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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA Ricardo da Silva Mello Marca significa? Leitura semiótica e pragmática do conceito de marca comercial e princípios da teoria do branding contemporâneo. Programa de Estudos de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica SÃO PAULO 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA

Ricardo da Silva Mello

Marca significa? Leitura semiótica e pragmática do conceito de marca comercial

e princípios da teoria do branding contemporâneo.

Programa de Estudos de Pós-Graduação

em Comunicação e Semiótica

SÃO PAULO 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA – PUC-SP

Ricardo da Silva Mello

Marca significa?

Leitura semiótica e pragmática do conceito de marca comercial

e princípios da teoria do branding contemporâneo.

MESTRADO EM Comunicação e Semiótica

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica: Dimensões Políticas da Comunicação, sob a orientação da Profª. Doutora – Lucrécia D´Aléssio Ferrara.

SÃO PAULO 2019

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Banca examinadora: Profª Dra. Lucrécia D´Aléssio Ferrara (PUC-SP/Orientadora) Prof. Dr. Ivo Assad Ibri (PUC-SP)

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Agradecimento pelo incentivo à pesquisa;

Trabalho realizado com apoio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Research and development supported by CNPq. nº 134258/2017-7.

E à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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Muito obrigado;

Profª. Lucrécia D´Aléssio Ferrara, Prof. Ivo Assad Ibri e Charles Sanders Peirce (no lugar do Cosmo onde estiver), pelos ensinamentos para a vida.

Especialmente minha família; Antônio, Gizelda, Alexandre, Fernanda e Luciana; apoio de todas as horas. Também Dub, Yakuy Tupinambá, Uli, Rafael Dum Dum, Leandro (Nuts), Paulo e Fernanda (cpt) e Murilo. Aprendo muito com vocês, estamos juntos!

A todos que apoiaram direta ou indiretamente, ignorando, criticando, ouvindo, dando ideias e participando da experiência. Da contradição nasce a dúvida, o diferente e o possível.

Dedico à Ricardo e Fabiana; real sentido da vida.

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RESUMO

No contemporâneo as marcas comerciais assumiram globalmente o protagonismo estratégico

das empresas e dos movimentos concorrenciais em praticamente todos os segmentos do

mercado. Ampliando o contexto, ao ocuparem o centro da dinâmica, estão também mediando

a sobrevivência das sociedades de consumo de massa, bem como a possibilidade para

autorrealizações individuais. Esta pesquisa é resultado de uma década de estudo sobre uma

questão primária diante deste cenário: o que significa marca comercial? Surgiu de contradições

entre conceitos, condutas e práticas empresarias observadas durante os últimos vinte anos de

atuação profissional em projetos de comunicação e design para marcas de diversos setores do

mercado brasileiro. O foco é a definição apresentada pela teoria aplicada do Branding,

disciplina dedicada ao valor da marca, sua conexão com gestão de negócios e orientação de

condutas organizacionais e que hoje tem grande influência e alcance no mercado. Envolve obras

de seus principais autores como Al Ries, Jack Trout, Phillip Kotler, David Aacker, Scott

Bedbury, Jaime Troiano entre outros. O significado de marca é comumente associado com o

signo, em síntese nome-logotipo, mas desde os anos noventa as teorias vêm adequando o

sentido do termo ao contexto sociocultural-econômico do “capitalismo do imaterial”, que

ampliou a complexificação de seu sentido. Hoje é considerada essencialmente um símbolo

representado por um sistema de signos que envolve e orienta toda a dimensão da empresa, mas

existe efetivamente dentro da mente dos consumidores. Ao analisar estas definições utilizando

as bases conceituais do Pragmatismo de Charles S. Peirce (1839-1914), surgiu a hipótese de

que, apesar da adequada ampliação do significado ao contexto, as premissas também

evidenciaram uma contradição primordial: a inexistência de um objeto que a particulariza,

condicionando-a à dicotomia signo/significado de caráter unívoco, configurando hábitos de

reconhecimento, determinando valores e induzindo comportamentos. Na comparação entre o

pragmatismo de Peirce e a teoria da marca aponta-se a questão da pesquisa: se a marca é

geradora de ideias, qual é o “ser” ou existente que de fato a incorpora, pensa e assume a

responsabilidade pelos discursos, práticas e atitudes que a conceituam?

Palavras-chave: marcas comerciais, branding, design, semiótica, pragmatismo.

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ABSTRACT

In the contemporary world, brands have taken on a strategic leading role globally for companies

and competitive movements in practically every industry. In a wider context, by occupying the

center of that dynamic, they also mediate the survival of consumerist societies, as well as the

possibility of individual self-actualization. This thesis is the result of a decade of study about a

major issue in that scenario: what do brands mean? It is also the result of contradictions between

concepts, behaviors and business practices observed over the last twenty years of work in design

and communications projects for brands in various industries in Brazil. It focuses on the

definition from applied branding theory, a disciplined dedicated to brand values, its connection

to business management and organizational behavior, which has achieved significant influence

and reach in the market. It draws on the works of major authors in the field, such as Al Ries,

Jack Trout, Phillip Kotler, David Aacker, Scott Bedbury, and Jaime Troiano, among others.

The meaning of a brand is usually associated with a sign, a synthesis of name and logotype;

however, since the 1990s, theories have adapted the meaning of the term to the social, cultural

and economic context of “immaterial capitalism,” which has further complexified its meaning.

Today, it is considered essentially a symbol represented by a system of signs involving and

guiding the organization as a whole, but effectively exists within the minds of consumers. By

analyzing these definitions based on the philosophy of Pragmatism, developed by Charles S.

Peirce (1839-1914), we arrive at the hypothesis that, despite the fact that the meaning has been

widened to fit the context, the premises also identify a fundamental contradiction: the non-

existence of an object that particularizes it, conditioning it to the univocal sign/meaning

dichotomy, configuring habits of recognition, determining values, and inducing behaviors. The

comparison between Peirce's Pragmatism and brand theory points to the key question of this

research: if brands are idea generators, what being actually embodies it, thinks it and is

responsible for the discourse, practices and attitudes that define it?

Keywords: brands, branding, design, semiotics, pragmatism.

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1: marca como ponto de conexão de variados intérpretes. ............................................. 19 Gráfico 2: marca como ponto de conexão conceitual de signos e comunicações. ....................... 20 Gráfico 3: representação diagramática do espectro de uma marca conforme percebido na experiência empírica. ............................................................................................... 22 Gráfico 4: representação diagramática dos ambientes “interno” e “externo” da marca. ...............27 Gráfico 5: representação sintética-diagramática exterior e interior do signo adotada nos mapeamentos da marca. ................................................................................................................. 94 Gráfico 6: representação sintética-diagramática do signo com conceito de simetria. .................. 95 Gráfico 7: exemplo de mapas desenvolvidos no estudo. .............................................................. 98 Gráfico 8: representação do contexto sendo a marca um ponto-nodal. .........................................98 . Gráfico 9: mapa-base utilizado no estudo para a análise do problema do objeto. ........................99 Gráfico 10: diagrama base do “eu-marca”. .................................................................................104 Gráfico 11: a conversa platônica entre “eu” e “eu-mesmo”. .......................................................113 Gráfico 12: tabela da constituição do brand-equity da marca, segundo David Aacker. .............118 Gráfico 13: diagrama do “eu-marca”, segundo a premissa da marca-imaterial. .........................120 Gráfico 14: diagrama do “eu-marca”, na forma do branding. .....................................................121 Gráfico 15: diagrama do “eu-marca”, segundo a ótica do executivo de negócios. .....................127 Gráfico 16: diagrama do “eu-marca”, segundo a ótica da empresa. ...........................................128 Gráfico 17: diagrama do “eu-marca”, dimensão do objeto. ........................................................132 Gráfico 18: diagrama do “eu-marca”, dimensão do objeto + signo. ..........................................134 Gráfico 19: diagrama do “eu-marca”, na forma integral do branding. ........................................136 Gráfico 20: sugestão da constituição pragmática do “eu-marca” ............................................... 137 Gráfico 21: mapeamento interno ................................................................................................ 147 Gráfico 22: mapeamento de conexões. ........................................................................................147 Gráfico 23: mapeamento de processos e fluxos...........................................................................148 Gráfico 24: mapeamento da semiose. ......................................................................................... 148 ..

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 1: imagem 3D da Terra com corte denotando sua natureza interior. ....................91 Ilustração 2: se a Terra fosse a marca, estaria integrada nesta realidade. ..............................96 Ilustração 3: representação da “origem” e das potências cósmicas. .................................... 96 Ilustração 4: movimentos espirais e orbitais do universo, sugerido como representação do caráter evolutivo do signo no espaçotempo. .................................... 97 Ilustração 5: representação da realidade ampliada em sua diversidade, infinita e contínua. ................................................................................................................ 97 Ilustração 6: imagem que representa a lei do Acaso de Peirce, no contexto desta metáfora. ...................................................................................................97 Ilustrações 7, 8 e 9: representações do “eu-signo” utilizadas como metáforas da constituição triádica do “eu-marca”. ...............................................................................102 Ilustração 10: neurônios, metáfora de rede e sistema. ........................................................103 Ilustração 11: conceito da origem do “eu-signo” orgânico. ................................................103

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SUMÁRIO

1. Marcas e dúvidas.................................................................................................................11

1.1. Rumo ao desconhecido neste mundo das marcas..........................................................12

1.2. Marca: ponto de conexão simbólica de variados intérpretes.........................................17

1.3. O problema do significado da marca pelas definições técnicas....................................26

1.4. A experiência da marca como origem para o problema da origem...............................30

1.5. Pragmatismo e o problema do objeto............................................................................43

2. Marcas e contextos..............................................................................................................49

2.1. Marcas e hábitos............................................................................................................50

2.2. O mundo das marcas.....................................................................................................52

2.3. O mundo dentro das marcas..........................................................................................65

2.4. O mundo da teoria do branding.....................................................................................72

3. Marcas e contradições........................................................................................................84

3.1. O problema da origem-objeto da marca........................................................................85

3.2. Abduções, diagramas, metáforas e hipóteses para pensar a marca...............................90

3.3. Origem etimológica: o primeiro grau do significado..................................................106

3.4. Origem contextual: o segundo grau do significado.....................................................107

3.5. Origem do valor: o terceiro grau do significado.........................................................109

3.6. O ponto de inflexão.....................................................................................................111

3.7. Métodos: a diferença lógica entre branding e Pragmatismo.......................................115

3.8. O ponto de inflexão e suas consequências teóricas.....................................................117

3.9. Experiência x Performance; e a hipótese do eu-marca................................................121

4. Marcas e possibilidades....................................................................................................139

4.1. Experiência, Ética e Lógica: rumo à integração da marca em um universo de possibilidades...............................................................................140 Referências Bibliográficas....................................................................................................151

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1.

Marcas e dúvidas

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1.1 Rumo ao desconhecido neste mundo das marcas.

O que significa marca comercial no contemporâneo? Não alguma específica e atuante no

mercado com seus planejamentos estratégicos, conceitos, produtos, operações, discursos

publicitários e imagens, mas o significado geral, técnico e objetivo do termo. Esta questão tem

movido estes estudos desde dois mil e nove e até hoje não há conclusões, mas a formação de

uma rede densa de dúvidas e hipóteses que têm possibilitado novas experiências de

interpretação.

O foco da análise é a definição apresentada pela teoria do branding, disciplina

metodológica e técnica surgida nos Estados Unidos da década de noventa, dedicada à

conceituação geral, orientação da gestão de empresas e desenvolvimento da marca como

princípio ativo de um negócio. Apesar de restrita ao universo de conhecimento latu-senso de

administração, marketing e comunicação aplicada, as teorias do branding vêm influenciando o

pensamento, modo de ação e dinâmica geral do mercado, lançando tendências a partir de

experiências bem-sucedidas de grandes companhias como Apple, Amazon, Coca-Cola e Nike.

As marcas hoje estão integradas na cultura e seus signos são habituais nas sociedades.

Figuram como algo existente, corriqueiro e não costumam despertar qualquer tipo de dúvida ou

insegurança quanto aquilo que significam em seu aspecto geral. Parece ser bastante evidente o

entendimento sobre o que é um produto, um serviço, a publicidade, design, arquitetura

comercial e a empresa em seu aspecto geral. Na bibliografia técnica também veremos um

significado instituído há décadas que evolui constantemente preservando premissas que se

mantêm imutáveis e é concordante com o senso comum. Basicamente, em caráter geral, quando

se pensa em marcas, logo se associa o universo semântico que compreende, a partir de um nome

e logotipo: o produto/serviço, a empresa/companhia e ainda os conceitos subjetivos que

comunica. Conjunção aparentemente evidenciada e logicamente constituída.

Diante deste quadro, a própria questão central pode parecer desnecessária. Que problema

haveria neste hábito constituído na forma de pensar e agir com relação às marcas? E se muitos

teóricos a definem com propriedade há muito tempo, o que abalaria a compreensão de um termo

desta natureza, a ponto de tornar-se objeto de estudo por uma década, ainda sem conclusões

definitivas? Neste caso, o que desfigurou o significado foi a experiência. Não exatamente a de

consumo, apesar de inerente, mas a vivência no contexto “interno” de desenvolvimento das

marcas.

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Este estudo surgiu a partir da perspectiva profissional e envolve a conjunção da empresa

considerando suas características gerais: o negócio, estratégia, conceito da marca,

desenvolvimento de produtos, comunicações, ações diretas com públicos e a consequência

destas ações. No cenário dos “bastidores”, os conhecimentos teóricos do branding, as

premissas-guia que definem a marca e as metodologias decorrentes são estudadas, difundidas,

assimiladas e evoluídas tacitamente pelas empresas e profissionais. Orientam condutas,

habituando formas de pensar e agir.

Há uma diferença importante entre a delimitação do tema e análise a partir da interação

entre a marca e o consumidor e a que é tecida pela ótica técnica-profissional. Colocando-se no

papel do consumidor, aquele que recebe, interpreta e reage aos signos transmitidos pelas

marcas, veremos que esta é uma condição comum a todos, inclusive executivos, profissionais,

publicitários, pesquisadores, críticos e teóricos. Nem mesmo aqueles que elaboram e praticam

as leis e estratégias de marcas estão livres de suas inferências e o hábito de consumir, que sugere

escolhas. Enquanto consumidores, nos habituamos com ela. Fazem parte de nossas experiências

de vida em praticamente todos os momentos, nos acompanham e estão muito próximas, mesmo

que ocultas ou ignoradas.

Neste contexto do contemporâneo, percebe-se que as marcas comerciais fazem parte do

cotidiano das sociedades de consumo. Alguns teóricos do branding como Scott Bedbury dizem

que este é “O Novo Mundo das Marcas” (Campus, 2002), expressão que também é título de

uma de suas obras. Ou a era do “O Império das Marcas” (Negócio, 1997), como apresenta Jaime

Troiano e Nelson Blecher. Estas expressões ilustram uma condição que parece bastante real:

vivemos cercados e mediados por marcas de maneira intensa e vital. Se repararmos bem, estão

presentes direta ou indiretamente em nosso dia-a-dia, associadas com a miríade de produtos e

serviços que utilizamos.

A publicidade e design também fazem parte historicamente deste repertório cultural que

hoje é de dimensão global e as marcas nos envolvem em todas as circunstâncias de consumo,

das necessidades básicas ao entretenimento. Escutamos, vemos e interagimos com elas,

diariamente. Do concreto das ruas, automóveis, alimentos, para a preparação educacional e

profissional, os cuidados com saúde, viagens e uma infinidade de coisas, veremos que muitos

objetos e serviços que utilizamos estão supostamente associados com um nome-próprio, uma

entidade que forneceu ou permitiu o acesso e realização da experiência individual. Muitas

vezes, o próprio produto também tem um nome-próprio que remete, direta ou indiretamente

para uma origem produtora, a exemplo de automóveis e celulares.

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Habituados com este contexto, também ajustamos nossas formas de agir, definindo

parâmetros de valor e critérios de relevância destes nomes comerciais no momento das escolhas

de consumo. Conjugamos o valor objetivo do preço, com o subjetivo; sendo que a intensidade

e influência variam de acordo com o objeto pretendido, experiência de uso, situação pessoal e

possibilidade financeira para estas realizações pessoais. Mas neste contexto, tendo como ponto

de vista os olhos do consumidor, o significado de marca comercial se molda individualmente,

considerando as influências culturais, condições de vida e relação afetiva. Um significado que

varia conforme a opinião, fruto da experiência individual no mundo de consumo.

Durante os anos de pesquisa e eventualmente, perguntava para pessoas não envolvidas

com o universo técnico do mercado o que significava marca comercial, pedindo informalmente

para que não focassem a resposta em uma preferência específica, mas considerassem seu

aspecto geral válido para seus muitos tipos. Havia certo grau de vagueza nas respostas como

traço comum, em interpretações com boa margem subjetiva. Relacionam-se a empresa, o

produto, um conceito e sensação e, de fato, considera-se que, em síntese, é o nome e logotipo.

Ou seja, marca, de maneira objetiva, é o signo, o desenho e fonema que a representam. Uma

relação essencialmente dual-lógica entre um signo e um significado, enquanto o objeto fica

disperso entre materialidades, assumindo formas variadas como o produto, a loja e,

dedutivamente como fundo ou origem, a empresa.

Como veremos, este também é um aspecto singular na teoria do branding, que também

não associa um objeto particular com a marca, mas uma densa rede de manifestações concretas

e simultâneas. Condição esta que vem se revelando como porta de entrada para o desconhecido

mundo das marcas, porque evidencia contradições que podem ser resultado de possíveis

incoerências em suas concepções gerais.

Evidentemente, não cabe aos consumidores responderem com precisão indagações

técnicas sobre o significado da marca comercial que, considerando seu caráter geral, é

conhecimento que tem origem no restrito ambiente das ciências latu-sensu. Eles têm uma

relação de necessidade e compreendem o grupo dos que são afetados pelos discursos

publicitários e ações mercadológicas, o que inclui praticamente todos os indivíduos de uma

sociedade de consumo de massa. Estão preocupados com suas próprias vidas e objetivos

pessoais, vivendo em um contexto no qual dependem das marcas para praticamente qualquer

realização material, mas não têm a responsabilidade de atestar teorias ou tecer análises críticas

sobre definições técnicas.

A delimitação deste estudo é de origem particular. Nasceu da experiência

fenomenológica que abrangeu todo espectro da marca que hoje é envolvido pela teoria do

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branding, incluindo sua metodologia e aplicabilidade. A questão surgiu da vivência direta

atuando como designer-gráfico, gestor de núcleos de trabalho e projetos de comunicação para

empresas de variados setores e portes do mercado brasileiro, como o financeiro, moda,

industrial, serviços, saúde, hipermercados, cosméticos e outros, nas últimas duas décadas.

Envolvimento em trabalhos para nomes como Wall-Mart, C&A, Bradesco, oBoticário e a

Insinuante, esta última, marca que é potência do varejo de eletrodomésticos e mobiliário no

nordeste brasileiro. Também empresas de alcance local ou regional como a Kallan Calçados,

atuante no mercado de São Paulo e baixada santista, assim como pequenos consultórios

médicos, de advogados, até organizações e entidades sociais.

Particularmente, outro fator importante que permitiu uma visão mais ampliada do

espectro da marca e a relação com gestão de negócios, equipes de desenvolvimento criativo,

processos internos e evolução de uma empresa veio do acompanhamento e atuação em uma

agência de comunicação em São Paulo pelos últimos quinze anos. Neste período, vi o

surgimento e fim de marcas de clientes e, também, o desenvolvimento da própria agência,

evolvido em todas as suas instâncias, conquistas e problemas. Era responsável pela mediação

entre a diretoria e a equipe, bem como o controle e organização do fluxo de trabalho, que atingiu

a demanda de mais de cem projetos por mês, de diferentes naturezas e amplitudes, dos mais

simples e corriqueiros como folhetos e malas-diretas, até a elaboração de campanhas que

envolviam planejamento, criação, diferentes ações simultâneas e mídias.

Produziam-se comunicações de diversos tipos, para públicos internos e consumidores. E

ainda o desenvolvimento de partes essenciais de projetos de branding, como a concepção de

conceitos gerais, identidade de marcas, repertório de signos e respectivos manuais. Foram

incontáveis reuniões com diretores, gerentes, assistentes e, também, CEO´s, profissionais e

equipes de diversos setores internos de uma organização, como o marketing, planejamento

estratégico, compras, recursos humanos e até financeiro. A experiência incluiu ainda diversas

oportunidades de observação em pontos-de-venda, conversas com profissionais da “linha de

frente”, gerentes de loja e ainda o acompanhamento de pesquisas com consumidores.

