado peloChefe do Poder Executivo, encontra fundamento no art. 84, IV, da Constituio,tendo como principal limitao os princpios da legalidade e da reserva legal. A

    dvida maior existe quanto possibilidade dessa regulamentao ser baixadapelos chamados rgos reguladores.

    Quanto ao primeiro aspecto, referente ao controle judicial dadiscricionariedade tcnica dos atos administrativos, no h uniformidade nadoutrina, podendo-se falar em duas grandes correntes: a) a dos que entendemque, se a lei emprega conceitos jurdicos indeterminados, a Administrao temque fazer um trabalho de interpretaoque leve nica soluo vlida possvel;nesse caso, cabe ao Poder Judicirio, como intrprete mximo das leis, rever ecorrigir essa interpretao; b) a corrente que entende que o emprego, na lei, deconceitos jurdicos indeterminados pode ou no gerar discricionariedade,

    dependendo do tipo de conceito e da sua aplicao diante dos casos concretos.Para esse fim, importa distinguir pelo menos trs tipos de conceitos: o

    tcnico, o de experincia e o de valor.

    O conceito tcnicono gera discricionariedade, porque a soluo corretapode ser apontada pela manifestao de rgo tcnico, baseada em dados dacincia. O conceito de experincia ou emprico afasta tambm adiscricionariedade, porque existem critrios objetivos, prticos, extrados daexperincia comum, que permitem concluir qual a inica soluo possvel; quandoa lei usa conceitos desse tipo porque quer que ele seja empregado no seu

    sentido usual; o caso de expresses como caso fortuito ou fora maior, jogos deazar, bons antecedentes, premeditao. Os conceitos de valor objeto demaiores polmicas doutrinrias podem ou no gerar discricionariedade ou,melhor dizendo, uma certa margem de apreciao. Um conceito que, na lei, seapresenta como indeterminado, por exemplo, moralidade, interesse pblico,utilidade pblica, notrio saber, pode tornar-se determinado no caso concreto,pelo exame da situao de fato. A respeito dessa matria, aqui muito resumidadiante das limitaes deste trabalho, remetemos o leitor doutrina analisada emnosso livro Discricionariedade Administrativa na Constituio de 1988, ob. cit., p.97-123.

    No que diz respeito discricionariedade tcnica, como um dos suportespara o reconhecimento de validade s funes normativas das agnciasreguladoras, a primeira observao a fazer no sentido de que a sistemticanorte-americana, de deixar os conceitos indeterminados para definio pelaAdministrao Pblica, j vem sendo adotada, no Brasil, desde longa data, porinmeros entes da Administrao Pblica, que exercem funo normativa, como oConselho Monetrio Nacional, o Banco Central, a Secretaria da Receita Federal,a Comisso de Valores Mobilirios, dentre inmeros outros. A questo, noentanto, s foi levantada a partir do momento em que comearam a ser criadasautarquias com a denominao de agncias reguladoras, com a delegao defuno normativa. Foi como se, apenas nesse momento, se tomasse conscincia

    de uma realidade presente desde longa data e se procurasse encontrarfundamento jurdico para a mesma.

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    importante lembrar que, no direito norte-americano, os regulamentosbaixados pelas agncias tm fora de lei; a funo chamada de quaselegislativa, porque tais regulamentos se subordinam hierarquicamente lei,podendo ser invalidados pelo Poder Judicirio se a contrariarem.

    Como se poderia colocar o tema no direito brasileiro?

    Se partirmos do princpio de que as normas que se limitam a definir osconceitos indeterminados contidos na lei so de natureza regulamentar, a nicaconcluso possvel ser no sentido de que elas s tm fundamento noordenamento constitucional brasileiro, quando baixadas pelo Chefe do PoderExecutivo, que tem competncia privativa para exercer o poder regulamentar eno pode deleg-lo (art. 84, IV e pargrafo nico da Constituio).

