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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS- CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS MARCELO CRUZ DALCOM JÚNIOR NAS ENTRELINHAS DE UM DEFEITO DE COR DE ANA MARIA GONÇALVES Salvador 2013

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS- CAMPUS I

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

MARCELO CRUZ DALCOM JÚNIOR

NAS ENTRELINHAS DE UM DEFEITO DE COR DE ANA MARIA GONÇALVES

Salvador 2013

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FICHA CATALOGRÁFICA Sistema de Bibliotecas da UNEB

Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592

MARCELO CRUZ DALCOM JÚNIOR

Dalcom Júnior, Marcelo Cruz Nas entrelinhas de um defeito de cor de Ana Maria Gonçalves / Marcelo Cruz Dalcom Júnior . - Salvador, 2013. 80f. Orientadora: Lícia Soares de Souza. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas. Campus I. 2013. Contém referências. 1. Gonçalves, Ana Maria - Crítica e interpretação. 2. Ficção brasileira. I. Souza, Lícia Soares de. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento Ciências Humanas. CDD: B869.3

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NAS ENTRELINHAS DE UM DEFEITO DE COR DE ANA MARIA GONÇALVES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens (PPGEL) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), como requisito parcial para obtenção de grau de Mestre em Estudo de Linguagens. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Lícia Soares de Souza.

Salvador 2013

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MARCELO CRUZ DALCOM JÚNIOR

NAS ENTRELINHAS DE UM DEFEITO DE COR DE ANA MARIA GONÇALVES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens (PPGEL) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), como requisito parcial para

obtenção do grau de Mestre em Estudo de Linguagens, aprovada pela seguinte

BANCA EXAMINADORA:

_______________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Evelina de Carvalho Sá Hoisel (UFBA)

________________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Augusto Magalhães (UNEB)

________________________________________________________ Orientadora: Prof.ª Dr.ª Lícia Soares de Souza (UNEB)

Salvador, 25 de Abril de 2013.

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Aos meus.

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AGRADECIMENTOS

Se você está lendo esta página é porque eu consegui. E não foi fácil chegar até aqui. Do processo seletivo, passando pela aprovação até a conclusão do Mestrado, foi um longo caminho percorrido. Nada foi fácil, nem tampouco tranquilo. “A sola do pé conhece toda a sujeira da estrada” (provérbio africano).

Quero agradecer a todos aqueles que sempre confiaram em mim, desde sempre.

À minha família e aos meus verdadeiros amigos, sempre. Sempre mesmo.

“E aprendi que se depende sempre

De tanta, muita, diferente gente

Toda pessoa sempre é as marcas

das lições diárias de outras tantas pessoas.

É tão bonito quando a gente entende

Que a gente é tanta gente

Onde quer que a gente vá.

É tão bonito quando a gente sente

Que nunca está sozinho

Por mais que pense estar...” (Caminhos do coração – Gonzaguinha.)

Aos meus pais, por me terem dado educação, valores e por me terem ensinado a andar. A meu pai (in memoriam), que onde quer que esteja, nunca deixou de me amar, nem de confiar em mim. Pai, meu amor eterno. À minha mãe, amor incondicional. Mãe, você que me gerou e me alfabetizou, ensinando-me a ler, viu como aprendi direitinho? A vocês que, muitas vezes, renunciaram aos seus sonhos para que eu pudesse realizar o meu, partilho a alegria deste momento.

A todos os meus familiares, irmãos, primos, tios, sobrinhos. Não citarei nomes, para não me esquecer de ninguém. Mas há aquelas pessoas especiais que diretamente me incentivaram. Aos modelos em que procuro me espelhar sempre: aos meus avós maternos Detinha (in memoriam) e Ângelo (in memoriam), amor incondicional eterno, e por me terem ensinado a ser nobre, na essência da palavra. Que falta vocês me fazem! Vó Nerina pela garra, perseverança e otimismo contagiantes até hoje; Vô Foch (in memoriam) pelos silêncios, sons, por tudo.

Aos irmãos que Deus colocou em minha vida e escolhi para conviver: Adriana Amaral, Hélio Ramalho e Manuel Espinosa. Amor incondicional, sempre. A distância não nos separa. Seus corações estão comigo e o meu com vocês. A Binho (Gabriel), meu irmão amado, pela paciência cotidiana. À prima Deca (Andrea Dalcom), amiga de todas as horas e conselheira. Aos meus compadres-primos Sylvia Dalcom e Nédio Pereira, por me terem dado a honra de ser padrinho da Júlia, e por serem amigos e conselheiros. A Piu, Priscila Dalcom, que, por ser minha primeira

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afilhada tem suas vantagens, meu primeiro amor. A tia Emilia, tia Itana, tia Luiza (minha Dinda) e tia Célia Pedreira, pelas vibrações e todas as preces. Aos meus sogros que, mesmos distantes, estão por perto. À tia Ana Margarida, minha conselheira virtual. A Marília Matos, pelas leituras, conversas, feedbacks e conselhos. Amo vocês.

À Prof.ª Dr.ª Lícia Soares de Souza (UNEB), minha orientadora e exemplo profissional, por não ter permitido que eu interrompesse o processo e pela confiança. Quando ‘crescer’, eu quero ser como você.

Aos professores, funcionários e colegas do Curso de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da UNEB, em especial à Prof.ª Dra. Verbena Cordeiro. À Prof.ª Dr.ª Vera Mota, pelas aulas de Literatura e Psicanálise com Freud e Lacan, que estarão para sempre em minha memória. Aos professores Rosa Helena, Carlos Magalhães, Sílvio Roberto Oliveira, Márcia Rios, Sayonara Amaral e a Camila, Geisa, Danilo, pela solicitude e solidariedade perante minhas dificuldades.

Aos professores Evelina Hoisel e Carlos Augusto Magalhães, que aceitaram compor minha banca de qualificação e de defesa, pelas sugestões e análises significativas às quais tentarei atender na versão definitiva do texto.

Aos alunos da turma do Mestrado, principalmente aos da Linha 1, de Literatura, pela paciência e companheirismo. A Taíse Macedo, Eliete Gusmão, Thaís Pelegrini, por lerem meus textos, corrigirem, por me aconselharem, por ter confiado em mim.

À colega e amiga de infância Patrícia Barros Moraes, por me ter apresentado ao livro Um Defeito de Cor.

A Ana Maria Gonçalves, por ter escrito Um Defeito de cor, por me ter apresentado a Kehinde e, ainda, pelo carinho e bate-papo regado a café naquele entardecer encantado em Cachoeira, Bahia.

Mais uma vez ao Hélio Ramalho, pelo estímulo, mesmo quando o cansaço parecia me abater e, principalmente, pela confiança e o carinho de sempre.

Com vocês, queridos, divido a alegria desta experiência.

“Quando não souberes para onde ir, olha para trás e sabe pelo menos de onde vens” (Provérbio africano).

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Canta a tua aldeia e serás universal.

Leon Tostoi

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RESUMO A presente pesquisa visa realizar um estudo do romance histórico brasileiro contemporâneo Um defeito de cor (2010), de Ana Maria Gonçalves, sob a luz das teorias de Mikhail Bakhtin e a sua teoria do romance, com as noções de cronotopo, dialogismo e polifonia, e as relações entre literatura e história. Trata-se da saga de Kehinde, desde a sua infância na África, sua captura e chegada ao Brasil, como escrava, onde aprende a ler e a escrever, empreendendo uma grande busca pelo filho vendido. Nessa busca, Kehinde passa por várias cidades brasileiras até voltar à sua terra natal. Sigmund Freud também é utilizado, para analisar o fato de a narradora remontar sua memória a partir da sua infância, época em que os pais são heróis para seus filhos. Os conceitos de Édouard Glissant sobre Retour e Détour, bem como o desexílio de Mário Benedetti são utilizados para analisar algumas das ações da personagem principal. Ao dar a voz a uma escrava, a autora realiza uma metaficção historiográfica e problematiza os limites entre ficção e realidade, trazendo, para o centro das discussões, diversas temáticas, entre as quais se destacam: a presença das outras vozes da história, a dos vencidos, a noção de fonte histórica e a parcialidade do sujeito que escreve a narrativa histórica. Linda Hutcheon (1991) serviu de base teórica para a compreensão da metaficção historiográfica, bem como Walter Benjamin (1993), que articula historicamente o passado e a história não exatamente como aconteceu, mas estabelece um vínculo entre passado e presente em forma de constelação. Assim, Um defeito de cor (2010) desafia o leitor a repensar o presente à luz desse redimensionamento do passado. Palavras-chave: romance histórico, metaficção historiográfica; cronotopo; dialogismo; polifonia.

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ABSTRACT

This research aims to conduct a study of the historical novel a contemporary Brazilian Um Defeito de Cor (2010), Ana Maria Gonçalves in the light of the theories of Mikhail Bakhtin and his theory of the novel, with the notions of chronotope, dialogism and polyphony, and the relationship between literature and history. This is the saga of Kehinde, from his childhood in Africa, his capture and arrival in Brazil, as a slave, where he learns to read and write, undertaking a wide search for his son sold. In this search, Kehinde passes through several cities in Brazil before returning to his homeland. Sigmund Freud also be used to analyze the fact that the narrator reassemble his memory from his childhood, a time when parents are heroes to their children. The concepts of Edouard Glissant Retour and Détour and the “desexílio” by Mario Benedetti will be used to analyze some of the actions of the main character. By giving voice to a slave, the author makes a metafiction and historiographical questions the boundaries between fiction and reality, bringing to the center of the discussions, several themes, among which are: the presence of other voices in the history of the losers, the notion of historical sources and bias of the subject who writes the historical narrative. Linda Hutcheon (1991) serve as a theoretical basis for understanding the historiographical Metafiction, as well as Walter Benjamin (1993), which articulates the historical past and the story is not exactly how it happened, but establishes a link between past and present-shaped constellation. So Um defeito de cor (2010) challenges the reader to reconsider this in light of that sizing of the past. Key words: historical romance, historiography, metafiction, chronotope, dialogic, polyphony.

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SUMÁRIO

PRIMEIROS PASSOS 11

1 UM DEFEITO DE COR, ANA MARIA GONÇALVES E A REPRES ENTAÇÃO DA HISTÓRIA: ENTRECRUZAMENTOS POSSÍVEIS 16 1.1 LITERATURA E HISTÓRIA: ENTRECRUZAMENTOS POSSÍVEIS 16 1.2 O ROMANCE HISTÓRICO E A METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA 17 1.3 O MODELO LATINO-AMERICANO E O BRASILEIRO 23 1.4 O ROMANCE ESTUDADO 27 1.5 A HISTÓRIA DE KEHINDE 32 1.6 UM ROMANCE NOVO 39 2 NAS ENTRELINHAS DE UM DEFEITO DE COR 45 2.1 A MEMÓRIA COMO ESTRATÉGIA DA NARRATIVA 45 2.2 A CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS MÃE E FILHO NA TRAMA DE ANA MARIA GONÇALVES 50 2.3 AS VOZES BAKHTINIANAS: ENTRE DIALOGISMOS, POLIFONIAS E CRONOTOPOS 57 2.4 O FIO DAS TRAVESSIAS E MOBILIDADES 65

À GUISA DE CONCLUSÃO 77

REFERÊNCIAS 80

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PRIMEIROS PASSOS

Ana Maria Gonçalves afirma que seu romance histórico Um defeito de cor (2010) é fruto

de uma ‘serendipidade’1. Segundo a autora, serendipidades são os acasos felizes que levam a

descobertas inesperadas. Sendo assim, a escolha do referido romance como objeto de estudo da

minha dissertação de mestrado também é fruto de uma serendipidade. Pouco antes de me

inscrever no processo de seleção do mestrado, uma amiga me indicou a leitura dele, alegando que

eu iria gostar muito.

Como não estava preparado para esta serendipidade, não dei importância. Anotei o nome

do romance e da autora e guardei. Fiz meu projeto com outro objeto de estudo. Após a aprovação,

tive a curiosidade de lê-lo. Só depois me dei conta de que tinha deixado passar um momento de

serendipidade. Mas eu pude, de alguma maneira, reverter a situação, mudando o objeto de estudo,

o tema e o orientador. E, finalmente, consegui dar atenção ao que o acaso me tinha mostrado

antes e que, por displicência ou não, tinha deixado passar em branco.

A mineira Ana Maria Gonçalves vendeu, em 2002, a agência de publicidade em que

possuía em São Paulo e se isolou na Ilha de Itaparica, na Bahia, terra em que João Ubaldo

mitificou. Lá passou seis meses escrevendo seu primeiro romance Ao lado e à margem do que

sentes por mim, que fora publicado e vendido de forma independente pela autora através de seu

blog 100 meias confissões da Aninha2.

Seu segundo romance Um defeito de cor (2010), foi lançado em 2006 pela editora Record.

Em janeiro de 2007, o romance recebeu o prestigioso prêmio Casa de las Américas, escolhido

entre 212 concorrentes, em decisão unânime dos jurados. O romance conta a história de Kehinde,

uma senhora africana, letrada e cega, à beira da morte, que viaja da África para o Brasil em busca

do filho perdido há muito tempo. Ao longo da travessia, ela conta sua vida, desde a sua captura

1 O uso da palavra serendipity apareceu pela primeira vez em 28 de janeiro de 1754, em uma carta de Horace Walpole (filho do ministro, antiquário e escritor Robert Walpole, autor do romance gótico The Castle of Otranto). Na carta, Horace Walpole conta ao seu amigo Horace Mann como tinha encontrado por acaso uma valiosa pintura antiga, complementando: “Esta descoberta é quase daquele tipo que a chamarei serendipidade, uma palavra muito expressiva, a qual, como não tenho nada de melhor para lhe dizer, vou passar a explicar: uma vez li um romance bastante apalermado, chamado Os Três Príncipes de Serendip: enquanto suas altezas viajavam, estavam sempre a fazer descobertas, por acaso e sagacidade, de coisas que não estavam a procurar [...]”(GONÇALVES, Ana Maria. Introdução. In: ______. Um defeito de cor. São Paulo: Record, 2010. p. 9). 2 Disponível em: <http://anamariagoncalves.blogspot.com >. Acesso em: dia mês ano.

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em Daomé (atual Benin), pontuada por mortes, estupros e escravidão. Narrado de modo

envolvente e pungente, o romance insere, no cotidiano e na vida dos personagens, fatos históricos

como a Revolução Malê, uma rebelião coordenada por escravos muçulmanos na Bahia, em 1835.

A presente pesquisa visa realizar um estudo das relações entre a literatura e a história no

romance histórico brasileiro contemporâneo Um defeito de cor (2010) e está dividida em duas

partes.

Na primeira, intitulada de UM DEFEITO DE COR, ANA MARIA GONÇALVES E A

REPRESENTAÇÃO DA HISTÓRIA: ENTRECRUZAMENTOS POSSÍVEIS, são apresentados

o romance estudado e a autora, bem como uma revisão sobre reflexões formuladas nos últimos

anos no que tange à relação entre literatura e história, complementadas por leituras pontuais a

respeito da narrativa histórica, analisando as semelhanças e diferenças entre literatura e história.

Linda Hutcheon (1991) serviu de base teórica para a compreensão da metaficção historiográfica

bem como Walter Benjamin (1993) que articula historicamente o passado e a história não

exatamente como aconteceu, mas estabelecendo um vínculo entre passado e presente em forma

de constelação. Além disso, foram estudadas as teorias formuladas por Mikhail Bakhtin, como a

do cronotopo, do dialogismo e da polifonia, em seus livros Marxismo e Filosofia da linguagem

(2006) e Questões de literatura e de estética: a teoria do romance (1993).

Segundo Carlos Alexandre Baumgarten (2000), o romance histórico desempenhou

importante papel na construção das nacionalidades/identidades que almejavam se afirmar pela

diferença. O romance histórico brasileiro percorreu dois caminhos, ainda segundo Baumgarten

(2000): de um lado, situam-se as narrativas que focalizam acontecimentos integrantes da história

oficial e, por vezes, definidores da própria constituição física das fronteiras brasileiras, de outro,

aquelas que promovem a revisão do percurso desenvolvido pela história literária nacional.

Ainda na primeira parte, busquei fazer uma análise do romance sob o ponto de vista

teórico. Ao dar voz a sua personagem, a autora traz à tona o primeiro indício do que pretende na

elaboração desse discurso, ou seja, a visão histórica deslocada a respeito da escravidão brasileira.

Kehinde, a ex-escrava, narra seu testemunho histórico a partir da senzala, não mais da casa

grande. São relatos construídos a partir de um testemunho marginal dos acontecimentos.

Sua experiência histórica se desenvolve não no seio da elite, mas à margem dela. Assim, a

autora realiza uma metaficção historiográfica e problematiza os limites entre ficção e realidade,

trazendo para o centro das discussões diversas temáticas, entre as quais se destacam: a presença

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das outras vozes da história, a dos vencidos, a noção de fonte histórica e a parcialidade do sujeito

que escreve a narrativa histórica.

Segundo Foucault (2005), o domínio do discurso é poder, mas esse enfrentamento dos

discursos dominantes significa o surgimento de novos poderes. Ao dar voz a uma ex-escrava, a

autora emerge o discurso subversivo, questionando esses conceitos. Sua trajetória é a trajetória do

negro invisível no Brasil. E, agora, com o poder de narrar sua história, Kehinde passa a ter a

visibilidade que quase nenhum outro negro conseguiu.

No entanto, nota-se certa similaridade no discurso de Kehinde com relação ao discurso

histórico oficial. A diferença é que se dá de uma perspectiva marginal, sua versão dos fatos

subvertendo e contestando a versão sustentada pelo discurso de poder, que também é ficção. A

autora e Kehinde preenchem os vazios deixados pelo discurso da história oficial, que também são

analisados, ficcionalizando sua própria versão da história e assemelhando-se ao discurso pós-

moderno da metaficção historiográfica defendido por Linda Hutcheon (1991), segundo o qual

tanto a história como a ficção são elaborações humanas.

Bakhtin (2006) norteou seus estudos sobre o discurso no romance, devido a seu caráter

dialógico e polifônico e por encontrar, nesse gênero, vozes sociais diversas. Para ele, dialogismo

é toda modalidade da linguagem, quando se verificam as relações dialógicas no romance,

podendo ocorrer tanto na escrita quanto na leitura. O texto deixou de ser visto isoladamente,

sendo agora correlacionado com outros discursos similares e/ou próximos. O dialogismo se dá a

partir da noção de recepção/compreensão de uma enunciação que constitui um território comum

entre o emissor e o receptor.

Enquanto o dialogismo é o princípio constitutivo da linguagem, a polifonia se caracteriza

pelas vozes polêmicas em um discurso. Há uma presença de outros textos dentro de um texto,

pois o autor se utiliza de outros textos prévios que lhe serviram de inspiração e/ou influência.

Esses são traços característicos dos romances históricos contemporâneos.

A segunda e última parte desta pesquisa, intitulada de NAS ENTRELINHAS DE UM

DEFEITO DE COR, visa fazer uma leitura do romance estudado sob a luz destes e de outros

conceitos. O livro é narrado do ponto de vista de Kehinde, que utiliza o "baú da memória" para

poder se lembrar e contar sua história de vida. Essa utilização da memória como estratégia da

narrativa é analisada nesse capítulo.

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Dois personagens importantes permeiam o romance – a narradora e seu filho

desaparecido. Ambos guardam a imagem de suas mães intactas, ou em seus inconscientes

imaginários. Por esta razão, lancei mão dos escritos de Sigmund Freud para poder fazer uma

análise mais detalhada do percurso desses personagens.

A teoria bakhtiniana, vista no primeiro capítulo, volta a ser utilizada neste segundo para

poder exemplificar e justificar as vozes bakhtinianas presentes no romance estudado.

A noção de desexílio, preconizada por Mário Benedetti (1984), é utilizada como aporte

teórico. Esta experiência de retorno à terra natal tem como pano de fundo as lembranças,

memórias e referências pessoais e coletivas. É fundamental observar o modo como as vozes do

negro e da mulher questionam e reconfiguram os mitos fundacionais brasileiros. A partir de

então, fala-se em culturas, heterogeneidade e “comunidade descentralizada”, e o conceito de

diferenças passa a vigorar.

Especula-se que ela pode ser apenas uma lenda, inventada pela necessidade que os escravos tinham de acreditar em heróis, ou, no caso, em heroínas, que apareciam para salvá-los da condição desumana em que viviam. Ou então uma lenda inventada por um filho que tinha lembranças da mãe apenas até os sete anos, idade em que pais e mães são grandes heróis para seus filhos. (GONÇALVES, 2010, p. 16).

Um defeito de cor (2010) desafia o leitor a repensar o presente à luz desse

redimensionamento do passado. Os conceitos de Édouard Glissant (1981) de Déplacement e

Détour auxiliam a compreensão de que, mesmo distante, Kehinde não nega suas origens, e volta

a sua terra natal, buscando manter a integridade de sua cultura. Esse caminho inverso, esse

contradiscurso literário que questiona e subverte o cânone ocidental, esse descentramento acabam

proporcionando a emergência de culturas até então consideradas marginais.

Essa dissertação tenta encontrar respostas que, de alguma maneira, possam contribuir para

refletir sobre a relação entre a literatura e a história e, mais precisamente essas características na

obra escolhida e recheada de fatos históricos. Procuro, além disso, encontrar vozes de outros

romances na construção do romance estudado.

Para Esteves (2010), os novos romances históricos brasileiros apresentam uma polifonia

de estilos e modalidades, baseada, especialmente, na fragmentação dos signos de identidade

nacionais, realizada a partir da desconstrução dos valores tradicionais.

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Você já percebeu que a vida da gente pode ser dividida em espaços de tempo, ou por lugares, ou os dois juntos, da mesma maneira que dividimos uma história? E quantas vezes, na vida de verdade, abreviamos uma situação porque estamos cansados dela? (GONÇALVES, 2007, p.718).

E é dialogando com a história, a antropologia e outros romances, não só da literatura

nacional como também mundial, que Ana Maria Gonçalves constrói a narrativa do seu romance.

Entre cronotopos, dialogismos, polifonias, serendipidades, metaficções historiográficas, ela flerta

com a fronteira entre o real e o imaginário da memória de Kehinde, ou Luísa Andrade da Silva, a

Luísa Mahin, heroína da revolta dos Malês. E ainda deixa uma dúvida no ar. “Acredito que

poderia assinar este livro como sendo uma história minha, toda inventada...” (GONÇALVES,

2010, p. 16). Coisas de escritor de romance histórico pós-moderno.