Do processo de trabalho em si, a dinâmica que começa anteriormente com os briefings,

definições estratégicas, planejamentos e se estendem pelo processo de criação,

desenvolvimento de peças, trâmites de alteração, finalização de projetos, impressões e

implementações de campanhas com mídias físicas e virtuais. Projetos de diferentes

envergaduras e prazos, de minutos à meses. Era um processo cuja dinâmica se assemelhava

com a fábrica fordista do início do capitalismo moderno. Considerando que eram produzidos

mais de cem trabalhos específicos por mês, considerando o atendimento simultâneo de clientes,

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teríamos algo em torno de mil e duzentas demandas por ano ou mais; de simples alterações a

criações complexas. No período dos últimos dez anos, possivelmente mais de dez mil jobs.

A questão da velocidade e volume de produção é importante a ser considerada como traço

do contexto, como veremos mais à frente, nos próximos capítulos. A quantidade ganha

expressão pelo número de horas trabalhadas, em média de dez a doze, mas com períodos de

picos contínuos de catorze a dezesseis, incluindo viradas de noite e trabalhos de fim de semana,

durante meses seguidos. O recorde foram setenta e duas horas trabalhando sem parar, com o

projeto ficando pronto aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo. Sem dúvida uma

intensa vivência, talvez ao seu limite.

A experiência, em seu aspecto geral, ampliou o quadro para o pensamento do significado

da marca, envolvendo a observação direta e o conhecimento dos processos que vão desde a

origem de um negócio até a formação da marca e sua atuação no mercado. Permitiu uma visão

de conjunção dos processos anteriores e posteriores de constituição dos signos do design e

discursos publicitários, bem como as interações e dinâmica entre estes espectros. Em analogia,

uma perspectiva que envolve “dentro” e “fora”. Estava na parte de dentro da marca, com os

olhos e pensamento voltados para fora, preocupado com signos e seus intérpretes, os

consumidores.

Estava bastante habituado com os conceitos e principais leis do branding, agindo e

praticando metodologias que, mesmo particularizadas no contexto e autoria da agência, eram

decorrentes de premissas universais, considerando o ecossistema profissional das marcas. O

pensamento era delimitado na associação binária entre signo/significado, ancorada na interação

entre marca/consumidor, sendo que a preocupação era concentrada em encontrar a boa relação

entre forma/função no prazo estipulado, geralmente o “pra ontem”.

Assim como os consumidores, dentro da agência todos tinham certeza e segurança quanto

ao que as marcas comerciais significavam e, principalmente, qual era seu propósito. Com as

causas bem definidas, ficávamos de costas para as origens estipuladas pelas premissas gerais e

nos ocupávamos com todo empenho em buscar a boa performance entre meio e fim. Era um

mundo de natureza essencialmente bilateral, sendo o terceiro, as leis gerais que orientavam as

práticas de forma indutiva, de fato ocupando a posição inicial de todo um processo e sua

dinâmica.

De repente esta condição mudou e a dúvida surgiu, incontrolável. Não foi moldada

previamente como um cogito cartesiano, no sentido de que durante a experiência

fenomenológica ficava meditando sobre a teoria do branding procurando encontrar algo para

contestar. Ela simplesmente aconteceu. Creio ser praticamente impossível descrever a sensação

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da dúvida. Quando percebi já estava envolvido por ela, num misto de percepções e sensações

que indiciavam algo em desacordo e que surgiu da confluência de diversos fatores, como os

problemas que aconteciam nos processos de desenvolvimento das marcas, tanto dentro da

agência, como em muitos clientes observados na experiência empírica.

Se não consigo descrever a sensação real da dúvida, uma representação pode ajudar a

compreender a situação como uma encruzilhada, imaginando um longo caminho percorrido de

forma homogênea em linha reta por muito tempo e que de repente chega numa bifurcação de

duas vias. Na primeira, há uma placa escrita “conformação”, ou seja, um leve desvio no

caminho, causado pela dúvida, mas que logo torna à linha reta interminável em uma paisagem

plana de horizonte infinito, determinado, previsível em que uma hora encontra a aposentadoria.

Seria o caso de continuar a seguir o que o hábito que condiciona o pensar e agir, resolvendo

briefings e problemas nos processos de criações em prazos recorde para ganhar o salário no fim

do mês, aceitando as condições muitas vezes impostas e contrárias a uma positiva relação ética

entre as partes.

Na segunda, havia a placa “Investigação” e, daquele ponto de vista, o caminho parecia

muito mais desafiador, com obstáculos, ladeiras, curvas em montanhas que cobriam a

observação do horizonte a partir de certo ponto, perdendo-se ao se misturar com a paisagem.

Um caminho sem ponto exato de chegada, tão incerto e possivelmente perigoso. Está evidente

que decidi enfrentar a dúvida e essa dissertação é uma consequência desta incursão. Bem, quem

não gosta de uma aventura ao desconhecido?

1.2 Marca: ponto de conexão simbólica de variados intérpretes.

O tema da marca vem ocupando o mercado com intensidade desde os anos noventa,

quando o branding se firmou como disciplina e metodologia. Muito além do significado do

senso comum, delimitado no signo/significado e síntese nome/logotipo, hoje a definição do

branding apresenta que a marca é essencialmente um símbolo e objetiva a constituição de

hábitos: o do pensar e fazer profissional, também o do consumo. Uma ideia, algo de natureza

puramente imaterial que se traduz em signos que envolvem os sentidos mas que, assim como

entendem os consumidores, tem associação difusa com o objeto, variando entre as

manifestações que incluem cores, formas, tipografias, imagens combinadas em sistemas e

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regras, anúncios publicitários de variados tipos, assim como o produto, embalagem, a

arquitetura da loja entre outras manifestações concretas relativas.

Hoje entende que faltou a carga simbólica a essa definição e por isso construímos uma nova forma de interpretação: a marca é uma conexão simbólica e afetiva entre uma organização, sua oferta material, intangível e aspiracional e as pessoas par as quais se destina. (PEREZ, 2004, p. 10).

Da clássica definição da marca estritamente como signo (nome/logotipo), entendimento

que orientou as disciplinas de comunicação aplicada até os anos oitenta, também é senso

comum que ela evoluiu para a essencial constituição como símbolo. Ao mesmo tempo e como

anuncia a citação, entende-se que, agora, foi adicionada a carga simbólica ao significado

anterior. A marca “nome-logotipo” do senso comum ascendeu para “símbolo”, ou “conexão

simbólica”, incorporando em si um universo muito mais amplo de sentido. É o termo, a

proposição, o argumento e, também, a conexão de todo repertório de elementos sensoriais que

denotam sua existência. Não apenas signo enquanto índice (nome e logotipo), mas

primordialmente o puro abstrato do conceito geral que, em sua forma plena, está orientando as

representações e conjuga uma pluralidade de sentidos. Em outras palavras, nome-logotipo agora

é só nome-logotipo enquanto marca é o sentido geral expresso pelo signo. Imaterial, não assume

corporeidade capaz de qualificá-la objetivamente. Tornou-se real por suas inúmeras aparências

paralelas: o produto, a loja, a comunicação, a empresa e o conjunto de suas manifestações

existenciais.

Não está mais concentrada no nome-logotipo, mas expandiu-se para se tornar a ideia-guia

ou símbolo, que conecta todo o espectro que envolve a marca, conjugando a empresa (escritório

central, parque industrial), o produto (ou serviço/loja) e os intérpretes, sendo o consumidor o

foco primordial do desenvolvimento. Figura como a origem dos conceitos, comunicações e

design, bem como a orientação das condutas e práticas empresariais. Sendo o ponto-guia, a

marca é também mediadora de todas estas instâncias, orientando e organizando o conjunto de

significados a partir de sua premissa.

Embora indicie todo o conjunto ao qual se refere, também é autônoma e, como veremos,

teóricos consideram que ela existe de fato dentro da mente dos consumidores. Ou seja, é um

objeto do pensamento.

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A autonomia pode chegar à desencarnação total levando a marca a adquirir um sentido de vida totalmente descolado do produto. [...] e iniciar o processo de desencarnação, de modo que seu capital-imagem possa reencarnar em outros produtos que a dirijam até novas oportunidades de negócios. (PEREZ, 2004, p. 111)

A cadeia evolutiva e produtiva da marca envolve o espectro mencionado da

empresa/origem; produto/serviço e interações com o consumidor, centrada na concepção

comum de que o propósito é combinar duas necessidades de ganho de valor: o emocional e

financeiro. Esta associação permeia toda a cultura relativa à marca, do investidor e CEO ao

público no varejo. É então a portadora essencial da potência simbólica que almeja atingir, por

um lado, o maior valor afetivo possível e, de outro, o valor objetivo, de acordo com as regras

do mercado. A marca figura simultaneamente como a mediadora e centralizadora destas duas

necessidades de ganho de valor.

Se considerarmos a visão ampliada que a teoria do branding atribui ao espectro da marca,

veremos que efetivamente não estamos mais envolvendo apenas signos e significados nas

interações entre marca/consumidor, mas também um universo de pessoas, indivíduos,

profissionais, bem como grupos sociais que, de certa forma, deveriam estar conectados por

algum sentido, envolvendo os valores objetivos e subjetivos.

Na teoria do branding, as marcas assumem a iniciativa da conjunção, abrangendo um

universo que compreende praticamente todas as associações possíveis e processos que têm

origem, meio e fim ordenados e determinados; bem como uma contínua relação dentro-fora.

No entanto, ao ocupar o papel principal na determinação do significado, assume a complexa

missão de estabelecer um ponto-comum que conjuga todos estes diferentes espectros, como na

relação entre investidores, executivos, trabalhadores e consumidores. Como ideia geral que

envolve toda essa dimensão, inevitavelmente deve “dar conta” da conjunção simbólica de toda

esta gama de pluralidades.

Referências desta amplitude que a teoria do branding atribui à marca contemporânea

podem ser observadas nos diagramas apresentados pela teórica do design e branding Alina

Wheeler no livro “Design de Identidade de Marca” (Bookman, 2009):

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20

Gráfico 1: marca como ponto de conexão de variados intérpretes. Fonte: WHEELER, 2009, p. 19.

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21

Gráfico 2: marca como ponto de conexão conceitual de signos e comunicações. Fonte: Ibid., p. 13.

O primeiro gráfico ilustra a variedade de intérpretes com os quais a marca interage e, o

segundo, de signos. Em ambos, ela pontua o centro, enquanto ao redor orbitam ou se conectam

distintas dimensões, constituídas por indivíduos de grupos variados, que envolvem diversos

extratos da sociedade. Entre cada ponto de conexão, ou seja, a direta relação com cada grupo

de público ou stakeholders, termo corrente na literatura técnica, há uma troca de signos em

interações mútuas, mas a marca é primordialmente o centro abstrato que se multiplica em

manifestações diversas.

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“Quem não se posiciona dentro da mente está fora dos negócios.” (RIES; TROUT, 1981,

p. 4). Enquanto isso, essencialmente como uma ideia que existe na mente do consumidor

subentende-se que ele também é o ponto de convergência de todas estas dimensões. Mas com

autonomia, a marca surge como fonte de signos e discursos que são orientados para conquistar

a afetividade do consumidor potencial e manter relacionamentos para a fixação de bases de

fidelidade. Ele é sua fonte de inspiração, sustento, evolução e “objeto de pensamento”.

Essa “marca” que interage com o consumidor tem sua disponibilidade voltada para ele,

supostamente preocupada em atender suas necessidades e expectativas. Apresenta-se como

portadora e enunciadora de um tempo futuro, uma manifestação real no “agora”, mas que

direciona a mente para uma conduta, mesmo que considerando as compras por impulso. Até

neste caso, a ação imediata é um sinal do pensamento de uma situação e experiência in futuro,

que seja no minuto seguinte.

Em dimensão particular, seus conceitos apontam o “eu” imaginário, projetado como a

imagem de si mesmo, realizando de forma ideal uma experiência que ainda não aconteceu. Esta

condição vale tanto para as compras feitas para um churrasco quanto para remédios e os mais

altos planos e sonhos de conquista pessoal como um automóvel, imóvel e viagens. A marca

interage com o mais íntimo espaço individual e afeta a mente que, posteriormente, vai levar o

corpo ao consumo. São então geradoras de expectativas e, ao mesmo tempo, parte integrante

da natureza de “si”, na construção identitária de cada consumidor.

Hoje, as preocupações conceituais do branding e planejamentos estratégicos das empresas

também estão concentradas na “experiência da marca”. Se ela é a premissa e guia geral que

conjuga toda a dimensão do significado, esta experiência envolve todas as interações de um

intérprete com o signo, considerando também percepções subliminares e inusitadas como

visualizar o logotipo gravado no leme em um avião que passa de repente no céu, mas de fato

culmina com a realização individual do consumidor e sua ideia projetada in futuro. Ou seja, o

propósito é proporcionar uma experiência concreta somente possível após o consumo.

Ao sintetizar esta relação em uma figura que denota o real sentido percebido na

experiência, ao invés de diagramas orbitais como idealmente representa Aline Wheeler (2009),

seria mais adequado representar como um triângulo volumétrico em que a marca é ortocentro,

ou ponto de conexão das alturas. Aponta para cima e ao mesmo tempo faz convergirem os

outros três pontos fixos na base. Estes seriam: a empresa, o produto/serviço e o consumidor ou

intérprete. Fixos e ao mesmo tempo conectados entre si, um deles não é tão visível assim pelo

outro, como o “mundo interno” da empresa pela ótica do consumidor.

Page 23: Marca significa? - PUC-SP

23

Gráfico 3: representação diagramática do espectro de uma marca conforme percebido na experiência empírica. Fonte: autoria própria.

Nesta figura tridimensional, os pontos de convergência internos (ponto azul e magenta)

representam o papel mediador da marca e, também, uma possível conexão real entre as

diferentes dimensões. Como profissional, estava concentrado em resolver as questões que

moldam o ponto azul: a construção do repertório de signos utilizados nas interações das marcas

com seus públicos.

A base do triângulo, nesta analogia, representa o “nível” da realidade e os pontos seriam

fixos como reflexo do grande propósito geral de constituir hábitos, conformar formas de pensar

e agir em relação a cada um destes pontos. O topo delimita altura e alcance de valor da marca.

Também indica o “olhar para cima”, como uma analogia ao teor de sua mensagem que indica

o tempo futuro e uma realização ainda por acontecer, condição comum tanto para um investidor

quanto um consumidor, conforme suas particularidades e projeções de “si”, tendo a marca como

mediadora. O triângulo é mutante, mas busca manter esta delimitação formal, enquanto sofre

as interferências internas e externas. No perímetro delimitado, seu volume está preenchido por

uma densa rede de conceitos organizados verticalmente a partir da premissa-guia, que fazem o

Page 24: Marca significa? - PUC-SP

24

objeto crescer ou diminuir de acordo com a performance da marca no mercado. Ou seja, a

amplitude de atuação da marca altera-se, conforme seu desempenho. A medida da altura pode

chegar na ordem de milhões, bilhões e trilhões, de acordo com a cotação do valor.

Na marca, concentram-se conceitos e polos deste espectro. O consumidor é alguém

disposto a “entrar” neste triângulo de ideias através da aderência e afetividade subjetiva que

induzem a ação do consumo como meio para realizar possíveis desejos e experiências

prometidas pela publicidade. O profissional preenche o caminho com teorias e análises de casos

que conformam a geometria e determinam a forma de pensar e agir. O profissional também é

afetado pelo teor projetivo de si mesmo, referindo-se, por exemplo, à ascensão na carreira e, ao

mesmo tempo, a consciência de fazer parte de um conjunto que se apresenta como

empresa/marca.

Não podemos esquecer que este universo envolve também acionistas, investidores,

operários e profissionais que fazem parte dos processos da empresa. Também os fornecedores,

como as agências de comunicação. A relação entre valor emocional e objetivo se multiplica

então em variados contextos, conforme os públicos.

Neste complexo cenário, o status-quo da marca é bastante positivista. Seu

desenvolvimento teórico, metodológico e prático acompanhou a velocidade das transformações

tecnológicas e sistêmicas do capitalismo globalizado, cada vez mais virtual. Hoje, teóricos e

profissionais estratégicos desenvolvem conceitos que influenciam tendências e constantes

transformações envolvendo até o léxico do mercado sempre se renovando e geralmente

adaptando palavras importadas do inglês.

No cenário das start-ups e do empreendedorismo individual, se fala em novas tendências

como a inovação, o mercado em rede, rupturas, sistemas complexos, coaching e coworking.

Mas conceitos tão profundos como inovação acabam sendo significados por articulações entre

duas dimensões, estabelecendo uma lógica que se ordena entre meio e fim. A partir da premissa

da marca imaterial, todo seu repertório de significado passa a objetivar a necessidade contínua

de manutenção e evolução do valor. Estas interessantes temáticas que surgem no contexto

tendem então à superficialização, fazendo parte do jogo de imagens e discursos, assim como

foi a Sustentabilidade nos anos dois mil.

No contemporâneo, há um entusiasmo frente ao poder simbólico que as marcas denotam

possuir. Basta considerar que, hoje, supera como ativo o valor de todas os outros constituintes

de um negócio ou companhia. Para o público geral, o entusiasmo também é influenciado pela

imprensa, com reportagens sobre recordes de faturamento das companhias globais.

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Mais que isso, as leis das marcas têm penetração fora do universo técnico e sua

influência pode ser constatada no ambiente cultural contemporâneo. Elas vêm evoluindo desde

os noventa, passando os limites das disciplinas técnicas da administração, marketing,

publicidade e outras áreas profissionais para se tornarem leis de autoajuda e estratégia pessoal

de sucesso. Um exemplo é o livro “VC é uma marca” (Ideia e Ação, 2006), da autora norte-

americana Catherine Kaputa, executiva de branding que trabalhou em importantes empresas,

entre elas a “Trout & Ries Advetising”, de Al Ries e Jack Trout, também importantes teóricos

na história do branding. No livro, encontram-se frases e sugestões até existenciais: “Há somente

duas coisas na vida pelas quais vale a pena lutar. Uma é felicidade, a outra é o sucesso”.

(KAPUTA, 2006, p. 9). Um mundo sempre reduzido em duas possibilidades. Com uma rápida

folheada saltam frases que ilustram bem como as teorias de branding e suas premissas gerais

vão sendo difundidas como orientações de pensamento e conduta.

Agora, profissionais inteligentes, empresários e empreendedores também estão usando o branding para alcançar o sucesso. [...] Este livro é para pessoas ambiciosas que querem conseguir mais. [...] conscientemente construir o sucesso e, talvez, ganhar visibilidade e renome. [...] É para empreendedores, profissionais e empresários que querem fundir suas marcas pessoais e empresariais em identidades que o ajudarão a conseguir impacto máximo. É para crianças e jovens, e até para seus pais, que querem ter as melhores escolas em seus currículos porque isso lhes dará uma grande vantagem. (Ibid., p. 14)

É como uma teoria do “eu-marca”. Outros chegam a conectá-la com religião. Nas palavras

de Jaime Troiano, consultor e, também, teórico brasileiro:

Não se trata de uma metáfora, e sim de um paralelo muito claro entre o que fazem os profissionais de marketing e o que as denominações religiosas praticam. Os fins são muitos distintos, porém os instrumentos de persuasão, os recursos publicitários utilizados, a importância dos pontos de venda (ou dos templos) são extremamente semelhantes. (TROIANO, 2009, p. 87)

Assim, a disseminação dos conceitos de uma disciplina tão restrita como o branding vem

ganhando influência além dos limites das áreas de marketing e gestão de negócios, envolvendo

questões cada vez mais complexas. Muitas delas que não vêm sendo muito discutidas no

ecossistema profissional, mas aceitas sem contestações e incluídas no repertório de leis,

métodos e práticas. Neste cenário, como a experiência permitiu observar, alguns conceitos se

tornam duvidosos, contraditórios e até críticos.