    No entanto, no se pode esquecer que os Ministrios podem baixarinstrues para a execuo das leis, decretos e regulamentos(conforme art. 87,inciso II, da Constituio), participando, portanto, da funo regulamentar; comotambm os rgos reguladores das telecomunicaes e do petrleo, os quais,precisamente pelo fato de serem assim chamados pela Constituio (art. 21, XI e177, 2), exercem uma parcela de funo normativa implcita na sua funo dergos reguladores.

    No h dvida, portanto, de que a prpria Constituio, embora atribua aoChefe do Executivo o poder regulamentar, deixou uma brecha para os Ministriose para os rgos reguladores referidos expressamente na Constituio, comotambm deixou uma brecha, embora transitria, quando, no artigo 25 do Ato das

    Disposies Constitucionais Transitrias, revogou todos os atos que implicassemdelegao de funo normativa a rgos do Poder Executivo, mas permitiu que oprazo para essa revogao fosse prorrogado. Provavelmente muitos dos rgosque ainda exercem funo normativa exercem uma competncia que remanesce(devida ou indevidamente) do regime constitucional anterior Constituio de1988, s vezes sem que permanea o anterior fundamento constitucional.

    Afora essas possibilidades que decorrem da Constituio, a nica maneirade defender validamente a discricionariedade tcnica aplicada funo normativadas agncias reguladoras (e de outros rgos administrativos que exercemfuno semelhante) a de reduzir (se que isso possvel) o conceito de

    regulamento, para dele excluir as normas que apenas definem conceitos tcnicoscontidos na lei. E isto pelo fato de que a discricionariedade tcnica no constituiverdadeira discricionariedade, no envolve deciso poltica, porque no dliberdade de escolha para a Administrao. O rgo regulador limita-se a definirum conceito que j est contido na lei e cujo contedo vai ser apenas explicitadona norma infra legal.

    Permitimo-nos socorrer, aqui, da lio sempre precisa de Celso AntnioBandeira de Mello, em seu Curso de Direito Administrativo (16 edio. SoPaulo: Malheiros, 2003, p. 319-320). Depois de lembrar que os regulamentos sorequeridos para que se disponha sobre o modo de agir dos rgos

    administrativos, tanto no que concerne aos aspectos procedimentais de seucomportamento quanto no que respeito aos critrios que devem obedecer em

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    questes de fundo, como condio para cumprir os objetivos da lei, o ilustrejurista acrescenta:

    16. Em face do quanto foi dito, j se pode assinalar e enfatizar que:

    a) Onde no houver espao para uma atuao administrativa, nohaver cabida para regulamento.........

    b) Onde no houver liberdade administrativa alguma a ser exercitada(discricionariedade) por estar prefigurado na lei o nico modo e o nico possvelcomportamento da Administrao ante hipteses igualmente estabelecidas emtermos de objetividade absoluta no haver lugar para regulamento que noseja mera repetio da lei ou desdobramento do que nela se disse sinteticamente.

    17. esta segunda concluso que abre passo para uma terceira, asaber: o regulamento executivo, nico existente no sistema brasileiro, um meiode disciplinar a discrio administrativa, vale dizer, de regular a liberdade relativaque viceje no interior das balizas legais, quando a Administrao esteja posta nacontingncia de executar lei que demande ulteriores precises.

    Com efeito, salvo quando tm em mira a especificidade de situaesredutveis e reduzidas a um padro objetivo predeterminado, a generalidade da leie seu carter abstrato ensancham particularizao normativa ulterior. Da que oregulamento discricionariamente os precede e, assim, cerceia a liberdade decomportamentos dos rgos e agentes administrativos para alm dos cerceios dalei, impondo, destarte, padres de conduta que correspondem aos critriosadministrativos a serem obrigatoriamente observados na aplicao da lei aoscasos particulares.