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1 UM DEFEITO DE COR, ANA MARIA GONÇALVES E A REPRES ENTAÇÃO DA

HISTÓRIA: ENTRECRUZAMENTOS POSSÍVEIS

1.1 LITERATURA E HISTÓRIA: ENTRECRUZAMENTOS POSSÍVEIS

A vida não é a que a gente viveu. Mas a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.

(GARCÍA MARQUÉZ, 2003, p.5)

Em grego antigo, história significa pesquisa e/ou conhecimento advindo de uma

investigação. Com isso, os historiadores passam a utilizar as mais diferenciadas fontes de

informação, entre elas, a literatura, para construir a sucessão de processos históricos do passado.

Em latim, literatura é o mesmo que a arte de escrever, de criar e recriar textos. Para o crítico

Afrânio Coutinho (1978, p. 9-10):

A Literatura, como toda arte, é uma transfiguração do real, é a realidade recriada através do espírito do artista e retransmitida através da língua para as formas, que são os gêneros, e com os quais ela toma corpo e nova realidade. Passa, então, a viver outra vida, autônoma, independente do autor e da experiência de realidade de onde proveio.

Para Platão, a literatura é uma imitação da imitação e, por esse motivo, o valor da história

se superpõe ao da literatura. Já para Aristóteles (1993), a literatura é superior à história, porque a

verdade desta é particular e a da primeira é geral. Em muitas línguas, a palavra história é derivada

de estória que significa narrativa de ficção. A fronteira entre a literatura e a história sempre se

modificou ao longo dos anos. Ambas são narrativas, são recriações do “real”, pois os discursos

não apenas representam, mas também instituem a realidade, instauram imaginários e práticas

sociais.

Atualmente, essa fronteira recebe atenção de ambas as partes, tendo como sustentação a

produção recente que busca se aproximar dos discursos de realidade com o discurso literário e

uma revisão da produção do passado, quando os limites discursivos estavam em processo de

consolidação. O filosofo e pensador francês Paul Ricoeur (1997) aponta o recurso aos

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documentos como marca distintiva entre história e ficção. O narrar fictício/literário toma como

ponto de partida um conjunto de informações, usando recursos como polifonias3

intertextualizando não obstante a própria história e o narrar histórico necessitarem de provas

documentais. Os signos deste narrar são ampliados quando utilizados pela história, que se utiliza

de ambiguidade e metáforas confrontando conceitos e imagens.

Ao reviver o passado, o homem deixa aflorar o sonho proustiano da busca do tempo

perdido4 e que, muitas vezes, foi e é esquecido. O passado não pode ser reconstruído na sua

totalidade. Revivendo-o, o homem o torna diferente e o carrega de novas significações e

interpretações, por isso mesmo não pode reconstruí-lo fielmente. A reconstrução histórica do

passado é feita pelo olhar de quem vivenciou o momento buscado e de quem pesquisou em

documentos escritos, oficiais ou ficcionais que, na maioria das vezes, relatam ou deixam

transparecer os sentimentos mais íntimos que, em algum momento, se fizeram presentes na

realidade e na imaginação dos agentes históricos responsáveis pela sua construção.

O passado pode ser usado como exemplo a ser seguido e/ou evitado. De acordo com o

teórico Antônio Esteves (2010), por mais objetividade que tenhamos, estamos sempre fazendo

uma releitura dos fatos que, para serem transmitidos, sofrerão uma interpretação de acordo com

nossos pontos de vista, dentro de nosso espaço, de acordo com a visão de nosso tempo. Ambas –

história e literatura – são constituídas de material discursivo, permeado pela organização

subjetiva da realidade feita por cada falante, o que produz infinita proliferação de discursos.

1.2 O ROMANCE HISTÓRICO E A METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA

Não era necessário demonstrar os fatos: bastava o

autor haver escrito para que fossem verdade sem outra prova além do poder de seu talento e da autoridade de

sua voz. Eram de novo Sherazade, mas não em seu mundo milenar onde tudo era possível, e sim em outro

mundo irreparável no qual tudo já tinha se perdido. (MÁRQUEZ, 2003, p.241)

3 Termo utilizado pelo teórico russo Mikhail Bakhtin para definir a presença de outras vozes no romance. 4 Referência ao romance Em busca do tempo perdido, do escritor francês Marcel Proust. O tempo, a história (relato da temporalidade) e a memória (preservação do tempo e transmissão para a História) são os temas centrais do referido romance escrito entre 1909 e 1922.

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O romance histórico surgiu como um subgênero narrativo no início do século XIX, pelas

mãos de Walter Scott (1771-1832), durante o Romantismo, e tinha como característica a

reconstrução dos costumes, da fala e das instituições do passado, utilizando-se de enredo fictício

e misturando personagens históricos e ficcionais. Ele integrava o elenco das grandes narrativas de

consolidação do sentimento nacional e, ao mesmo tempo, o sentimento de legitimação do

impulso universalizante do Ocidente, dominante desde a modernidade, quando a Europa

colonizou grande parte do planeta.

O modelo de Scott obedece a dois princípios básicos. O primeiro deles é a ação que

ocorre em um passado anterior ao presente do escritor e tem como pano de fundo um ambiente

rigorosamente reconstruído onde figuras históricas, que são apenas citadas, ajudam a fixar época.

Nesse pano de fundo, situa-se uma trama fictícia, com personagens e fatos inventados pelo autor.

O segundo é o princípio romântico em que o autor costuma introduzir um episódio amoroso,

muitas vezes problemático, cujo desenlace pode ser variado, mas quase sempre termina na esfera

do trágico.

Segundo Esteves (2010), havia nesse romance histórico romântico uma preocupação em

buscar um equilíbrio entre a fantasia e a realidade. Narrado em terceira pessoa, o modelo de

romance scottiano promove um discurso atento a uma dimensão cronológica linear e obediente à

mesma sucessão temporal dos fatos e dados históricos registrados e fornecidos pelo discurso

histórico oficial.

A partir dos anos 60, com o debate historiográfico, passou a ser válida a utilização da

literatura como documento histórico. A literatura transita entre a ficção e a realidade e permite

uma releitura dos aspectos e semelhanças da realidade vivida em um tempo passado. Ainda

segundo Esteves (2010), tanto a literatura quanto a história são construídas de material

discursivo, permeado pela organização subjetiva da realidade feita por cada falante, o que produz

infinita proliferação de discursos.

Segundo Heloisa Costa Milton (1996), a literatura é uma leitora privilegiada dos signos

que a história projeta. Grande parte da história da Grécia antiga chegou até os dias atuais por

meio dos versos de Homero. Assim como aconteceu com a história romana, que chegou a nós

pela Eneida de Virgilio. Durante a Idade Média, muitos textos são, ao mesmo tempo, literários e

documentos históricos, como por exemplo, o poema fundador da literatura espanhola Cantar de

mio Cid, e o épico da literatura francesa Chanson de Roland.

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Como se pode observar, era muito difícil separar os relatos ficcionais da vida dos santos,

dos reis e dos feitos heroicos daqueles rigorosamente documentais. Outro exemplo importante

são os textos relativos à conquista da América, escritos pelos primeiros europeus que aqui

chegaram, e que também são estudados da mesma maneira. No Brasil, A Carta de Pero Vaz de

Caminha é um grande exemplo de literatura e de história. O fato é que, hoje em dia, a história e a

literatura trilham caminhos convergentes.

Ao longo do século XIX, o modelo scottiano sofreu poucas mudanças, pois os escritores

realistas praticamente o seguiram à risca. No final do século passado, uma atmosfera de

transformações sociais, políticas e econômicas se instalou na Europa, fazendo com que o homem

comum se sentisse parte de um processo de mudanças cujas consequências incidiram diretamente

sobre sua vida. Na França, esse sentimento nacionalista só começa a aparecer após as revoluções

burguesas e a dominação napoleônica. Na Inglaterra, esse sentimento começa a surgir a partir das

enormes transformações políticas e sociais. Na Alemanha, e nos outros países da Europa, também

não foi diferente.

No século XX, a pesquisadora canadense Linda Hutcheon, em seu livro, Poética do Pós-

modernismo: história, teoria, ficção (1991), afirma que tanto a narrativa histórica quanto a

narrativa ficcional não devem ter pretensão em alcançar alguma verdade. Ela questiona como

pode o historiador (ou o romancista) verificar qualquer relato histórico por comparação com a

realidade empírica do passado a fim de testar a validade desse relato. Para a autora, o acesso ao

passado está condicionado a sua existência como texto, tais como documentos e relatos. Neste

caso, na história, deve-se questionar a quem pertence a noção de verdade, já que, na Literatura, o

que existe são “verdades”, pois estas estão condicionadas às interpretações dos leitores.

A noção de romance pós-moderno defendida por Hutcheon, chamado por ela de

“metaficção historiográfica”, as verdades da história e da ficção são contestadas porque ambas

não refletem nem reproduzem a realidade. Em outras palavras, o sentido e a forma não estão nos

acontecimentos, como enfatiza a autora, mas nos sistemas que transformam esses

“acontecimentos” passados em “fatos” históricos presentes. Isso não é, argumenta a autora, um

desonesto refúgio para escapar à verdade, mas um reconhecimento da função de produção de

sentido dos construtos humanos (HUTCHEON, 1991, p.122. Grifo do original).

Neste caso, tanto a narrativa histórica quanto a narrativa ficcional se aproximam, pois

ambas são narrativas pelas quais são elaboradas versões da realidade humana e reconhecem a

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inexistência de uma verdade única e final, questionando as bases de qualquer certeza, seja

histórica ou ficcional.

Para Hutcheon (1991), uma análise mais elaborada dá conta de que grande parte da ficção

produzida, principalmente a partir da década de oitenta, incorpora, em maior ou menor grau,

verdades da história social e política em seus enredos. Ao se enveredar pelas malhas da ficção

histórica, é preciso ponderar que esta, por não assegurar compromissos mais sérios com a

verdade histórica, pode conter as armas mais comprometedoras no que tange à denúncia e ao

combate dos mais sérios problemas sociais. Mas nem por isso abandona o projeto de despertar no

passado as vozes silenciadas e fazer eco de sentido às lacunas deixadas pela história oficial.

O escritor, ao utilizar e transpor personagens e fatos reais para a literatura, visa instigar a

reflexão do leitor. Nos documentos e monumentos, residem os temas que o romancista precisa

resgatar para dar-lhes coerência. Cabe ao escritor pesquisar sobre o tema que lhe servirá de base

para a sua narrativa, o que muitas vezes faz com que o confundam com um historiador. Para

Menton (1993), deve-se entender como romance histórico as narrativas cuja ação corresponda,

predominantemente, a um passado não experimentado pelo escritor e que esteja pautado na

reconstituição positiva do passado, ao mesmo tempo em que se distancia da historiografia oficial.

Outra diferença entre essas duas esferas do saber é a percepção da realidade e a distorção

consciente da história, realizada pelo romancista mediante anacronismos, omissões ou exageros.

Diferentemente do modelo scottiano que os utilizava como pano de fundo, no novo modelo, os

personagens históricos passaram a ser ficcionalizados – ou seja, utiliza-se da metaficção e até

encontramos comentários do narrador sobre o processo de criação. A intertextualidade passa a ser

bastante utilizada nos mais variados níveis, vinculada aos fenômenos estudados por Bakhtin

como dialogismo, polifonia, carnavalização, paródia e heteroglossia.

Segundo a pesquisadora Irene Machado (1995), o romance é, para Bakhtin, um gênero

hibrido capaz de representar a imagem do homem na linguagem. Em um romance, por exemplo,

dois pontos de vista não se misturam, mas se cruzam dialogicamente, formando, assim, um

pluridiscurso – com seu caráter dialógico e polifônico e por encontrar, nesse gênero, vozes

sociais diversas.

Ainda segundo Machado (1995), o crítico russo, por ter voltado suas pesquisas para o

romance, não particularizou o literário propriamente dito, pois seu foco de interesse foi

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direcionado para a fala do discurso social comunicativo e do discurso individual especulativo que

o romance representa.

Para Bakhtin, o homem mantém relações com o mundo através da linguagem. O

dialogismo se dá a partir da noção de recepção/compreensão de uma enunciação que constitui um

território comum entre o emissor e o receptor, e pode ocorrer tanto na escrita quanto na leitura. O

texto deixou de ser visto isoladamente, agora é correlacionado com outros discursos similares

e/ou próximos. As relações dialógicas no romance podem ocorrer tanto na escrita quanto na

leitura.

O conceito de polifonia é desenvolvido por Bakhtin em sua obra Problemas da Poética de

Dostoiévski (1981). Segundo ele, é a presença de outros textos dentro de um texto. Um escritor

está inserido em um contexto que inclui previamente textos anteriores que o inspiram e/ou o

influenciam. No romance polifônico, cada personagem funciona como um ser autônomo com

visão de mundo, voz e posição própria no mundo. Como diz Bakhtin (1981, p.03): "[...] é como

se soassem ao lado da palavra do autor".

Enquanto o dialogismo é o princípio constitutivo da linguagem, a polifonia se caracteriza

pelas vozes polêmicas em um discurso. Há uma presença de outros textos dentro de um texto,

pois o autor se utiliza de outros textos prévios que lhe serviram de inspiração e/ou influência.

Esses são traços característicos dos romances históricos contemporâneos que apresentam uma

mistura de intertextualidade, cronotopia, polifonia e dialogismo, fazendo um cruzamento entre a

narrativa histórica e a narrativa ficcional.

Mikhail Bakhtin (2010) formulou o conceito de cronotopia – do grego Cronos (tempo) e

Topos (espaço) – por acreditar ser determinante para a imagem do homem na literatura. Ambos,

tempo e espaço, são inseparáveis e geradores de sentido. Ao se cruzar e se confrontar, os

cronotopos determinam o sujeito no mundo que ele representa de acordo com o tempo no qual se

encontra. Em uma mesma história, podem coexistir diferentes cronotopos que se articulam e se

relacionam à estrutura textual, criando uma atmosfera diferenciada. Segundo o autor:

O cronotopo tem um significado fundamental para os gêneros na literatura. Pode-se dizer francamente que o gênero e as variedades de gêneros são determinadas justamente pelo cronotopo, sendo que em literatura o princípio condutor do cronotopo é o tempo. O cronotopo como categoria conteudística-formal determina (em medida significativa) também a imagem do indivíduo na literatura; essa imagem sempre é fundamental cronotópica. (BAKHTIN, 2010, p.212).

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É o tempo que move o cronotopo. Segundo Machado (1995), o tempo é o fenômeno

organizador tanto dos episódios narrados quanto da linguagem e seus signos. Na literatura, é por

meio das categorias temporais que o homem se transforma a cada novo tempo, dando sentido ao

romance. O tempo, ao longo dos anos, se tornou a questão central dos estudos literários.

Machado (1995) afirma que, para Bakhtin, o tempo está indissoluvelmente ligado ao

espaço e somente através desse vínculo é que surgem as articulações do enredo encarregadas de

configurar o gênero e seu sincretismo. Trata-se de um conjunto de relações vinculado às épocas

históricas, mas não a uma única época.

O cronotopo está na base do diálogo entre literatura e história, pois ele é um conjunto de

possibilidades concretas que exprime a relação das pessoas com os acontecimentos. Para a

literatura, o espaço é sempre social e o tempo é, quase sempre, histórico e biográfico. Machado

(1995) afirma que o cronotopo estabelece um tipo de relacionamento entre a vida e a arte distinto

da relação entre espaço/tempo da experiência.

Bakhtin (2010) afirma que as categorias de cronotopos colaboram para a formação do

romance por apresentarem personagens inacabados em um processo de evolução que nunca se

concluirá. A imagem do homem é construída e o tempo interioriza-se, no sujeito, modificando

sua vida, seu destino e a si mesmo. Ainda segundo o autor russo,

No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico. (BAKHTIN, 2010, p.211).

O romance histórico busca reinterpretar o passado com os olhos livres das amarras

conceituais criadas pelos colonizadores, fazendo uma releitura da história, que foge do discurso

histórico oficial. Não se trabalha mais com o tempo retilíneo, são várias concepções de tempo e

não se conta a história dos vencedores: narra-se uma anti-história.

A intertextualidade é bastante utilizada, nesse caso, para poder minimizar a distância entre

passado e presente dentro de um novo contexto. Para Esteves (2007), coube a Scott, no processo

de afirmação do romance como epopeia burguesa, criar essa nova variante da narrativa, cujos

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personagens, por estarem profundamente inseridos no fluxo da história, atuam explicitando as

peculiaridades da época apresentada.

Em cada país, o romance histórico se desenvolveu buscando características próprias,

favorecendo as culturas periféricas. Buscou-se uma releitura do passado, fazendo uma crítica à

modernização excludente que vitimizou as colônias.

1.3 O MODELO LATINO-AMERICANO E O BRASILEIRO

Esta foi a viagem que eu mesmo transformei em legendária por causa de meu defeito incorrigível de

não medir a tempo meus adjetivos. (GARCÍA MARQUÉZ, 2003, P.403)

Diferentemente do modelo scottiano, o latino-americano – em seu afã de encontrar uma

identidade – passa a questionar profundamente o fato histórico em si, reinterpretando os fatos, os

acontecimentos e os personagens históricos, sem se ater aos julgamentos feitos anteriormente

pelos historiadores oficiais. Esse novo modelo faz uma releitura crítica da história desta, dando

voz a todos os que foram renegados, silenciados ou esquecidos pela historiografia tradicional,

sem hesitar em se apropriar dos mitos, lendas, arquétipos e diversas outras manifestações

culturais.

O crítico literário Seymour Menton, em seu livro La nueva novela histórica de la América

Latina 1979-1992 (1993), sintetiza as diferenças entre um novo subgênero de romance histórico e

o modelo tradicional scottiano. A primeira diferença está associada a uma concepção filosófica

em que é quase impossível captar a verdade histórica ou a realidade. Muda-se a concepção

tradicional de tempo e a história passa a ser vista como uma formação cíclica. Neste caso, a

imprevisibilidade faz com que possam ocorrer acontecimentos mais absurdos e inesperados.

Para o pesquisador Alexandre Baumgarten (2000), o romance histórico desempenhou

importante papel na construção das nacionalidades/identidades que almejavam se afirmar pela

diferença. O romance histórico brasileiro percorreu dois caminhos. De um lado, situam-se as

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narrativas que focalizam acontecimentos integrantes da história oficial e, por vezes, definidoras

da própria constituição física das fronteiras geográficas brasileiras. De outro, estão aquelas

narrativas que promovem a revisão do percurso desenvolvido pela história literária nacional,

buscando uma literatura de fundação.

No Brasil, o escritor José de Alencar e suas obras como O Guarani (1854), As minas de

prata (1862), Iracema (1864) e A guerra dos mascates (1873) merecem destaque por

consolidarem o ideal nacionalista e o romance histórico: um dos principais meios encontrados

pelos escritores românticos para a reinterpretação nacionalista de fatos e personagens da história

do Brasil, numa revalorização e idealização de nosso passado. Essa reinterpretação era, quase

sempre, sob o ponto de vista da elite dominante, como afirma o pesquisador Renato Ortiz:

A construção da memória nacional se realiza através do esquecimento. Ela é o resultado de uma amnésia seletiva. Esquecer significa confirmar determinadas lembranças, apagando os rastros de outras, mais incômodas e menos consensuais. (ORTIZ, 1994, p.139)

O romance histórico latino-americano buscou preencher os vazios da história oficial, suas

falácias, numa luta contra o esquecimento. Esse sentimento nacionalista só surgiu no século XIX,

com a necessidade de uma literatura de fundação, de narrativas que buscavam inventar uma

tradição.

No começo, esse sentimento era importado da Europa, e essa ilusão de uma tradição

entrava em choque com as experiências vividas num passado relativamente recente. As colônias

na América ainda não tinham uma história do passado para contar. Cabe notar que, para o

romance histórico, a questão da temporalidade presente-passado-futuro é muito importante. Para

o filósofo alemão Walter Benjamin (1987), que se debruçou atentamente sobre essa questão,

articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como de fato ele foi, mas estabelecer

uma relação entre passado e presente.

Como afirma Esteves (2010), a visão romântica de mundo, do modelo de romance

histórico de Scott, cedeu lugar a um profundo questionamento e busca de identidade como fato

em si, que, sob a óptica do romancista, é reconstruído ficcionalmente.

Por conta dos traumas da conquista ibérica e da criação de imagens que se aproximassem

do modelo de civilização europeia, precisou-se trabalhar muito mais com o esquecimento do que

com a memória. Essa imposição do modelo europeu fez com que parte da cultura nativa fosse

apagada da historiografia oficial. O surgimento de romance de resistência surgiu como um libelo,

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sendo muito importante para a região e para o orgulho do povo e fazendo florescer o seu

sentimento de pertencimento.

A partir do século XX, o romance histórico latino-americano surge como uma literatura

capaz de construir uma nova visão histórica, reinterpretando o passado e revendo a história

contada pelo colonizador. O romance histórico brasileiro contemporâneo não segue o mesmo

caminho que seus vizinhos latino-americanos, o que caracteriza um cronotopo estético por haver

diferenças entre os dois tipos de romances. Muitas obras brasileiras procuraram fazer uma

releitura do passado, criticando a modernização excludente e relativizando certezas do

racionalismo ocidental. São exemplos disso, obras como: Quarup (1967), de Antonio Callado,

Incidente em Antares (1971), de Érico Veríssimo, Viva o povo brasileiro (1984), de João Ubaldo

Ribeiro e A casa da serpente (1989), de J. J. Veiga.