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26

1.3 O problema do significado da marca pelas definições técnicas.

O estudo sobre a teoria do branding denotou que a ampliação de significado da marca

como símbolo realmente foi necessária e adequada para o contexto do mercado e

transformações sistêmicas do capitalismo global. Considerando fenômenos como o aumento de

concorrência em praticamente todos os setores da economia e a valoração das ações de

companhias focadas no desenvolvimento estratégico de marcas, a adequação teórica foi

inevitável. Também corretamente ampliou o perímetro de análise sobre a influência da marca

no pensamento, ação e conformação de hábitos em públicos com os quais interage. Mas do

ponto de vista técnico, as premissas teóricas da “marca imaterial” suscitaram uma contradição

lógica elementar. Conforme as análises realizadas na experiência empírica, este pode ser um

sinal de incoerências conceituais que, de certa forma, tem conexão com as diversas contradições

percebidas no ambiente profissional.

Basicamente este é o objetivo do trabalho: evidenciar um possível problema detectado na

premissa-guia que define a marca comercial e molda todo o repertório metodológico do

branding, a partir de problemas detectados na experiência profissional, principalmente na

última década, com referências de casos de marcas que atuam no mercado brasileiro e global.

As contradições surgem da expansão da análise de acordo com o processo integral de

produção e renovação de significados, conforme indica o alcance do símbolo pelas teorias do

branding, combinando aqueles diferentes públicos indicados nos gráficos de Aline Wheeler (p.

19 e 20). Têm direta relação com seu papel central de “ponto de conexão” entre distintas

dimensões e a conformação de suas premissas sobre uma lógica bilateral, que limita a marca ao

signo/significado como mediadora do “dentro/fora”.

Uma primeira contradição percebida da leitura teórica surge ao comparar os gráficos de

abrangência que Aline Wheeler apresenta com o teor da premissa-guia geral. Enquanto

compreende-se que a marca interage com distintos perfis de público, sua lógica é construída a

partir de um recorte drástico deste complexo, erguendo-se a partir de uma interação entre

apensas dois “individuais”: a marca e o consumidor.

É evidente a importância do cliente como principal motivo de ação da marca/empresa em

um mercado, mas ao delimitar a relação binária primordial marca/consumidor para o

fundamento da premissa-guia, tende-se a desconsiderar os outros intérpretes na constituição do

sentido principal. Na experiência, este caráter era bastante evidente. Era nítida a condição de

coadjuvante da maioria do público interno da empresa no processo de significação da marca,

trabalho concentrado e desenvolvido por executivos de cargos estratégicos das empresas

Page 27: Marca significa? - PUC-SP

27

envolvendo alguns poucos setores internos como marketing, financeiro e desenvolvimento de

produtos, além de consultorias terceirizadas: agências especializadas de comunicação,

publicidade e design. Assim que determinados os conceitos subjetivos gerais da marca, todo a

empresa se molda para atender as demandas objetivas decorrentes dos planejamentos de curto,

médio e longo prazo. Mas o que se busca nesta investigação é a significação, não apenas relativa

ao conjunto de signos da publicidade e design. Procura-se compreender a dimensão integral

deste significado, que envolve também os processos internos das empresas, seus métodos e

práticas.

Na régua temporal da marca, por exemplo, geralmente o curto prazo é pela necessidade

imediata de aumento da margem de lucro, por outro lado, a constituição do valor subjetivo é

um trabalho de médio a longo prazo. Esta configuração gera um tipo de dinâmica que tem seus

próprios limites e incompatibilidades como, por exemplo, a definição de verbas para ações de

retorno imediato e planos futuros. Veremos com mais detalhes adiante, mas surgem interesses

distintos no ambiente interno, por exemplo com acionistas e investidores mais preocupados

com os retornos de ações, vendas e performance mercadológica. Por outro lado, gestores da

marca reivindicando verbas para campanhas de construção de imagem para os próximos dois a

cinco anos.

O ponto da questão indica que a delimitação da premissa-guia do branding na relação

marca/consumidor, ao desconsiderar o contexto amplificado de intérpretes que posteriormente

a marca deve abranger, torna o conceito de “ponto de conexão” vulnerável. A hipótese é que o

“símbolo” sugere a integração destes intérpretes conforme o fundamento conceitual da marca,

porém a realidade contradiz o conceito.

Por mais que tenha sido ampliado o espectro de significado, seu universo se molda em

dois espaços particulares, determinados e ordenados. O primeiro é o que relaciona a

marca/consumidor. O segundo é aquele que compreende tudo aquilo o consumidor não vê, ou

sente. Tudo que acontece nos bastidores. A marca é origem, mediação e, também, conjunção

entre o que podemos chamar desse “dentro” e “fora”, ou ambientes “interno e externo”.

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Gráfico 4: representação diagramática dos ambientes “interno” e “externo” da marca. Fonte: autoria própria.

Neste gráfico, vemos a representação da posição da marca, seus signos, produtos/serviços

e interações, pontuando sua relação bilateral entre um intérprete “externo”, o consumidor e os

“internos” que compreendem aqueles que estão nos bastidores do desenvolvimento da

empresa/marca. Todos são intérpretes dos signos. Voltaremos a abordar estes gráficos em

outros capítulos, por enquanto ressalto a visão que foi formada pela experiência, de um contexto

em que a marca limita e divide virtualmente seu espectro em duas dimensões simultâneas e

particulares. Esta divisão ilustra também indiretamente pontos de contradição que podem ser

identificados nas premissas teóricas do branding.

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Considerando a marca inicialmente como pura imaterialidade, por exemplo, existindo no

pensamento, a questão que surge é no pensamento de quem, exatamente? Estritamente do

consumidor ou também do investidor, executivo, publicitário e operário? Se ela é o ponto

simbólico de convergência e ao mesmo tempo a mediação de todos os espectros (empresa,

processos internos, produtos, comunicações etc), sendo seu objeto o consumidor, qual é a

convergência de todas estas partes? Existe uma relação lógica que amarra todo este complexo

ecossistema?

A marca supostamente busca compreender e satisfazer as necessidades emocionais e

objetivas do consumidor e, através de pesquisas de satisfação, molda seus conceitos enquanto

também está empenhada nas metas estratégicas de mercado. O consumidor, por sua vez, apesar

de ser a fonte de inspiração e argumento do discurso é inicialmente passivo, mesmo em uma

busca individual voluntária por algum objeto de consumo. Passivo no sentido de que o

argumento é apresentado pela marca e ele então responde de alguma maneira, comprando ou

se comunicando.

O problema é o tipo de generalidade que a marca divulga, ou seja, algo capaz de produzir

ideias, signos, renová-los, comunicá-los, interagindo e manufaturando coisas ou prestando

serviços que são sinais de sua suposta existência e autonomia. Perguntando de outra forma,

quem é este que pensa, age e reage na interação com o consumidor?

O problema está exatamente aí: um signo cotidiano que não assume um objeto

correspondente, mas fragmentos deles. Quando pronunciamos “Terra”, temos a consciência do

objeto, um existente, que mesmo não visto a olho nu, temos garantias de que está, com sua

massa, volume e modo particular. Sabemos também que é objeto natural, que não foi feito pela

humanidade e tampouco seus termos pertencem à classe de signos como da palavra “marca”.

Quando pensamos em alguém que está distante ou pronunciamos um nome, também há uma

correlação direta com um corpo que corresponde ao signo, neste caso um ser-orgânico.

Mas especificamente sobre a marca, como se configura sua particularidade em conexão

com a generalidade do significado, considerando sua dimensão ampliada no contexto de

atuação? Acontece uma troca de signos em interações mútuas e o cliente fala por sua própria

voz. A questão está em reconhecer quem é este outro que também fala, mas ao seu modo, pela

publicidade, design e demais signos? A hipótese inicial da investigação, então, é: sendo a marca

algo produzido pelo homem, por mais que seja imaterial, precisa de uma mente autônoma e um

“corpo” capaz de torná-la real. Assim como uma assinatura infere uma mão que a registrou.

A análise inicial do significado indicou o que venho denominando de “problema da

origem” que compreende a busca pelo reconhecimento deste objeto, existente, particular ou

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corpo que pensa, tem ideias, representa, fala e interage com seus intérpretes por modos distintos

e determinados. Se a marca é essencialmente um símbolo gerador de ideias e considerando que

são constante e continuamente renovadas, deduz-se que é originada por um tipo de “ser-

cognitivo” e “cognoscível”, real, presente, que tem capacidade de comunicação e reação. Parte-

se da consideração de que suas ideias não são obra de espíritos ou entidades sobrenaturais. Ou

seriam?

1.4 A experiência da marca como origem para o problema da origem.

Quando iniciei a pesquisa sobre o conceito da marca havia acabado de completar um

curso latu-senso de design gráfico onde conheci também a Semiótica, ciência dos signos, criada

pelo filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-1914). A “experiência teórica”

com suas ideias, conjunta com a vivência profissional, me colocaram diante da encruzilhada

citada anteriormente.

Inicialmente havia entendido os conceitos como uma variação da semiologia, com

referência à teoria do linguista e filósofo Ferdinand de Saussure (1857-1913), muito

referenciado nos cursos de preparação acadêmica profissional de comunicação aplicada,

principalmente nas áreas de publicidade e design. Desde a formação acadêmica até a atuação

profissional, notei que o conceito de signo que profissionais de design e criação se baseiam para

o exercício prático no cotidiano é essencialmente orientado pela constituição binária entre o

signo e o significado. Posso dizer que este modo de pensar o objeto de trabalho se configura

como um hábito enraizado que condiciona o pensar, o olhar e o fazer. Dentro do escritório e

nas salas de criação, o foco de concentração geralmente é o produto em conexão com o símbolo,

o conjunto de ideias subjetivas que a marca infere, direcionados ao consumidor.

Mas Charles Peirce introduz um conceito de signo diferente da semiologia que, com o

aprofundamento na leitura de sua obra, levou a questão para uma inevitável revisão de conceitos

instituídos, dos quais estamos pouco propensos a duvidar no cotidiano de trabalho. Peirce, em

sua época, inaugura uma corrente filosófica-científica, o Realismo, que envolve um complexo

sistema teórico envolvendo diversas classes de ciências. Segundo o próprio autor, foi

influenciado por escolásticos medievais do século treze e catorze, como Duns Scotus (1266-

1308) e, também, no século dezoito e dezenove, a teoria de Immanuel Kant (1724-1804), a

quem considerava o principal pensador da era moderna. Mas sua filosofia ganhou identidade e

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se distinguiu dos outros grandes nomes da história do pensamento ocidental, tornando-o

personagem fundamental para os rumos da ciência contemporânea. O filósofo norte-americano

Floyd Merrell (1937-) cita a contribuição de Peirce para o desenvolvimento científico: “Lógica

[...] e metodologia científica, que tornaram possível um número de desenvolvimentos ulteriores

envolvendo desde a atual Ciências da Computação até História e Filosofia da Ciência.” (2012,

p. 27) 1.

Peirce era um multicientista, versado em diferentes áreas como: Lógica, Química, Física e

Matemática. Escreveu importantes teorias nestes campos. Filho de um acadêmico de Harvard,

o matemático Benjamin Peirce (1809-1880), teve formação científica laboratorial profunda o

que contribuiu para a análise e crítica do método científico que sustentava a filosofia das

ciências, seus métodos e epistemologias até o século dezenove.

Sua obra, como muitos comentadores apontam ainda é pouco conhecida dentro do meio

acadêmico, mesmo com sua importante contribuição para a ciência. Mas vem sendo há décadas

estudado na Comunicação e já faz parte do programa de cursos latu-senso que preparam

profissionais de design, por exemplo, para a atuação no mercado. Mesmo assim, ainda é pouco

conhecida e talvez até compreendida, especificamente neste último ambiente do conhecimento,

das ciências aplicadas em comunicação.

“Charles Sanders Peirce [...], foi um autor praticamente desconhecido para a comunidade

científica da sua época e só recentemente sua obra passou a ser discutida no âmbito das Ciências

Humanas e Sociais” (MERRELL, 2012, p. 26). Comentadores apontam diversos motivos para

que sua obra não tenha alcançado a evidência de outros pensadores da mesma importância na

história da filosofia.

[...] autor de inúmeros escritos com contribuições fundamentais para a filosofia, não encontrou editores à altura e limitou-se a publicar artigos em revistas secundárias; exercendo influência profunda sobre os filósofos de seu círculo, não conseguia comunicar-se com os alunos ou com um público mais amplo. (OLIVEIRA, In: PEIRCE, 1989, p. 8)

O psicólogo e filósofo Renato Rodrigues Kinouchi questiona: “Mas, se foi Peirce um

pensador notável, por que será que ele sempre aparece na filosofia contemporânea como uma

figura extemporânea? Por que costumeiramente é visto como outsider?” (2008; p. 10) 2.

_______________ 1 MERRELL, F. A Semiótica de Charles S. Peirce Hoje. Rio Grande do Sul: Unijuí, 2012. p. 27.

2 KINOUCHI, R. In: Ilustrações da Lógica da Ciência. Aparecida: Ideias & Letras, 2008. p. 10.

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O autor indica algumas possibilidades, como o jeito introspectivo e personalidade difícil

do filósofo, que prejudicaram sua relação social no meio acadêmico da época, enquanto alguns

contemporâneos, seguidores e admiradores se tornaram personalidades influentes, como o

filósofo William James (1842-1910). Também acontecimentos de sua vida particular

atribulada, com dificuldades financeiras, separação conjugal, mudanças de cidades e academias

até o autoexílio em uma fazenda na Pensilvânia, onde faleceu em mil novecentos e catorze, aos

setenta e quatro anos.

Mas o que é comum entre os comentadores, é que o sistema filosófico de Peirce é, por si,

um desafio com destino ao complexo. Apesar de não ter publicado algum livro, produziu

milhares de artigos e ensaios, alguns que chegaram ao conhecimento acadêmico, outros que

ainda não foram editados. Kinouchi aponta o volume teórico produzido pelo filósofo:

[...] fica a impressão de que sua obra foi ganhando tal volume e tal extensão que requeria do filósofo e de seus possíveis interlocutores uma absorção quase completa. [...] Deixou como legado, junto ao acervo da Universidade de Harvard, mais de oitenta mil páginas manuscritas. (KINOUCHI, 2008; p. 12)

Estas particularidades históricas e contextuais são importantes como referência de fundo

para análise do problema da teoria do branding no contemporâneo. Nela, não se discutem

fundamentos lógicos, evidentemente tratando-se de uma disciplina das ciências técnicas do

mercado, mas há um modo de pensamento em função de uma lógica instituída que, como

percebi, muitas vezes é contraditória com as ideias propostas por Peirce, considerando o sistema

teórico que concebeu.

Conhecendo a teoria pela Semiótica, geralmente sua via de entrada e concentração em

estudos da comunicação aplicada, logo me dei conta que apresenta outra configuração na tríade:

ícone, índice e símbolo, mas tendia a condicionar esta lógica ao espectro binário da marca que

se limita essencialmente ao signo/significado. Ao mesmo tempo, percebendo seu potencial,

pensei que a Semiótica parecia fornecer bases para elaboração de um método que poderia ser

aplicado aos projetos de identidade de marca para clientes da agência. Mesmo com a mente

habituada, logo percebi a ampliação do conceito de signo proposta pelo autor que muito

contribuía para as novas necessidades do mercado, agora concentrado na concorrência entre

símbolos-marcas.

A teoria de Peirce é singular, ao mesmo tempo expansiva. Realmente, ao experimentar as

bases conceituais em projetos de criação de design e campanhas publicitárias, se mostrou uma

potência. Permitiu a expansão da consciência sobre o repertório de signos de uma marca bem

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como a elaboração de mapas ou diagramas que auxiliavam a visão geral de associações

possíveis, considerando todas as possibilidades de contato sensorial com um intérprete,

incluindo até percepções subliminares. Também indicavam a necessidade de inserção da marca

no contexto sociocultural, extraindo do mundo elementos para suas concepções e possíveis

tendências. Para o trabalho e pensamento estratégico do design, fornecia os insumos

metodológicos que atendiam a nova delimitação ampliada da marca e sua necessidade de

geração de valor subjetivo e objetivo.

Mas conforme fui avançando nas leituras semióticas, mais foi se ampliando a dimensão

teórica que o autor elaborou, até que me dei conta que não se tratava de um específico conceito

prático para análise de signos, apropriado e condicionado ao viés semiológico da comunicação

aplicada para o mercado. A Semiótica não se restringe às binaridades, ao contrário, impulsiona

o pensamento para a expansão dos sentidos muito além da apreensão de um sinal de

representação como o nome-logotipo que indica uma generalidade. Envolve a experiência

sinestésica plena da real interação com um objeto, cognoscível, constituído de qualidades

particularidades perceptíveis. Semiótica refere-se ao entendimento do processo cognitivo em

sua integração, da origem fenomenológica, ao processo de associações mentais entre signos,

até a constituição e instituição do significado que orientam uma ação futura, sendo este processo

originado pelas experiências sensoriais.

Envolve, portanto, o contato direto, imediato, sensitivo, emocional. A linguagem em sua

ampla dimensão. Além dos discursos, também condutas, modos de agir em um contexto

sociocultural diverso; o tempo, espaço e a indeterminação da realidade. Não é apenas uma

análise estrutural da linguagem, mas a comunicação em seu caráter ontológico, que envolve a

vivência e interação social, inserção cultural e o histórico pessoal e particular de experiências.

Mais além, a visão ampliada de Peirce desmonta o antropocentrismo e apresenta a tese de que

a capacidade cognitiva não é apenas humana, mas refere-se a uma condição existencial comum

em dimensão universal. Ou seja, o pensamento não seria apenas uma faculdade do ser humano,

mas daquilo que existe, que tem a capacidade e autodeterminação para agir, reagir e encontrar

meios de permanecer, incluindo animais, plantas, seres unicelulares e até matérias inorgânicas.

Não abordaremos estes tópicos neste trabalho, mas são de uma leitura muito importante e

instigante.

A expansão do conceito de signo, assim como apresenta Peirce, conforme veremos com

mais detalhe um pouco mais a frente, foi o vetor inicial para a detecção do problema do objeto.

Também denotou um sinal importante no contexto da teoria do branding que cada vez mais

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avança seus limites para buscar, nas ciências acadêmicas, fundamentos para sustentar conceitos

e métodos que mantenham e aprofundem o alcance da premissa de valor da marca imaterial.

Como pude observar no curso latu-senso, a Semiótica acaba limitada ao escopo das

práticas do design moldada pela dicotomia forma/função e fica implícito seu viés utilitarista.

Algumas bibliografias especializadas também apresentam a obra do autor desta mesma

maneira, limitada e orientada para a contribuição prática dos conceitos em projetos de

comunicação, subordinada à lógica do branding. Em poucas bibliografias disponíveis, pode-se

encontrar referências desta tendência:

[...] as relações entre marketing, publicidade e semiótica estão cada dia mais evidentes tendo em conta a complexificação da nossa sociedade que cada vez mais consome símbolos construídos em grande parte pela publicidade do mundo capitalista. [...] a sua utilização tem-se revelado extremamente útil para as organizações que se preocupam em entender a semiose desencadeada pelos seus signos: produtos, embalagens, marcas, entre outros. (PEREZ, 2004, p. 146)

Semiose como contínuo processo de significação, produção e troca de signos entre

existentes que interagem e se transformam mutuamente. Mas pouco se discute a lógica das

premissas gerais da marca-imaterial, considerando o contexto ampliado como sugere a

investigação científica pragmática e a própria teoria do branding conforme representado nos

gráficos de Aline Wheeler.

Percebi na “experiência teórica”, que é possível considerar apenas a Semiótica como

campo de estudo específico das marcas, bem como utilizá-la como base para aplicações

práticas, mas o aprofundamento na leitura da complexa teoria de Peirce revela que integra um

grande sistema filosófico, que envolve também outras ciências como a Fenomenologia e a

Metafísica.

No contexto do pensamento habitual das marcas, ao desconsiderar esta integração, suas

ideias tendem ao reducionismo e ficam condicionadas à regra da lógica binária, sendo esta uma

condição que me parece bastante controversa. A matriz triádica que Peirce apresenta é também

um fundamento metodológico-científico, ou seja, tem a profundidade das questões que

perfazem a história da filosofia e ciências em geral há milênios, desde a Grécia antiga. Assim

como a compreendi, penso que não poderia estar condicionada sob a tutela de outro sistema

teórico fundamentado em uma lógica dual, contraditória às tríades. O próprio Peirce se ocupou

de apontar incoerências de correntes filosóficas dualistas como o cartesianismo ao apresentar o

fundamento do signo.