    Tem-se, portanto, que partir da idia de que o regulamento somente sejustifica quando a lei deixa um espao para que a Administrao exera a suadiscricionariedade, escolha o procedimento, os critrios, as formas a seremadotadas para dar cumprimento lei; esta que intencionalmente deixa umacerta margem de liberdade para a Administrao escolher entre os modos deproceder possveis e igualmente vlidos perante o direito. Vale dizer, ao baixarregulamentos, o Poder Executivo exerce competncia discricionria, compossibilidade de exercer opes entre alternativas vlidas perante a lei.

    No caso da discricionariedade tcnica, no h discricionariedadepropriamente dita, consoante j demonstrado. No h opes a serem feitas porcritrios de oportunidade e convenincia. No h deciso poltica a ser tomadaconforme avaliao do interesse pblico. Existe uma soluo nica a ser adotadacom base em critrios tcnicos fornecidos pela cincia. Quando um enteadministrativo baixa atos normativos definindo conceitos indeterminados,especialmente os conceitos tcnicos e os conceitos de experincia, ele no estexercendo o poder regulamentar, porque este supe a existncia dediscricionariedade administrativa propriamente dita, a qual, no caso, no existe.Se a lei fala, por exemplo, em produtos perigosos para a sade, a agncia pode

    baixar ato normativo definindo esses produtos ou mesmo elaborando uma listados mesmos; isto no se insere no poder regulamentar, porque se trata de

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    regulamentos diante dos standards contidos na lei. Criou-se, com o beneplcitodo Poder Judicirio, um sistema de legislao por standards, deixando-se sagncias a possibilidade de regular a matria. Exigiu-se a participao do cidadono processo de elaborao das normas, com o que se deu legitimidade

    democrtica s mesmas, exigiu-se a motivao das decises das agncias. Econstruiram-se princpios em especial o do devido processo legal substantivo, oda razoabilidade, o da racionalidade das decises diante dos fatos quepermitem ao Poder Judicirio examinar a validade dos regulamentos dasagncias perante os standards, princpios, diretrizes, contidos na lei.

    No Brasil, nada disso existe. No existe um Poder Judicirio com o mesmopapel criador do direito; a sentena judicial no representa o mesmo papel comofonte do direito; no existe a fora do precedente judicial; e ainda que tivesse omesmo poder criador, no poderia referendar delegao legislativa em afronta Constituio. Alm disso, o exame dos atos normativos da Administrao Pblica

    ainda sofre muitas restries no mbito do Poder Judicirio, especialmente emseara de controle de constitucionalidade, de que resulta a anlise em cada casoconcreto, por via de exceo. O princpio do devido processo legal substantivo que permite a invalidao de atos normativos por infringncia a princpios ouvalores contidos na Constituio ou na lei de pouqussima aplicao no direitobrasileiro. De modo que a adoo pura e simples da sistemtica norte-americanano direito brasileiro no dispe dos pilares indispensveis para dar sustentao aum sistema semelhante. A maior dificuldade decorre da inexistncia de umcontrole judicial adequado para analisar a validade dos atos normativos dasagncias diante dos standards contidos na lei.

    Em trabalho sobre Limites da funo reguladora das agncias diante doprincpio da legalidade (in Direito Regulatrio Temas Polmicos. BeloHorizonte: Editora Forum, 2003, p. 27-59), lembramos a necessidade de distinguirdois tipos de atos normativos baixados pelas agncias: de um lado, aqueles queproduzem efeitos concretos e, de outro, os atos normativos propriamente ditos,que baixam normas com carter de generalidade e abstrao, semelhante dalei; estes segundos teriam a natureza de verdadeiros regulamentos.