Dos escritores do romance histórico brasileiro, destacam-se: Bernardo Guimarães (1825-

1884), autor de O ermitão de Muquém (1864); Franklin Távora (1842-1888), que escreveu O

Matuto (1878); Paulo Setúbal (1893-1937), com O El-Dourado (1934); José Lins do Rego (1901-

1957), com Pedra bonita (1938) e Cangaceiros (1953). Apesar de não ser apontado como autor

de romances históricos, Jorge Amado (1912-2001) merece também destaque, pois seus livros

Terras do sem fim (1942) e São Jorge dos Ilhéus (1944) falam sobre a produção cacaueira da

região de Ilhéus e Itabuna, na Bahia. Em 1984, o autor baiano publicou Tocaia Grande, que pode

ser considerado um romance histórico. No último romance da saga do cacau, Amado explora –

como afirma Godet-Olivieri no Dicionário de personagens afrobrasileiros, organizado por Lícia

de Souza (2009) – a temática da luta pela posse de terra e dos deslocamentos migratórios no

Brasil, despertando a cobiça dos representantes do regime coronelista detentores do poder

econômico e político da região em que é retratado o romance.

Nas últimas três décadas, no entanto, cresce no Brasil o número de narrativas de ficção

histórica, apresentando características distintas daquelas apontadas pelos romances de resistência

latinos. O aumento do número de biografias, seja de personagens históricos nacionais mais

recentes, seja de tempos passados, também foi notado. O número de crônicas de viagem

referentes a períodos históricos diversificados também aumentou. O mesmo se verifica nas

produções cinematográficas e televisivas, nacionais e internacionais, cuja ação ocorre em tempos

remotos como na Antiguidade ou Idade Média.

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Segundo o teórico Karl Eric Schollhammer (2011), essa tendência das novas formas de

realismo se revelou na opção pelo hibridismo entre formas literárias e não literárias, como, por

exemplo, no romance-reportagem, espécie de realismo documentário inspirado no jornalismo e

no new-journalism americano, ou ainda, o romance-ensaio, que permite um entrecruzamento

importante da criação e da crítica literária. Este último tem como exemplo o romance Em

liberdade (1981), de Silviano Santiago.

O romance Cidade de Deus, de Paulo Lins (1997), é um grande exemplo das novas

formas de realismo salientadas por Schollhammer, um realismo brutal, que traz um painel das

transformações sociais sofridas pelo conjunto habitacional Cidade de Deus, no Rio de Janeiro,

desde o início da criminalidade nos anos 60, até a violência generalizada e do domínio do trafico

de drogas na década de 90.

Obras como Galvez, o imperador do Acre (1976), de Márcio Souza, O Boca do Inferno

(1989), de Ana Miranda, Agosto (1990), de Rubem Fonseca, e mais recentemente, Um defeito de

cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, constituem o novo tipo de romance histórico brasileiro.

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1.4 O ROMANCE ESTUDADO

Não foi possível encontrar outra história como aquela porque não era das que a gente inventa no papel. Quem

as inventa é a vida, e quase sempre aos golpes. (GARCÍA MARQUÉZ, 2003, p.469)

Segundo a escritora Ana Maria Gonçalves, para que se tenha certeza de que se está diante

de uma serendipidade, é preciso ter conhecimento sobre o que se descobriu, para que o momento

não seja desperdiçado. Em 2001, ela estava numa seção de guias de viagens de uma livraria e

encontrou o livro do Jorge Amado intitulado de Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e

mistérios. Ao ler o prólogo, chamado de “Convite”, observou: "E quando a viola gemer nas mãos

do seresteiro na rua trepidante da cidade mais agitada, não tenhas, moça, um minuto de indecisão.

Atende ao chamado e vem. A Bahia te espera para sua festa cotidiana". Algumas páginas adiante,

encontrou o seguinte trecho:

Do Alufá Licutã, quem conhece o nome, os feitios, o saber, o gesto, a face do homem? Comandou a revolta dos negros escravos durante quatro dias e a cidade da Bahia o teve como seu governante quando a nação malê acendeu a aurora da liberdade, rompendo as grilhetas, e empunhou as armas, proclamando a igualdade dos homens. Não sei de história de luta mais bela do que esta do povo malê, nem de revolta reprimida com tamanha violência. A nação malê não era apenas a mais culta entre quantas forneceram mercadoria humana para o tráfico repugnante, em verdade os escravos provindos dessa nação alcançavam os preços mais altos, sendo não só os mais caros, também os mais disputados. Serviam de professores para os filhos dos colonos, estabeleciam as contas dos senhores, escreviam as cartas das iaiás, intelectualmente estavam bem acima da parca instrução dos lusos condes e barões assinalados e analfabetos ou da malta de bandidos degredados da longínqua colônia. O mais culto dos malês era o Alufá Licutã. Levantaram-se os escravos, dominaram e ocuparam a cidade. Logo derrotados pelo número de soldados e pela força das armas, a ordem dos senhores furiosos foi matar todos os membros da nação malê, sem deixar nenhum. Homens, mulheres e crianças, para exemplo. Ordens executadas com requintes terríveis, para que o exemplo perdurasse. Assim aconteceu. [...]. Da revolta e de seu chefe pouco se sabe. No mais, o silêncio. É o caso de se perguntar onde estão os jovens historiadores baianos, alguns de tanta qualidade e coragem intelectual, que não pesquisam a revolta dos malês, não levantam a figura magnífica do chefe? [...] Tema para estudos históricos que venham repor a verdade, redimir a nação condenada, ressuscitar o alufá, retirá-lo da cova funda do esquecimento na qual o enterrou a reação escravagista. Tema para um grande romance [...]. (apud GONÇALVES, 2010, p.10-11).

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Nasceu na autora a vontade de entender melhor a Revolução Malê5, uma rebelião

coordenada por escravos muçulmanos na Bahia em 1835 – por conta desses elementos, nota-se

um cronotopo histórico – e de que até então nunca ouvira falar. Ela não desperdiçou o seu

momento de serendipidade e decidiu se isolar na Ilha de Itaparica, na Bahia para poder ficar mais

próxima de suas fontes e escrever seu livro. A pesquisadora Eurídice Figueiredo (2010) recorre a

Benjamim para ilustrar esse processo investigativo da história: quem pretende aproximar-se do

próprio passado soterrado, deve agir como um homem que escava.

Ana Maria pesquisou em livros acadêmicos, de ficção, de história, biografias, teses, além

de documentos de arquivo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, do Arquivo Público do

Estado da Bahia, do Arquivo Histórico do Município de Salvador, jornais baianos da época, e

também de São Paulo e do Rio de Janeiro, sites, entrevistas, conversas.

Em 2006, o romance foi publicado pela Editora Record, com 957 páginas, e obteve uma

recepção crítica muito positiva. Em 2007, ganhou o prêmio Casa de las Américas, em Cuba, na

categoria literatura brasileira. Hoje, já está em sua 8ª edição, fato importante e que merece

destaque dentro do cenário da literatura nacional, pois não é sempre que um livro chega a tantas

edições, ainda mais tendo esse número de páginas no Brasil. A orelha do livro foi escrita por

Millôr Fernandes que, em meio às recomendações de leitura, ressalta que a obra está entre as

melhores lidas por ele “em nossa bela língua eslava”.

O antropólogo e poeta Antônio Risério (2012) afirma que Ana Maria Gonçalves escreveu

um romance que ele gostaria de ter escrito, afirmando que “ninguém escreve o que ela escreveu

sem uma dedicação imensa. Sem estudo. E é um livro raro na paisagem lítero-cultural brasileira”,

e ainda diz “que ela consegue criar personagens que nos convencem. Que são reais, apesar de

todas as idealizações”.

5 A Revolta dos Malês aconteceu na Cidade do Salvador, província da Bahia, entre os dias 25 e 27 de janeiro de 1835. Os negros de ganho (alfaiates, pequenos comerciantes, artesãos e carpinteiros) se revoltaram por sofrerem discriminação religiosa por serem islâmicos (em iorubá, muçulmano significa malê) e que, apesar de livres, tinham dificuldades em ascender socialmente. Tinha como principal objetivo acabar com a escravidão, com o catolicismo, o confisco de bens dos brancos e mulatos e a implantação de uma república islâmica. Toda a revolução foi tramada em árabe, língua que somente eles dominavam, para poder ter acesso ao Alcorão (livro sagrado dos muçulmanos). Arrecadaram dinheiro e compraram armas para os combates, mas uma mulher contou o plano ao Juiz de Paz de Salvador e os soldados das forças oficiais conseguiram reprimir a revolta. Muitos morreram, outros foram presos, os líderes foram condenados à pena de morte. Outros participantes foram condenados a trabalhos forçados e foram enviados de volta à África. Com isso, o governo local, temendo novas revoltas, proibiu a circulação de muçulmanos à noite bem como a prática de suas cerimônias religiosas.

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A escolha do título se deu pelo fato de que, no período colonial, havia uma lei, entre as

muitas outras leis segregacionistas, que impedia que negros e mulatos ocupassem cargos civis,

militares e eclesiásticos, reservados aos brancos. Quando o talento, a competência ou a vontade

eram muito grandes, o negro ou mulato podia pedir a "dispensa do defeito de cor", que foi

concedida, por exemplo, ao padre mulato José Maurício, um dos mais importantes musicistas e

compositores coloniais brasileiros. Ele apenas pôde se tornar Mestre da Capela Real e

responsável pela música sacra que lá tocava depois de dispensado do defeito de que padecia.

Segundo o poeta e advogado negro, Luiz Gama (1830-1882), "Em nós, até a cor é um

defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime. Mas nossos críticos se

esquecem de que essa cor é a origem da riqueza de milhares de ladrões que nos insultam; que

essa cor convencional da escravidão, tão semelhante à da terra, abriga, sob sua superfície escura,

vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade” (GAMA, 2008, apud FIGUEIREDO, 2011,

p.277).

A definição de “defeito”, em qualquer dicionário, pode ser encontrada como imperfeição

física ou moral, uma deformidade. São Tomás de Aquino definiu defeito como pecado e criou as

concepções dos pecados capitais, ou os defeitos dos seres humanos. Para a filosofia, ter defeito é

não ter virtude. Já a estética o vê como incompletude. A antropologia, como ato etnocêntrico e a

psicologia, como ato desequilibrado.

A personalidade humana é constituída de defeitos e qualidades, assim como os dois lados

de uma moeda. Sempre foi mais fácil elaborar uma lista com os principais defeitos, porque estes

sofrem menos modificações ao longo do tempo. As qualidades estão abertas ao subjetivismo de

quem as analisa. Por isso mesmo, sempre foi complexo elaborar uma teoria que definisse

amplamente toda a carga significativa que cada pessoa possui.

A mitologia dos orixás, assim como a greco-romana, está repleta de deuses com defeitos e

tentações similares aos humanos. Nas religiões de matrizes africanas, não há bem e mal, existem

qualidades e defeitos que devem ser respeitados porque expressam aspectos dos orixás. Não há

um único Deus e, sim, vários orixás:

No começo não havia separação entre o Orum, o Céu dos orixás, e o Aiê, a Terra dos humanos. Homens e divindades iam e vinham, coabitando e dividindo vidas e aventuras. Conta-se que, quando o Orum fazia limite com o Aiê, um ser humano tocou o Orum com as mãos sujas. O céu imaculado do Orixá fora conspurcado. O branco imaculado de Obatalá se perdera. Oxalá foi reclamar a Olorum. Olorum, Senhor do Céu, Deus Supremo, irado com a sujeira, o desperdício e a displicência dos mortais, soprou enfurecido seu sopro divino e

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separou para sempre o Céu da Terra. Assim, o Orum separou-se do mundo dos homens e nenhum homem poderia ir ao Orum e retornar de lá com vida. E os orixás também não podiam vir à Terra com seus corpos. Agora havia o mundo dos homens e o dos orixás, separados. Isoladas dos humanos habitantes do Aiê, as divindades entristeceram. Os orixás tinham saudades de suas peripécias entre os humanos e andavam tristes e amuados. Foram queixar-se com Olodumare, que acabou consentindo que os orixás pudessem vez por outra retornar à Terra. Para isso, entretanto, teriam que tomar o corpo material de seus devotos. Foi a condição imposta por Olodumare. (PRANDI, 2001, p. 526-527).

O número de pesquisas sobre o referido romance ainda é pequeno, mas crescente. Entre

elas, destacam-se: a pesquisa de Mariana de Bastiani Lange (UFSC) cuja dissertação de

mestrado, intitulada Vicissitudes da memória: destinos, desvios e(m) um defeito de cor (2008)

baseou-se em alguns conceitos da teoria psicanalítica, e procurou aproximar a memória de que

trata o referido romance com a memória definida a partir da psicanálise; a dissertação de

mestrado de Aline Najara da Silva Gonçalves (UNEB), Luiza Mahin entre ficção e história

(2010), que analisou as representações de Luiza Mahin na história e na literatura, a partir dos

escritos historiográficos e dos romances Malês, a insurreição das senzalas, de Pedro Calmon

(1933) e do romance ora analisado; e a pesquisa de Cristiane Felipe Ribeiro de Araujo Côrtes

(UFMG), que resultou na dissertação de mestrado intitulada Viver na fronteira: a consciência da

intelectual diaspórica em Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves e objetivou evidenciar a

importância do intelectual diaspórico nas sociedades para a relativização de conceitos

hegemônicos e de discursos utilizados para subjugar culturas, tendo como objeto de estudo o

romance abordado nesta pesquisa.

Eurídice Figueiredo, em seu livro Representação da etnicidade: perspectivas

interamericanas de literatura e cultura (2010), analisa e cita, diversas vezes, Um defeito de cor

(2010), além de dedicar um capítulo a ele e a sua autora, intitulado “Resiliência, banzo, e as artes

de fazer em Ana Maria Gonçalves”. No Dicionário de personagens afrobrasileiros (2009),

organizado por Lícia Soares de Souza, Eurídice (2009, p.180) escreve sobre a personagem

principal e narradora Kehinde, relacionando-a com outras personagens semelhantes da literatura

brasileira como Mariana de A casa da água, de Antônio Olinto (1975), e Maria da Fé, de Viva o

povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro (1984), como veremos no próximo capítulo.

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O dialogismo, a polifonia e a intertextualidade entre Um defeito de cor (2010)6 e

romances referidos acima acontecem porque Kehinde, assim como Mariana, sai de sua terra natal

e pensa em voltar, mas apenas Kehinde volta. Ambas percorrem caminhos inversos, enquanto

Mariana nasceu no Brasil, mas vai para África e sempre pensa em voltar, Kehinde nasceu na

África e é levada para o Brasil como escrava, mas sempre pensava em voltar à sua terra natal.

Uma vez na África, sempre teve o desejo de retornar ao Brasil para poder se encontrar, mais uma

vez, com o filho desaparecido. Os filhos de ambas as personagens partiram para prosseguir seus

estudos na Europa.

Embora tanto Kehinde quanto Maria da Fé tenham tido a experiência de presenciar o

estupro e a morte de sua mãe, ambas possuem resiliência7, mas trilharam caminhos diferentes. A

resiliência de Kehinde fez com que ela lutasse para fazer parte da sociedade que a escravizou, já a

de Maria da Fé a tornou uma guerreira que sempre lutou contra a sociedade para que todos

pudessem ser tratados com justiça e humanidade. Kehinde é resistente e usou suas mágoas para

obter sucesso pessoal depois de ter sido capturada em sua terra africana, escravizada e estuprada.

Essa resistência faz com que seja vista muitas vezes como individualista, mas a levou a

superar quase todos os obstáculos que apareceram em sua vida. Não consegue superar a ausência

do filho vendido, mas a narradora de U.D.C. supera as humilhações, a inferioridade, ganha

dinheiro, obtém sucesso e reconhecimento.

Há um outro cronotopo, pois a autora acredita que se a Revolução Malê for estudada mais

a fundo, pode fornecer elementos importantes que possam ajudar a compreender, por exemplo, as

Jihads8, que já existem há muito tempo em território africano antes de ganharem o mundo. Além

6 Para que não haja repetições do título do romance estudado, optou-se por abreviá-lo para U.D.C. 7 Segundo Eurídice Figueiredo (2010), a adaptação e o emprego do termo na área da Psicologia aconteceram quando psicólogos se deram conta de que crianças que sofriam o mesmo trauma (em guerras na África, maus-tratos de mães toxicômanas) reagiam de modo diferente. No campo da psicologia e das relações humanas, pode ser compreendido como um processo de superação de experiências, pois o indivíduo sai fortalecido dessas experiências. O termo é um conceito da física e significa a capacidade de um material sofrer tensão e recuperar seu estado normal. Ter uma atitude resiliente é ter uma conduta positiva apesar das adversidades, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas – choque, estresse, etc. –, sem entrar em surto psicológico. No caso da personagem Kehinde, ela enfrenta todos os obstáculos e os vence, saindo sempre fortalecida ou transformada por experiências de adversidade. 8 Linguisticamente, o termo jihad significa em árabe “esforço” ou “empenho” e pode ser aplicado a todo esforço despendido na execução de qualquer ação. Ao contrário do que se pensa, o termo não significa “guerra santa” e não está presente no Alcorão, livro sagrado mulçumano, e sim nos ditos do profeta Maomé. É uma espécie de batalha sagrada enquanto forma de trazer mais seguidores para a religião. A primeira vez que o termo apareceu, no século XI, num livro de al-Khatib al-Baghdadiis que transmite aquele referido dito de Maomé. A Jihad maior é a luta do indivíduo consigo mesmo pelo domínio da alma e a Jihad menor é o esforço que os mulçumanos fazem para levar a teoria do Islã a outras pessoas. O mundo ocidental vê a Jihad como uma guerra violenta destinada a transformar à força pessoas em islâmicas e é fundada nos diversos ataques terroristas e militares sofridos pelo Ocidente em nome

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de buscar o fim da escravidão, essa revolta pretendia instalar o que mais tarde se chamou de

“Califado Baiano”, talvez inspirado no resultado de algumas guerras ocorridas na África e na

revolução haitiana. Cabe ressaltar que os escravos tinham um sistema muito eficiente de

comunicação, seja através dos escravos que acabavam de chegar ao Brasil ou dos trabalhadores

dos navios que faziam comércio entre a América, a Europa e a África. Um fato interessante

descoberto pela autora em sua pesquisa foi que, na década de noventa do século XVIII, Toussant

L'Ouverture9 era considerado um herói pelos negros revolucionários da Bahia, que andavam com

seu nome ou desenhos de seu rosto presos a patuás pendurados no pescoço.

1.5 A HISTÓRIA DE KEHINDE

Não se trata apenas de uma narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira. Material poroso, um dia viverei aqui a vida de uma

molécula com seu estrondo possível de átomos. O que escrevo é mais do que uma invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça , entre milhares dela;

é dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida. Porque há o direito ao grito. Então eu grito. Grito puro e sem pedir esmolas.

(LISPECTOR, 1998, p 13)

A narrativa da estória da personagem começa pouco antes do acontecimento que mudaria

sua vida para todo o sempre:

Eu nasci em Savalu, reino de Daomé, África, no ano de um mil oitocentos e dez. Portanto, tinha seis anos, quase sete, quando esta história começou. O que aconteceu antes disso não tem importância, pois a vida corria paralela ao destino. O meu nome é Kehinde porque sou uma ibêji, (Ibêji: Assim são chamados os gêmeos entre os povos iorubás), e nasci por último. Minha irmã nasceu primeiro e por isso se chamava Taiwo. Antes tinha nascido o meu irmão Kokumo, e o nome dele significava "não morrerás mais, os deuses te segurarão". O Kokumo era um abiku, (Abiku: "criança nascida para morrer"), como a minha

desta religião e suas crenças. Acredita-se que quem morre em uma Jihad vai diretamente para o paraíso. Muitos muçulmanos veem na Jihad uma forma de oportunidade política, o que desvirtua a religião. (fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jihad acessado em 04/08/2012) 9 François-Dominique Toussaint Louverture nasceu em 20 de maio de 1743 e faleceu em 8 de abril de 1803, Forte de Joux, La Cluse-et-Mijoux, Doubs. Ele foi o maior líder da Revolução haitiana e, em seguida, governador de Saint Domingue, o nome do Haiti na época. É reconhecido por ter sido o primeiro líder negro a vencer as forças de um império colonial europeu em seu próprio país. Nascido escravo, tendo sua formação em armas e tendo levado uma luta vitoriosa para a liberação dos escravos haitianos, ele passou a ser uma figura histórica de importância no movimento de emancipação dos negros na América (Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/ Toussaint_Louverture >. Acesso em: 4 ago. 2012).

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mãe. O nome dela, Dúróorílke, era o mesmo que "fica, tu serás mimada". A minha avó Dúrójaiyé tinha esse nome porque também era uma abiku, e o nome dela pedia "fica para gozar a vida, nós imploramos" (GONÇALVES, 2010, p. 19).

Certo dia, guerreiros do reino de Adandozan invadem a casa da avó e matam brutalmente

a mãe e o irmão, sob o olhar das crianças e diante dos apelos da avó.

Após essa chacina, com a avó e Taiwo, viajam sem rumo e chegam a Uidá, onde Kehinde

constrói uma bela amizade com Titilayo, uma vendedora de acarás, que lhes deu abrigo e comida.

O período de uma aparente trégua dura pouco, as três são capturadas e tiradas à força de

sua terra natal e tomam o rumo dos mares a bordo de um navio negreiro, submetidas a uma

viagem em condições desumanas com destino ao Brasil. Durante a travessia, muitos foram os

doentes e mortos que eram atirados ao mar, inclusive sua avó e Taiwo. “Eu não pensava que elas

fossem mesmo morrer, mas achava normal que a minha avó falasse daquele jeito”

(GONÇALVES, 2010, p. 56) dizia Kehinde, que chega ao Brasil como a única sobrevivente de

toda a família.

Naquela época, por conta da travessia, os escravos ficavam de quarentena na Ilha dos

Frades, para poderem se recuperar da viagem desgastante. Um padre sempre chegava para batizar

os escravos “[...] para que não pisássemos em terras do Brasil com a alma pagã. Eu não sabia o

que era alma pagã, mas já tinha sido batizada em África já tinha recebido um nome e não queria

trocá-lo, como tinha feito com os homens” (GONÇALVES, 2012, p 63).