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35

A filosofia tem três grandes divisões. A primeira é a Fenomenologia [...] A segunda é a Ciência Normativa. Que investiga as leis necessárias e universais da relação dos fenômenos aos Fins, isto é, talvez, à Verdade, Justiça, Beleza. A terceira divisão é a Metafísica, que tenta compreender a realidade dos Fenômenos. (C.P., p. 5)3

Peirce configura triadicamente a classificação da filosofia tendo como primeiro a

Fenomenologia, ou Faneroscopia: o estudo dos fanerons (fenômenos). Em segundo, as Ciências

Normativas que compreendem a Estética, a Ética e a Semiótica (Lógica). Em terceiro a

Metafísica. Todas integradas e orientadas pelo princípio-guia da realidade. Com este denso

sistema teórico, concebe o fundamento de uma corrente filosófica, o Realismo, e o

Pragmatismo, método que orienta a investigação científica com base nesta conjunção:

1. Fenomenologia

2. Semiótica

2.1 Estética

2.2 Ética

2.3 Lógica (Semiótica)

3. Metafísica

Este projeto de pesquisa é resultado da incursão neste complexo sistema teórico, em

paralelo com a leitura da teoria do branding. Não será possível apresentar com detalhes sua

amplitude neste trabalho. Abordarei alguns aspectos relevantes que contribuíram para a análise

e desenvolvimento deste estudo e constituem apoio teórico-científico da análise das marcas.

Basicamente, Peirce ergue sua filosofia com origem no conceito de realidade. Citando o

escolástico Duns Scotus (1266-1308), apresenta a seguinte definição:

É de sua invenção a palavra realidade, [...] é aquele modo de ser em virtude do qual uma coisa real é como ela é, sem consideração do que qualquer mente ou qualquer coleção definida de mentes possam representa-las ser. [...] Os objetos são divididos em ficções, sonhos etc.; de um lado, e realidades, de outro. Os primeiros são aqueles que existem apenas porque você, ou eu, ou alguém os imagina; os últimos são aqueles que têm existência independente da sua ou da minha mente, ou da de qualquer número de pessoas. O real não é o que eventualmente dele pensamos, mas que permanece não afetado pelo que possamos dele pensar. (C.P., p. 49)4

_______________

3 C.P., 1.121, 1839-1914. In: PEIRCE, C. Pensadores. Escritos Coligidos. São Paulo: Nova Cultural, 1989. 4 ed. p. 5. 4 C.P., 4.28; 5.565, 1839-1914. In: IBRI, Ivo. Kósmos Noetós. Arquitetura Metafísica de Charles S. Peirce. São Paulo: Paulus, 2015. p. 49.

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36

A realidade é o fundamento-guia da filosofia de Peirce. Compreende o espaçotempo

imediato do presente, este “agora” que em si é um hiato do tempo, o limiar entre passado e

futuro. Neste espectro estão todas as existências conjuntas e nele acontecem fenômenos

simultâneos que, nos contextos individuais e particulares, podem ser percebidos levando em

conta as capacidades individuais. Sendo algo externo à consciência, a realidade é independente

de nossa vontade, mesmo se considerarmos que em parte pode estar determinada por leis e

regras estabelecidas por instituições e a vida em sociedade, com seus modos culturais próprios.

Na concepção de Peirce, a realidade tem um grau de indeterminação contínua, que fica

expressa nas palavras do autor: “A questão é que é hoje realmente verdadeiro que amanhã o sol

se levantará; ou que, mesmo se ele não o fizer, os relógios, ou algo, hão de continuar” (C.P., p.

187)5. Ou seja, uma teoria pode postular uma verdade sobre o comportamento do objeto até

certo ponto, como na “quase-certeza” que o sol nascerá amanhã. Esta segurança vem do

histórico milenar de observações que denotam um comportamento até hoje regular do “astro-

rei”, mesmo que em contínua transformação. Permite uma previsão com razoável chance de

acerto. No caso do sol, ainda contamos com a Física que nos diz que ele só começará a morrer

em alguns milhões de anos. Mas o futuro é também o tempo da incerteza, porque o que de fato

vai comprovar a previsão sobre o nascer do sol é a percepção fenomenológica, ver sua luz e

sentir o calor. Mentalizar o nascimento do sol não garante a sua real ocorrência. Isso vale para

qualquer signo.

A realidade é contínua, independente das teorias e significados, ao mesmo tempo nos

coloca diante do Acaso que constitui um vetor basilar da filosofia de Peirce. Vou recorrer a uma

analogia que espero não ser tão simplória a ponto de desfigurar o conceito original. Então

imagine que você está em casa e de repente sente sede. Para saciar à vontade, vários raciocínios

rápidos são processados até que o corpo se mova para ir até onde está o filtro de água. A mente

está focada em corresponder a necessidade fisiológica e voltar para os afazeres, uma ação

comum que, no planejamento mental, é bem ordenada, determinada e certa. No meio do

caminho, acontece algo que não estava previsto: com os pés descalços você chuta

involuntariamente o pé da mesa com força, pegando bem o dedinho do pé, certeiro. A dor no

momento é tão grande que até a sede passa. Durante os próximos quinze dias você convive com

a marca e dor, signos do acontecimento, e sua memória ganha mais uma experiência pura da

realidade.

_______________ 5 C.P., 5.547, 1839-1914. In: PEIRCE, C. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2015. p. 186.

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37

Neste exemplo informal, realidade é o momento exato da interação do dedinho do pé com

a quina da mesa. A percepção consiste em considerar que há algo externo à nossa consciência

que simplesmente está, reage e participa do acontecer, independente de nosso plano mental,

pois acredito que nem todo mundo deseja, descalço, chutar quinas de mesa com energia, antes

de beber água. Tampouco é coerente culpar as mesas por nossas falhas.

Agora considere outra situação parecida, porém, ao invés de estar em casa, o indivíduo se

encontra em um local público. O dia é um dos mais quentes do ano e a sede é do mesmo grau

da marcação do termômetro. Caminhando pela rua, repara na publicidade de uma cerveja de

marca, com a imagem expressiva de um refrescante copo gelado que uma personagem

sorridente segura nas mãos, enquanto está com amigos em uma praia, curtindo a vida. A quina

da mesa neste caso seria o anúncio publicitário que, em seu contexto, indica o senso geral da

realidade, da interação entre coisas existentes, diferentes, e um universo de percepções, trocas

de signos, situações, ações e reações. Assim acontece quando dizemos ou fazemos algo de que

depois nos arrependemos. O pensamento, uma vez em palavras ou atitude, torna-se real e afeta

o externo. É assim também para uma teoria e, obviamente, as marcas. Mas também há as

reações e estes processos contínuos de interações estão conjugados neste momento presente, do

agora.

Realidade então é o que é. Falando assim parece que tem consciência por si, mas é apenas

uma forma para expressar uma condição natural de nossa própria existência: lidamos com o

inesperado e ele é um sinal importante de que a realidade é real, expressão redundante, mas

necessária. Além de nos inserir no mundo, a consciência da realidade nos alerta que o erro

muitas vezes acontece. O falível, assim como o acaso, é de importância metafísica na teoria de

Peirce. São os embriões do processo cognitivo. “A interpretação em si mesma é experiência...

Em filosofia, a experiência é o inteiro resultado cognitivo do viver. [...] Experiência é o curso

da vida” (C.P., In: IBRI, p. 23). 6

A indeterminação do acaso indica que estamos constantemente propensos a lidar com

outras existências, situações diversas, erros, resistências, críticas e reações de vários tipos. Até

na prática esportiva, a resistência física remete a ideia de lidar com algum fator ou elemento

externo, que seja a água para um nadador. E são todos estes desafios do puro viver, que

envolvem desde o estudo de teorias da lógica até as mais cotidianas ações como atravessar a

rua e consumir, que constituem a semiose ou contínuo processos de significação e interação.

_______________ 6 C.P., 7.527, 1.426, 4.91, 1839-1914. In: IBRI, Ivo. Kósmos Noetós. Arquitetura Metafísica de Charles S. Peirce. São Paulo: Paulus, 2015.

p. 22.

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38

A condição inesperada que a experiência apresenta assume a forma da dúvida, que nasce

da direta e plena vivência com os “fatos duros” como apresenta o autor:

Estamos continuamente colidindo com o fato duro. Esperávamos uma coisa ou passivamente a tomávamos por admissível e tínhamos sua imagem em nossas mentes, mas a experiência força esta ideia ao chão e nos compele a pensar muito diferente. (C.P., p. 26)7

O fato duro gera a dúvida, resultado da abdução fenomênica que inicia o processo de

investigação. Superar a binaridade, então, é o propósito primordial da mente científica,

orientada pela observação e análise lógica-metodológica do fenômeno.

Entre as formas internas que assume a binaridade estão aquelas das dúvidas que são forçadas sobre nossas mentes. A própria palavra ‘dúvida’ ou dubito é o frequentativo de duhibeo – i.e., duo habeo, exibindo, assim, sua binaridade. (C.P., p. 27)8

Sendo origem, a realidade tem sua porta de entrada para a cognição através da percepção

imediata. São os fatos da realidade que ativam o fluxo cognitivo, em que se convive com

acontecimentos que, ora ou outra, desafiam leis e significados estabelecidos. A Fenomenologia

ou Faneroscopia então se apresenta como a primeira das ciências positivas da Filosofia.

Segundo o filósofo brasileiro Ivo Ibri: “[...] propõe efetuar um inventário das características do

faneron” (2015, p. 23).

Procura classificar as experiências perceptivas diretas. Não se propõe analisar seus

atributos, propósito da Semiótica e interpretar, da Metafísica, mas extrair da experiência

qualidades que denotam comportamento particular, contextual e redundante. Em si, o conceito

da fenomenologia é relativamente simples, como apresenta Peirce:

[...] o que temos que fazer, como estudantes de fenomenologia, é simplesmente abrir nossos olhos mentais, olhar bem para o fenômeno e dizer quais são as características que nele nunca estão ausentes, seja este fenômeno algo que a experiência externa força sobre a atenção. (C.P., p. 24)9

_______________ 7 C.P., 1.324, 1839-1914. In: IBRI, Ivo. Kósmos Noetós. Arquitetura Metafísica de Charles S. Peirce. São Paulo: Paulus, 2015. p. 26. 8 C.P., 1.324 . In: IBRI, Ivo. Kósmos Noetós. Arquitetura Metafísica de Charles S. Peirce. São Paulo: Paulus, 2015. p. 27. 9 C.P., 2.84. In: Ibid., p. 24.

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Peirce classifica em três categorias os tipos de fenômeno: Primeiridade, Segundidade e

Terceiridade. De maneira sintética os fenômenos de primeiridade correspondem aqueles da

experiência imediata, que evidenciam um sentimento diante dos acontecimentos e interações

com um objeto ou acontecimento.

Corresponde a percepção de ícones, ou seja, qualidades perceptivas de elementos como

cores, formas, texturas, movimentos, luzes e outras particularidades. Na segundidade a

consciência se insere no tempo, ativando a memória e a associação mental de signos percebidos

da experiência sociocultural. Denotam se o fenômeno é comum ou particular, inusitado e

inesperado. A segundidade tem conexão direta com a dimensão semiótica do índice, signos que

se associam e formam uma rede de sentido. Um signo não é um objeto isolado, mas é particular

enquanto participa de conjuntos e processos, que formam redes. Como diz Merrell: “não

podemos interpretar os signos como se fossem autônomos. [...] Estes signos são

intrassistêmicos, isto é, eles formam um conjunto de signos relativamente – mas não

completamente – autônomos, inter-relacionados uns com os outros [...]” (2012; p. 148; 160).

Na terceiridade há o reconhecimento do fenômeno como algo redundante, corriqueiro e

habitual, denotando modo de conduta provavelmente orientado por lei ou regra. Na Semiótica,

o terceiro é símbolo, ou seja, um significado constituído, uma generalidade. Como exemplo,

imagine um dia com tempo ruim e de repente começa a ventar. A sensação do vento é

combinada com a percepção geral deste exato espaçotempo: o movimento das nuvens, as cores,

luzes, objetos voando e sons de trovão, são sinais de um fenômeno presente, ao mesmo tempo

particular e imediato. A associação mental destes signos corresponde à segundidade mediata,

real consciência do momento presente. Então a mente articula pensamentos dedutivos até

atingir um sentido que orienta uma ação futura, atingindo a terceiridade. Continuando o

exemplo, o vento é algo habitual, mas em uma condição excepcional, se tornou um signo

inusitado, combinado com os outros elementos da percepção indicando um sentido: vai começar

uma tempestade. Consciência que por sua vez orienta uma ação: abrigar-se em local seguro.

No caso das marcas é o mesmo processo, porém o objeto da percepção é outro, assim

como o contexto. Deparar-se com uma publicidade de cerveja em um dia quente é um fenômeno

que também envolve emoções e hábitos instituídos. Mas diferente da tempestade, fenômeno

natural incontrolável, ao entrar no bar, o indivíduo com sede não é necessariamente obrigado a

optar pela cerveja. Poderia pedir água, refrigerante ou um suco. Mas supondo que tenha pedido

a cerveja, este ato indica uma série de interações fenomenológicas que, em algum momento,

culminaram em uma escolha pessoal de consumo. Depois temos também o próprio ato de

consumir que pode ou não corresponder às expectativas.

Page 40: Marca significa? - PUC-SP

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Estas categorias da Fenomenologia não são compartimentalizadas, mas perfazem a

abdução do fenômeno e ilustram o início do processo de cognição, considerando a percepção

imediata e sensitiva. Este fator é muito importante para compreender as ideias de Peirce, porque

apesar da classificação triádica, estamos lidando com algo que em si é íntegro, já que o processo

cognitivo compreende as três classes conjuntas e inseparáveis. Possuem, no entanto, uma

organização lógica que se inicia na abdução fenomênica e perfaz todo seu sistema conceitual.

Com base na conjunção da teoria, este trabalho de pesquisa sobre as marcas tem a

Fenomenologia como um vetor essencial.

Evidenciado pela experiência, as marcas são fenômenos típicos de terceiridade, que

denotam hábitos constituídos pela sociedade em amplitude global e, apesar da intensa dinâmica

no mercado, há certa normalização do significado geral, tanto entre teóricos, profissionais,

quanto consumidores. Ou seja, existem de fato leis que orientam condutas no desenvolvimento

de marcas e contribuem essencialmente para sua real condição existencial.

Mas por ser justamente um fenômeno de terceiridade que indica a constituição dos

símbolos, integra as categorias anteriores. No recorte da teoria do branding, seu aspecto terceiro

representa o teor dos conceitos e premissas da marca. Na segundidade, poderíamos incluir todo

o repertório de signos perceptíveis que representam a marca, sendo que, nesta pesquisa,

considera-se o espectro ampliado que inclui também os métodos, infraestruturas, padrões

organizacionais e condutas empresariais decorrentes das premissas. Nesta conjunção, inclui-se

ainda a visão particular da primeiridade, ou seja, a pura vivência nestes ambientes.

Apesar do reconhecimento da terceiridade da marca, a experiência apontou a contradição

e a dúvida surgiu, motivando a necessidade de averiguar as incoerências percebidas

fenomenologicamente. A hipótese que se configurou era saber se as muitas ocorrências

contraditórias tinham relação ou eram efeito de leis gerais que orientam as práticas. A partir

desta hipótese foi necessário compreender o conceito de signo na visão de Peirce, para avançar

na análise. A marca, como signo, a que se refere? Esta única frase praticamente moveu meus

pensamentos durante os primeiros oito anos do estudo da lógica de Peirce: “todo pensamento é

um signo”10. O exercício semiótico é considerar que se todo o pensamento é um signo, este

fluxo acontece para o conjunto experiencial integrado de nossa percepção.

_______________ 10 Referência à frase original de Peirce (1839-1914): “Todo pensamento, […], deve necessariamente existir em signos”. In: PEIRCE, C.

Pensadores. Escritos Coligidos. São Paulo: Nova Cultural, 1989. 4 ed. p. 36.

Page 41: Marca significa? - PUC-SP

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Seja do sol, de um evento qualquer, uma pessoa, o vermelho, o calor, dor, vento, um

pernilongo, um abraço, uma atitude, uma teoria científica, produto, experiência de consumo,

uma publicidade ou marca comercial. O signo é o elemento vital das mediações entre as

existências, caráter ontológico da realidade que alcançam a teoria metafísica de Peirce.

É uma condição inata do pensamento, visto que, quando percebemos as coisas externas,

temos a consciência que elas fazem parte do nosso interno mental, e não necessariamente

querem dizer que o objeto da percepção entrou literalmente dentro de nossa cabeça. Em

exemplo simplório, quando olho uma publicidade, a televisão, como objeto, não se move no

espaço concretamente e entra pelos poros e sensores dentro de meu corpo, enquanto minha

cabeça cresce para comportá-la e assim consigo pensar.

Não introjetamos literalmente o objeto da percepção. Surge como uma imagem mental,

uma representação do elemento exterior no qual acreditamos que, contando com nossa

fisiologia, é razoavelmente fidedigna. Ou seja, somos munidos de um corpo que “põe para

dentro” e à sua maneira o exterior para que, na mente, apareça como um reflexo (imagem,

signo) e ative o interno do pensamento que precisa devolver ao externo uma ação. Pense no

sentido mais básico, aquele de que este compromisso ontológico corporal-mental é que nos

prepara para lidar com os acidentes, como pular um buraco na calçada e desviar de uma quina

de mesa. Mas também há nesta realidade, objetos como marcas, comunicando signos

persuasivos que nos instigam à ação de consumo.

Um signo, ou representamen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. (C.P., 1897, p. 46)11

Quando penso no Sol, ele não está necessariamente em mim, mas seu signo, que pude

perceber por causa dos efeitos da luz na retina, dos fótons captados pelo olho que se

transformaram em pulsos elétricos, ativando meus neurônios e pensamentos. Na visão ampliada

da semiótica, tendo como exemplo um animal ou uma pessoa, atitudes corporais, tons de voz,

trejeitos, comportamentos também são signos. O conjunto deles forma o teor geral do

significado. Ou seja, interagimos com o mundo com signos.

_______________ 11 C.P, 1.228. Circa 1897. In: PEIRCE, C. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2015. p. 46.

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No entanto, o signo como elemento mediador, denota a existência do outro anterior, o

objeto e um posterior, o significado, em determinado contexto. Tem-se então a primordial

integração triádica descrita assim pelo autor:

Um Signo é um Cognoscível que, por um lado, é determinado por algo que não ele mesmo, denominado de seu Objeto, enquanto, por outro lado, determina alguma Mente concreta ou potencial, determinação esta que denomino de Interpretante criado pelo Signo, de tal forma que essa Mente Interpretante é assim determinada mediatamente pelo Objeto. (C.P., p. 160)12

Um objeto como a marca, por exemplo, compreende toda a miríade de signos que

manifestam sua existência, seus elementos comunicativos e, também, as ações concretas que

dela decorrem. Mas parece que há uma dificuldade em compor o sentido, assim como citei o

exemplo do Sol. Considerando uma marca qualquer, quando percebemos seus signos e

reconhecemos seu significado geral, que objeto compõe sua natureza?

Da combinação binária entre signo/significado o objeto automaticamente se torna difuso,

porque pode envolver qualquer manifestação concreta: nome-logotipo, produto, loja, empresa

e até o consumidor. Supostamente tem-se uma composição semiótica genuína, envolvendo a

coerência entre elementos perceptivos particulares como cores, formas, tom de voz ou beat

musical de um jingle, sua conjunção sistêmica e um significado geral.

[...] para que algo possa ser um signo, esse algo deve ‘representar’, como costumamos dizer, alguma outra coisa, chamada seu Objeto, apesar de ser talvez arbitrária a condição segundo a qual um Signo deve ser distinto de seu objeto. (C.P., 1910, p. 47)13

Arbitrária porque a palavra “Windows”, em si não tem nada a ver com o objeto da

interação, assim como a diferença entre ver uma janela real e um logotipo da companhia global

de tecnologia. Ao mesmo tempo, a conjunção de letras “w-i-n-d-o-w-s” e o logo nem um pouco

se parecem com um software, sendo um signo da língua tacitamente constituído, cujo sentido

varia de acordo com contextos culturais. Por seu turno, Windows infere um sentido geral que

assume formas representativas por ícones como bits, pixel, retícula ou traço, formando índices

em palavras, diagramas, sons, imagens ou pictogramas.