    Com relao aos atos normativos de efeitos concretos, no himpedimento a que sejam baixados pelas agncias reguladoras. Trata-se de atosnormativos apenas sob o aspecto formal, porque, quanto ao contedo, so

    verdadeiros atos administrativos, correspondendo s adjudications do direitonorte-americano, sendo utilizados para decidir ou disciplinar situaes concretas. medida que as agncias vo deparando com situaes irregulares, comatividades que quebram o equilbrio do mercado, que afetam a concorrncia, queprejudicam o servio pblico e seus usurios, que geram conflitos, elas vobaixando atos normativos para decidir esses casos concretos. Conforme realadono aludido trabalho, a que est o que h de mais tpico na funo reguladora:ela vai organizando determinado setor que lhe est afeto, respeitando o queresulta das normas superiores (e que garantem o aspecto de estabilidade, decontinuidade, de perenidade do servio) e adaptando as normas s situaesconcretas, naquilo que elas permitem certa margem de flexibilidade ou de

    discricionariedade. a lei que fixa os parmetros para a agncia decidir; poroutras palavras, a lei deixa certa margem de discricionariedade para a agncia

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    decidir nos casos concretos qual a melhor soluo para o interesse pblico. Essadiscricionariedade, seja administrativa, seja tcnica, no difere dadiscricionariedade que se reconhece para os rgos administrativos em geral,como possibilidade de escolher a melhor soluo para o interesse pblico a

    atender. Vale dizer que, quando a agncia baixa um ato normativo para disciplinaruma certa matria, com alguma esfera de liberdade deixada pelo prpriolegislador, ela est apenas dizendo como vai exercer essa liberdade de decisono caso concreto. Ela est apenas auto-limitando a prpria discricionariedadedeixada pelo legislador. Ela no est inovando, no est criando regra nova. Elaest atuando no espao livre deixado pela lei. Em se tratando de atos normativosde efeitos concretos, no h maior dificuldade no controle judicial que, no caso,no difere do exercido sobre outros atos administrativos.

    Com relao aos atos normativos propriamente ditos, com efeitos gerais,apesar do esforo da doutrina em tentar justificar a competncia das agncias

    reguladoras para baix-los, difcil encontrar fundamento seguro no direitobrasileiro, pelo fato de ter a Constituio delimitado, de forma exaustiva, toda acompetncia normativa. Dentre os rgos que a receberam esto os rgosreguladores de telecomunicaes (art. 21, XI) e do petrleo (art. 177, 2). Paraos demais, o mximo que se pode admitir a possibilidade de, por meio de atosnormativos, interpretar ou explicitar princpios, diretrizes ou conceitos tcnicoscontidos em leis e regulamentos. Trata-se de conceitos que se inserem na idiade especializao das agncias, exigindo definio mais precisa, porm seminovar na ordem jurdica. A que entra a importncia da chamadadiscricionariedade tcnica. Se a lei usa conceitos como produtos perigosos para asade, produtos txicos, atos nocivos concorrncia, a agncia pode, dentro de

    sua especialidade, definir esses conceitos.

    Mesmo assim, no se poder negar ao Judicirio a possibilidade de apreciara validade dessas normas, seja com auxlio de peritos, quando se tratar deconceitos puramente tcnicos, seja pela aplicao dos princpios da razoabilidadedas normas e do devido processo legal substantivo.

    O que as agncias no podem fazer, porque falta o indispensvelfundamento constitucional, baixar regras de conduta, unilateralmente, inovandona ordem jurdica, afetando direitos individuais, substituindo-se ao legislador.Esse bice constitui-se no mnimo indispensvel para preservar o princpio da

    legalidade e o princpio da segurana jurdica. Principalmente, no podem asagncias baixar normas que afetem os direitos individuais, impondo deveres,obrigaes, penalidades ou mesmo outorgando benefcios, sem previso em lei.Trata-se de matria de reserva de lei, consoante decorre do artigo 5, inciso II, daConstituio.

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    cientfico em peridico eletrnico deve ser citado da seguinte forma:

    PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade Tcnica e DiscricionariedadeAdministrativa. Revista Eletrnica de Direito Administrativo Econmico(REDAE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Pblico, n. 9,

    fevereiro/maro/abril, 2007. Disponvel na Internet:. Acesso em: xx de xxxxxx de xxxx

    Observaes:

    1) Substituir x na referncia bibliogrfica por dados da data de efetivo acesso ao texto.

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