Em Salvador, é vendida e vai trabalhar na fazenda do senhor José Carlos de Almeida

Carvalho Gama, na Ilha de Itaparica, como dama de companhia de sua filha, a sinhazinha Maria

Clara, uma criança também órfã e muito sofrida que, quando adulta, se torna uma amiga querida

de Kehinde:

Enquanto a sinhazinha Maria Clara copiava as letras e os números que o Fatumbi desenhava no quadro-negro, eu fazia a mesma coisa com o dedo, usando o chão como caderno. Eu também repetia cada letra que ele falava em voz alta, junto com a sinhazinha, sentindo os sons delas se unirem para formar as palavras. Ele logo percebeu o meu interesse e achei que fosse ficar bravo, mas não; até quase sorriu e passou a olhar mais vezes para mim, como se eu fosse aluna da mesma importância que a sinhazinha. Comecei a aprender mais rapidamente que ela, que muitas vezes errava coisas que eu já sabia. As três horas de aula todas as tardes passaram a ser para mim as mais felizes do dia, as mais esperadas, e fiquei triste quando chegou o primeiro fim de semana, dias de folga que o professor aproveitou para ir até a capital. (GONÇALVES, 2010, p. 92).

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Na fazenda, passa boa parte da infância e da adolescência. A narradora conta como foi

essa convivência nos mínimos detalhes, narrando os horrores da escravidão no Brasil, como eram

tratados os negros que ousavam ser rivais sexuais dos seus senhores. Descreve como eram as

senzalas da fazenda, a senzala pequena para os negros que conviviam com a casa grande e a

grande, onde viviam os demais. Narra também como foi violentada sexualmente pelo Sinhô.

Desse abuso, nasce seu primeiro filho, Bonjokô.

Com a morte do Sinhô, a fazenda foi vendida e a viúva se mudou com alguns escravos

para Salvador. Dentre eles, Kehinde, agora já com quinze anos. A relação com a Sinhá não é das

melhores, mas a patroa tratava muito bem Bonjokô.

Descreve como era o cotidiano da capital baiana, como vivem os seus moradores e como

fora emprestada para o Cônsul da Inglaterra:

Outra coisa de que também gostei bastante naquela casa foi o jeito como éramos tratados, sem qualquer intimidade ou demonstração de sentimento, mas muito respeito. Durante todo o tempo que fiquei lá, nenhum escravo foi castigado ou mesmo humilhado na frente dos outros. Quando fazíamos alguma coisa que achavam errado, éramos chamados de lado e advertidos de que aquilo não seria mais admitido, senão simplesmente seríamos vendidos ou devolvidos aos verdadeiros donos, o que ninguém queria. Éramos bem vestidos, bem tratados e bem alimentados e tínhamos grande liberdade, até mesmo para fugir se quiséssemos, mas sabíamos que a vida fora da casa era bem mais difícil e fazíamos de tudo para ficar. A senzala, que eles chamavam de casa dos serviçais, era limpa e arejada, além de estar situada em um lugar que tinha uma das vistas mais bonitas da baía. Cada um de nós tinha uma baia individual, que tratava de manter limpa e muito bem arrumada, sendo que nunca senti lá dentro o mínimo cheiro de urina ou de merda, o que era bem comum nas outras senzalas. Isso porque não ficávamos trancados, e quando sentíamos vontade de fazer nossas necessidades durante a noite, podíamos sair e fazer do lado de fora. Não éramos muitos escravos na casa, e por isso trabalhávamos bastante, mas ninguém reclamava, e muitas vezes até ajudávamos um ao outro. (GONÇALVES, 2010, p. 219).

Essa diferença no tratamento dos escravos pelos ingleses é fundamental na vida da

adolescente Kehinde, servindo de grande aprendizado. É nesta casa, por exemplo, que aprende a

falar inglês e a fazer cookies, o que mais tarde lhe será bastante útil, chegando até a ganhar

dinheiro com isso.

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Ao longo de sua narrativa, nota-se a saudade que sente da mãe, da avó, dos irmãos, todos

já falecidos. Sonhava com eles, muitas vezes. Conta que sente falta do cheiro da avó. Sentia falta

também de sua terra, e de como seria se nenhum dos trágicos acontecimentos tivesse ocorrido.

Pouco tempo após tantos problemas, a Sinhá permite que Kehinde trabalhe como escrava

de ganho. Ela poderia trabalhar durante o dia, à noite voltaria para a casa, mas pagaria uma taxa

ao final de cada semana. É quando começa a fazer cookies para vender. Com o sucesso da venda,

consegue dinheiro suficiente para comprar sua alforria e a do seu filho.

Nessa mesma época, conhece e passa a viver com Alberto, um comerciante português,

com quem tem um filho, Omotunde. Vive, então, um período bastante feliz, pois passa a

constituir sua família, morando em um sítio de Alberto com os amigos negros alforriados. Muitos

foram libertos com a partida da Sinhá para o Rio de Janeiro.

Kehinde passa a ser proprietária de uma padaria e a morar perto dela, quando, num trágico

acidente, seu filho mais velho morre.

Ela reencontra Fatumbi10 com quem se junta na formação da Revolução Malê. Enquanto

tramava a revolta, conheceu os festejos do 2 de Julho, a festa do Senhor do Bonfim, da Conceição

da Praia, entre outros. Eis o que pontua a narradora:

Fiquei surpresa quando, no dia oito de dezembro, o Fatumbi me convidou para a festa de Nossa Senhora da Conceição da Praia. A igreja, que tinha sido montada quase toda em Portugal e transportada em partes, era uma bonita construção feita de mármore que ficava na cidade baixa. Era a primeira vez que você entrava em um lugar daqueles e ficou admirado. Você não parava de olhar os ornamentos feitos em bronze e ouro e o teto pintado com imagens de santos, perguntando quem eram aquelas pessoas, mas nós não sabíamos responder. (GONÇALVES, 2010, p. 480).

Além de se ter conhecimento dos festejos naquela época, através do olhar da narradora,

também se fica sabendo como foi construída a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia e a

história de cada um desses festejos:

No primeiro dia de janeiro, quando estávamos saindo para a Festa de Nossa Senhora dos Navegantes, seu pai apareceu de surpresa. Ele tinha tomado boleia em um dos barcos que saíam de Itapagipe para se concentrar em frente à Nossa

10 Fatumbi era o professor que dava aula aulas para a Sinhazinha na fazenda em Itaparica e deixava a pequena Kehinde aprender também, como fora citado anteriormente. Eles ficaram grandes amigos.

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Senhora da Praia, esperando a saída da procissão, que era feita no mar. (GONÇALVES, 2010, p. 483).

Era uma quarta-feira e a festa do Bonfim começaria na quinta, mas, quando nos aproximamos do cais, já era grande o número de embarcações ancorando com pessoas de vários locais, principalmente do Recôncavo, que iam pedir graças ou pagar promessas. A igreja era uma construção imponente, não muito grande, mas muito bonita, que ficava no alto da Colina do Bonfim, com a fachada coberta de azulejos brancos e muitos adornos por todos os lados. Ficava em uma região tranquila, habitada por muitos pretos livres e brancos de condição de vida mais simples, como pescadores, carpinteiros, alfaiates, costureiras, lavadeiras, engomadeiras, santeiros, sapateiros e vendedoras de comida. Mas também era onde estavam construídas ricas casas de veraneio pertencentes a comerciantes, militares e religiosos. (GONÇALVES, 2010, p. 487).

Seu filho ficava mais com Esméria, uma negra que conhecera na fazenda e que a tratava

como uma mãe. A revolução é descoberta e ela passa uns dias presa, e, nesse período, Alberto,

por conta de dívidas no jogo, vende seu filho como escravo e depois some. Este foi talvez um dos

acontecimentos mais marcantes na vida de Kehinde, além de um fato que provoca uma

reviravolta na narrativa e, por conseguinte, na história.

Após descobrir o ocorrido, Kehinde percorre toda a cidade na tentativa de encontrar o

filho. Sem notícias, ela passa a procurá-lo em outras cidades como São Paulo, Santos, São Luis,

Rio de Janeiro. Nesta última, fica por um bom período. Faz amigos, ganha dinheiro trabalhando,

sempre contando com riqueza de detalhes todas as cidades por onde passava. Passou a acreditar

que o filho, por ser esperto e inteligente, poderia ter ido para Uidá, para onde a protagonista

decide voltar, na esperança de encontrá-lo; ao chegar, conta como ocorreu:

A viagem durou vinte e seis dias. Saí de São Salvador a vinte e sete de outubro de um mil oitocentos e quarenta e sete e desembarquei em Uidá a vinte e dois de novembro, no mesmo local de onde tinha partido trinta anos antes. As situações eram distintas, mas o medo era quase igual, medo do que ia acontecer comigo dali em diante. É claro que os motivos também eram diferentes, porque naquela volta eu seria a única responsável pelo meu destino, e na partida tudo dependia daqueles que tinham me capturado. Eu não me lembrava muito bem da África que tinha deixado, portanto, não tinha muitas expectativas em relação ao que encontraria. Ou talvez, na época, tenha pensado isso apenas para me conformar, porque não gostei nada do que vi. (GONÇALVES, 2010, p. 731).

Em solo africano, percebe que a cidade não guardava nada do que o olhar da pequena

Kehinde havia registrado. Reencontra Titilayo e os amigos de infância, os mesmos que a

ajudaram juntamente com sua avó e sua irmã, logo após o massacre. Tenta recomeçar e

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reconstruir a vida. Ela conhece um africano de uma colônia inglesa, John, com quem se casa.

Dessa união, nascem os ibêjis11 João e Maria Clara. Contudo, mesmo com os amigos, filhos e

marido, a narradora ainda sente falta do Brasil e, principalmente, do filho perdido. Chega a

contratar um detetive.

Em Uidá, Kehinde funda uma construtora de casas, Casas da Bahia, com arquitetura

brasileira e se transforma em uma grande empresária. Tenta, em solo africano, ajudar na recriação

da festa do Senhor do Bonfim, pois o número de agudás que viviam por lá era enorme. Os

agudás eram os escravos libertos no Brasil e que conseguiram retornar ao Benim. Eles levaram

parte da cultura do Brasil, e essas festas religiosas serviam para diminuir a saudade que passaram

a sentir do país de onde vinham. A realidade no Benim não era das melhores, houve muitas

guerras, destruição. Uma situação nada parecida com a anterior, como demonstra a passagem

abaixo:

Então fiquei sendo Luísa Andrade da Silva, a dona Luísa, como todos passaram a me chamar em África, os que já me conheciam e não estranharam a mudança, e os que me conheceram a partir daquele momento. Alguns também me chamavam de sinhá Luísa, a maioria dos retornados, e eu achava muita graça nisso, principalmente quando, ao tomar conhecimento, a sinhazinha passou a me chamar assim nas cartas, de brincadeira. (GONÇALVES, 2010, p. 789).

A amizade com a sinhazinha Maria Clara não é abalada com a mudança para África, ela é

preservada através de cartas. O marido da sinhazinha ajuda Luisa a investigar o paradeiro do

filho. Com o dinheiro que ganhava construindo casas e com o comércio que pratica com a ajuda

do marido, a narradora manda os ibêjis para estudarem na Europa, para que tivessem a educação

que não teve.

Depois de ter criado os filhos e os netos, sente que precisa voltar ao Brasil. Recebe uma

carta de lá, relatando o paradeiro do filho desaparecido. Já com mais de oitenta anos, entra de

novo num navio e, ao fazer a última viagem de sua vida à procura do filho, resolve escrever a sua

história com a ajuda de Geninha12, que a tratava com dedicação de filha.

Quanto a mim, já me sinto feliz por ter conseguido chegar até onde queria. E talvez, num último gesto de misericórdia, qualquer um desses deuses dos

11 Na mitologia Iorubá, Ibeji ou Ìgbejì é a divindade gêmea da vida, quem protege os gêmeos. Dá-se o nome de Taiwo ao Primeiro gêmeo gerado e o de Kehinde ao último. 12 Uma espécie de filha adotiva de Kehinde que serve de companhia, principalmente após a narradora ter ficado viúva.

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homens me permita subir ao convés para respirar os ares do Brasil e te abençoar pela última vez. (GONÇALVES, 2010, p. 947).

Na expectativa de que o filho possa encontrar os escritos e na esperança de que sua memória

permaneça viva, faz a viagem de volta relembrando sua história de vida, refletindo sobre a sua

existência, costurando suas lembranças.

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1.6 UM ROMANCE NOVO

Se há veracidade nela – e é claro que a história é verdadeira embora inventada – que cada um a reconheça em si porque todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro – existe a quem falta o delicado essencial. (LISPECTOR, 1998, p. 12)

U.D.C. é um marco da literatura nacional – é impar a forma como foi feita a pesquisa e a

escrita do romance –, mais precisamente da literatura afro-brasileira13, pois pela primeira vez uma

negra é protagonista e narradora de sua própria história. Há histórias e contos em que o negro é o

protagonista, mas não o narrador. Ao dar a voz a uma negra para que seja o narrador, a autora

passa a iluminar aqueles personagens da história do Brasil que sempre ficaram à margem da

sociedade, esquecidos.

No modernismo brasileiro, Jorge Amado ficou conhecido por contar, em seus romances,

as histórias de muitos desses excluídos. Em 1935, Jubiabá marcou história porque, pela primeira

vez na literatura brasileira, o personagem principal era um negro. Apesar de Jubiabá ser o nome

do pai de santo e guia espiritual do povo, o romance conta a trajetória de Balduíno, líder negro

grevista em lutas trabalhistas em Salvador.

Além da visão romanesca da vida popular, a obra sugere o amadurecimento do

protagonista rumo à consciência política. Os contos e as lendas do imaginário nordestino

compõem a narrativa desse romance amadiano, além das histórias de marinheiros viajantes e suas

histórias de vida. Em U.D.C., o negro é o protagonista e narrador da sua própria história de vida.

Atualmente, na literatura brasileira, há também, como afirma Schollhammer (2009), há

alguns autores contemporâneos que revelam um fascínio em torno de vozes marginais, de uma

realidade excluída, que agora exige espaço também na ficção. Ou como bem afirmam os

13 Na introdução do Dicionário de personagens afrobrasileiros (2009), Lícia de Souza alerta que a literatura afro-brasileira é uma categoria ainda polemizada e destaca que, no portal Literafro (www.letras.ufmg.br/literafro), esta literatura é considerada como “[...] um conceito em construção, processo e devir [...]. Constitui-se a partir de textos que apresentam temas, autores, linguagens, mas, sobretudo, um ponto de vista culturalmente identificado com a afrodescendência, como fim e começo. Sua presença implica redirecionamentos recepcionais e suplementos de sentido à história literária canônica”. Ainda segunda essa autora, há uma tendência da literatura afro-brasileira de se articular com a literatura da marginalidade: “O termo ‘marginal’ tem sua longa história de debates, no seio das teorias pós-modernas, e o adjetivo ‘marginal’ vem remetendo a fenômenos culturais que se desenrolam fora de um eixo centralizador e hegemônico” (SOUZA, 2009, p.14-15).

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pesquisadores Regina Dalcastgné e Paulo Thomaz, na apresentação do livro, organizado por eles,

Pelas margens: representação na narrativa brasileira contemporânea (2011), há uma

preocupação de escutar as vozes que se encontram nas margens do campo literário.

Por conta disso, dá para entender o grande sucesso do livro do Paulo Lins, Cidade de

Deus (1997). O autor coletou, durante oito anos, o material utilizado para a escrita de seu

romance, enquanto trabalhava como assessor de pesquisas antropológicas sobre a criminalidade e

as classes populares do Rio de Janeiro. Esse sucesso reforça a ideia de Anderson da Mata (1997)

de que a literatura, como prática social, ajuda a construir representações que extrapolam o texto e

o próprio campo literário.

Para o pesquisador Antonio Candido (1995. p 243):

A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante.

Zilá Bernd, em Introdução à Literatura Negra (1988, p.00), afirma que a poética afro-

brasileira:

Consiste em inscrever, nas malhas do tecido poético, o processo de transformação ideológica de sua consciência individual que atinge sua autonomia ao libertar-se do poder do discurso mistificador da dominação. Tal autonomia, entretanto, só se completará quando a poesia chegar a pensar verdadeiramente o mundo como aceitação da diferença e quando se extinguir, em definitivo, o atual processo de representação mútua, onde um é sempre o bárbaro do outro.

Como se pode ver no romance aqui analisado, o negro deixou de ser o objeto para ser o

sujeito de suas ações, o que contribuiu para que, no final do século passado, a literatura afro-

brasileira se destacasse em meio à literatura brasileira, trabalhando no sentido de suprir o que

faltava ser representado de fato. Havia uma necessidade de se criar uma identidade que até então

fora deturpada por quase todos aqueles escritores que se utilizaram da temática do negro.

A ideia de um país mestiço, de uma cultura mestiça, defendida por Oswald de Andrade,

na Semana de Arte Moderna de 1922, dá lugar ao multiculturalismo, por conta da polissemia

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cultural brasileira. Hoje, há diferentes culturas em um mesmo território e que devem ser

respeitadas e encorajadas, para que possa haver uma coexistência harmoniosa.

Eurídice Figueiredo (2010) salienta que, na literatura brasileira, não há uma produção

muito vasta que tematize a escravidão e os elementos culturais negros. No século XX, autores

como Jorge Amado e Josué Montello, João Ubaldo e Ana Maria Gonçalves exploram a memória

do período escravista e a herança do candomblé.

O gesto de Rui Barbosa, que decretou em 1890 que fossem queimados os documentos da

escravidão, respaldou a elite letrada brasileira no sentido de apagar a história da escravidão. A

lembrança desse período ficou guardada na memória, recalcada, como bem afirma a pesquisadora

Sonia Brayner (1979, p. 54):

O texto é ambivalente na medida em que a história da sociedade em que se insere está presente nele e por ele. O texto dialógico anterior, espécie de repositório e contestação de outro texto, situação que se tornará cada vez mais presente e expressiva na literatura moderna. As leituras machadianas serão fontes inesgotáveis de referências e transformações, dando ao leitor um espaço aberto em discussão interpretativa e valorativa.

A escolha de uma personagem/narradora foi importante para o romance em pauta, pois

muitas coisas, acontecimentos e situações, no livro, eram vivenciados por mulheres e, na tradição

africana, há um matriarcado muito interessante e vivo até hoje. Eis porque U.D.C. pode ser

considerado um misto de romance histórico, com metaficção historiográfica.

Sob o olhar da negra Kehinde, pode-se ter acesso a uma boa parte da história do Brasil.

Não é a história oficial. A história, no romance, aparece como pano de fundo das lembranças da

narradora para poder contar sua própria história de vida, numa espécie de livro-carta para o filho

desaparecido, como referido anteriormente. Pelo seu olhar, pode-se ter acesso à história da

escravidão no País a partir da margem, da senzala. Até então, o tema era tratado apenas do ponto

de vista da casa grande.

Ana Maria Gonçalves desenterra a memória da escravidão e a reescreve. O modo como

concebe seu romance faz com que se destaque dos demais escritores nacionais, pois tanto pode

ser considerado um romance histórico, como também uma metaficção historiográfica. Do ponto

de vista literário, a autora trilha talvez um caminho único, nunca antes percorrido.

Para Zilá Bernd (2012, p.30), Ana Maria Gonçalves inaugura com seu livro Um defeito de

cor (2010),

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[...] o gênero roman-fleuve14 ou saga15 no panorama da literatura negra ou afro-brasileira. Tambores de São Luís, de Josué Montello, e Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, constituíram-se em bem-sucedidas tentativas de dar conta da saga dos contingentes de africanos trazidos para as Américas na condição de escravos, abarcando vários séculos dessa incrível história feita de sofrimento e superação face às iniquidades do sistema escravagista. A obra de Ana Maria Gonçalves é, contudo, a primeira a narrar esses episódios do ponto de vista de quem mais sofreu nesse cruel processo: as mulheres por serem mais fracas e vítimas constantes de violação. Essa obra é, portanto, para ser festejada por seu pioneirismo e pelas qualidades literárias que fazem com que o leitor não interrompa a leitura de suas 950 páginas, lendo-as de um só fôlego!

Em seu romance, conforme salientado, a autora se apropria das histórias contidas em

documentos históricos pesquisados16. Ela se utiliza dos personagens históricos, tomando a

liberdade de preencher os vazios da história destes. Por maior que tenha sido o seu contato com

as fontes históricas primárias, documentos históricos, material pesquisado, o compromisso do

escritor de romance histórico ou metaficção historiográfica não é igual ao do historiador; bem

como a relação com a “verdade”, pois o romancista não tem compromisso absoluto com os fatos

históricos. Ele se utiliza desses fatos históricos como o ponto de partida para a sua narrativa

ficcional.

Ana Maria Gonçalves escreve à pena e tinta sobre o Brasil do passado (nunca completo),

contempla fatos históricos importantes e maneja a complexa tessitura de tempos e endereços que

o movimento da memória aciona. Seu esforço se destaca pelo trabalho com importantes questões

históricas como Independência do Brasil, tráfico de escravos, diáspora africana, estreitamente

ligados ao jogo anacrônico das memórias de Kehinde. A busca de uma mãe em completar sua

realização em encontrar o filho desaparecido. Resiliente, Kehinde resiste a todos os obstáculos e

a todo o sofrimento, nunca deixando se abater. Ela está sempre em posição de combate e desejo

de superação, nunca na posição de vítima.

14 Romance-rio, que flui como um rio, “[...] caracterizado pelo grande número de personagens e de ações que se sucedem e se imbricam” (MOISÉS, Massaud, 1982, p. 461). São exemplos de romance-rio, as obras de Tolstoi (Guerra e Paz) e, no Brasil, de Erico Veríssimo (O tempo e o vento). 15 Saga designa as narrativas épicas em prosa que, “[...] mesclando fatos verídicos, folclóricos e imaginários, relatam a história de reis ou de famílias” (MOISÉS, Massaud, 1982, p. 469). 16 A autora fez sua pesquisa através de muitos livros (acadêmicos, de ficção, de história, biografias, teses, etc.), além de documentos de arquivo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, do Arquivo Público do Estado da Bahia, do Arquivo Histórico do Município de Salvador, muitos jornais de época da Bahia, de São Paulo e do Rio de Janeiro, sites, entrevistas, conversas, cartas, textos de anúncios em jornais, textos de ficção, como contos e romances, testamentos e processos judiciários.

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Sua saga percorre quase um século entre Brasil e África. A temática da diferença com

relação à cor da pele e aos questionamentos sobre essa diferença são bastante recorrentes em toda

a narrativa. Esses ecos ressoam para além da história de vida narrada por Kehinde, e para além da

história do Brasil que era conhecida e, a partir do livro, passou-se a conhecer. Ana Maria não

escreve um tratado ou um libelo sobre a escravidão, apenas conta uma história. “Parafraseando

Antonio Candido, que afirma que precisamos estudar a literatura brasileira, pois do contrário

ninguém o fará, as minorias, da mesma forma, precisam dar voz à sua experiência, sob pena de

perder-se parte importante da experiência humana” ( SCHWANTES, 2011, p.171).