_______________ 12 C.P., 2.228, 177. Segundo José Teixeira Coelho Neto: “[...] são de um longo manuscrito, sem data, constante de Widener IB3a.”. Capítulo 9,

“O que é Significado?”, de Laedy Welby. p. 158. In: PEIRCE, C. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2015. p. 160. 13 C.P., 230. De “Meaning”, 1910. In: PEIRCE, C. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2015. p. 47.

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Mas o preceito lógico é que tanto o significado, o signo e o objeto tenham coerência entre

si, por mais distintos que sejam em suas formas existenciais. Sendo que o primeiro é aquilo que

realmente é. Considera-se que o terceiro é a forma virtual do pensamento em contraste com um

anterior, o conjunto existencial de associações entre signos contextualizados no espaçotempo;

que por sua vez, estão em contraste com o objeto particular primeiro. Em si são diferentes um

do outro, mas integram algo comum: o significado, como o sol enquanto objeto, o fóton de luz

enquanto signo, a imagem mental da realidade e o senso de que é verão, por exemplo.

O termo “representamen” que alude a “representar”, cai como uma luva para o

pensamento objetivista das marcas: se tudo é signo, tudo é representação, inclusive a realidade.

Mas a “representação” a que Peirce se refere é a qualidade do signo em coerência lógica com

seu anterior e sucessor, ou predecessor, apesar de suas formas distintas, assim como um

logotipo, produto e os conceitos da marca. Signos como representações, ou sinais perceptivos

de um outro anterior que é diferente, com o qual tem ligação existencial, mediadora e lógica.

A relação triádica essencial do signo, segundo Peirce, se estabelece entre a simetria de

diferentes, que se associam a partir das qualidades existenciais. O signo então é um “percepto”

existencialmente conectado com “outro” e assim por diante. Como, por exemplo, o vermelho

de um sinal de trânsito. Esta combinação de atributos qualitativos, indica o interpretante ou

generalização que compreende as associações contextuais, configurando uma síntese e

generalidade como “sinalização de trânsito”, regras conhecidas que orientam a compreensão e

uma ação.

1.5 Pragmatismo e o problema do objeto.

Ao aprofundar a leitura teórica para outras instâncias da teoria de Peirce, por exemplo, a

Fenomenologia, vê-se então que as relações lógicas semióticas ícone-índice-símbolo são

conjugadas com a tríade anterior do objeto-signo-significado. Analisando a teoria do branding

com este conceito, surgiu então um problema: nesse contexto, o objeto da marca não poderia

ser deduzido a partir da teoria pela aceitação do produto ou logotipo registrado fisicamente em

alguma superfície, mas sim abduzido da experiência fenomenológica.

A questão central deste estudo aponta então a seguinte constatação: um existente que

denota capacidade de ação e reação, pensamento e cognição como as marcas demonstram ser:

que tipo de objeto as configuram? Assim como um logotipo, o produto, lojas e até a empresa,

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apesar da materialidade, assumem o papel de signos de outra suposta existência que não eles e

que atende por “marca”. A questão então indica a necessidade de identificação do objeto que

produz, configura e orienta a definição destes signos como aparecem em um anúncio

publicitário, carregados de mensagens e ideias renovadas.

O propósito não está em encontrar uma classificação linguística para a palavra, mas sim,

sua coerência lógica com a realidade, que depende da existência de um objeto coerente com sua

natureza, ou seja, a integralidade lógica de seu conceito. Foi por esta via que surgiu então a

evidência de uma possível contradição teórica que poderia ter reflexo nos problemas detectados

na experiência empírica do ambiente interno das marcas e empresas. Nas palavras de Peirce, o

problema fica melhor enunciado: “Tenho certeza que todos podem distinguir esta sensação,

atribuímo-la a todos os animais, mas não as palavras, porque temos razões para crer que ela

depende da posse de um corpo animal” (C.P., 1868, p. 307).14

Ou seja, as palavras dependem de um corpo que foi capaz de proferi-las ou registrá-las,

tornando os signos presentes na realidade, ao mesmo tempo cognoscíveis por outros intérpretes.

Estas palavras supostamente são correspondentes ao modo de pensar e integralidade

comportamental deste individual. Troque então “palavras” por “nomes/logotipos”.

Este tem sido o ponto de concentração da análise neste estudo: a constituição da marca

na conjunção do espectro semiótico e fenomenológico. Como caraterística geral, o pragmatismo

indica a necessidade de integração do objeto de pesquisa com o contexto e ao transferir esta

orientação para a compreensão das premissas teóricas do branding, o tema ganhou outra

envergadura. Avançou para o Pragmatismo, o método para a investigação científica elaborado

por Peirce com fundamento no sistema de relações triádicas.

“A aplicação de um termo é a coleção de objetos com os quais ele se refere; a aplicação

de uma proposição são os casos em que ela se mantém válida” (C.P., 1867, p. 146)15. A teoria

do pragmatismo é profunda e envolve o estudo de modos de raciocínio Abdutivo, Dedutivo e

Indutivo. Mas o teor que importa para esta análise das marcas é o que Peirce indica, de que um

termo deve ser coerente com as consequências reais de seu significado.

Tornou-se a orientação de uma corrente filosófica vigorosa nos Estados Unidos do início

do século vinte, influenciando contemporâneos como William James (1842-1910) e John

Dewey (1859-1952), enquanto promoveu o surgimento de novas epistemologias científicas nos

campos do direito, educação e, mais recentemente, comunicação.

_______________ 14 C.P., 5.585. Circa 1868. In: PEIRCE, C. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2015. p. 307. 15 C.P., 230. Circa 1867. Ibid., p. 146.

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Mas já na época, Peirce notou que suas ideias não estavam sendo bem compreendidas:

A palavra que o autor propôs, ‘pragmatismo’, obteve reconhecimento geral num sentido generalizado que parece ser demonstração do poder de crescimento e vitalidade. [...] Assim, pois, o autor, vendo este seu filho o ‘pragmatismo’ promovido a tal ponto, sente que já é tempo de lhe dar um beijo de despedida e abandoná-lo a seus destinos mais elevados: [...] o autor anuncia o nascimento da palavra ‘pragmaticismo’, que é suficientemente feia para estar a salvo de raptores. (C.P., p. 287)16

Esta descaracterização do conceito original de Peirce pode hoje ser percebida no seu

significado na linguagem comum. No mercado, é normal em reuniões alguém proferir algo

como: “esperem aí, precisamos ter uma visão pragmática do problema”, quando as discussões

sobre um tema parecem não evoluir. Remete àquele ponto em que é necessário recondicionar o

pensamento e simplificar a questão para a causa e o efeito, meios e fins. Este significado não é

concordante com o sistema filosófico de Peirce fundamentado em método triádico, complexo e

expansivo cujo propósito não é o objetivismo, mas uma apurada investigação científica. Porém,

o termo ganhou este sentido, desde que, no início do século vinte, as ideias de Peirce alcançaram

o público acadêmico e, posteriormente, por influências pontuais, chegou às ruas e ambientes

comuns onde circula a linguagem social. Pragmatismo é o método que orienta a investigação

científica sobre uma dúvida real, apoiada em um sistema lógico integrado e indivisível.

O pragmatismo não é um sistema de Filosofia. É apenas um método de pensamento, [...] não resolve qualquer problema real. [...] O efeito do pragmatismo aqui é somente abrir nossas mentes para receber qualquer evidência, e não para fornecer evidência. (C.P., p. 146)17

Peirce evidencia a conjunção que envolve a fenomenologia e o surgimento de uma dúvida

real que conduz o pensamento para a investigação, considerando a expansão contextual que

abrange todo processo de significação. Amplia o campo de visão ao considerar que um

significado envolve também suas consequências práticas, assim como apresenta na máxima: Considere quais os efeitos que possivelmente pode ter a influência prática que você concebe que o objeto de sua concepção tem. Neste caso, sua concepção desses efeitos é o todo de sua concepção do objeto. (C.P., p. 291)18

_______________

16 C.P., 4.414, 1839-1914. In: PEIRCE, C. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2015. p. 287. 17 C.P., 8.206, 1839-1914. Kósmos Noetós. Arquitetura Metafísica de Charles S. Peirce. São Paulo: Paulus, 2015. p. 146. 18 C.P., 5.402, 1839-1914.. Grifo do autor. In: PEIRCE, C. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2015. p. 291.

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O autor propositalmente repete as palavras “concepção” dando ênfase de que o

conhecimento sobre o objeto só é possível por uma interação no tempo, em que as concepções

vão sendo tecidas a partir da observação das condutas em seu contexto. Consequências práticas,

refere-se à concordância dos efeitos com as ideias. Mas não em um sentido indutivo-objetivista,

como na busca incessante e determinada por um fim, a partir de uma causalidade. É do sentido

abdutivo-científico, que significa a coerência entre leis e fenômenos.

Peirce em sua época, que compreende o início do capitalismo moderno, não estudou

especificamente a comunicação aplicada, design ou marcas. Mas a Fenomenologia, Semiótica

e Pragmatismo apresentam bases científicas elementares para compreender o significado de

“marca comercial”. Surge então um vetor importante: a necessidade de considerar a coerência

lógica entre ideias e suas consequências. A ampliação contextual da análise pragmática da

marca indicou que o significado expresso pela teoria do branding deveria abranger também

todas suas decorrências, como métodos e práticas da empresa, bem como corresponder ao

amplo espectro demonstrado pelos gráficos de Aline Wheeler. Ou seja, de alguma forma, aquele

“ponto de conexão” deveria apresentar elementos na percepção real dos valores subjetivos nos

processos e ambientes que conjuga, entre eles o “interno”.

Ao tornar o objeto difuso, como propõe a teoria do branding, fica vaga a posição

existencial da marca, no sentido de que as consequências de suas ações deveriam também

envolver a “figura” que a incorpora, pensa e age em seu nome. Vem então a hipótese: se não

há referência à esta origem, não haveria também a quem atribuir responsabilidade por suas

ações, tornando-a meios para determinismos e causalidades de individuais ocultos.

A configuração triádica do sistema filosófico de Peirce apresenta que a Ética, por

exemplo, tem o peso de uma ciência normativa, integrando o conjunto de doutrinas com a

Lógica (Semiótica), e a Estética. Esta conjunção tem como propósito formar os três “bens” da

ciência, como Peirce denominava. O bem lógico, referindo-se à capacidade cognitiva de

encontrar a coerência entre significados, signos com objetos ou fenômenos. O bem ético, que

indica a responsabilidade de considerar o “todo” das consequências de ideias, bem como a

realidade plena de diversidade com intérpretes interagindo em um contexto espaçotempo.

O bem estético que não se confunde com a atribuição de valor subjetivo (beleza, feiura)

mas, na classificação da fenomenologia sobre as qualidades primeiras e perceptíveis de um

objeto, seja ele uma imagem agradável ou não: “não existe o mau esteticamente falando [...]

existem apenas qualidade diversas estéticas. A minha ideia é de que há inúmeras variedades de

qualidade estética, mas não um grau puro de qualidade estética” (C.P., p. 6).19

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O pragmatismo então orienta a investigação acionando o senso de reponsabilidade diante

do tema em estudo. Considerando então o cenário contemporâneo da marca, sua abrangência e

importância na realidade das sociedades de consumo e ainda a experiência fenomenológica

como profissional, surgiu mais uma hipótese: a Ética poderia ser um elemento disperso ou

ausente no corpo teórico do branding. Se a tendência é por binaridades, seria como se, partindo

da conjunção Lógica, Ética e Estética, um deles fosse incorporado ao outro ou simplesmente

desconsiderado. Este problema pode ter conexão com o efeito do objeto disperso.

A teoria do branding, ao delimitar o universo contextual que sustenta a premissa na

relação marca/consumidor, pode estar desconsiderando as outras muitas interações da marca

com seus públicos. Desta forma, não estaria também abdicando de grande parte da

responsabilidade ética, que deveria abranger o todo das consequências, ou seja, a dimensão

geral de interações com diferentes intérpretes?

A Ética de Peirce traz um conceito elementar de sua filosofia: a alteridade. Como comenta

o filósofo brasileiro Ivo Ibri, refere-se ao “aspecto negativo do pensamento, aquele elemento

experiencial que mais agudamente se evidencia ao negar as consequências práticas da falsa

mediação” (2015, p. 149). Em outras palavras, o “não-eu” que corresponde à percepção de todas

as diversas existências com as quais interagimos. Conceito basilar da realidade, corresponde à

consciência em segundidade, que coloca o intérprete na dimensão coletiva em que convive e

assim torna-se condição inevitável para a própria noção de existência enquanto individual.

Basicamente, o fundamento na alteridade orienta a consciência de que se deve considerar “o

outro”.

O caminho da integração que a teoria de Peirce incentiva integra a Ética, como

orientadora de práticas e coerências entre ideias e consequências. Com estes preceitos em mente

e se constatada alguma incoerência lógica nas premissas centrais do branding, sua filosofia

fornece bases lógicas elementares para pensar novos caminhos de significação, conjugando o

que possivelmente hoje se encontra disperso ou ausente. Em seu aspecto geral, a experiência de

pensar sobre o conceito técnico das marcas com apoio da Fenomenologia, Semiótica e

Pragmatismo, tem sido um exercício desafiador. Ao comparar os diferentes universos de

conhecimento, torna-se um caminho produtivo analisar uma teoria de aspecto objetivista,

determinista e fundamentado em causalidades pouco questionadas como o branding, pela ótica

da filosofia de Peirce, considerando o acaso, falibilismo e a matriz lógica triádica que envolve

também a Ética.

_______________ 19 C.P., Lectur V, 130. In: PEIRCE, C. Pensadores. Escritos Coligidos. São Paulo: Nova Cultural, 1989. 4 ed. p. 6.

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A “quina da mesa” no caso específico deste estudo foram os acontecimentos que

presenciei no “ambiente interno da marca”. Ao conviver diretamente com os processos de

desenvolvimento, muitas vezes caóticos e reveladores de condutas individuais muito

contraditórias, surgiu inesperadamente uma sensação típica de quando estamos diante de algo

que não compreendemos. Ainda mais considerando que o ponto-chave eram contradições entre

atitudes muitas vezes antiéticas, que contradiziam a memória de discursos anteriores plenos de

humanismo, princípios e valores morais. Ou seja, expectativas essenciais geradas por falas,

imagens, textos publicitários, teorias e conceitos subjetivos se desfaziam no cotidiano de

produção e dinâmica interna de muitas das empresas observadas.

No decorrer desta dissertação, estes conceitos de Peirce serão novamente abordados e

tecidos junto com a análise da teoria do branding, em comparação com o repertório de casos

fornecidos pela fenomenologia. Para continuar em nosso caminho de investigação, no próximo

capítulo veremos um pouco mais sobre o contexto geral deste mundo das marcas.

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2.

Marcas e contextos

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2.1 Marcas e hábitos.

Aí está [...] o âmago da concepção de aprendizagem, traduzido na plasticidade e provisoriedade do hábito adquirido pela mente, cujo traço evolutivo será sua capacidade viva de alterar a própria conduta. A tendência à aquisição de hábitos é o caráter generalizador da mente. (IBRI, 2014, p. 143).

Na filosofia de Charles Peirce, a constituição de um hábito configura o fim do processo

cognitivo. Da experiência fenomenológica e particular inicia-se o fluxo de aprendizado, que envolve o raciocínio abdutivo-dedutivo (em outras palavras, o pensamento orientado em compreender o fenômeno a partir da sinestesia). Uma vez estabelecido, o significado configura um hábito: de pensamento, linguagem e ação. Molda um comportamento ou conduta. Prepara-nos para uma ação futura, com grande possibilidade de acerto, dependendo da regularidade do fenômeno. Configura o tipo de raciocínio da Indução que dedutivamente deve considerar a abdução fenomênica. No entanto, há o acaso e o falível, como descreve Peirce:

Todo pensamento e opinião humanos contém um elemento arbitrário, acidental, que depende das limitações das circunstâncias, poder e inclinação do indivíduo: um elemento de erro, em suma. Mas a opinião humana tende universalmente, a longo prazo, para uma forma definida que é a verdade. (C.P., 1871, p. 320)20

Os erros são originadores da renovação do conhecimento. “Verdade” no texto de Peirce

adquire o sentido filosófico e científico do propósito do estabelecimento de uma teoria ou significado. Mas manter ou renovar hábitos é o caráter universal do movimento contínuo do processo de evolução cognitiva, interação indivíduo/coletivo na realidade, contando ainda com abdução de padrões socioculturais. Transferindo estes conceitos para o estudo das marcas, veremos que sua semiose é movida por muitos hábitos. Assim como o sol e água, também é um fenômeno comum. Não é preciso muito para perceber a evidência de que marcas são um fenômeno real de terceiridade. E muitas destas evidências podem ser observadas pelos hábitos, como o de consumo. No ambiente interno das marcas, os hábitos profissionais, e nas teorias, pensamentos enraizados e aparentemente imutáveis desde a década de noventa, como a premissa da marca imaterial postulada pelo branding que corresponde à “verdade” ou lei, ao critério pragmático.

_______________ 20 C.P., 5.311. Extraído do capítulo D, Resenhas, 1. The Works Of George Berkeley: A Ediçaõ de Fraser, 1871. In: PEIRCE, C. Semiótica. São

Paulo: Perspectiva, 2015. p. 320.

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Agora pouco citei a água. Evidentemente que qualquer um pode distinguir a diferença entre algo da Natureza e outra coisa que é produto da criação humana, como as marcas. Mas o senso de que é uma terceiridade foi indicador da dimensão do problema relacionado com o objeto de estudo. Água não é marca, mas partindo da perspectiva constituída pela experiência profissional e teórica, parece haver um “ponto de conexão” simbólica entre estas particularidades tão distintas: ambos são elementos vitais para a sobrevivência das sociedades de consumo no contemporâneo.

A diferença é que a água envolve efetivamente uma escala de dimensão existencial universal, enquanto no contexto das marcas, podemos considerar que ainda há comunidades autônomas dispersas em diferentes lugares do mundo, não condicionadas à intervenção do sistema capitalista, extraindo água de fontes naturais para seu próprio sustento. Mas em um mercado globalizado como o de nossos dias, podemos considerar que as marcas também são elementos vitais de dimensão quase-universal.

Água, para muitos habitantes deste planeta, é um recurso do qual só se tem acesso pagando. Mesmo se considerarmos que, em muitos casos, o serviço de abastecimento é fornecido pelo governo, há a direta evidência de que a sociedade de consumo contemporânea depende da intermediação de algum nome-próprio, uma entidade extratora, produtora e fornecedora, que permite ou não o acesso para as necessidades básicas e vitais. Este é um senso muito crítico e diretamente associado com o tema das marcas, que pelo viés de sua teorização-técnica, orienta as práticas mercadológicas em nível global com teorias de caráter universal, hoje válida para praticamente todos os segmentos da economia.

Até no setor industrial, outrora ajustado pela homogeneização das commodities, hoje acontece na dinâmica concorrencial entre marcas. Considerando que há uma tendência privatizadora dos serviços sociais de competência governamental em economias como a norte-americana, que no contexto global influencia a conduta de outros países como o Brasil, pode-se vislumbrar um possível cenário em que as marcas configuram terceiridades de um tipo especial, assumindo a responsabilidade do tamanho de nossa necessidade de beber e usar a água, além do acesso à outros serviços e demandas essenciais como alimentação, transporte, educação, segurança e saúde. Para pensar sobre uma teoria como a do branding, que almeja estabelecer a terceiridade teórica neste nível de responsabilidade, estas constatações se tornaram essenciais como vetores do estudo. A seguir, veremos alguns aspectos deste contemporâneo para compor o quadro de referências contextuais que desenham o campo de estudo e denotam hábitos do mundo das marcas. Ao mesmo tempo, começar a identificar elementos para a análise delimitada deste trabalho.

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2.2 O mundo das marcas.