Cíntia Schwantes (2011), em seu ensaio A literatura negra no Brasil (2011, p.168-177),

aborda a pouca visibilidade do escritor negro no Brasil, lembrando que aqui a literatura negra é

aquela produzida por autores engajados. Com um número expressivo, esses autores têm pouca

visibilidade e receptividade nas editoras brasileiras. Para essa autora, a literatura negra traz

marcas de pertencimento, não a qualquer mítica identidade negra, mas a uma experiência que é

própria. Mas é uma discussão que ainda não ganhou força, pois aqueles que denunciam essa

situação, continuam também à margem dos meios de produção. Agora, com a Internet, esse

processo começa (ou pode) a se reverter.

Segundo o filosofo francês Michel Foucault (2005), o domínio do discurso é poder, mas

esse enfrentamento dos discursos dominantes significa o surgimento de novos poderes. Ao dar a

voz a uma ex-escrava, a autora faz emergir o discurso subversivo, questionando esse poder. Sua

trajetória é a trajetória do negro invisível no Brasil. E agora, com o poder de narrar sua história,

Kehinde passa a ter a visibilidade que quase nenhum outro negro conseguiu.

Para tentar entender, a partir dos escritos do suposto filho perdido da

personagem/narradora, como ele mantinha a imagem da mãe, foi preciso recorrer aos escritos

freudianos. É a partir das informações contidas na carta e no poema desse filho, presentes neste

capítulo, que Ana Maria molda sua narradora. A outra possibilidade é que Kehinde/Luisa Mahin

pode muito bem ser uma lenda, pois os escravos tinham a necessidade de acreditar em heróis que

viessem salvá-los da condição desumana em que viviam.

A resiliência de Kehinde é uma característica bem marcante na personagem. Ela não

pensa em desistir em momento algum da narrativa, nem diante dos piores obstáculos. Sempre

enfrentava todos os obstáculos e os vencia, saindo sempre fortalecida ou transformada por

experiências de adversidade.

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Para Esteves (2010), os novos romances históricos brasileiros apresentam uma polifonia

de estilos e modalidades, baseada, especialmente, na fragmentação dos signos de identidade

nacionais, realizada a partir da desconstrução dos valores tradicionais.

A bibliografia, presente no final do romance estudado, comprova a pesquisa feita pela

autora em romances históricos, documentos oficiais, documentos históricos, literatura, e justifica

o dialogismo presente na narrativa, bem como as vozes de outros autores. A autora confessa, em

uma de suas entrevistas, que muitos personagens presentes foram tirados de documentos oficiais

de escravos que realmente existiram.

No próximo capítulo, será feita uma leitura do romance estudado sob a luz desses e de

outros conceitos vistos nesse primeiro capítulo. Diante da grandiosidade do romance, não cabe

aqui tentar esgotar as possibilidades dessas leituras.

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2 NAS ENTRELINHAS DE UM DEFEITO DE COR

Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só: meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias. E nem todas posso contar.

(LISPECTOR, 1975)17

2.1 A MEMÓRIA COMO ESTRATÉGIA DA NARRATIVA

Quando não souberes para onde ir, olha para trás e sabe pelo menos de onde vens. (Provérbio africano)

Ao dar a voz a Kehinde, Ana Maria Gonçalves, em U.D.C., traz à tona o primeiro indício

do que pretende na elaboração desse discurso, ou seja, a visão histórica deslocada a respeito da

escravidão brasileira, aproximando-se da metaficção historiográfica de Hutcheon. Kehinde, a ex-

escrava, narra seu testemunho histórico a partir da senzala, não mais da casa grande.

O cronotopo das senzalas é muito importante e ajuda a entender os deslocamentos da

narradora enquanto escrava e moradora da fazenda. São relatos construídos a partir de um

testemunho marginal dos acontecimentos. Sua experiência histórica se desenvolve não no seio da

elite, mas à margem dela. A autora preenche os vazios deixados pelo discurso da história oficial,

que também foram analisados, metaficcionalizando sua própria versão da história, como pode ser

percebido no prólogo do romance em questão:

O texto original também é bastante corrido, escrito por quem desejava acompanhar a velocidade do pensamento, sem pontuação e quebra de linhas ou parágrafos. Para facilitar a leitura, tomei a liberdade de pontuá-lo, dividi-lo em capítulos e, dentro de cada capítulo, em assuntos. Espero que Kehinde aprove o meu trabalho e que eu não tenha inventado nada fora de propósito. (GONÇALVES, 2010, p. 17).

Ao agir assim, a autora se aproxima do discurso de Hutcheon, segundo o qual, tanto a

História como a ficção são igualmente elaborações humanas. 17 GOMES, Renato Cordeiro (org.). Seleta de Clarice Lispector. 1975.p.59

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A grande característica da metaficção é a de se apropriar de personagens e/ou

acontecimentos históricos, problematizando fatos concebidos como “verdadeiros”. Para a crítica

argentina Beatriz Sarlo (2007, p.9):

O passado é sempre conflituoso. A ele se referem, em concorrência, a memória e a história, porque nem sempre a história consegue acreditar na memória, e a memória desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida, de justiça, de subjetividade). Pensar que poderia existir um entendimento fácil entre essas perspectivas sobre o passado é um desejo ou um lugar-comum.

Ao longo da sua narrativa, Kehinde presencia, vivencia e relata vários acontecimentos

históricos. Relata como eram capturados os escravos na África, a dureza dos navios negreiros,

como era a chegada à Cidade do Salvador.

Por conta do desgaste físico, os negros passavam uma temporada na Ilha dos Frades, na

Baía de Todos-os-Santos. Ela narra o sofrimento do escravo, sua luta pela carta de alforria, a

criação dos primeiros terreiros de Candomblé, a resiliência, o banzo18 sofrido pelos negros e que

pode ser associado à saudade, à aculturação, ao desejo de retorno à África.

Ana Maria Gonçalves reconstitui a história de vida da personagem Kehinde. Para isso,

preenche as lacunas deixadas pelo suposto filho perdido da narradora e do imaginário popular dos

negros da Bahia. Kehinde pode ser Luísa Mahin ou Luísa Gama, a suposta mãe do poeta Luis

Gama. Numa via de mão dupla, as memórias de Kehinde conduzem a escrita, que tece as

memórias de sua vida.

Segundo Bakhtin (2010), as categorias cronotópicas colaboram para a formação do

romance por apresentarem personagens inacabadas em um processo de evolução que nunca se

concluirá. Assim, a história é narrada da perspectiva de Kehinde – como menina, adulta, velha.

São cronotopos distintos, mas é no cronotopo que a personagem ganha vida. Esses cronotopos

são essenciais, pois a linguagem de Kehinde vai amadurecendo ao longo de sua narrativa, de

acordo com suas idades.

A narrativa em primeira pessoa privilegia a temporalidade pulsante do itinerário da

memória de Kehinde, marcada por experiências talvez constituídas no momento mesmo do ato de

rememoração incitado pela escrita endereçada. A certa altura da trama, torna-se claro para o leitor

18 Banzo é um termo africano para denominar a nostalgia que os escravos tinham por estarem distantes de sua terra, de seu povo, de sua cultura. A palavra significa estar triste, pensativo, atônito. Muitos escravos, durante o período da escravidão, entraram em depressão por conta do banzo chegando a cometer o suicídio como um personagem do livro.

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que o texto é direcionado a Omotunde (GONÇALVES, 2010, p.718), o filho desaparecido, numa

espécie de carta-diário, como pode ser comprovado no trecho abaixo:

Então, como já deve ter percebido de quem estamos falando, a você foi dado o nome de Omotunde Adeleke Danbiran, sendo que Omotunde significa "a criança voltou", Adeleke quer dizer que a criança será "mais poderosa que os inimigos", e Danbiran, assim como o apelido do Banjokô, é uma homenagem à minha avó e aos seus voduns, principalmente Dan. [...] Apesar de o Babalaô Gumfiditimi ter dito que os filhos substitutos voltam com mais facilidade para o Orum, eu estava muito tranqüila em relação a você, muito mais do que em relação ao seu irmão. Primeiro, porque a cerimônia estava sendo realizada dentro do tempo, e depois porque eu sentia que você era especial, como depois se confirmou no jogo do opelê. O Ifá disse que você viveria o suficiente para ser um grande homem e que talvez a minha missão mais importante fosse guiar e instruir você no caminho do bem e da justiça. Disse também que via longos caminhos se abrindo à sua frente, para muito longe, “que a sua vida nunca seria das mais fáceis, apesar de muito produtiva, e que você jamais ganharia muito dinheiro”. Você seria admirado e respeitado, um dos primeiros entre os seus, pelos quais lutaria mais do que por você mesmo. Não imagina o orgulho que senti de você, ainda tão pequeno nos meus braços e com um destino tão grandioso. (GONÇALVES, 2010, p. 403-404).

Na trama narrada, destacam-se a escrita e a memória, além da sua identidade

multifacetada que ultrapassa as dicotomias “escravidão x liberdade”, “vítima x opressor”. A

narradora não levanta bandeira alguma, apenas narra sua história de vida a partir do seu ponto de

vista. Mesmo participando da Revolta dos Malês, Kehinde se ateve apenas a narrar a história de

sua convivência com os muçurumins19, assim como narra sua história de vida, seus caminhos

percorridos.

Se, no início da trama, a narradora foi escravizada e depois conseguiu sua alforria, quando

retorna à África, trabalha com o tráfico de armas, diretamente ligado ao tráfico negreiro, para

poder se sustentar. “Às vezes eu ficava um pouco constrangida por me relacionar com

mercadores de escravos, mas logo esquecia, já que aquele não era problema meu”

(GONÇALVES, 2010, p.771). São exemplos de resiliência e resistência, Kehinde inventa

mecanismos para poder se livrar das dificuldades que a vida lhe apresenta.

Ao apresentar a vida e as possibilidades de uma escrava instruída, Ana Maria Gonçalves

busca fugir do modelo “pobre escravo da senzala” e apresenta uma heroína que aproveita todas as

brechas para aprender e conquistar sua liberdade. Assim, Kehinde chega ao Brasil e dá um jeito 19 Muçurumin era o nome dado aos negros malês convertidos ao Islamismo. O termo “malê” é de origem africana (ioruba) e significa “o muçulmano”.

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de não ser batizada para poder manter sua identidade, mas ao retornar à África batiza seus filhos

para lhes garantir status superior de “brasileiros”. Essa ambiguidade da personagem que lhe dá

força diante das diversidades.

Essas duplicidades são desmontadas a cada página narrada. E é à medida que as memórias

de Kehinde são retomadas que o leitor vai sendo apresentado à sua história, cuja trama nos chega

através de ritmos diferenciados, por conta também das mudanças das idades da narradora, como

já fora mencionado anteriormente.

A escolha desse discurso memorialista é decisiva na construção da personagem narradora.

A voz da narradora tem a experiência de sua vivência e a precisão de quem vasculha o baú da

memória e resgata o passado com um objetivo definido, coerente com as ações e decisões que

toma ao longo de toda a sua vida, pontuada por encontros, desencontros e serendipidades.

No posfácio do romance São Bernardo, de Graciliano Ramos (1981), intitulado Mundo à

revelia, o teórico João Luiz Lafetá (1981) afirma que há uma duplicidade temporal – o tempo do

enunciado e o tempo da enunciação. No caso do romance em questão, o tempo do enunciado

corresponde aos eventos que ocorreram na vida de Kehinde, e o tempo da enunciação

corresponde ao momento em que ela relembra da sua história, narra, escreve e dita, para Geninha,

suas memórias. Kehinde já quase cega, no fim da vida, resolve contar sua história para o filho.

Ainda segundo Lafetá (1981, p.213), o romance é narrado em primeira pessoa, por um “eu

protagonista” que, distanciado no tempo, abrange com o olhar toda a sua vida e procura

recapitulá-la, contando-a para si e para nós, leitores. Para tanto, inventa e reinventa várias

maneiras de revelar sua própria forma de ser, expressando sua frustração e dor causadas pelos

obstáculos constantes em sua vida, bem como suas manhas ao não se deixar vencer por nada.

O escritor Fausto Colombo, em sua obra Os arquivos imperfeitos (1991), traz os conceitos

aristotélicos de mnéme e anámnesis da memória, que consistem em guardar ou conservar o

passado e recuperar ou acessar o passado, respectivamente. Enquanto mnéme é involuntária, a

lembrança que surge espontaneamente, a anámnesis é uma busca consciente. Segundo Colombo

(1991, p.114), a “[...] memória não mais define o indivíduo, mas dele projeta uma simples ficção

na tela da consciência", onde reside a "[...] desconfiança acerca da capacidade de recuperação do

passado".

A memória de Kehinde oscila entre esses dois tipos citados por Colombo (1991). Em

Gonçalves (2010), as lembranças de sua história de vida surgem espontaneamente, ora a

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narradora se esforça para poder escavar o seu baú da memória, como pode ser observado nos

trechos abaixo:

O que aconteceu antes disso não tem importância, pois a vida corria paralela ao destino. (GONÇALVES, 2010, p. 19).

Lembro-me de que, na época, escrevi tudo para não esquecer, pois não estava em condições de confiar na memória ou no sens o de observação. E ainda hoje de nada me recordo o que deve ser uma vingança da memória por eu não ter deixado que ela fizesse o trabalho sozinha. Daqueles dias posteriores à morte de Banjokô, lembro-me apenas de fatos, não dos detalhes, o que me faz, por exemplo, recordar que seu pai voltou no dia seguinte à nossa visita ao Baba Ogumfiditimi. (GONÇALVES, 2010, p. 471).

Não me lembro o que aconteceu primeiro, se foi a coroação do imperador D. Pedro II ou a festa da Kianda, mas logo depois desses dois acontecimentos, a minha vida sofreu uma grande mudança. (GONÇALVES, 2010, p. 471).

Como se pode perceber, é a memória da narradora o fio condutor. Sua narração muitas

vezes utiliza um tempo não linear, distorcido. Kehinde resgata suas memórias, já quase cega e

idosa, trazendo-as para o presente através da escrita.

Segundo Anatol Rosenfeld (1968, p.28), o homem é o único ente que não se situa somente

“no” tempo, mas que “é” essencialmente tempo, e nisto consiste a dose de elementos humanos

que um personagem de ficção possui. Assim, podemos dizer que Kehinde é passado, presente e

futuro.

A memória de Kehinde conduz também ao alargamento temporal da narrativa do romance

por conta dos recomeços, dos novos lugares, novos amores, filhos, netos que demarcam gerações

e promovem a evocação nostálgica rica em detalhes. Essa errância é refletida no texto – com a

presença de muitos cronotopos, polifonias, dialogismos, intertextualidades que serão analisadas

no próximo capítulo –, bem como o jogo com o tempo dos acontecimentos, cuja narração não

chega a ser concluída: talvez pela pressa em concluir sua história, ou por medo de seu filho

desaparecido não saber da sua história de vida, nem dos seus antepassados, ou talvez pela

velocidade com que as suas memórias vêm à tona.

Há uma mistura entre Kehinde narradora e Kehinde personagem. Em boa parte do

romance, elas se misturam e se mesclam, como pode ser observado nos trechos a seguir:

Na manhã seguinte, junto com as compras que ela tinha mandado fazer em São Salvador, chegou um preto do escritório que o sinhô tinha por lá, que a Sinhá nos apresentou dizendo que ficaria conosco durante a visita do padre, porque

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precisava mostrar que a fazenda também tinha escravos de qualidade e não apenas os sem inteligência como nós, e que ele leria as receitas e todas as outras instruções que ela lhe daria por escrito. (GONÇALVES, 2010, p. 91). Fui feliz em Lagos. De um jeito diferente do que eu imaginava, mas de uma felicidade simples e sincera. Eu me penitenciava um pouco por não sentir tanta falta do John, e acredito que até por isso, para poder dizer que eu respeitava minha condição de viúva, nunca mais tive homem. O padre Clement dizia que se privar das vontades era uma grande virtude, e eu queria ser uma mulher virtuosa, apesar de ainda ter sido bastante cortejada, como nunca achei que uma mulher da minha idade poderia ser. (GONÇALVES, 2010, p. 887).

Ficam evidenciados dois tipos de memórias. A memória histórica, que relembra de fatos

históricos até então esquecidos propositalmente pela historiografia oficial, como a condição do

negro na sociedade, e a memória familiar.

Kehinde narra a sua história de vida, a sua saga. Ela relembra dos ensinamentos da

sabedoria que aprendera com seus antepassados. Ambas as memórias, individual e coletiva, são

suscitadas pela narradora.

2.2 A CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS MÃE E FILHO NA TRAMA DE ANA MARIA

GONÇALVES

Existir é tão completamente fora do comum que se a consciência de existir demorasse mais de alguns segundos, nós enlouqueceríamos. A solução para esse absurdo que se chama “eu existo”, a solução é amar outro ser que, este, nós compreendemos que exista. (LISPECTOR, 1982, p.169)

No romance estudado, como já fora dito anteriormente, a autora simula ter encontrado os

escritos de Kehinde e por conta do estado em que se encontrava, ela tratou de preencher as

lacunas das partes ilegíveis e com ausência de páginas. Em seguida, dando continuidade à sua

criação, a autora dá voz a Kehinde. Em seu ensaio “Escritores criativos e devaneio” (1908), o

pensador alemão Sigmund Freud lança as bases, já esboçadas por Aristóteles na Poética (1993),

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de que há uma continuidade genética entre o brincar da criança e a criação artística. No prefácio

de U.D.C., é dito:

Mesmo porque esta pode não ser uma simples história, pode não ser a história de uma anônima, mas sim de uma escrava muito especial, alguém de cuja existência não se tem confirmação, pelo menos até o momento em que escrevo esta introdução. Especula-se que ela pode ser apenas uma lenda, inventada pela necessidade que os escravos tinham de acreditar em heróis, ou, no caso, em heroínas, que apareciam para salvá-los da condição desumana em que viviam. Ou então uma lenda inventada por um filho que tinha lembranças da mãe apenas até os sete anos, idade em que pais e mães são grandes heróis para seus filhos. Ainda mais quando observados por mentes espertas e criativas, como era o caso deste filho do qual estou falando, que nasceu livre, foi vendido ilegalmente como escravo, e mais tarde se tornou um dos principais poetas românticos brasileiros, um dos primeiros maçons e um dos mais notáveis defensores dos escravos e da abolição da escravatura. (GONÇALVES, 2010, p. 16).

Em sua pesquisa a autora não encontra muitos vestígios da existência real da sua

personagem. A única referência existente é uma carta autobiográfica escrita por Luís Gama

escreveu ao amigo Lúcio de Mendonça, que aparentemente parece ser o primeiro e único registro

com valor documental em que o nome Luiza Mahin aparece. O poeta descreve a mãe com o olhar

de um filho saudoso e a quem há décadas não via, e, em meio a suas palavras, ele parece buscar

na memória da infância as lembranças perdidas:

São Paulo, 25 de julho de 1880.

Meu caro Lúcio,

Recebi o teu cartão com a data de 28 do pretérito.

Não me posso negar ao teu pedido [...] aí tens os apontamentos que me pedes, e que eu os trouxe de memória.

Nasci na cidade de São Salvador, capital da província da Bahia, em um sobrado da rua do Bângala, formando ângulo interno, em a quebradalado direito de quem parte do adro da Palma, na Freguesia de Sant’Ana, a 21 de junho de 1830, pelas 7 horas da manhã, e fui batizado, 8 anos depois, na igreja matriz do Sacramento, da cidade de Itaparica.

Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa da Mina (Nagô de Nação) de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa.

Dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito.

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Era dotada de atividade. Em 1837, depois da Revolução do dr. Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, e 1856, em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar.

Em 1862, soube, por uns pretos minas, que conheciam-na e que deram-me sinais certos que ela, acompanhada com malungos desordeiros, em uma “casa de dar fortuna”, em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela quanto seus companheiros desapareceram. Era opinião dos meus informantes que estes “amotinados” fossem mandados para fora pelo governo, que, nesse tempo, tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores.

Nada mais pude alcançar a respeito dela. (GAMA apud MORAES, 2005, p.00).

Esse é um trecho polêmico na vida do poeta, pois há indícios de que ele a tenha

inventado. Afinal, ele foi vendido aos 7 anos pelo pai para poder saldar a dívida do jogo, sem que

a mãe soubesse. A imagem da mãe que guarda na memória é dessa época, decisiva na vida de

uma criança, pois é quando os pais são heróis e ainda não surgiram os primeiros conflitos que só

costumam aparecer na adolescência. Como foi o pai que o vendera, a imagem da mãe

permanecera intacta. Ou, pelo menos, a imagem criada dela. Segundo Freud ([1909]1976), a

supervalorização dos pais pela criança sobrevive também nos sonhos dos adultos normais.

À carta autobiográfica, foi anexado o poema “Minha Mãe”, escrito em 1861. Ainda com

um tom saudosista, o poeta descreve em seu poema uma Luiza Mahin que, em alguns momentos,

não se assemelha à imagem descrita em sua carta.

Era mui bela e formosa, Era a mais linda pretinha, Da adusta Líbia rainha,

E no Brasil pobre escrava! Oh, que saudades que eu tenho Dos seus mimosos carinhos,

Quando c’os tenros filhinhos – Ela sorrindo brincava.

Éramos dois — seus cuidados, Sonhos de sua alma bela; Ela a palmeira singela, Na fulva areia nascida.

Nos roliços braços de ébano. De amor o fruto apertava,

E à nossa boca juntava Um beijo seu, que era a vida.

[...] Os olhos negros, altivos,

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Dois astros eram luzentes; Eram estrelas cadentes

Por corpo humano sustidas. Foram espelhos brilhantes Da nossa vida primeira, Foram a luz derradeira

Das nossas crenças perdidas. [...]

Tinha o coração de santa, Era seu peito de Arcanjo,

Mais pura n’alma que um Anjo, Aos pés de seu Criador.

Se junto à cruz penitente, A Deus orava contrita,

Tinha uma prece infinita Como o dobrar do sineiro, As lágrimas que brotavam,

Eram pérolas sentidas, Dos lindos olhos vertidas

Na terra do cativeiro. (GAMA, 2012).

A partir dessas informações, Ana Maria Gonçalves molda sua personagem ficcional. É o

filho famoso que faz de Kehinde uma batalhadora e, consequentemente, uma heroína. Não se

pode comprovar a existência dessa personagem. A autora confessa que, no romance, a

personagem foi construída em torno da vida de outras mulheres. Historicamente falando, não há

registro algum que comprove sua participação na Revolta dos Malês, mas, no imaginário coletivo

ela existiu. Não se sabe ao certo quem criou o mito de Luiza Mahin, se foi inventada por Luís

Gama que a aplicou ao contexto em que ela está hoje, ou se já havia alguma narrativa sobre ela, e

ele se apropriou disso. Segundo Figueiredo (2011, p. 278),

Diante das histórias já contadas por escritores antes dela e que são retomadas numa trama intertextual, a autora coloca o leitor diante de um palimpsesto cujas diferentes camadas ele é levado a decifrar. O palimpsesto, como o bloco lógico de Freud, conserva os vestígios de escritas do passado, semi-apagadas, em diferentes traços que se embaralham.

O fato é que Luiza Mahin é um ícone fundamental para a história de Luís Gama e dos

negros brasileiros. Segundo Gonçalves (2010, p.16), especula-se que ela pode ser apenas uma

lenda, inventada pela necessidade que os escravos tinham de acreditar em heróis, ou, no caso, em

heroínas, que apareciam para salvá-los da condição desumana em que viviam.

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Podemos considerar que a existência de um mito negro fulgurando em meio aos inúmeros

mitos europeus é primordial, pois, a partir de então, o mito passaria a ser nacional, mais humano,

resiliente e mais próximo da realidade cotidiana em que viviam.

Em “Escritores criativos e devaneios” ([1908]1976), Freud afirma que, ao brincar, toda

criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio. Isso pode ser

comprovado no trecho abaixo:

Na segunda carta, ele dava muitos detalhes sobre você, contando tudo sobre a sua vida, que você era amanuense e que também advogava em favor dos escravos, conseguindo libertar muitos deles. Que você estava casado, tinha filhos e era maçom, que escrevia poesias e era muito respeitado por publicar artigos belíssimos e cheios de inteligência nos jornais mais importantes da cidade, e dava inclusive a sua morada. (GONÇALVES, 2010, p. 946).

No romance examinado, a mãe constitui, como diria Freud, a autoridade única e a fonte de

todos os conhecimentos e sentimentos. Para Souza (2007), trata-se do reencontro do espectro da

mãe, de cujo convívio amoroso foi prematuramente afastada. Inventar o passado e resgatá-lo pela

simulação da imagem materna instauram o espaço imaginário em que se cruzam ficção e

realidade, escrita e vida.

Ambos, mãe e filho, constroem a idealização de suas respectivas mães e famílias nesse

período da infância. Eles usam o mesmo gênero literário para expressar essa idealização:

enquanto o filho escreve uma carta autobiográfica endereçada ao amigo e, a pedido deste,

anexando um poema dedicado à mãe, ela também o faz, ora escrita por ela mesma, ora ditada, por

conta da idade avançada e de não poder enxergar direito, uma carta endereçada ao filho perdido

para que tome conhecimento de história de vida de sua mãe e, consequentemente, de suas raízes.

Em “Romances Familiares” ([1909]1976), Freud relata a forma como a criança inventa

outra família, numa tentativa de se separar da autoridade de seus pais. Através de suas fantasias, a

criança ficciona, numa versão imaginária, sua nova família. Ainda segundo o autor alemão, o

desejo mais intenso e mais importante da criança nos primeiros anos de vida é igualar-se aos pais.

Ao escrever, ambos recorrem à memória e selecionam fatos importantes. U.D.C. faz um

cronotopo estético com o romance familiar, retratado por Freud, que é uma fantasia do

inconsciente e faz parte do mundo interno da criança, pois a fantasia emerge de coisas, fatos e

histórias vivenciados ou meramente ouvidos.

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A resiliência de Kehinde é possível graças a alguns fatores. Em primeiro lugar, é bom

lembrar que ela é mostrada, no início da narração, como uma criança muito feliz e muito

orgulhosa da beleza de sua mãe, ou seja, durante seus primeiros anos de vida – que, segundo

Freud, têm uma influência decisiva em nossa vida –, ela foi amada pela mãe e desenvolveu uma

autoimagem positiva.

Vale lembrar que Kehinde foi capturada, segundo seus relatos, aos 7 anos de idade,

mesma época em que o filho fora vendido como escravo.

Kehinde, ao longo do romance, vai-se lembrando de como era feliz em sua terra com a

sua família. Em segundo lugar, outras mulheres a amaram muito, colocando-se como mães

substitutas para ela: sua avó e, após sua chegada a Itaparica, Esméria, a cozinheira da casa grande

que a acompanha até morrer.

Como o romance se inicia pouco antes da morte do irmão e da mãe, não é narrado nada

anterior a esse período, como bem salienta a narradora: “O que aconteceu antes disso não tem

importância, pois a vida corria paralela ao destino” (GONÇALVES, 2010, p. 19). Apenas os

momentos felizes dessa época são narrados. Por isso, a mãe aparece imaculada, como uma

heroína. Aqui, vale a fórmula de Freud que, em seu artigo “Romances familiares” (1908) a firma

que mater certisima parter sempre incerstus est. Em ambos os casos, os respectivos pais nem são

mencionados.

Em seu texto “A traição autobiográfica”, Eneida Maria de Souza (2007) afirma que a

escrita literária tem a liberdade de engendrar autobiografias falsas, instaurar genealogias

bastardas e permitir o livre trânsito entre presente, passado e futuro. Ainda para Eneida Souza, é

grande façanha do escritor em sua via/obra autobiográfica a invenção da família, assemelhando-

se com o “ Romance Familiar” descrito por Freud e citado anteriormente.

Kehinde narra sua trajetória existencial endereçada numa espécie de carta ao filho. Ao

final da vida, ela se culpa por não ter se culpado tanto, por ter dado prosseguimento a sua vida. E,

talvez por isso, tenha resolvido contar sua história para o filho. Quem sabe para amenizar essa

culpa, ou como um pedido de desculpas.

Assim como o filho, ela consegue reconstruir mais uma vez sua vida, agora em sua terra

natal, Uidá, África. Casa-se novamente e tem mais filhos. Mas nunca consegue se livrar do peso

da culpa da perda daquele filho, o que a motiva a voltar ao Brasil para, talvez, ter seu derradeiro

encontro com ele.

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Como referido anteriormente, Ana Maria Gonçalves constrói sua narrativa dialogando

com a história, a antropologia e outros romances da literatura, históricos ou não. Flerta com a

fronteira entre o real e o imaginário da memória de Kehinde, ou Luísa Andrade da Silva, a Luísa

Mahin, heroína da revolta dos Malês. Mas adverte. “Acredito que poderia assinar este livro como

sendo uma história minha, toda inventada...” (GONÇALVES, 2010, p. 16).

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2.3 AS VOZES BAKHTINIANAS: ENTRE DIALOGISMOS, POLIFONIAS E CRONOTOPOS

O mais difícil, mesmo, é a arte de desler.

(QUINTANA, 2012)

Bakhtin (2006) norteou seus estudos para o discurso no romance, devido a seu caráter

dialógico e polifônico e por encontrar, nesse gênero, vozes sociais diversas. Para ele, como já

fora mencionado no capítulo anterior, dialogismo é toda modalidade da linguagem, quando se

verificam as relações dialógicas no romance, podendo ocorrer tanto na escrita quanto na leitura.

O texto deixou de ser visto isoladamente, agora é correlacionado com outros discursos

similares e/ou próximos. O dialogismo se dá a partir da noção de recepção/compreensão de uma

enunciação que constitui um território comum entre o emissor e o receptor.

O cronotopo e o dialogismo estão na base do diálogo entre literatura e história. No

romance estudado, o tempo é um elemento muito importante, é ele que move a narrativa de

Kehinde, bem como as transformações que vividas em um determinado tempo articulando suas

experiências em um dado espaço: ora menina, em sua terra natal, ora já escravizada em uma terra

distante, ora mulher livre em outra cidade, ora já velha e cega quando do seu retorno à África.

Pode-se dizer que, pela concepção de Bakhtin (2010), as categorias cronotrópicas

colaboram para a formação do romance por apresentarem personagens inacabadas em um

processo de evolução que nunca se concluirá. É no cronotopo que os personagens ganham vida.

Segundo Diana Luz Pessoa de Barros (2011), os textos são dialógicos porque resultam do

embate de muitas vozes sociais. Podem, no entanto, produzir efeitos de polifonia, quando essas

vozes ou algumas delas deixam-se escutar, ou de monofonia, quando o diálogo é mascarado e

uma voz, apenas, faz-se ouvir. É por meio dessas vozes sociais que é possível refletir sobre o

processo de formação do homem como sujeito inacabado que está sempre em contínua formação.

Em seu livro, Introdução ao pensamento de Bakhtin (2006), o linguista brasileiro José

Luiz Fiorin afirma que o romance é considerado a pura expressão do dialogismo, por encerrar em

seu contexto a diversidade, isto é, por incorporar todos os outros gêneros, mesclando-os,

alternando estilos, entrelaçando-os, não respeitando os limites impostos pelo sistema literário.

Ainda segundo Fiorin, Bakhtin estudou a natureza e evolução do romance, a partir de dois

parâmetros: a percepção da linguagem e a representação do espaço e do tempo, cronotopo.

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Enquanto o dialogismo é o princípio constitutivo da linguagem, a polifonia se caracteriza

pelas vozes polêmicas em um discurso. Há uma presença de outros textos dentro de um texto,

pois o autor se utiliza de outros textos prévios que lhe serviram de inspiração e/ou influência.

Esses são traços característicos dos romances históricos contemporâneos.

Machado (2010) afirma que o cronotopo se tornou a formulação do dialogismo para se

compreender a representação do tempo em diferentes perspectivas, de modo a apreender como se

manifestam as simultaneidades, como o tempo se constitui no espaço, como se desenvolve, como

se transforma e, ao fazê-lo, movimenta todo o sistema cultural.

U.D.C. é o resultado de uma longa pesquisa da autora Ana Maria Gonçalves para poder

reconstituir a história de vida de Kehinde, em um tom memorialista. O romance possui uma

bibliografia – além das obras históricas e antropológicas, contém romances que inspiraram a sua

construção.

A autora inicia seu diálogo já nas primeiras linhas do prólogo, quando fala de

serendipidades, prossegue falando sobre o livro de Jorge Amado e explica como foi seu processo

de pesquisa, escrita e criação. Como já fora citado, U.D.C. é o resultado de uma longa pesquisa

da autora para poder reconstituir a história de vida de Kehinde, em um tom memorialista.

Em seu prólogo, Ana Maria Gonçalves simula ter encontrado em Itaparica, terra

mitificada por João Ubaldo Ribeiro, o manuscrito com o diário de Kehinde. Esse manuscrito teria

ficado guardado na Igreja do Sacramento, na Vila de Itaparica, e serviu como uma espécie de

arquivo que trouxe as lembranças, as memórias, os vestígios, as histórias da época da escravidão,

bem como parte da história de Kehinde. Ainda no prólogo, a autora afirma que, por conta do

estado desse manuscrito com folhas manchadas ou faltando, irá preencher os vazios e lacunas da

história. Eis suas palavras:

Acredito que poderia assinar este livro como sendo uma história minha, toda inventada – embora algumas partes sejam mesmo, as que estavam ilegíveis ou nas folhas perdidas... [...]. Mesmo porque esta pode não ser uma simples história, pode não ser a história de uma anônima, mas sim de uma escrava muito especial, alguém de cuja existência não se tem confirmação, pelo menos até o momento em que escrevo esta introdução. Especula-se que ela pode ser apenas uma lenda, inventada pela necessidade que os escravos tinham de acreditar em heróis, ou, no caso, em heroínas, que apareciam para salvá-los da condição desumana em que viviam. (GONÇALVES, 2010, p. 16).

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Essa prática era bastante comum no século XVIII, nas narrativas históricas literárias. Era

comum encontrar um autor fingindo ser editor e amigo de alguém que teria deixado algum

manuscrito. Ao lançar mão dessa prática, a autora aproxima seu romance a dois outros. O

primeiro deles é Don Quixote de la Mancha (1605), de Miguel de Cervantes, que afirma que o

autor de seu texto é Cide Hamere Benegeli, historiador árabe. O segundo deles, na literatura

brasileira contemporânea, o escritor Silviano Santiago também utilizou essa prática, ao fingir que

seu livro Em liberdade (1981) teria sido escrito por Graciliano Ramos como uma continuação de

Memórias do Cárcere (1953).

O diálogo com o escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, continua – agora não mais

relacionado à sua terra – mas dialogando com o romance Viva o povo brasileiro, cuja

personagem Maria da Fé se assemelha a Kehinde. Ambas são resilientes e assistiram ao estupro e

à morte da própria mãe. As semelhanças de ambas terminam aqui. Enquanto Kehinde luta para

fazer parte da sociedade que a escravizou e a tratava como inumana, Maria da Fé rejeita esta

sociedade que permitiu que essas coisas acontecessem. Ao retornar à África, Kehinde passa a

usar o nome que recebera no batismo aqui no Brasil e não se importou em ganhar dinheiro,

juntamente com o seu último marido, com o tráfico de armas que financiava a escravidão.

Amleto, que ficara na casa-pequena com Teolina, tinha chamado Almério e dito a ele que fizesse os pretos ter bom comportamento, que fosse severo e não perdoasse a menor falta, pois sua responsabilidade como homem de confiança era maior que a do senhor daquelas propriedades. [...] E, deitado em sua cama de cabeceira alta em companhia de Teolina, uma touca de filó retesada no cocuruto para alisar os cabelos, os olhos muito abertos, o camisolão abotoado até o pescoço, os dentes cerrados com força e as palmas da mão empurrando as coxas, muito diferente. “Um dia, dono serei”, pensou, sabendo que teria muito trabalho para dormir, e não só por causa do estrondo longínquo dos tambores, que viria pelo meio das árvores daí a pouco. (RIBEIRO, 1984, p. 149-150). Ele vivia dizendo para quem quisesse ouvir que era filho de mãe portuguesa e pai inglês, mas a mãe era uma pobre coitada, uma preta forra que ele fazia de tudo para manter escondida. Dizia-se órfão e tratava muito mal a mulher, quando, morta de saudade, ela resolvia aparecer para dar uma olhada no filho e nos netos. Para disfarçar, ele dizia que era uma velha ama-de-leite por quem tinha muita consideração, mas todos na casa sabiam a verdade. Por sorte, ele tinha nascido mulato claro e inteligente, e usava de mil artimanhas para parecer mais claro ainda. Dormia com o cabelo untado de babosa e preso com touca, e toda manhã passava horas no toucador, disfarçando as origens africanas. (GONÇALVES, 2010, p. 338-339).

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Como pode ser comprovado nos dois trechos acima, a autora faz um cronotopo artístico

ao reviver, em seu romance, o personagem Amleto Ferreira: “[...] um mulato claro de meia-idade,

de modos muito empinados, usando chapéu alto, bengala encastoada e casaco muito bem

passado.” (2010, p.248). Se, no romance de João Ubaldo, ele era o protótipo do mulato quase

branco, dissimulado, que rouba seu patrão, levando-o à falência, ascendendo socialmente, no

romance de Gonçalves (2010), ele é um dos clientes de Kehinde, quando ela se torna vendedora

de cookies, na Praça da Sé, em Salvador, Bahia. “O senhor Amleto queria fazer uma grande

encomenda de cookies para o batizado do filho, que aconteceria no domingo.” (GONÇALVES,

2010, p.263). A autora evoca o fato de Amleto, assim como no romance de Ubaldo, querer se

tornar branco e não permite que sua mãe possa conhecer seus filhos.

Segundo Brait (2000), para precisar teoricamente o conceito bakhtiniano de dialogismo, é

necessário analisar o princípio da heterogeneidade, a ideia de que a linguagem é heterogênea, isto

é, de que o discurso é construído a partir do discurso do outro, que é o “já dito” sobre o qual

qualquer discurso se constrói. A casa da água, de Antônio Olinto, também foi outro romance

com que a autora faz um cronotopo artístico. Assim como Mariana, Kehinde também retorna à

África, e também sofre com a readaptação. Eis duas passagens dos dois referidos romances que

comprovam:

Poucos dormiram naquela noite, ficaram pelo convés conversando, apontando para o céu, Mariana lembrou-se ter ouvido no Piau a frase: “Quem aponta para uma estrela nasce uma verruga na ponta do dedo”, ninguém falou nos mortos, de manhã notaram que a terra estava mais perto. Foi por volta das cinco horas da tarde que o navio entrou na enseada de Lagos, casas refletiam-se nas águas, uma árvore de flores vermelhas se destacou num trecho, um barco logo se aproximou e os homens que subiram usavam uniformes brancos, eram gente como poucos ali tinham visto, cabelos louros, um magro de bigodes retorcidos visitou com o capitão todo o navio esteve onde os passageiros dormiam, levantou os panos da cama, olhou pelos cantos, depois emitiu sons mais ou menos altos, Mariana ouviu dizerem que era inglês [...]. souberam que não podiam desembarcar, o inglês declarara que tinham de ficar ali – de quarentena, informou o capitão – por causa das doenças e das mortes acontecidas a bordo. (OLINTO, 1975, p. 68).

A viagem durou vinte e seis dias. Saí de São Salvador a vinte e sete de outubro de um mil oitocentos e quarenta e sete e desembarquei em Uidá a vinte e dois de novembro, no mesmo local de onde tinha partido trinta anos antes. As situações eram distintas, mas o medo era quase igual, medo do que ia acontecer comigo dali em diante. É claro que os motivos também eram diferentes, porque naquela volta eu seria a única responsável pelo meu destino, e na partida tudo dependia daqueles que tinham me capturado. Eu não me lembrava muito bem da África que tinha deixado, portanto, não tinha muitas expectativas em relação ao que

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encontraria. Ou talvez, na época, tenha pensado isso apenas para me conformar, porque não gostei nada do que vi. (GONÇALVES, 2010, p.73).

A diferença é que, enquanto a segunda nasceu lá e foi trazida para o Brasil quando

criança, a primeira nasceu no Brasil e foi levada, ainda criança, para a África. Ao final dos dois

romances, ambas sentem o desejo de retornar ao Brasil, mas só Kehinde consegue, motivada pelo

desejo de reencontrar o filho que fora vendido, ainda criança, pelo pai para poder saldar dívidas

de jogo. A narradora encerra seu relato dizendo:

Quanto a mim, já me sinto feliz por ter conseguido chegar até onde queria. E talvez, num último gesto de misericórdia, qualquer um desses deuses dos homens me permita subir ao convés para respirar os ares do Brasil e te abençoar pela última vez. (GONÇALVES, 2010, p.957).

A autora dialoga com Casa Grande & Senzala de Gilberto Freire e narra algumas das

violências praticadas contra os escravos:

Mandou que os homens segurassem a Verenciana com toda a força, arrancou o lenço da cabeça dela, agarrou firme nos cabelos e enfiou a faca perto de um dos olhos. Enquanto o sangue espirrava longe, a sinhá dizia que olhos daquela cor, esverdeados, não combinavam com preto, e fazia a faca rasgar a carne até contornar por completo o olho, quando então enfiou os dedos por dentro do corte, agarrou a bola que formava o olho e puxou, deixando um buraco no lugar. (GONÇALVES, 2010, p. 106).

Pierre Verger é outro autor com quem a autora dialoga. O autor, ao ser iniciado no

candomblé recebeu o nome de Fatumbi, e é esse o nome que Gonçalves dá a um dos mais

importantes personagens em sua trama. Esse era o nome do professor da Sinhazinha e quem

ensinou a protagonista a ler e a escrever em português e matemática. A narradora, assim, o

descreve:

O preto se chamava Fatumbi; era muito alto, magro e sério, de uma seriedade que fazia com que ninguém se sentisse à vontade para se aproximar dele. No dia seguinte à sua chegada, começaram as aulas para a sinhazinha Maria Clara aprender pelo menos as letras e os números, nos livros e cadernos que foram buscados às pressas na capital. Compraram também tinta, pena e outros apetrechos para a sinhazinha, e um quadro-negro onde o Fatumbi ia escrevendo o que ela precisava copiar. (GONÇALVES, 2010, p. 92).

Fatumbi, mesmo percebendo que a pequena Kehinde prestava atenção às aulas nada fez.

Como a ela mesma relata: “Ele logo percebeu o meu interesse e achei que fosse ficar bravo, mas

não; até quase sorriu e passou a olhar mais vezes para mim, como se eu fosse aluna da mesma

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importância que a sinhazinha.” (GONÇALVES, 2010, p. 92). Ele era um muçurumim, negro

Malê, de religião muçulmana, poliglota, pois falava, além das línguas africanas, o português e o

árabe para poder ler o Alcorão (livro sagrado dos muçulmanos).

Ele participa ativamente da trama da Revolta dos Malês e deixa Kehinde participar de

algumas reuniões. Vale ressaltar que, para que se obtivesse sucesso na referida revolta, os negros

trocavam cartas e bilhetes escritos em árabe – o que dificultava a interceptação dessas

correspondências já que as autoridades e os senhores de escravos da época mal falavam o

português direito, ou até mesmo ler e escrever. Por isso, geralmente, esses escravos eram os mais

caros. Kehinde, porém, não falava árabe, nem tampouco se converteu ao islamismo.

Mais tarde, em Salvador, já como escrava de ganho, os dois se reencontram e retomam a

amizade. É ele quem a ajuda nessa época, chegando a conseguir até abrigo para Kehinde como se

ela fosse uma muçurumim. Ela também ajudou a tramar a Revolta dos Malês, chegando até a ser

presa, momento no qual seu filho fora vendido pelo pai.

Ao aprender português e inglês, Kehinde passou a ser uma poliglota, pois ainda falava

mais de uma língua africana. Consegue transitar pelas mais diferentes etnias negras, bem como

entre os muçurumins.