A única coisa que a Indução faz é determinar o valor de uma quantidade. Ela parte de uma teoria e avalia o grau de concordância da teoria aos fatos. Ela nunca pode dar origem a qualquer coisa que seja. (PEIRCE, C., 1903, p. 160)21

O teor da análise desta pesquisa é de natureza qualitativa, mas a evidência de que a marca é uma terceiridade, infere sua condição de presença: o fator quantitativo. Peirce, nesta citação, explica o tipo de raciocínio indutivo, modo de pensamento que corresponde as experiências fenomenológicas de terceiridade. Na concepção pragmática, o significado configura a conclusão do processo cognitivo, por isso este raciocínio não gera coisas novas. Confirma a coerência entre o objeto particular da percepção e sua generalização. Quando escutamos a palavra “água”, indutivamente compreendemos seu significado, baseados na noção de que, até hoje, ela continua sendo a mesma coisa, em sua essência. Esta noção é correspondente ao número de vezes que, por exemplo, individualmente, nos deparamos presencialmente com o objeto desde nossa infância. Ao mesmo tempo, Peirce evidencia outro conceito basilar de sua filosofia: todo novo conhecimento só pode ser originado da experiência fenomênica. Ou seja, só a própria água poderia abalar o seu significado geral. Como consequência, se um dia ela aparecer de um modo distinto de todos os outros que até hoje percebemos ou se a ciência descobrir algo novo sobre sua natureza, acontecerá algo análogo àquilo que ocorreu quando a Terra deixou de ser o centro do Universo.

Induções e hábitos constituídos abrem o campo mental para novos processos de interação e significação em uma evolução e crescimento constante. Este caráter preditivo, que nos permite interagir no mundo, traz a consciência de que os conhecimentos adquiridos têm conexão com a percepção fenomênica de um mundo pleno de coisas redundantes, regulares ou que permanecem, por mais que se transformem.

Há um aspecto quantitativo do pensamento no sentido de que as redundâncias são evidências da assimilação do número de vezes que o fenômeno ocorreu, apresentando condições semelhantes às anteriores. Assim como na percepção do sol, da água, de uma pessoa ou marca. Significados, hábitos, condutas e realidade têm então uma direta conexão com a faculdade “quantitativa” da cognição e perfazem o teor das terceiridades. Mas, se de fato convivemos em um mundo de marcas, que nos são tão habituais, temos a real noção da dimensão que abrange e o que significa? O hábito indica o caráter preditivo, mas em relação às marcas, qual a expectativa que se conforma com sua natureza?

_______________

21 C.P., 5.120-150;EP, 2.196-207. In: Kósmos Noetós. Arquitetura Metafísica de Charles S. Peirce. São Paulo: Paulus, 2015. p. 160.

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Por outra via, o que a configura como terceiridade, que supostamente integra sua segundidade e primeiridade em coerência lógica? O aspecto quantitativo da marca como fenômeno da realidade fornece alguns vetores importantes para esta análise.

Se observarmos, veremos que elas estão em quase todos os lugares. Muitas percebemos seus sinais diretamente, mas mesmo que não estejam aparentes, próximas e sejam insignificantes, fazem parte de nossa vida. Até em uma floresta ou na praia isolada, exceto se estiver sem roupa e mais nada, elas estarão lá: no biquíni, na bermuda, no relógio à prova d´água, no guarda-sol, na sandália, no protetor solar e na prancha de surf. “Até o corpo humano virou um cartaz ambulante para Adidas, Gucci, Benetton e Gloria Vanderbilt.” (RIES; TROUT, 1981, p. 11). Estão em nós, ou muito próximas; enfim, estão em quase todos os lugares e situações. As marcas comerciais surgem na consciência de que muitos objetos de nossa realidade têm outro nome associado que o designam junto com seus termos objetivos. Não apenas a palavra que refere diretamente o produto ou um serviço real, como celular, tênis, TV a cabo, batata-frita, banco, hospital ou leite das crianças. Mas algo que também “está junto”, como Apple, Nike, NET, McDonald´s, Bradesco, Albert Einstein ou Nestlé.

Algumas marcas ficam tão populares que se tornam “metonímia de uma classe específica [...]” (PEREZ, 2004, p. 49), como: Bombril, Gilette, Chiclets, Xerox, Durex, Band-Aid, Danone e Catupiry. Apesar de sabermos diferenciar um do outro pelo contexto, não reparamos que às vezes compramos “danone” da Danone, “cotonete” Cotonete e “band-aid” Band-Aid, ao invés de iogurtes, hastes flexíveis com ponta de algodão e curativo-adesivo.

Na maioria das vezes, a palavra em seu contexto não deixa dúvida qual é o signo que estamos percebendo, seja em português ou outra língua. Assim, podemos distinguir sem dificuldade os sentidos de azul e Azul Linhas Aéreas; Amazônia e Amazon, maçã, apple e Apple; janelas, windows e Windows; coca e cola de Coca-Cola; “goooool!”, Volkswagen Gol e “Viaje com a Gol”. Se repararmos, em muitas destas coisas que nos cercam e fazem parte de nosso dia-a-dia, veremos que há três nomes ao mesmo tempo: do objeto em si, do produto, serviço ou atividade e a marca: carro SUV, Dobló e Fiat, por exemplo. Estamos tão habituados a considerar as “coisas com nome próprio” que mesmo as que são pouco relevantes, aquelas para as quais não damos tanta importância, quando uma circunstância nos leva a conhecê-las não teremos dúvida em pesquisar pela marca. Imagino que muitos, por exemplo, não sabem qual o melhor para-brisa de carro, mas, se um dia for necessário, irão buscar uma reputação, recorrendo ao Google ou alguém que sabe recomendar o melhor, como um vendedor de loja, amigo ou especialista. “Estes, desta marca, são feitos com metal e são mais duráveis”, me disse a atendente da loja. Eram mais caros, optei pelos de silicone, mais baratos. “Estes também são muito bons, disse ela.” Naquele momento, na loja de

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autopeças, olhando os nomes nas embalagens, pensei que além de “para-brisa modelo X”, tinha também a “marca Y”. E na loja havia milhares de outros produtos para carros, bicos de ar de pneus ou peças da carroceria. Coisas, formas, embalagens, cores, imagens e letras. Pensei que hoje é difícil considerar algo sem nome próprio, sem designação de procedência, por mais que achemos o objeto do consumo insignificante a ponto de não lhe vincular uma provável marca.

As marcas estão sempre presentes em praticamente todos os momentos de nossas vidas – das roupas que usamos à comida que ingerimos; dos brinquedos das crianças às bebidas que consumimos; de nossos telefones celulares a nossos carros e a nossas opções de lazer. (PEREZ, 2004, p. 4)

Talvez não prestemos tanta atenção à quase onipresença. Lidamos com elas somente

quando nossa percepção está atenta à publicidade, ao consumo direto ou ao uso. Uma relação geralmente particularizada. São essencialmente meios para realização de desejos, resolver dificuldades e prover as necessidades. Também aparecem como possibilidades para conquistas individuais, ou o contrário de tudo isso. Se observarmos bem, somos dependentes destes “nomes próprios”. Basta pensarmos em nossas necessidades que planejamos, desejamos ou necessitamos logo perceberemos que vitualmente estarão lá, mediando o acesso para todas as coisas que queremos e, também, nos apresentando “modelos” disponíveis, ou uma limitada oferta de conformidades, por mais que o catálogo de opções seja abundante.

Só pode estar parcialmente isento desta condição no contemporâneo quem mora em comunidades onde o capitalismo não regula o modo de vida, como os habitantes da tribo Omo na Etiópia, os Awá do interior do Amazonas que evitam qualquer contato, os budistas do Butão ou um ermitão da caverna. Mesmo considerando que talvez hoje não haja possibilidade de isenção aos efeitos da globalização, resistem e tentam manter suas próprias concepções de vida e mundo. Além de demonstrarem outras realidades possíveis, assinalam a dependência das características das sociedades sob as condições do capitalismo, tão dependentes não apenas da comunidade e governo, mas, principalmente da mediação inevitável à garantia da vida por uma entidade do mercado muitas vezes distante, oculta mas supostamente real, conhecida pelo nome próprio, conjunto de signos e reputação formada pelas publicidades, notícias, opinião pública, experiência de consumo e uso.

Hoje, a gama de habilidades individuais para a auto-subsistência é muito específica e tendemos ao aprofundamento e especialização em um tipo de trabalho que garanta o emprego e o salário, meios diretos para sobrevivência e ascensão individual. As outras necessidades são atendidas por intermediários (empresas/marcas) ou especialistas (ex.: médicos). Somos dependentes. Não construímos nosso próprio veículo, não costuramos as roupas, não fazemos cirurgia no próprio corpo, não arrumamos o próprio celular, não fazemos a tinta que vai na

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parede da casa, não cultivamos nossos alimentos, não ordenhamos as vacas, não fabricamos a pílula contra dor de cabeça e não temos nossa própria fonte de energia elétrica, água ou gás. Mesmo que alguém faça ou tenha alguma destas propriedades, provavelmente muitos outros não as terão. Invariavelmente, somos hoje uma sociedade mediada por estas “coisas” que hoje entendemos como marca.

“A marca se transformou em um dos traços mais fundamentais do mundo do consumo, sem o qual torna-se impossível pensar a complexidade dos seus circuitos.” (SANTAELLA, in: PEREZ, 2004, Prefácio). Vamos fazer um exercício hipotético. Observe ao redor, estando em um lugar que tem sinais ou objetos feitos pela humanidade no contemporâneo e pense quantas marcas, direta e indiretamente, estão presentes, começando pelo que está ao alcance dos sentidos. Tente lembrar seu dia, as coisas que fez e os lugares que passou, quantos produtos, coisas, cafés, lojas, construções, máquinas, logotipos, publicidades e mais um mundo de signos estiveram ao seu alcance? Também imagine coisas que não são diretamente percebidas, mas de alguma forma estão ao redor, como os canos de água e eletricidade internos das paredes. Mesmo nestes casos, é bem provável que as marcas estejam lá, associadas virtualmente com seus nomes em coisas que já têm nome.

Evidentemente que para prosseguir no estudo hipotético de quantificação seria necessário delimitar o espaço geográfico da amostra de aferição. Como estamos apenas conjecturando, considere então a dimensão do mercado global, nacional ou local. Também seria necessário partir de um exato entendimento, ou próximo disso, do que significa marca comercial. Podemos partir de alguns parâmetros iniciais da teoria do branding já apresentados na Introdução e, também, constantes no senso comum.

Vamos então olhar alguns números. Nos anos noventa, o teórico de branding Al Ries retratou o cenário norte-americano: “Existe meio milhão de marcas registradas no ‘U.S. Patente Office’. E 25.000 novas marcas são acrescentadas todos os anos.” (RIES; TROUT, 1981, p. 12). Imagine este processo expansivo deste então. A teórica brasileira do branding, Clotilde Perez indica alguns fatores mercadológicos para a massificação de empresas, marcas e produtos, fenômeno que desde o surgimento do capitalismo vem evoluindo continuamente:

As razões para o alto índice de proliferação de produtos e de marcas são inúmeras. [...] necessidade de segmentação de mercados e de preenchimento de espaços decorrente do acirramento da concorrência. [...] objetivos competitivos tradicionais, tais como: ser o primeiro, superar a concorrência, ampliar seu market-share, obter mais lucro. [...] necessidade de inovações constantes. [...] expansão para novos mercados. [...] consumidores mais exigentes. [...] exigências legais ou governamentais. [...] aproveitamento de oportunidades. [...] complexificações das relações com os atores comerciais. [...] novas alternativas de comercialização e distribuição. [...] necessidade de barateamento da embalagem. (Ibid., 2004, p. 26)

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Segundo as estatísticas da Empresômetro22, agência de pesquisas de mercado, existem atualmente mais de dezoito milhões de empresas ativas no Brasil, em uma abundância de segmentos, industriais, do varejo e serviços. O censo do IBGE23 (2015) estima a população em 204,86 milhões de habitantes e, em uma comparação numérica simples, temos uma empresa para cada onze brasileiros. Enquanto isso, o INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial), informa que em 2017, cerca de trezentos e oitenta mil24 marcas foram registradas com mais de duzentos mil pedidos de registro em análise e a previsão era de crescimento. Diante destes números, pergunta-se: supostamente uma empresa tem um nome/logotipo e forma um conjunto de significado, teríamos então pelo menos dezoito milhões de marcas ativas no Brasil? Aliás, empresa e marca, qual a relação entre elas? Marca é empresa ou empresa é marca?

Em seu aspecto geral, o mercado se apresenta como um imenso sistema complexo, uma rede global, com possibilidades de encontros entre conhecimentos, empresas e profissionais sob camadas e setores diversos: agrícolas, industriais, culturais, varejistas, serviços, entre outros. Há coisas dos mais variados tipos para funções distintas, que às vezes nem damos conta que são produtos e têm marcas. Também há empresas prestando serviços, atendendo necessidades plurais deste intrincado mundo de ideias, vontades, desejos e coisas. Nesta miríade de possibilidades, o que deveríamos considerar nesta quantificação? Qual é o caráter universal que vale para todos os casos, como estabelece a teoria do branding, considerando que hoje quase tudo tem nome próprio e logotipo? Ou então, qual o ponto de conexão simbólica, pelo aspecto da teoria, vislumbrando esse conjunto de nomes diferentes?

Vamos considerar algo concreto. Imagine olhar para um piso feito com cimento da Votorantim, podemos considerar um produto/marca? Se soubermos que o cimento pode ser algum dos tipos da linha Hi-Mix, como: Gigamix, Pisomix, Cristalmix e Adensamix25, muda algo para nosso estudo hipotético? Enquanto pensamos sobre o que pode ser ou não considerado nessa contagem, vamos reparando que até no chão da rua, nos muros, postes e até dentro de casa pode ter cimento Votorantim ou de outra indústria que tem nome.

_______________ 22 Disponível em: <https://www.empresometro.com.br/Home/Home?utm_source=lp-rodape>. Acesso em: 19 dez. 2018. 23 Disponível em: <https://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?no=10&op=0&vcodigo=PD335&t=populacao-residente>. Acesso em: 19

dez. 2018. 24 INPI. Relatório de Atividades 2018. Rio de Janeiro. Arquivo PDF, p. 8. Disponível em: <http://www.inpi.gov.br/menu

servicos/marcas/publicacoes>. Acesso em: 19 dez. 2018. 25 Disponível em: <https://www.votorantimcimentos.com.br/produtos/concreto/>. Acesso em: 10 jan. 2019.

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Outros fatores do contexto logo de início também dificultariam nosso trabalho. Mesmo se tivéssemos acesso aos relatórios gerais de institutos de pesquisa seria muito difícil mapear a complexidade desta rede que é o mercado global contemporâneo para identificar as marcas que entrariam na contagem, mesmo que o recorte seja regional ou local. No mercado, as fusões, incorporações e aquisições são um fenômeno comum. Empresas se expandem, avançam para outros setores e se internacionalizam. Alguns grupos controlam vários negócios ao mesmo tempo, em contextos distintos. No setor de cosméticos, por exemplo, uma das maiores franquias do mundo, a brasileira oBoticário, possui mais três outras marcas atuando no mesmo setor do varejo, atendendo segmentos de público diferentes: Eudora, Quem Disse Berenice? e The Beauty Box. O site institucional da empresa apresenta (2019)26:

MULTIMARCA, MULTICANAL. O Boticário; Eudora; Quem Disse, Berenice? e The Beauty Box estão em mais de 4 mil pontos de venda próprios, em 1.750 cidades, com e-commerce e venda direta. Com Vult e Multi B, firmamos parcerias com outros grandes varejistas, marcando presença em mais de 40 mil outros pontos de venda, como farmácias e lojas multimarcas. Além disso, nossos produtos chegam a outros 12 países.26

No site, também estão disponíveis os balanços financeiros do grupo e neles pode-se

encontrar:

Cálamo Distribuidora de Produtos de Beleza S.A. (...) A atuação da Companhia compreende a distribuição comercial por atacado, comércio eletrônico/virtual e exportação de produtos de perfumaria, cosméticos e higiene pessoal e a participação em outras sociedades, atuando como uma holding operacional (...). Essas operações levaram a Companhia a encerrar o ano com faturamento consolidado de R$ 4,3 bilhões (R$ 4,2 bilhões em 2014)27.

Surgem nomes: Cálamo, Vult, Multi B, além de um universo de produtos, todos associadas ao grupo oBoticário, empresa que conjuga atuação no setor industrial e varejo. Existem muitas outras indústrias notórias no contato direto com o consumidor final, como a Unilever, que é proprietária de vinte e sete outras marcas de produtos em diferentes segmentos como sorvete (Kibon), sabão em pó (Surf) e amido de milho (Maizena). Já a Procter & Gamble (P&G), assina a fabricação de um portfólio diversificado de produtos de higiene, limpeza e alimentação, cada um com nome próprio. No mundo são sessenta e cinco em sua árvore genealógica e aqui no Brasil há populares como “Gillette”, “Pampers” e “Ariel”.

_______________

26 Disponível em: <http://www.grupoboticario.com.br/pt/grupo-boticario/Paginas/Inicial.aspx>. Acesso em: 10 jan. 2019. 27 PARANÁ, Diário Oficial. Cálamo Distribuidora de Produtos de Beleza S.A. Relatório da Administração. Paraná, 30 de março, ed. 9666,

2016. Arquivo PDF. Disponível em:http://www.grupoboticario.com.br/pt/Paginas/informacoes_administrativas.aspx>. Acesso em: 10 jan. 2019.

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“A P&G é composta por muitas marcas individuais, cada uma atende os clientes de uma

maneira diferente - mas todas com o foco de tornar a vida das pessoas um pouco mais simples”

(2019) 28, diz a empresa no site institucional. P&G e outras grandes companhias como Unilever

são marcas-mães de famílias diversas de outros “nomes”, todos com notoriedade, do fabricante

ao produto.

No setor financeiro, o Bradesco é a segunda marca mais valiosa do Brasil29 e em dois mil

dezesseis era a vigésima sétima maior instituição financeira do mundo30. No site da companhia,

vê-se o tamanho e abrangência de sua atuação, com mais de quarenta empresas no setor

financeiro e seguros em operações nacionais e internacionais, envolvendo o Banco ibi,

BradesCard, Odontoprev, Banco BoaVista, Columbus Holdings entre outras31.

Mundialmente conhecido, o grupo de Mark Zuckerberg, a rede social Facebook é uma empresa que vem ampliando sua receita com aquisições. Fazendo parte do grupo também estão os notórios WhatsApp e Instagram. Mas o portfólio de frentes de negócio não para aí, variando entre marcas de softwares, aplicativos e grife de óculos de sol: VR, Octazen, Sharegrove, Divvyshot, Hot Potato e Beluga. Facebook é a nona marca mais valiosa do mundo, valendo 45,168 bilhões, segundo relatório anual de 2018 realizado pela Interbrand32.

Outro exemplo são as holdings do segmento para produtos de alto luxo. Em reportagem da revista GQ publicada em 201733, “Quem são os mega-grupos que dominam o mercado de luxo mundial”, o texto diz:

Poucos grupos gigantes, holdings, são donos de uma miríade de marcas que fabricam de óculos a relógios, passando por alta costura e bebidas. A maior delas é Moët Hennessy Louis Vuitton S.A., mas ela é mais conhecida apenas por LVMH. Essa holding francesa de 30 anos é simplesmente uma das maiores do mundo, com um faturamento de € 35 bilhões em 2015. Entre suas áreas de atuação estão os setores de bebidas, alta relojoaria, moda e cosméticos. Principais marcas: Chandon, Dom Pérignon, Hennessy, Moë t& Chandon, Veuve Clicquot, Le Bon Marché, Sephora, Céline, Dior, Givenchy, Kenzo, Louis Vuitton, Marc Jacobs, Bulgari, Hublot, TAG Heuer, Zenith.33

_______________ 28 Disponível em: <https://br.pg.com/pt-BR/nossas-marcas>. Acesso em: 12 jan. 2019.

29 Extraído do ranking Interbrand, 2018. Disponível em: <https://www.interbrand.com/br/best-brands/best-brazilian-brands/2018/ranking/>. Acesso em: 12 jan. 2019.

30 Disponível em: <https://exame.abril.com.br/negocios/dos-43-maiores-bancos-do-mundo-3-sao-do-brasil-veja-lista/>. Acesso em: 12 jan. 2019.

31 Disponível em: <https://banco.bradesco/html/pessoajuridica/sobre/o-grupo-bradesco.shtm>. Acesso em: 12 jan. 2019. 32 Disponível em: https://www.interbrand.com/best-brands/best-global-brands/2018/ranking/>. Acesso em: 12 jan. 2019. 33 Disponível em: <https://gq.globo.com/Prazeres/Poder/noticia/2017/02/quem-sao-os-mega-grupos-que-dominam-o-mercado-de-luxo-

mundial.html>. Acesso em: 14 jan. 2019.

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Do segmento de entretenimento, muitos devem conhecer a Marvel. É marca de um

universo de fantasia que envolve faixas etárias diversas, da criança ao adulto, muito rico em

objetos materiais de consumo, de revistas, filmes à bonecos e iogurtes. A partir dos anos oitenta,

as técnicas de franquia e licenciamento de marcas adotadas por grandes companhias tornaram-

se meios de hiperdiversificação de segmentos. Podemos ver o Hulk em embalagem de iogurte,

o Homem de Ferro em capa de caderno e mochila escolar, camisetas com o Capitão América,

fantasias, bonecos e brinquedos dos mais variados tipos, produtos para colecionadores adultos,

seriado do Homem-Aranha na tv a cabo, enfim, um mundo de produtos. Em matéria publicada

no site UOL, em maior de dois mil e dezenove, lia-se: “Franquia Marvel registra 60 milhões de

produtos vendidos no Brasil”.34

A Marvel foi adquirida em dois mil e nove pela Walt Disney e hoje conta com mais de oito mil personagens e sete frentes de negócios: Marvel Television, Marvel Publishing Inc., Marvel Comics, Marvel Characters, Marvel Toys, MVL Finance LLC e Spiderman Merchandising LP35. Neste caso, sem dúvida que se trata de uma marca de alto poder simbólico. Surge então a inevitável distinção entre marca-empresa e marca-produto. Se a teoria diz que marca é uma conexão simbólica, podemos dizer que produto também é marca? Por exemplo, do ponto de vista da teoria do branding, consideramos o próprio Hulk um personagem-produto e, também, uma marca? Seriam então oito mil potenciais produtos/marcas, de acordo com o número de personagens? O que distingue uma coisa de outra?

Em todos os exemplos citados, em nossa quantificação hipotética, deveriam ser selecionadas apenas as “marcas de varejo” ou também as holdings e companhias proprietárias? No caso de oBoticário, os mais de quarenta mil produtos entram na conta, junto com as empresas do grupo e a Cálamo? Se a teoria do branding diz que a marca não é mais indicadora de origem, mas a origem, qual a conexão simbólica entre estes diferentes tipos de signos? E ainda, no sentido pragmático, qual é o objeto da experiência fenomênica da Cálamo conjugada com oBoticário, por exemplo?

Mesmo que uma marca seja repleta de subjetividade, considerando toda a gigante família de “nomes” que constituem um grupo como oBoticário, acaba se adequando mais àquele sentido de que é estritamente o signo, um mediador entre dois intérpretes. Se a teoria do branding diz que a marca não é mais a indicadora de origem, mas a origem, qual a conexão simbólica entre estes diferentes tipos de signos?

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34 Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/05/27/franquia-marvel-registra-60-milhoes-de-produtos-vendidos-no-brasil-em-2018.htm>. Acesso em: 27 maio. 2019.

35 Disponível em: <https://www.marvel.com/corporate/about/>. Acesso em: 27 maio. 2019.

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Por exemplo no universo Marvel, seria a Walt-Disney, a Marvel Toys, o personagem Homem de Ferro, o brinquedo, os pais que compram ou a mente da criança que brinca com o boneco? E, para ajudar a complicar, a questão que sempre aparece: qual o objeto que pragmaticamente se conjuga?

O problema da origem é ainda mais complexo. Nas últimas décadas, houve a tendência de gestão operacional em diferentes setores da economia de desassociar a dimensão estratégica e a produtiva, em uma espécie de separação cartesiana entre mente e corpo. Vem sendo aplicada como método desde os anos noventa. Este modelo de gestão estratégica do negócio foi investigado nos anos dois mil pela jornalista-ativista antiglobalização Naomi Klein e o resultado foi publicado no livro “No-Logo” (Ed. Record, 2002). Ela visitou as fábricas de tênis Nike nas Filipinas e testemunhou o regime de opressão aos trabalhadores que vivem em condição de pobreza e desenvolvem o trabalho sob pressão psicológica e física.

O modo de gestão que a Nike embandeirou e se tornou tendência mundial é uma referência interessante para uma analogia do dualismo existencial cartesiano, em que a mente estratégica está em escritórios modernos e “descolados” em lugares como Oregon, Estados Unidos, enquanto as fábricas, os corpos, estão em ZPE (Zonas de Produção para Exportação) em países como Filipinas, Vietnã, Índia e, evidentemente, China. Se o entendimento é de que o logotipo indica uma origem, pensando nestes fatores, o que ela significa? Por outro lado, se marca é uma conexão simbólica, qual a lógica desta conjunção?

A identificação da origem é difícil para a experiência do consumidor. Nesta imensa rede que é o mercado atual, é complicado saber ao certo quantas empresas estão envolvidas no processo de fabricação, distribuição e venda de um produto ou desenvolvimento de serviço. Escrito em pequenas letras no fundo da embalagem, também pode haver o nome da companhia fabricante, completamente diferente ou ainda um “made in China”. Muitos produtos que consumimos não conhecemos realmente seu produtor, ou se alguma vez descobrimos, não despertam tanta atenção. Por exemplo, saber que os sucrilhos Kellog´s de chocolate são fabricados pela indústria Parati36, de São Lourenço do Oeste, Santa Catarina, talvez não represente muita coisa para um consumidor de outras regiões do Brasil, em que a marca regional não comercializa seus próprios produtos. A empresa, conforme o site institucional, atua comercialmente na região sul do país37. Em geral, os meios produtivos de boa parte das indústrias e do comércio que atendem os milhares de segmentos do mercado não são plenamente autossuficientes.

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36 Referência extraída da embalagem do produto. 37 Disponível em: <http://www.parati.com.br/>. Acesso em: 18 dez. 2018.

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Seja para a manutenção de uma loja, escritório, fabricação de produtos e prestação de serviços, uma empresa contará com intermediários e fornecimento de insumos para manutenção de seus processos internos. Empresas podem ter inúmeros terceirizados e relacionamentos de diversos tipos com outras empresas, como agências de publicidade, gráficas, catering, assessorias jurídicas, consultorias de gestão, logísticas, escritórios de design, branding, multisserviços, fabricantes de peças, maquinários, softwares etc.

Então, quando olhamos um produto, devemos também imaginar que para ele estar assim constituído, outras possíveis marcas que não percebemos são também participantes desta rede produtora ativa. “O mundo das marcas não apenas se expandiu para dominar praticamente tudo o que pode ser feito, fornecido ou esperado, mas também reinventou relações até então tradicionais.” (PEREZ, 2004, p. 4). A fabricação de um avião ou satélite, assim como uma roupa ou uma pizza dependem desta operação conjunta entre empresas, para que o produto seja produzido. Outras organizações, com conhecimentos específicos, produtos, nomes e logotipos. Na pizza pode ter Catupiry e farinha Bunge. Na roupa, tecido Vicunha. No Ford, bateria Moura.

Neste cenário vemos que uma marca atua como um ponto de conjunção, reunindo saberes e fazeres variados enquanto promove a dinâmica e evolução mútua. Mas se a marca é indicação de origem, como interpretar este contexto, considerando que empresas ocultam o nome de muitos de seus fornecedores, por razões tanto protetoras quanto suspeitas? É origem de que exatamente? Sem contar que, com a internet, entramos em contato diariamente com muitas marcas que não estão fisicamente no Brasil, mas vendem seus produtos em webstores e comunicam diretamente com potenciais consumidores de diferentes partes do mundo, por mídias como YouTube e publicidades em canais diversos. Marcas que muitas vezes não fazemos a menor ideia da suposta origem.

Ao mesmo tempo que existem as grandes companhias globais e holdings, há também os pequenos negócios que vem alterando profundamente as dinâmicas do mercado e os modos de trabalho. E se recortássemos o espaço de pesquisa para o Brasil ou uma cidade como São Paulo, haveria mais uma condição contextual importante para nosso exercício hipotético que se refere a burocratização e custos para regularização, registros e abertura de empresas, com taxas que inibem as formalizações.

Podemos então imaginar o incalculável número de marcas que não estão computados nas estatísticas e não são de aferição possível. Ainda temos as organizações não-governamentais, entidades e instituições sociais e de classe. Também são marcas? Ou é só relativa aos domínios do mercado, indústria e varejo? O INPI (Instituto Nacional de Patentes Industriais), órgão governamental que regulariza registros de nomes/logotipos e invenções, por exemplo, é também uma marca? Uma consultoria de branding? Um partido político? E um país?

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No livro, “Posicionamento: A Batalha Pela Sua Mente”, (Pioneira, 1981, 1993) de Al Ries e Jack Trout, logo pelo Índice poderíamos constatar que as ideias gerais da marca são aplicáveis em contextos e casos distintos. Têm alcance universal. Vale considerar que mesmo sendo uma obra de duas décadas atrás, faz parte da bibliografia obrigatória de estudo para gestão de marcas e negócios ainda hoje. Baseando seus argumentos em diversos casos do mercado e projetos de sucesso que desenvolveram para companhias locais, globais e outros tipos de instituições, vê-se a tentativa de prover o conceito de marca de uma universalidade que atenda praticamente a totalidade de casos possíveis: posicionamento para “um líder; uma empresa: Xerox; um país: Bélgica; uma ilha; a Jamaica; um produto: MilkDuds; um serviço: Mailgram; um banco: LongIsland; posicionamento da Igreja Católica; posicionando você mesmo e sua carreira [...].” (Ibid., 1981, 1993, p. IX, X, XI). É obviamente impraticável e quase impossível quantificar as marcas existentes. Não é preciso esta evidência exata para que tenhamos a noção da dimensão do que hoje ela envolve. Poderia citar ainda inúmeros casos para demonstrar a complexidade do mercado contemporâneo, mas esta tarefa também é desnecessária. Não foi exatamente a quantificação o motivo que originou a dúvida central desta pesquisa e nem o que ela pretende. Apresentar este contexto por um exercício hipotético, ao mesmo tempo, pareceu-me ser a melhor forma de introduzir alguns problemas da marca contemporânea que são revelados nesta tentativa de conjecturar uma quantificação impossível.

Observo três condições bastante peculiares de acordo com algumas características deste “mundo de marcas”. A primeira é relativa ao seu conceito, propriamente dito. Parecia simples, mas diante da semiosfera brevemente descrita anteriormente, o que deveria ser considerado como marca? Quando vemos o produto e dizemos “é da marca tal”, o que isso significa exatamente? A marca é o produto? A empresa? A fábrica que produz? O nome? O logo? Uma pessoa? A ideia? Todos estes juntos? O que devemos levar em consideração, para que cada unidade quantificada se justifique, de acordo com as diretrizes da marca como ponto de conexão simbólica?

A segunda condição peculiar é que muitas vezes há um “oculto”. Não sabemos ao certo a origem de muitos produtos, nem tampouco o que isso significa de fato. Pense nos exemplos citados, como o de companhias e holdings com frentes de negócio muito distintas. Quantas outras podem pertencer a investidores individuais anônimos?

Então, se até hoje nos habituamos com a marca como sinal distintivo de uma origem, o que ela é de fato? A cerveja Brahma, por exemplo, é a Ambev? Ou é a corretora de valores Garantia, do megaempresário e multibilionário Jorge Paulo Lemann, real proprietária tanto da Ambev quanto da Brahma e uma boa parte de outras marcas de cerveja do Brasil e do mundo? O que significa essa origem: a máquina que envaza, os funcionários, a fábrica, o marketing, a

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agência de design, publicidade ou a mente do Jorge Paulo Lemann? Todos eles juntos? Ou a origem é o consumidor que bebe a cerveja? E para não perder a vez, qual o ponto de conexão simbólica entre a marca e o objeto que leva à inferência destas diferentes dimensões?

Chegamos ao ponto em que o problema do conceito de marca começa a aparecer. É complicado tentar identificar uma marca quando simplesmente observo o mundo ao redor. As definições do branding não são tão objetivas quanto o esperado e deixam muitas dúvidas no ar. Parece haver uma preocupação maior em teorizar a marca pela perspectiva do consumidor, priorizando seu sentido para marcas que atuam no varejo.

Mas o problema central não aponta uma simples questão de interpretação. Bastaria corrigir o texto da teoria para ajustar seu sentido sem mudar seus efeitos diretos, e pronto. O problema parece mais profundo do que parece. Um hábito pressupõe uma direta conexão com uma conduta diante de um objeto real e existente como particular, assim como o significado da água, a palavra e suas moléculas. Esta condição só não se aplica para os objetos da fantasia, puramente imateriais, como unicórnios e o Homem de Ferro que apenas existem como índices, mesmo que em forma de bonecos de plástico. Nota-se a curiosa condição da marca: uma terceiridade real mas que não temos como dizer o que é, objetivamente.

A terceira condição, que julgo talvez de mais importância para a análise, é a de que efetivamente vivemos neste “mundo de marcas” e isso não é fantasia. Ao certo são centenas de milhares e esta condição denota algo muito particular da realidade em praticamente todo o planeta. É notório que estamos em um cenário dominado por elas, suas ideias e ações influentes na vida cotidiana das sociedades contemporâneas. Apesar das dificuldades conceituais, não resta dúvida que a massiva presença é sinal de um fenômeno de terceiridade e contexto com hábitos instituídos. Entretanto subsiste a pergunta: qual é o objeto da marca? O produto, a empresa, o consumidor e seu imaginário, a própria marca que se auto-objetiva pela circulação ou o hábito de consumo que, instalado no imaginário do consumidor, torna-se o único objeto possível?

A relevância desta constatação no caso desta pesquisa serviu para traçar um primeiro desenho da dimensão que o tema aborda e que responsavelmente deveria adotar como parâmetro para melhor compreendê-lo. Contribui para vislumbrar a profundidade dos efeitos que as marcas produzem no contemporâneo: culturais, econômicos e ambientais. Ou seja, o fator “quantitativo” conjuga o alcance do teor qualitativo. Se a marca é quase onipresente, qual a consequência de seus efeitos?

Todo conceito geral traz um propósito, sendo o primordial, o de comprovar sua veracidade na concordância com os fatos. Mas o que pensar quando, pela vivência, a observação dos fenômenos evidencia incoerências graves e críticas, como desvios de conduta ética que se mostram mais habituais que eventuais, mais gerais que particulares? É quando nos deparamos

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com a “quina da mesa” que nos faz pensar sobre temas que antes eram tão habituais e inquestionáveis. Ou seja, é necessário desenvolver a análise da natureza do pensamento sobre a marca para compreender a potencialidade de seus efeitos na realidade. Não exatamente a opinião pública, mas daqueles que se encarregam de determinar as regras mercadológicas, do jogo de marcas que são determinadas pelas leis do branding. É consenso para qualquer teórico e profissional do mercado que elas são o cerne do pensamento atual e, também para os negócios, o alto desempenho só pode ser conquistado através de uma marca forte.

Durante o percurso da análise, a hipótese de que regras e leis que regem o pensamento da marca refletem-se nas condutas sociais tornou-se um vetor importante. As suas lógicas parecem ser absorvidas culturalmente pela influência da mídia e interação entre os próprios indivíduos participantes do sistema que, incorporados à cultura e ao comportamento social, conformam uma rede de hábitos. O indivíduo-profissional, por exemplo, é orientado a agir conforme as teorias de disciplinas aplicadas como marketing e branding que afirmam o que é, o que deve ser a marca e como o mercado deve operar sob sua dinâmica. Leis restritas ao mundo técnico, mas que são expandidas no espaço social através das interações como a publicidade e ambientes de consumo. O modo de ser da marca também encontra reflexo no modo de trabalho, perspectiva individual de evolução profissional e empreendedorismo de si, incentivando a competição pelo mérito pessoal onde imagens e potências simbólicas prosperam. Ao vislumbrar o cenário atual, há um entusiasmo e expansão contínua do conceito da marca como potência simbólica, refletindo de certa forma as recentes transformações do capitalismo, que teóricos como o filósofo austro-francês André Gorz38 (1923-2007), denominam de “imaterial”; “a era da inovação”39, por Phillip Kotler e Fernando Trías de Bes; “o mundo” ou “era das marcas”, sentido que pode ser encontrado na bibliografia do branding em obras de Al Ries, Douglas Atkins, Scott Bedbury, José Roberto Martins entre outros. Ao mesmo tempo, conjugamos uma “sociedade do consumo virtual”, como expressão sugerida para transformações trazidas pela associação cada vez maior entre a tecnologia e o mercado, fenômeno que vem alterando profundamente o comportamento de consumo. O ponto comum destas expressões parece a de que o mundo contemporâneo tem como marca a imaterialidade, o virtual, o símbolo, a inovação do mercado baseado no consumo de ideias e experiências. É urgente a necessidade de compreender a profundidade ontológica desta realidade. _______________

38 GORZ, André. In: O Imaterial. Conhecimento, Valor e Capital. São Paulo: Annablume, 2005. 39 KOTLER, Phillip; DE BES, Fernado Trías. In: A Bíblia da Inovação. São Paulo: Leya, 2011.

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Um dos aspectos relevantes nesse debate, é justamente o papel da marca, da teoria do branding e áreas de conhecimento relativas ao mercado neste ecossistema. Pela ótica pragmática, qual a consequência das ideias em sua abrangência? É certo que teorias ou marcas são terceiridades e objetivam estabelecer hábitos, de pensar, comunicar e agir. Falta compreender seu caráter na relação com a segundidade e a primeiridade. Até agora, parece que sua fluidez acontece primordialmente entre duas dimensões, ora entre signo/significado, ora entre significado/experiência ou entre signo/hábito. Na visão pragmática, um componente parece sempre oculto ou sublocado, figurando como mero coadjuvante ou incorporado por um dos dois lados da moeda.

Neste estudo, propõe-se pensar a constituição lógica por outro percurso, reunindo o significado geral, o repertório de signos mediadores, como o nome-logotipo e métodos de gestão empresarial com o objeto. Como na conexão entre um que produz, comunica e vende e outro que recebe, consome e interage. No meio, os signos, imagens, mensagens, lugares, discursos publicitários e demais contatos. E ainda a conexão entre ideia, práticas, hábitos, condutas e consequências.

Por fim, no início do capítulo havia citado o caráter preditivo de um conceito, teoria ou significado, como o da “água”. Algo existente com relação ao qual não teremos dúvida o que é quando sentirmos da próxima vez. A memória que sustenta os hábitos nos induz a prever que nossas expectativas de significado serão confirmadas. Entre as marcas e seu caráter preditivo, é evidente que se coloca o repertório sígnico, a persuasão do design e a publicidade como agentes de produção de projeções futuras da experiência individual do consumidor pelas imagens. Mas na delimitação e foco desta pesquisa, pergunto: o que esperamos de uma marca já que o contato real parece impossível, na maioria dos casos? Para prosseguir será preciso conhecer com mais ênfase o que diz a teoria do branding. Mas vamos passar antes por mais um aspecto da terceiridade das marcas, agora pelo viés do intérprete-profissional que também vai contribuir para tecer uma associação entre os mundos “internos” e “externos” das marcas, a fim de encontrar o ponto de conexão simbólica que pode ajudar a identificar o objeto.

2.3 O mundo dentro das marcas. Na experiência profissional, o senso de terceiridade da marca surge em outro contexto, mas que também está diretamente ligado com o aspecto quantitativo. Não mais de marcas existentes, mas, por exemplo, de horas trabalhadas e “produtos” manufaturados, neste caso, ideias, layouts e campanhas de tipos variados. Também a quantidade de vezes que repetimos

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modos e metodologias, como as que orientam a produção de signos para atender a demanda do símbolo. Considerando-se o papel de intérprete-consumidor há a direta constatação da quantidade massiva de logotipos, nomes, imagens, conceitos, mensagens, anúncios que hoje estão em mídias que parecem nos cercar quase que completamente. Enquanto isso, vemos uma concorrência de ideias em ritmo e dinâmica acelerada, cada vez mais acompanhando a velocidade da concorrência e das redes sociais na internet. Este movimento que remonta à década de oitenta do século vinte, quando a globalização já era uma realidade, enquanto a teoria do branding ia surgindo, o mercado de comunicação empresarial em geral foi crescendo exponencialmente, se capilarizou e evoluiu. São diversos os segmentos como: relações públicas, promoção de vendas, marketing digital, marketing direto, endomarketing, comunicação visual, mídia, design, branding, além de áreas correlatas como produção audiovisual, fotografia, ilustração, programação de dados etc. Envolve agências, consultorias, free-lances, start-ups, estúdios, grupos de coworking; organizações de grande à pequeno porte, além de multinacionais, como na maioria dos setores do mercado. Não é preciso um número exato para se ter a ideia de que o mercado de comunicação é altamente concorrido, amplo e a demanda também é alta. É um segmento que sofre as mais diretas influências de novos conceitos estratégicos de gestão de marcas e negócios, renovando-se e flutuando conforme o desempenho das empresas e do mercado em geral. É também afetado por movimentos econômicos e mudanças tecnológicas que instituem novos desafios e complexificam cada vez mais o pensamento sobre a manutenção das dinâmicas das marcas, como a interconexão de mídias e conceitos estratégicos de significação. Na introdução havia indicado que nos últimos quinze anos foram milhares os trabalhos produzidos pela agência. Uma das constatações iniciais da terceiridade da marca que absorvi da experiência foi perceber que a produção de novas ideias, de uma hora para outra, se tornou um hábito constituído. Ao mesmo tempo, a teoria do branding, já assimilada pelo mercado, orienta o cuidado com o alinhamento dos signos e o sistema de identidade de marca registrado nos manuais, com diretrizes para reprodução precisa de formas, cores exatas, grupos de tipografias com funcionalidades específicas, organizações de layout padronizadas, teor de linguagem, personalidade da marca, orientações de subjetividades a serem exploradas e mais outras inúmeras regras que identificam o hábito de pensar incorporado à marca.