Em um artigo intitulado “’Uma rainha africana mãe de santo em São Luís”, Pierre Verger

(1990), enquanto pesquisava os voduns do Maranhão, descobriu que a primeira mãe de santo no

Brasil pertencera à família real. Essa mãe de santo seria Agontimé, que fundou no Maranhão a

Casa de Mina, um candomblé com os voduns próprios da casa dos reis do Daomé. Ela seria a

esposa do rei Agonglo, que, após sua morte, fora mandada como escrava para o Brasil. O autor

encerra seu artigo citando o samba enredo intitulado O Xaxá de Ajudá e a Rainha Mina do

Maranhão do Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo do Rio de Janeiro,

do ano de 1984. Eis um trecho:

Mãe África Terra da soberana Agontimé

Mãe de Guezo E mulher de Agonglô Rei do antigo Daomé

Que um certo dia

Adandozan Se apoderou do trono

E vendeu a rainha

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Pra São Luís do Maranhão

Mesmo escravizada A rainha difundiu

O culto do vodu Zomadone Que deu origem

À casa das Minas no Brasil.

Em U.D.C. ocorre mais um cronotopo artístico, pois a autora utiliza a personagem

Agontimé e a mesma história citada por Verger. Ela exerce um papel importante no processo de

iniciação de Kehinde na religião de matriz africana, e sua história é contada da seguinte maneira:

A mulher se apresentou a nós como Maria Mineira Naê e disse que em África tinha outro nome, Agontimé. Foi então que eu percebi que estava frente a frente com a rainha de Abomé, sobre quem muitas vezes tinha ouvido a minha avó falar, realçando a sua bondade com o povo e a dedicação aos voduns. Da história que ouvi em seguida, sou capaz de me lembrar de cada entonação da voz dela, de cada detalhe. [...]. As filhas de Xelegbatá, como eram chamadas as sacerdotisas que ocultavam para que ele não se enfurecesse e espalhasse a peste por todo o reino foram afastadas, como foi o caso da Agontimé. (GONÇALVES, 2010, p. 131).

Com a alma cheia de esperanças e de fé em seu vodum, a antiga rainha Agontimé cruzou o mar e desembarcou como escrava no Brasil, na Bahia. [...]. Depois de algum tempo, ela já tinha mais do que suficiente para comprar a própria liberdade e viajar para o Maranhão, onde construiria um convento para os voduns. (GONÇALVES, 2010, p. 133).

Com o escritor português José Saramago, a autora trava um dialogismo com a obra

Memorial do Convento, publicada em 1982. Mais precisamente, trata-se do enredo do livro do

escritor lusitano e Prêmio Nobel de Literatura, inclusive com os personagens Blimunda e

Baltazar, além do Padre Voador.

O cronotopo artístico em U.D.C. acontece quando Kehinde se encontra com um ex-

escravo louco, e este lhe pede que leia um maço de papéis. Como era analfabeto, tem apenas a

memória do seu conteúdo pelos relatos do pai, de quem os recebeu, mas quer ouvir a

confirmação. O conteúdo? Cartas de “[...] um tal padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão” (2010,

p. 616), que era inventor, e as enviava de Portugal para seu escravo e companheiro no Brasil.

“Vou te contar a história inteira, como entendi lendo os papéis de Kuanza, conversando com ele e

também com outras pessoas, e ainda hoje tenho pena de não ter tentado confirmá-la, [...] por

intermédio de alguns amigos em Portugal.” (GONÇALVES, 2010, p. 618), continua a narradora.

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Depois, como prometido ao dono dos papéis, Kehinde escreve essa história e manda

enviá-la a Portugal, mas a correspondência se perde. A narradora volta a citar esse episódio bem

próximo ao final, traçando um paralelo com o escrito em que se lê:

[...] precisava te contar tudo que estou contando agora. Se vai chegar às suas mãos, também não sei, mas me lembro muito da história que foi vivida pelo pai de Kuanza, guardada pelo filho e escrita por mim, para depois sumir no meio da travessia desse mar. Se alguém vai contá-la a alguém qualquer dia desses eu não sei, mas fiz o que tinha que ser feito. (GONÇALVES, 2010, p. 945).

Neste caso, Kehinde teria escrito a história antes de Saramago.

Outra obra com que a autora dialoga é A Moreninha (1844), de Joaquim Manuel de

Macedo. A narradora de U.D.C. se teria encontrado com o autor, quando da sua passagem pela

Cidade do Rio de Janeiro em busca do paradeiro do filho. Nesse encontro, ele mostrou o então

esboço do romance, Kehinde lhe sugeriu que o nome da protagonista fosse Carolina, mesmo

nome da filha do senhor de engenho que a comprara – por conta das mesmas características

físicas da Sinhazinha. A narradora relata:

Sabe de uma coisa da qual muito me orgulho? De ter dado o nome à mocinha do livro, que ele chamava apenas de "moreninha", por não ter conseguido ainda encontrar um nome que combinasse com ela. Não sei o motivo, mas enquanto ele lia para mim os trechos que descreviam a moça, eu a imaginava como sendo a Carolina, a filha mais velha da sinhazinha, já que naquela época as duas tinham a mesma idade. E assim ficou sendo, a moreninha que conquistou o coração do mocinho que se fazia de durão ficou sendo Carolina. É uma história romântica e bonita, que tanto a Carolina como a sinhazinha poderiam ter vivido, ainda mais por se passar quase toda em uma ilha que eu logo imaginei sendo a Ilha de Itaparica. Mas não vou falar mais nada da história, vou deixar que você mesmo leia no livro que me foi dado pelo próprio doutor Joaquim, de uma edição que ele mandou reproduzir apenas para poucos amigos, assim que todo o folhetim foi publicado no Jornal do Comércio. (GONÇALVES, 2010, p. 699).

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2.4 O FIO DAS TRAVESSIAS E MOBILIDADES

Mesmo um leito seco de um rio ainda guarda seu nome. (Provérbio africano)

As viagens de Kehinde e sua narração, já citadas anteriormente, correspondem ao

cronotopo narrativo de viagem, pois essas próprias viagens se declaram escrita, privilegiando o

próprio ato de contar como única realidade de relato. Foi assim na primeira viagem, ainda em

África, de Savalu para Uidá, depois com a vinda para o Brasil, as viagens que fez pelo País em

busca do filho, seu retorno à África e, por fim, seu retorno ao Brasil. As narrativas das viagens

feitas pela personagem se parecem e muito com as narrativas de viagens, muito comuns durante o

Renascimento. Ela descreve assim o momento:

Para sempre ficou gravada na minha memória a São Salvador daquele dia. Anos depois, em África, a tantos quilômetros e a tanto tempo de distância, era naquelas impressões e sensações que eu pensava ao me lembrar da Bahia ou mesmo do Brasil. Lembro-me ainda hoje dos nomes das praças e das ruas que percorri por anos e anos, e por onde muitas vezes refiz o caminho daquele dia, tentando vê-lo com meus olhos de menina, sem nunca mais conseguir. Quando o barco contornou o Forte de São Marcelo, o sol ainda estava baixo por trás das colinas que sustentavam a cidade, o que fazia com que ela ficasse emoldurada por uma luz mágica que mais parecia um véu, embaçando os olhos da gente e tornando as cores mais delicadas. (GONÇALVES, 2010, p.127).

A narrativa de vida de Kehinde é baseada num tempo que não corresponde ao sentido

histórico e biográfico, em que o realce se dá nos contrastes e nas diferenças, associando as

viagens à busca pelo filho e por um futuro melhor. O tempo não é linear e obedece, como já fora

citado, o resgate da memória de uma senhora já quase cega e idosa. Como já fora mencionado, as

oscilações fazem parte desse relembrar e, muitas vezes, ela se lembrava das histórias, noutras,

precisava resgatar as histórias da memória. Irene Machado (2010, p.209) afirma que cronotopo é

uma forma de compreensão da experiência e que:

As ideias sobre o tempo dialógico formuladas conceitualmente não enfrentam diretamente as relações do continuum espaço-tempo em movimento de extrapolação interativa, fora da demarcação de uma linha de ocorrência. Tempo e espaço que, por não existirem em si mesmos, como entidades absolutas, são

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transformações semióticas de vivências em sistemas culturais produtores de sentido.

A descrição da narradora ao chegar à Bahia, mais precisamente à Ilha dos Frades

(cronotopo geográfico por conta de mais uma mudança espacial), muito se parece com as

narrativas de viagem dos primeiros navegadores que chegaram ao Brasil.

Percebe-se também, neste caso, um cronotopo estético ao fazer dialogar seu texto com

outro gênero textual. Na descrição, notam-se um misto de alívio por ter chegado ao destino

desconhecido, de saudade pelos seus familiares mortos, ou em África, ou ao longo da viagem, e

um encantamento pelo que avistara, que podem ser sentidos em suas palavras:

Eu me senti quase feliz ao avistar a Ilha dos Frades. Uma felicidade que talvez pudesse ter sido chamada de alívio, como aconteceria várias outras vezes em minha vida. Por causa da beleza da ilha, fiquei impressionada com as cores, com o ar, com as novas sensações, com a esperança de tudo nem ser tão ruim assim. Ao subir as escadas do porão e ver primeiro o céu azul, depois a luz do sol quase me cegando, fazendo com que os outros sentidos ficassem mais atentos. Tive vontade de nascer de novo naquele lugar e ter comigo os amigos de Uidá. Havia um murmúrio do mar, um cantaréu de passarinhos, homens gritando numa língua estranha e melodiosa. Nascer de novo e deixar na vida passada o riozinho de sangue do Kokumo e da minha mãe, os meus olhos nos olhos cegos da Taiwo, o sono da minha avó. O mar era azul e nos levava tranqüilos até uma ilha que, de longe e de cima do navio, não parecia ter nada além de árvores e da pequena faixa de areia branca. (GONÇALVES, 2010, p. 62).

O cronotopo da senzala é muito importante na trama. Como fora comprada para servir e

brincar com a sinhazinha, Kehinde era uma escrava de dentro. Isso significava que ela poderia

frequentar, vivenciar e narrar tudo o que ocorria na Casa Grande e morar na Senzala Pequena –

onde viviam todos os escravos de dentro. Após uma série de acontecimentos, foi expulsa de lá

pela Sinhá, passando a conviver com os outros escravos da Senzala Grande e a trabalhar no

engenho da fazenda. É o deslocamento entre dois mundos distintos, o da casa grande e o da

senzala. Esses locais foram importantes para a formação da pequena Kehinde, como pode ser

comprovado na passagem abaixo:

Talvez, se eu tivesse ficado trabalhando apenas na casa-grande e morando na senzala pequena, não teria sabido realmente nada sobre a escravidão e a minha vida não teria tomado o rumo que tomou. Mesmo para uma criança de dez anos, ou, talvez, principalmente para uma criança de dez anos, era enorme a diferença entre os dois mundos, como se um não soubesse da existência do outro. Um outro mundo dentro do mesmo, sendo que o de fora, a senzala grande, era muito

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mais feio e mais real que o de dentro, a senzala pequena. (GONÇALVES, 2010, p. 111).

No entanto, sua estadia na senzala grande não dura muito, apenas o tempo suficiente para

conhecer como funcionava todo o restante da fazenda. Como narra Kehinde: “Alguns dias depois,

quando saíamos para o engenho, o Cipriano segurou meu braço e disse que eu ia voltar para a

casa grande” (GONÇALVES, 2010, p. 151). O próprio Sinhô manda-a de volta para a senzala

pequena pouco depois de ela conhecer o Lourenço com quem pretendia se casar. Como fora

comentado no primeiro capítulo, essa nova situação resultou no seu estupro por parte do Sinhô e

na gestação do seu primeiro filho.

Kehinde narra com muita propriedade, e em detalhes, todos os rituais religiosos de que

participava. Gabava-se de levar consigo o vodum da família, pois, para ela, servia como uma

conexão com sua ancestralidade, mais precisamente sua mãe e sua avó. Ela fazia isso, numa

tentativa de deixar para o filho desaparecido (já que não tinha noção de como fora a educação que

ele tivera ao longo de sua vida) não apenas a sua história de vida, mas também sua herança

africana, seus ancestrais, suas origens. Abaixo, ela descreve como foi a cerimônia de batismo de

seu primeiro filho, bem como detalhes da mitologia dos Orixás.

O salão parecia maior visto pelo lado de dentro, com o chão de tijolo e as paredes pintadas de azul-claro, onde estavam pendurados quadros com imagens dos orixás junto com outras pinturas, como a do machado de Xangô e dos instrumentos de caça de Ogum, de quem Ogumfiditimi era filho. Havia também pequenos oratórios com esculturas de orixás em madeira tingida para representar as cores deles. A cor principal de Xangô é o vermelho, de Ogum é o azul, de Oxóssi é o verde e de Oxum é o dourado, cada um tem a sua. Do teto pendiam enfeites de papéis coloridos recortados em formato de bandeiras ou tiras finas e compridas, que dançavam ao menor toque de vento. Era um ambiente alegre e tranqüilo, onde me senti bem, iluminado por quatro lampiões, um em cada canto, e uma lamparina sobre a mesa. Encostados em duas paredes, uma de frente para a outra, compridos bancos de madeira, um para homens e outro para mulheres. Havia ainda uma pequena mesa ao fundo, onde o Babalaô Gumfiditimi jogava o Ifá, que estava coberta com um pano branco que deixava apenas perceber as formas dos objetos de adivinhação embaixo dele. Mas, naquele dia, as atenções estavam voltadas para a mesa central, em volta da qual seria realizada a cerimônia.

O Babalaô Gumfiditimi estava todo vestido de branco, o que fazia um contraste ainda maior com os vários colares pendurados em seu pescoço, feitos de contas coloridas, búzios e sementes. Tinha também um bonito turbante branco amarrado na cabeça, do mesmo modo que o Ifasen, "o Ifá faz milagres", que ele me apresentou como o filho que estava sendo preparado para herdar os segredos do jogo de adivinhação, mas que naquela cerimônia seria o ewi (Ewi: recita ou

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canta versos feitos para ocasiões especiais). O Ifasen tinha aprendido com o avô, um grande ewi em África e mesmo no Brasil, que a Nega Florinda afirmou ter sido o mais solicitado para recitar nas cerimônias de nome, casamento, funeral e em homenagens a pessoas ou famílias. Mas para ser ewi, primeiro é preciso ter o dom, além de saber combinar as palavras com os sentimentos, como quando se faz um oriki, mas também é preciso conhecer muito bem todas as palavras e os provérbios, e saber em que ocasiões devem ser usados, falando ou cantando. (GONÇALVES, 2010, p. 203).

Há um intuito, ao narrar algumas cerimônias, as histórias e principalmente a memória dos

seus ancestrais, a memória dos Orixás e suas lendas, como um segredo de família que fora

passado de geração em geração e que agora, Kehinde pode deixar escrito para o filho, já que ele

não está por perto para poder aprender.

O ewi Ifasen pediu a palavra, mas antes o Babalaô Gumfiditimi quis fazer uma brincadeira e tirou do bolso um colar de búzios, dinheiro africano. Assim que o viu balançar diante do rosto, o Banjokô rapidamente levantou as duas mãozinhas e o agarrou, para alegria de todos, que disseram que ele viveria com riqueza. Logo pensei na sinhá, que, com certeza, o tratava de um jeito diferente, com muito mais carinho do que tinha tratado a sinhazinha Maria Clara quando pequena, como me contou a Esméria. Quando me lembrei dela, também fiquei preocupada em saber quanto tempo já estávamos fora de casa e se o meu plano tinha dado certo. Isso fez com que eu não conseguisse prestar muita atenção às palavras do Ifasen, que falava da bênção que um filho representa para a mãe e para toda a família, porque ele herda e perpetua a história e a memória. (GONÇALVES, 2010, p. 207).

A religiosidade, uma herança também africana, é enraizada, na maioria da população do

País, unicamente como inaceitáveis rituais demoníacos, em uma tentativa de desconstruir

imagens tão errôneas do negro tornando-se uma nova face da literatura do Brasil. Em

contrapartida, tem-se como exemplo principal o surgimento dos Cadernos Negros, com sua

primeira edição em 1978. Essa literatura preocupa-se em resgatar a história do povo negro na

diáspora brasileira, passando pela denúncia da escravidão e de suas consequências, tornando

heróis figuras como Zumbi e Ganga Zumba.

O antropólogo inglês Paul Gilroy (2002), em seu livro O Atlântico Negro: modernidade e

dupla consciência, afirma que as culturas e identidades negras são indissociáveis da experiência

da escravidão moderna e de sua herança racializada espalhada pelo Atlântico. Ainda segundo

esse autor, o processo de construção da identidade e da cultura negras nasce efetivamente na

América, como resistência à escravidão e ao terror racial, para daí voltar a circular no Atlântico,

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Europa ou África. Gilroy afirma que as fronteiras culturais foram alargadas e “a idéia de diáspora

se tornou agora integral a este empreendimento político, histórico e filosófico descentrado, ou,

mais precisamente, multicentrado” (2002, 17).

Em seu livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, Bakhtin (2008)

divide as manifestações culturais em três grandes categorias: as formas dos ritos e espetáculos

(festejos carnavalescos, obras cômicas representadas nas praças públicas, etc.); obras cômicas

verbais (inclusive as paródias) de diversa natureza: orais e escritas, em latim ou em língua vulgar;

e diversas formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro (insultos, juramentos, populares,

etc.).

Bakhtin, na primeira das três grandes categorias, se refere aos festejos populares na praça

pública e à presença determinante do elemento cômico na vida do homem medieval, em oposição

ao tom sério e oficial das cerimônias da Igreja ou do Estado feudal. Nesse caso, essas formas de

ritos e espetáculos:

Ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado; pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida aos quais os homens da Idade Média pertenciam em maior ou menor proporção, e nos quais eles viviam em ocasiões determinadas. Isso criava uma espécie de dualidade do mundo e cremos que, sem levá-la em consideração, não se poderia compreender nem a consciência cultural da Idade Média nem a civilização renascentista. (BAKHTIN, 2008, p. 4).

Em suas histórias, Kehinde relata os festejos existentes em África, muitos deles foram

importados do Brasil pelos brasileiros, denominados de agudás, ou pelos ex-escravos que

conseguiram retornar a sua terra natal após a Abolição da Escravatura.

A autora faz outro dialogismo e um cronotopo artístico, mais uma vez com o romance de

Olinto (1975), pois Mariana, nascida no Brasil, juntamente com a sua família faz o caminho de

volta para a África. Kehinde faz o mesmo caminho – só que retorna para sua terra natal – e,

quando consegue montar o negócio de construção de casas, manda buscar em terras brasileiras

mão de obra especializada, como pode ser percebido a seguir.

Certo início de noite, uma bagunça na rua chamou nossa atenção e saímos todos, para entrar logo em seguida, com medo de nos machucarmos. Era época do entrudo no Brasil e, em alguns lugares da cidade, os retornados também faziam o seu. Os africanos não gostavam e saíam atrás deles, provocando brigas e confusões, causando muitas mortes. Mas aqueles que estavam na nossa rua não eram brasileiros, e sim africanos imitando brasileiros, bebendo cachaça e

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batendo tambor, sendo que alguns ainda usavam máscaras feitas com cabeças de carneiro. Contei para os da casa como eram os entrudos de São Salvador e de São Sebastião, onde eu tinha participado de um com o Piripiri. (GONÇALVES, 2010, p.757).

Na verdade, o entrudo, a que se refere Kehinde, foi introduzido no Brasil pelos

portugueses, no século XVIII. Trata-se de uma variedade de brincadeiras dispersas no tempo e no

espaço que as pessoas costumavam fazer durante o período do carnaval, principalmente na

Cidade do Rio de Janeiro. Havia vários tipos de diversões que se modificavam de acordo com o

local e com os grupos sociais envolvidos. Kehinde conta que

Os brasileiros promoviam almoços em que eram servidos pratos do Brasil, como feijoada, doces de frutas em calda e cocada. Eles também organizavam uma festa para o Senhor do Bonfim, com Burrinha e tudo, para São Cosme e Damião e para alguns outros santos. Também faziam questão de batizar os filhos, como eu precisava fazer com os meus, e, acima de tudo, dar a eles um apelido, como faziam todos os brancos e brasileiros. (GONÇALVES, 2010. p.778).

Outros festejos relatados e descritos por Kehinde foi a Festa do Bonfim em terras

africanas. A narradora já tinha narrado os festejos dessa festa em terras brasileiras, e agora conta

a história da festa que fora levada pelos primeiros retornados e por sentirem saudades do Brasil.

Essa festa até hoje em dia acontece, no mês de janeiro e guarda as mesmas características da

brasileira:

O mês de janeiro foi corrido, com a olaria começando a funcionar e a Festa do Bonfim tomando grandes proporções. Os retornados mais antigos disseram que já tinham realizado muitas festas, mas nenhuma tão completa e animada como aquela, pois contávamos com a presença de pelo menos duzentos brasileiros. Inclusive alguns de Porto Novo, de Lagos e até de Aguê, que também realizavam suas festas por lá. (GONÇALVES, 2010. p. 832).

Tanto os festejos brasileiros como os africanos guardam uma forte carga de sincretismo

religioso, mesmo em dias atuais. O termo vem do grego e significa reunião de crenças. Com a

escravidão, os negros não eram autorizados a continuar com sua crença nos Orixás e Voduns.

Como fora mencionado anteriormente, ao chegarem ao Brasil, os negros eram batizados por um

padre católico e recebiam nomes brasileiros.

Esses negros começaram a fazer correlações dos santos católicos com os Orixás para

poderem enganar os senhores de engenho. Essa prática se perpetua até hoje no País, sendo mais

forte na Bahia, e recebeu o nome de sincretismo religioso. Os negros que aqui chegaram eram de

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várias nações como Ketu, Jeje, só para citar os mais conhecidos. Acontece que, em cada nação,

era cultuado um Orixá diferente, com nome diferente e com crenças e crendices diversas, como

pode ser comprovado a seguir.

Eles começaram a gritar os muitos nomes de Oxalá, depois de saberem que, na Bahia, o santo e o orixá eram a mesma pessoa. Oxalá é filho de Olorum, ou Olodumaré, tanto faz, o criador do mundo, e além dos nomes que eu já conhecia, Oxagiyan e Oxalufa, também aprendi que pode ser Obatalá, Ogbomosho e Adjagounan, entre outros. (GONÇALVES, 2010. p. 834).

Muito embora, na produção teórica de Mikhail Bakhtin, não haja referências à literatura

brasileira, quando esta é analisada com base em suas ideias, encontra-se um terreno fértil de

análise. Prova disso é o romance examinado, que faz um diálogo com vários outros textos

históricos e literários, podendo ser denominado também de um romance polifônico, cronotópico e

dialógico.

Benedito Nunes (2000) afirma que o movimento de antecipação dos acontecimentos é um

recurso que trabalha com a temporalidade do romance de modo a evocar o futuro e o passado no

tempo atual da narrativa. Assim, é narrado o percurso de Kehinde por dois continentes e em

várias cidades, como Savalu, Uidá, Ilha de Itaparica, Salvador, São Luís, Recôncavo baiano,

Santos, São Paulo, Campinas, Rio de Janeiro, Uidá, Lagos. O espaço da narrativa compreende

África, Brasil e o oceano que separa esses dois territórios. As longas distâncias são percorridas e

transpostas facilmente por conta da ação da memória da narradora. A repetição e os desvios

tornam-se marcas desse percurso.

A pesquisadora Alcione Correa Alves (2010) utiliza os conceitos de Détour e Rétour, do

ensaísta antilhano Édouard Glissant, para tentar compreender alguns processos de mobilidades

culturais dos negros nas Américas. Rétour, ou retorno, significa o retorno, a volta à pátria, mas

não apenas ao conceito geográfico de pátria e sim a uma matriz cultural. Os negros que chegavam

à América Latina sentiam falta de sua pátria, de sua cultura e, normalmente, sentiam o que se

costumou chamar de banzo.

Muitos escravos chegavam a adoecer por conta do banzo, outros tentavam diminuir a dor

da distância com o suicídio, como foi o caso de Afrânio, um escravo que Kehinde conhecera na

senzala grande quando passou uma temporada por lá. Os senhores e seus capatazes nem sempre

acreditavam no banzo, nem tampouco em um escravo poder adoecer por sentir falta de sua terra

ou de seu povo.

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Mesmo não sendo amiga do Afrânio, pois nem mesmo cheguei a conversar com ele, senti bastante a sua morte. Ele se matou no mar, com o facão que levava para limpar os peixes antes da salga, os que nós todos comíamos às sextas-feiras e às vezes aos sábados também. Ele pegou o facão e, antes que alguém pudesse fazer qualquer coisa, foi sangue espirrando para um lado e a cabeça dele caindo para o outro. Mestre Anselmo, o mestre do barco em que ele estava, achou que era melhor deixarem o corpo por lá mesmo, já que ele era pescador, homem do mar. E assim fizeram; em uma cerimônia simples, o corpo do Afrânio virou comida para peixe. Isto custou ao mestre Anselmo um mês sem folga aos domingos e cem chibatadas. (GONÇALVES, 2010, p.124).

Como se pode notar, muito mais que uma simples saudade, o banzo é a falta da terra natal,

da cultura, do seu povo que os escravos costumavam sentir. Ao ser capturado, o escravo foi

desapropriado da sua cultura, esse retorno seria uma volta a essa cultura, uma volta à origem.

Glissant (1981, p.30) afirma que “[...] a primeira pulsão de uma população transplantada [...] é o

Retorno. O Retorno é uma obsessão do Um: não se deve mudar o ser. Voltar é consagrar a

permanência, a não relação”.

No romance em questão, Kehinde nasceu na África, foi capturada e escravizada. Ela

consegue voltar à sua terra natal e, apesar de não gostar do que vê, demora um tempo para poder

se reacostumar e readaptar em sua própria terra natal. Muitos escravos conseguiam retornar à

África após a alforria e/ou abolição. Ao narrar esse retorno, a narradora lança mão, mais uma vez,

do cronotopo narrativo de viagem e do cronotopo estético. Como pode ser comprovado na citação

da página 56.

Détour ou desvio é a negação da nova condição de vida, da nova cultura com que o negro

era obrigado a conviver. É a negação à nova identidade cultural, que Kehinde começa a sentir

quando o navio que a trouxera da sua terra aportou na Ilha dos Frades, pois como relata: “Tive

vontade de nascer de novo naquele lugar e ter comigo os amigos de Uidá” (GONÇALVES, 2010,

p.62).

A pequena Kehinde chega só ao Brasil, após ver a morte de sua mãe e irmão e ser

capturada com sua avó e sua irmã gêmea, que morrem durante a viagem devido às péssimas

condições em que viajavam e, como era de praxe, os corpos foram jogados ao mar:

Nós não víamos a hora de desembarcar também, mas disseram que antes teríamos que esperar um padre que viria nos batizar, para que não pisássemos em terras do Brasil com a alma pagã. Eu não sabia o que era alma pagã, mas já tinha sido batizada em África, já tinha recebido um nome e não queria trocá-lo, como tinham feito com os homens. Em terras do Brasil, eles tanto deveriam usar

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os nomes novos, de brancos, como louvar os deuses dos brancos, o que eu me negava a aceitar, pois tinha ouvido os conselhos da minha avó. Ela tinha dito que seria através do meu nome que meus voduns iam me proteger, e que também era através do meu nome que eu estaria sempre ligada à Taiwo, podendo então ficar com a metade dela na alma que nos pertencia. (GONÇALVES, 2010, p.63).

Kehinde se negou a ter um nome novo e a ter outro batismo. E foi com o nome de batismo

africano que ela desembarcou em terras brasileiras. Não aceita o batismo, mas finge ser batizada

e finge ter um nome cristão enquanto lhe for conveniente. É negando essa nova cultura que

Kehinde é vendida, vai morar na fazenda, cresce, vira mulher e mãe.

Tal negação é mantida, dissimulando e demonstrando sua capacidade de resiliência, de

estabelecer relação com outras culturas, com outros valores. Dissimulando, Kehinde aprende a ler

e a escrever em português, ao acompanhar a sinhazinha, aproveitando, ao máximo, as lições

dadas pelo professor na sala da casa grande. Faz o mesmo ao aprender a ler e escrever em inglês,

no período em que fora emprestada ao Cônsul da Inglaterra. Mais tarde, isso lhe custará caro,

pois a Sinhá sabe do nível de conhecimento da escrava e, dissimuladamente, também estipula

bem caro o preço da sua carta de alforria e a de seu primeiro filho. Como afirma Souza (2010):

O desexílio vai mostrando que todo deslocamento é conflituoso, em sua origem, e que o reencontro com o país natal, não apenas como espaço físico, mas, sobretudo como conjunto de valores modificado pelo tempo, mostra a natureza das formações de personalidades híbridas. Nesse processo de redimensionamento de duas culturas, a do exílio e a do reencontro, o resultado é uma concepção nova de escritura em convergência com os debates atuais acerca da desestabilização de identidades fixas.

No caso do romance estudado, mesmo negando a nova cultura no Brasil, Kehinde

continua mantendo a sua e continua cultuando os voduns, sua religião. Ela sempre sente falta de

sua terra, de sua família, dos que já morreram e se recusa a se portar como uma branca, usar

sapatos, roupas, nome. Isso corresponde a um Retour imaginário, pois buscava uma volta da sua

cultura materna, que fora desapropriada com a escravidão. Enquanto não conseguia esse retorno

geográfico, quando precisa, ela sabe muito bem tirar da situação e, muitas vezes, chegou a utilizar

o nome de batismo brasileiro para evitar possíveis confusões pelas ruas das mais variadas cidades

brasileiras por onde passou em busca do filho.

Quando retorna à Uidá, sua terra natal, ela passa a sentir falto da vida que levava no

Brasil, da casa em que morava, do conforto, dos costumes e da cultura adquiridos. Então, ela

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resolve construir uma casa nos moldes das casas brasileiras, parecida com a que tinha em

Salvador.

No fim da vida, chega até a adotar o nome de batismo cristão, Luísa. Batiza, com nome

brasileiro, os filhos que teve com o último marido, John, um ex-escravo de origem inglesa. Como

a própria narradora enfatiza: “Então fiquei sendo Luísa Andrade da Silva, a dona Luisa, como

todos passaram a me chamar em África, os que já me conheciam e não estranharam a mudança, e

os que me conhecem a partir daquele momento” (GONÇALVES, 2010, p. 789).

O que ela negou quase a vida toda, durante sua morada no Brasil, ela aceita em sua terra

natal. Uma espécie de Détour, agora às avessas; um desexílio, como pode ser percebido na

reflexão feita pela narradora: “Na minha convivência com os brancos e mulatos, vi que nem

todos eram maus, que existiam os de bom coração e até mesmo os que eram contra a escravatura,

mas não haveria como separar uns dos outros” (GONÇALVES, 2010, p. 503).

Em seu artigo “Enraizamento e errância: duas faces da questão identitária” (2002. p. 36-

46), Zilá Bernd lança mão dos mitos gregos de Ulisses e Jasão como metáforas para ilustrar suas

reflexões acerca das duas faces da identidade. De um lado, a figura de Ulisses – símbolo do

desejo nostálgico do retorno à terra natal – estaria atrelada à ideia do enraizamento e da busca de

um tempo-espaço conferido antes do exílio. De outro lado, a figura de Jasão, líder dos

Argonautas, desbravador de novas terras, estaria relacionada ao desejo da errância e, portanto, à

idéia de contínuos deslocamentos.

Assim, ao estabelecer essas diferentes perspectivas através dos dois mitos, Bernd aponta

para dois caminhos possíveis a serem percorridos na busca do ser humano pela sua própria

identidade. Kehinde era um pouco Ulisses e um pouco Jasão. No início da trama, ao chegar ao

Brasil, a personagem era mais Ulisses, pois sentia falta de tudo e de todos. Sentia falta da sua

terra, da sua mãe, irmão, irmã e avó, dos costumes, da cultura, dos amigos, do povo de Uidá, da

sua religião. Quando passa a procurar pelo filho vendido ilegalmente pelo pai, eis que seu lado

Jasão aflora e começa suas viagens por diversas cidades brasileiras, retornando depois à sua terra

natal em busca desse filho.

Quando fez sua primeira travessia pelo Atlântico, fazendo o caminho África-Brasil, numa

viagem forçada e penosa realizada em um navio negreiro, com a morte da avó e da irmã gêmea,

suas companheiras de escravidão e travessia, dá-se início ao processo de desterritorialização de

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Kehinde. Ela é obrigada a se batizar de novo, a ter um novo nome, aprender português para se

comunicar, recebe a imposição católica, além de se despir da sua identidade africana.

Ao ser vendida, vai para a fazenda do Sinhô em Itaparica, onde começa um lento processo

de reterritorialização através do contato com outros escravos, que passam a constituir sua nova

família. A constituição familiar foi narrada por ela quando retorna para Uidá, só que agora seria

uma nova família: “Os brasileiros que retornavam no mesmo navio viravam quase uma família”

(GONÇALVES, 2010, p. 756).

Sua vida no Brasil será marcada por intensa mobilidade espacial, com cronotopos

geográficos, pois se desloca da Ilha dos Frades (local onde passa a quarentena, antes de ser

vendida) para Salvador, de Salvador para Itaparica, de Itaparica para Salvador, de Salvador para o

Maranhão, depois para Salvador. Na primeira Capital do Brasil, muda diversas vezes, quando

vira escrava de aluguel e quando consegue pagar sua própria alforria. Depois vai para Santos, de

Santos para São Paulo e Campinas, de Santos para o Rio de Janeiro, de onde parte de volta para a

África. Mesmo em sua terra, ela já se deslocara de Savalu, onde nasceu, e, após a morte da mãe e

do irmão, parte com a irmã e a avó para Uidá.

Os processos de mestiçagens e transculturação em Kehinde têm início nessas travessias

espaciais e culturais. Ela entra em contato com outra cultura e, assim, gera outros novos produtos

culturais. Ao retornar para a África, ela sente falta desses novos produtos culturais e começa a

implantá-los por lá: “Aos poucos fui conhecendo Uidá e ficando com mais e mais saudades da

Bahia e de São Sebastião.” (GONÇALVES, 2010, p. 756).

Roland Walter, em seu artigo “Mobilidade cultural: o (não-)lugar na encruzilhada

transnacional e transcultural” (2008), afirma que a existência diaspórica designa um entrelugar,

caracterizado por desterritorialização e reterritorialização, e a implícita tensão entre a vida aqui e

tanto a memória quanto o desejo por lá. Kehinde, por conta das suas mobilidades e travessias,

passou a ter uma múltipla consciência e um olhar caracterizados pelo difícil diálogo entre os mais

variados costumes e maneiras de pensar a que fora submetida.

Outra herança que Kehinde traz consigo é seu nome. Mesmo recebendo um novo nome

em terras brasileiras, ela sempre fez questão de preservar seu nome africano, numa tentativa de

preservar a memória e a ancestralidade de sua família. Essa dupla identidade da protagonista só

tem fim ao retornar para África, depois de constituir uma nova família e assumir de vez o nome

que lhe fora dado no Brasil:

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Para os brancos fiquei sendo Luísa, Luísa Gama, mas sempre me considerei Kehinde. O nome que a minha mãe e a minha avó me deram e que era reconhecido pelos voduns, por Nana, por Xangô, por Oxum, pelos Ibêjis e principalmente pela Taiwo. Mesmo quando adotei o nome de Luísa por ser conveniente, era como Kehinde que eu me apresentava ao sagrado e ao secreto. (GONÇALVES, 2010, p.73).

Ela também passou a ter saudade de outras coisas brasileiras, como a cultura, roupas e

casas, bem diferentes das que havia em Uidá. “A casa nova também era antiga, mas já se parecia

mais com as casas da Bahia, pois tinha pertencido a um brasileiro”. (GONÇALVES, 2010, p.

756). Essa nova morada era temporária e só durou o tempo em que construía sua nova morada.

“O John disse que aquilo era temporário, que construiríamos a nossa casa e teríamos moveis

bonitos, do jeito que alguns brasileiros e os comerciantes ricos tinham, nem que precisássemos

mandar vir do Brasil” (GONÇALVES, 2010, p. 765). Essa casa nos moldes das casas brasileiras

logo chamou atenção da cidade, e todos que tinham dinheiro contratavam os serviços dela.

O dinheiro para a compra da sua primeira casa e, posteriormente, para a construção da

segunda casa, veio do seu envolvimento, juntamente com John, com o tráfico de armas. Nesse

período, ganharam muito dinheiro, o qual investiram na Casas da Bahia, virando uma empreiteira

de sucesso:

Às vezes eu ficava um pouco constrangida por me relacionar com mercadores de escravos, mas logo esquecia, já que aquele não era problema meu. Eu não conseguiria resolvê-lo mesmo se quisesse, e também não poderia ficar com muitos escrúpulos depois de fornecer armas para o rei Guezo, sabendo que seriam usadas em guerras que fariam escravos, quase todos mandados para o Brasil. Muitas vezes vi passar os exércitos tribais ou os reais, indo para as guerras ou voltando delas. (GONÇALVES, 2010, p. 771).

Mesmo sabendo a origem do seu dinheiro, Kehinde continua sem demonstrar remorso

algum, mesmo sabendo que muitas das armas que o marido vendera ajudavam a capturar mais

escravos e a matar outros.

Dialogando com a história, a antropologia e outros romances, não só da literatura nacional

como também mundial, Ana Maria Gonçalves constrói a narrativa do seu romance. Entre

cronotopos, dialogismos, polifonias, serendipidades, metaficções historiográficas, resiliência,

retour, détour, ela flerta com a fronteira entre o real e o imaginário da memória de Kehinde, ou

Luísa Andrade da Silva, a Luísa Mahin, heroína da Revolta dos Malês.

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À GUISA DE CONCLUSÃO

Ao fim do romance de Ana Maria Gonçalves, surge, pelo menos, uma dúvida: será que

Kehinde consegue chegar ao seu destino final e, enfim, encontrar o filho desaparecido? Pois,

mesmo considerando uma “[...] bênção que um filho representa para a mãe e para toda a família,

porque ele herda e perpetua a história e a memória” (GONÇALVES, 2010, p. 207), a narradora

deixa um filho extraviado. Mas outros extravios e desvios fizeram parte de sua vida, ela deixou

de ser Kehinde para ser Luísa, se tornou brasileira, acabou cega e continuou procurando o filho,

mesmo tendo constituído uma nova família.

Em uma frase atribuída a Caio Fernando Abreu, ele questiona ser tão estranho carregar

uma vida inteira no corpo e ninguém suspeitar dos traumas, das quedas, dos medos, dos choros.

Em sua história, já no fim da vida, Kehinde não relata a preocupação de ninguém da sua nova

família em África em querer saber do seu passado, nem da sua história de vida pregressa; só

Maria Clara, a sinhazinha, com quem mantivera uma verdadeira amizade e com quem trocou

cartas até o fim da vida. Nessas trocas epistolares, Kehinde matava saudade de seu tempo de

Brasil e tinha notícias sobre a investigação do paradeiro de seu filho. “Nanã é a guardiã do saber

ancestral” (PRANDI, 2001. p. 21).

Em sua narrativa, ela vasculha e evoca as suas memórias e experiências desde um ponto

de vista pessoal e, por esse mesmo motivo, não se pode afirmar que ela represente, com isso, a

categoria dos negros ou da mulher negra. Ao contrário, ela não levanta bandeira alguma, mas

esse fato não impede que o romance sirva como ponto de partida para que se questionem fatos e

fatores importantes sobre o movimento negro, ou da literatura afro-brasileira, ou do romance

histórico.

Sua escrita busca um mero registro dos acontecimentos de vida para que Omotunde, o

filho desaparecido, extraviado, pudesse ter acesso, sem desconsiderar que a escrita tem efeitos

sobre aquele que escreve. A escrita é endereçada a esse filho, o leitor apenas se dá conta disso

depois de certo número de páginas lidas. Nós, leitores, somos intrusos nessa história e lemos a

carta alheia. “Exu é o orixá sempre presente, pois o culto de cada um dos demais orixás depende

de seu papel de mensageiro. Sem ele orixás e humanos não podem se comunicar” (PRANDI,

2001. p. 20).

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Mesmo seguindo essa linha, Ana Maria Gonçalves não só dá voz a uma escrava, como dá

lápis e papel, já que, na literatura nacional, os negros já tinham sido protagonistas, mas nunca

narradores de sua própria história. Sua obra é a primeira a narrar a saga dos contingentes de

africanos trazidos para as Américas como escravos, é a primeira a narrar do ponto de vista de

quem mais sofreu com esse processo, a mulher, por ser mais fraca e vítima constante de violação.

Kehinde é filha de Oxum, que, no panteão dos Orixás, é a deusa da fertilidade, mãe,

carregando consigo predicados de beleza, riqueza e capacidade de projeção social. Essas são as

características da personagem que se confundem com as de Oxum. “Eu vi mulheres comuns

virando rainhas. Eu vi um povo inteiro perseguindo a poesia. Eu vi a rua bela, bela como elas.

Enfeitadas de Nanãs, Iansãs e Oxuns e Iemanjás” (MERCURY, 2012).

No romance, o que chama bastante atenção é como os negros que aqui chegaram

constituíam novas famílias relacionadas à religião de matriz africana. Muitos chegavam sozinhos

e estabeleciam vínculos afetivos a partir da religião, e esses vínculos eram muito difíceis de

serem quebrados. Esméria passou a representar para Kehinde como uma segunda mãe, já que a

sua e a avó já haviam morrido. A pequena ouvia e aprendia os ensinamentos da velha senhora,

estabelecendo um vínculo afetivo, como um laço de sangue. O laço era tão forte que Bonjokô, o

primeiro filho de Kehinde, via Esméria como uma avó. Mesmo depois de alforriada e de

constituir família com o português, a protagonista a leva para morar com ela, que permaneceu

com a filha postiça até sua morte. Esse tipo de laço é preservado até hoje pelas religiões de

matrizes africanas.

No Carnaval de 2002, o Bloco Afro Ilê Aiyê foi para a avenida com o tema Malês – A

Revolução e a música tema foi Levante de Sabres Africanos, de autoria de Guellwaar e Moa

Catendê (2012). A segunda parte da canção diz assim:

O poder era o fim e a rainha esquecida Luiza Mahin

Temperou a revolta no tempo da memória; Em nome de Allah ser o dono da terra

Para calafatear nosso caminho. Só quem tem patuá não tem medo da guerra

Escorrega, levanta e nunca está sozinho. Alufás: Dassalú, Dandará, Salin,

Licutan, Nicobé, Ahuna...

Na verdade, Luiza Mahin nunca fora esquecida pelo povo, nem pelo movimento negro.

Na Bahia, há várias escolas públicas com seu nome. Luiza representa o povo baiano, batalhador,

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obstinado, sonhador, “[...] uma gente que ri, quando deve chorar e não vive, apenas aguenta [...]”

(NASCIMENTO, 2012). Sua história se confunde com a de outras tantas heroínas baianas como

Maria Quitéria, Joana Angélica, ou a cabocla, um dos símbolos da Independência da Bahia.

Heroínas de carne e osso, que foram inventadas e /ou mantidas pelo povo que precisava e precisa

acreditar em heróis para poder conseguir forças de continuar batalhando em seu dia a dia.

As vozes de outros romances e documentos no romance estudado são muitas, sendo

comprovadas com a bibliografia no final do livro. Essa pesquisa por parte da escritora comprova

a natureza do romance histórico, traço marcante no livro. Romance histórico, metaficção

historiográfica, polifonia, todas essas teorias cabem em Um defeito de cor (2010). A autora

inaugura com seu romance um novo tipo de narrativa que pode englobar todas as citadas nessa

pesquisa.

Dessa forma, esta dissertação buscou analisar o romance Um defeito de cor (2010),

enfatizando a relação entre literatura e história, através das teorias do romance histórico e da

metaficção historiográfica. Por não ser, ainda, conhecida do grande público, optou-se por se fazer

uma pequena fortuna crítica da autora e do romance pesquisado. O uso das teorias bakhtinianas

foi importante e se pôde observar o diálogo do romance de Ana Maria com outros romances e

documentos e personagens históricos.

Por fim, o que temos aqui e agora não é um ponto final, mas um ponto de partida e a

certeza de que esta pesquisa não será aqui encerrada e terá continuidade, pois história e literatura

sempre andaram e sempre andarão juntas e dialogando.

Aqueles que cruzam o mar, mudam de céu, mas não mudam de alma. (Horácio).

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