O trabalho era, todo dia, combinar a necessidade de uma nova ideia e ao mesmo tempo

manter o significado principal, expresso no sistema de identidade. Como um mudar para não

mudar. Transformações de fato, somente quando a empresa passava por um rebranding, ou

revisão integral de toda sua constituição de significado, envolvendo um novo repertório de

signos, regras e sistemas. Mas essencialmente, a sensação era de que, prontamente, como

mágica, era necessário tirar um coelho da cartola: a grande ideia diferente sobre a mesma coisa.

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Nem sempre saia coelho, mas a técnica e a experiência fornecem repertório mais que suficiente

para moldar o personagem e atender às demandas dos briefings. No dia-a-dia o diferente acaba

sendo a mesma coisa e o corpo-mente cria seus próprios caminhos para automatizar os

processos de criação.

A socióloga Isleide Fontenelle, autora do importante livro “O Nome da Marca:

McDonald´s, fetichismo e cultura descartável” (Boitempo, 2002), apresenta uma profunda

análise, genealogia e arqueologia do capitalismo tendo como objeto de estudo a rede global de

fast-food. Busca compreender o fenômeno da “fetichização das imagens”, seu contexto e

compreensão da sociedade de consumo condicionada em um sistema cujo fim é a produção da

subjetividade.

Na obra, ela apresenta algumas características essenciais do modo de operação capitalista

que bem expressam a realidade do ambiente profissional de desenvolvimento das marcas. Entre

elas a “aceleração da aceleração, [...] aceleração intensa e ininterrupta no sentido do tempo: a

velocidade, a instantaneidade, [...] patrocinada pela junção entre ciência, tecnologia e

capitalismo”. (Ibid., 2002, p. 133). É interessante notar que o sistema do mercado em muitos

aspectos parece ambivalente, como no exemplo anterior do cotidiano de trabalho em que a

grande diversidade criativa, velocidade e quantidade de produção se condicionam à

homogeneidade, estagnação e exaustão. Apesar de parecer tão vanguarda, o exercício da

profissão de design e publicidade faz lembrar muitas vezes a linha de produção em série do

fordismo com a organização e controle do taylorismo do início do século vinte.

Trata-se de uma mudança conservadora, em que o estilo muda sem se mudar o estilo: apenas acompanha a efemeridade dos gostos, e esses estão sendo dinamitados a todo momento por mudanças na concorrência, em busca de alguma coisa que ‘crie a diferença’. (Ibid., 2002, p. 192)

Assim como também aponta Fontenelle, o “mudar para não mudar”, que evidencia uma característica elementar do capitalismo, de certa forma fica estampado também na referência do processo de desenvolvimento das marcas. Formam um desafio paradoxal que a teoria do branding tenta resolver, buscando justamente o controle equilibrado entre a necessidade de manter e a de mudar. Imaginar o ambiente de uma agência de comunicação parece ser bem diferente do contexto fordista que remete para uma função de “bater o prego” continuamente, em que a mente e o corpo estão condicionados como uma máquina. No mundo da comunicação comercial há muitos mitos que encantam um universitário, como o ganho de prêmios, viagens e experiências singulares. Parece uma profissão sempre refrescada pelo exercício livre de ideias

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e criação de representações de mundos fantásticos. Mas os mitos não duram muito quando se entra no mundo profissional. O entusiasmo diminui sua força ou até se apaga, na velocidade da “aceleração da aceleração” do mercado. Na realidade de uma agência sempre parece que há coisa nova, desafios extraordinários, aventuras criativas e oportunidades para um conceito arrasador. Mas, curiosamente, este aspecto se torna um hábito. Como consegui constatar em conversas informais com os membros da equipe, os relatos tinham uma concordância, porque quase todos admitiam que se sentiam máquinas. Tudo é dinâmico e se renova, mas permanece. Uma contradição que só pode ser compreendida por quem vivencia o trabalho, como era compartilhado pela opinião de muitos membros da equipe e a maioria de todos os profissionais da comunicação que conheci no percurso. É fato que acontecem viagens, contato com pessoas, mundos diferentes e há meios para prosperar financeiramente, mas o caminho é tão difícil quanto a batalha concorrencial das marcas no mercado. Para muitos, os mitos vão se desfazendo conforme a experiência vai descaracterizando a visão romântica e glamourizada do ecossistema da comunicação comercial que normalmente um jovem no início de carreira tem e combina também com a visão do público geral. A ideia de um trabalho coletivo, de constante troca de ideias e brainstorms em salas com puff e música eram pura abstração, porque na maioria das vezes era pouca conversa e muita ação. A mente condicionada aos meios e fins, tentando resolver os itens da lista de tarefas e, possivelmente, terminar tudo no tempo de trabalho normal o que na maioria das vezes era impossível. Ao contrário, o comum eram as horas extras, muitas, incontáveis, com trabalhos sendo levados para casa e que invadiam as madrugadas, fins de semana e feriados, frequentemente. No contexto acontecia uma curiosa e contraditória relação entre o senso de equipe, interdependência e dinâmica do fluxo; com uma tendência para a individualização do processo de trabalho. No caso da agência de comunicação que atuei, esta individualização não sofria influência de conflitos de personalidades e egos inflados, disputando hierarquia e espaço, como se mostrou muito comum pela observação nos ambientes internos de outras empresas e agências pesquisadas. Lá percebia que o próprio contexto fazia com que o dia fosse mais ocupado por horas de trabalho concentrado e isolado que em trocas de ideias e desenvolvimentos conjuntos. Apesar dos profissionais trabalharem muitos próximos, ficavam concentrados nas próprias tarefas e as reuniões de grupo aconteciam a toque de caixa. Depois todos voltavam para suas pequenas ilhas de trabalho. Os escritórios contemporâneos não têm divisórias, mas elas parecem continuar mentalmente limitando espaços involuntariamente, pois são sustentadas pela própria dinâmica e carga de trabalho.

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As horas extras, que em muitas empresas não são remuneradas, fazem parte da lógica da dedicação e sucesso “dando duro” e está no discurso de muitos executivos, diretores, gerentes e profissionais de maior cargo que assumem o comando de ações e equipes enquanto pensam e agem para manter o status-quo das virtudes do mercado. Com doze a catorze horas de trabalho ao dia, executivos sugerem que viver é trabalhar, ou trabalhar é viver. Sem entrar no mérito da discussão moral sobre o trabalho, o que importa para esta análise pragmática é o vetor da Ética, que orienta a conjunção dos fatores do contexto, principalmente na relação entre: velocidade, quantidade e causalidade.

Como exemplo particular, cheguei em um ponto em que não estava preocupado em culpar a quantidade e a velocidade pela contradição, mas o contexto essencial do hábito que invariavelmente levou ao autoquestionamento: qual o propósito geral de se entregar corpo e alma para as causas das marcas dos clientes e dos diretores da agência, tanto enquanto indivíduo-profissional quanto equipe de trabalho? Porque estávamos ali, somente pelo salário? Mas e a conexão simbólica? Em caráter geral, qual o propósito do trabalho? E assim, abriu-se mais um campo para outras investigações.

O fato é que tanto a quantidade de horas, jobs produzidos, reuniões realizadas, ideias e criações desenvolvidas, briefings atendidos e demais volumes são indicadores de muitos hábitos constituídos, de pensar e agir. Entre eles o de lidar com a velocidade e quantidade. Ao mesmo tempo denotam a consciência de uma causalidade instituída e inquestionada. O trabalho de comunicação pela experiência denotou que é cerrado dentro de uma cadeia lógica bem determinada entre meio e fim. Uma analogia interessante ao mundo binário da marca, que se encaixa no signo/significado. Expandindo a visão, também parece ser a condição que tem reflexo em todo o espectro do mercado, incluindo o cotidiano dos consumidores. Tudo tende ao imediato, do consumo de informação, produtos e experiências. As marcas então se apresentam como aceleradoras de todo um fluxo que tende ao contínuo da necessidade de uma nova ideia.

Preocupado em não definir uma regra geral a partir de um contexto particular da área de comunicação profissional, contradizendo o próprio método pragmático, durante anos procurei expandir a investigação e comecei a questionar sobre as condições e o cotidiano de trabalho para outros profissionais. Começando com membros da equipe e, com o tempo, envolvendo relatos de trabalhadores de outras empresas de comunicação e até dos clientes.

Pude constatar que o cotidiano de contradições eram também outra face dos hábitos constituídos em muitos ambientes internos. Em geral, pode-se ressaltar alguns fatores comuns: tendência ao individualismo e desassociação entre profissionais e equipes; ingerências críticas, inoportunas e equivocadas de superiores nos trabalhos em desenvolvimento; causalidade e determinismo aliado com velocidade e volume, em que a empresa assume compromissos que

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não consegue cumprir; e talvez o principal: a incapacidade de reconhecer qual o ponto de conexão simbólica que une todo o conjunto da empresa. E este quadro de insatisfações e experiências ruins no ambiente de trabalho se mostraram mais comuns que o esperado. Neste ambiente sintomático da lei das marcas, evidenciou-se uma condição contrária: ao invés de conjunção, como postulado pela teoria do branding, a tendência era a disjunção.

Mas em sua generalidade, quase todo o mercado se alinha com modos de agir que são reflexo de um status-quo geral que permeia os binários quantidade/velocidade, qualidade/técnica, combinado com o signo/significado em uma dinâmica meio/fim determinada por leis gerais que ordenam causa/efeito. Em outras palavras, a persuasão e técnica retórica da publicidade e design, propagadas em cursos latu-senso como leis para orientação da prática ganham outro sentido ao se vislumbrar este contexto. Persuadir quem, ao quê e por quê?

O discurso retórico, então, evidencia o fator que contribuiu para fazer surgir a questão desta pesquisa: todos assumem que este trabalho tem uma causa e que se usem os meios necessários para alcançá-la, que seja com as catorze horas de trabalho, as centenas xícaras de café e a maior quantidade de layouts produzidos em poucas horas, na qualidade exigida pela “marca”. Mas, qual a grande causa?

Em uma visão geral, enquanto vemos que o mercado contemporâneo caminha para o trabalho coletivo, com tendências como coworking e desenvolvimentos em rede, que estão alterando profundamente a dinâmica tradicional, há uma influência teórico-tácita que ao mesmo tempo incentiva o individualismo e o empreendedorismo individual. Em muitas outras empresas, o clima entre profissionais muitas vezes era o do “cada um por si” enquanto necessariamente têm que participar de uma equipe e dinâmicas de grupo.

Vimos na introdução a referência bibliográfica do livro “VC é uma Marca” (Ideia & Ação, 2006) da teórica e profissional norte-americana do branding Catherine Kaputa que trabalhou na consultoria de Al Ries e Jack Trout, outros consagrados nomes da teoria. Existem muitos títulos disponíveis em livrarias que trazem o tema abordado por Kaputa: para o empreendedorismo de si, aplique as leis do branding. Em suas palavras:

Em vários sentidos, as marcas são como as pessoas: possuem qualidades, atributos e personalidades. E as pessoas são como marcas. São produtos que podem ser cultivados até chegar ao sucesso. [...] Cada capítulo contém exemplos, dicas e exercícios de brainstorm para que você possa implementar o processo de branding em sua vida. (Ibid., 2006, p. 16)

Seus tutores, Al Ries e Jack Trout, por sua vez, nos anos noventa já anunciavam que o

branding poderia ter esta extensão, de contribuir para a identificação do “eu-marca”. O argumento é: “em vez de começar com você mesmo, comece pensando no que pensa o outro” (Ibid., 1981, p. X). O que quer dizer? Que o sucesso profissional depende de criar um “eu” que

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agrade a visão do outro, assim como uma campanha publicitária e um projeto de branding? O outro quem? Por qual propósito? Não parece ser exatamente pensar no outro como responsabilidade ética. Está mais para “pensar em si mesmo” e as próprias causalidades. Ries e Trout entendem que esta é a melhor estratégia para o valor: um posicionamento na mente do consumidor. O método então caminha assim:

É a Era do Posicionamento. Já não basta inventar ou descobrir alguma coisa. Nem é mesmo necessário. O que você tem é que ser o primeiro na mente do consumidor em perspectiva. [...] Em lugar de perguntar o que você é, pergunte qual a posição que você ocupa na mente dos outros. (Ibid., 1981; p.18, 152)

Ou seja, posicionar é pensar o inverso de si, moldando-se como sendo observado por outra pessoa. Esqueça o trabalho de autocrítica ou descoberta de um “eu-interno”. O ideal para Ries e Trout é imaginar um “eu-projetado” e empenhar-se para torná-lo real, mesmo que seja pura imagem. Um conceito estranho sobre o processo e formação da identidade de acordo com a análise pragmática, como veremos nos próximos capítulos.

Assim como Kaputa, Ries e Trout transferem para a teoria um caráter universal. Outros trechos do livro, são ainda mais específicos. Apresentam uma controversa argumentação que assume o caráter de orientação de conduta. O trecho da citação é longo, mas por sua importância, optei por sua reprodução integral:

Trate de arranjar um cavalo. Algumas pessoas inteligentes e ambiciosas acabam vivendo situações em que o futuro parece mais preto que carvão. E o que geralmente fazem? Dão duro. Tratam de trabalhar mais do que os outros. E esforçam-se mais do que todos. O segredo do sucesso está em aparecer sempre, em fazer o seu trabalho melhor do que ninguém mais. E a fama e a fortuna acabarão chegando, não é assim? Não é. Dar duro raramente leva ao sucesso. Ter olho vivo é muito melhor. Sua estratégia promocional pessoal baseia-se quase sempre na crença ingênua de que o que conta é a capacidade, e o que vale é trabalhar no duro. E por isso se afundam no trabalho e se matam esperando o dia em que alguém vai lhes dar um tapinha nas costas e promovê-los, em reconhecimento dos seus méritos e seus esforços. A verdade é que o caminho para a fama e para o sucesso raramente se encontra dentro de você. O único jeito certo de conseguir sucesso é arranjar um cavalo para montar. Isso pode ser duro para o ego aceitar, mas o sucesso na vida baseia-se muito mais no que os outros podem fazer por você do que você pode fazer por você mesmo. (RIES; TROUT, 1981, p. 147).

De fato, posso afirmar que o espírito coletivo nos ambientes internos de muitas empresas se dissipa assim como o mito, entusiasmo, a conexão simbólica e, também, o objeto. Das fotos da equipe que aparecem em sites das empresas e registram paredes de escritórios ou lojas, muitas vezes descobre-se que a imagem oculta os reais contextos. No entanto, imaginar-se empreendedor de si mesmo, com a suposta liberdade de lutar por meritocracia é um hábito já

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constituído. Assim com os fatores velocidade e quantidade, vão se encadeando outros: a contínua busca por inovação e a tendência para a individualização. Tudo amarrado por causalidades bem fixas.

A questão da pesquisa veio da primeiridade, ao sentir os efeitos das leis do branding no trabalhar-cotidiano. Diante de algumas constatações fenomenológicas que foram citadas, ao considerar que as marcas eram geradoras de hábitos em relação à todo o espectro de sua interação, que conjuga diferentes intérpretes, como o profissional e o consumidor, o estudo partiu então para a análise dos efeitos destas condutas. Considerando-me parte do espectro de públicos e tomando como exemplo a empresa de comunicação que trabalhava e, também, os clientes como exemplos de marcas conforme aponta a abrangência da teoria do branding, me ocupei de pensar sobre a “conexão simbólica”. Conforme o estudo avançou, o mundo da marca foi ficando cada vez mais difuso, opaco e desconhecido.

O que justifica tamanha generalidade, como o branding postula? Qual o ponto de convergência entre os fenômenos, os signos e o conceitos; entre o “interno” e “externo” que a marca abrange? Novamente esta investigação chega no ponto necessário para prosseguir: o que significa marca comercial e qual seu objeto? No caso das agências de comunicação, são os anúncios publicitários e ideias, a empresa em si, a equipe, os diretores, logotipo e nome? Ou é um objeto da mente? De quem: do cliente-empresa, do dono da agência, do criativo ou do consumidor? A questão não estaria no processo interacional e nas transformações mútuas entre intérpretes que acontecem pelos meios do mercado. Busca-se a origem do discurso da marca e, deste contexto específico, compreender a conexão simbólica.

2.4 O mundo da teoria do branding.

Segundo David Aacker (1938-), um dos mais importantes teóricos da disciplina, a história do branding remonta aos anos trinta do século vinte e tem origem em uma empresa e não exatamente no ambiente acadêmico das ciências aplicadas:

Em maio de 1931, um memorando de Neil McElroy, então trabalhando na contabilidade do Camay da P&G, frustrado por estar à sombra do Ivory, reivindicou um time de gerenciamento de marca. [...] responsável pelo programa de marketing e sua coordenação com vendas e fabricação: esta solução constitui-se em um evento-chave na história do branding. (AACKER, 1991, p. 5)

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Algumas características importantes do mercado e do capitalismo fordista-taylorista extraídos desta citação evidenciam parâmetros para análise das marcas atuais. Aacker sinaliza um evento histórico que retrata o período de transformação do mercado norte-americano e que culminou posteriormente com a evolução para o “mundo das marcas”. Nos anos trinta, o contexto dava sinais de transformações necessárias nas metodologias de gestão de empresas. Era um momento histórico em que grandes companhias cresceram e operavam no mercado nacional. Produtos eram bastante populares e os fabricantes já se preocupavam com os nomes/logotipos, que atendiam exclusivamente a função de indicadores de uma origem. Nesta época, marca era a mesma coisa que signo, no sentido do registro e representação de uma propriedade produtiva. Este sentido pode ser considerado hoje, pela ótica do design, de caráter mais objetivo e funcional.

Comparando com o contexto atual, o marketing, publicidade e design até os anos cinquenta ainda eram essencialmente focalizados em valorizar a funcionalidade e qualidade dos produtos. Havia também muito menos mídias disponíveis e a interação de um consumidor com a marca, bem como a possibilidade de relacionamento e fidelização eram estabelecidas essencialmente pela experiência fenomenológica de uso, que envolvia também a percepção de rótulos, embalagens e a disponibilidade do produto.

Mas as publicidades e designs também inferiam subjetividades e já se mostravam propagadoras da possibilidade de inserção e pertencimento a modos de vida e classes sociais. O teor subjetivo, mesmo que sob o manto da objetividade, envolvia as percepções do consumidor e a projeção de uma experiência futura, ainda que concentrada no uso a ser mantido. O hábito era formado pela básica relação entre um significado geral constituído pelo tempo de interação entre consumidor-marca, envolvendo a redundância fenomênica de percepção do nome-logotipo junto com o produto-rótulo-embalagem, vinculados em uma experiência de compra e uso corrente.

Da experiência configurava-se o hábito, com a atribuição de valor subjetivo ao objeto que justificava a escolha frequente e o valor objetivo, o preço. O significado surgia do número de experiências positivas anteriores. Mas a marca, como instituidora de hábitos, tem um teor básico em sua natureza que remonta à sua genealogia e arqueologia. A P&G nos anos trinta já era proprietária de um produto-estrela, o Ivory, que diretamente indicava condições elementares do papel da marca: a redundância. Manter um padrão de representação de uma marca e a qualidade do produto eram necessidades decorrentes da própria lógica das relações de mercado. Talvez uma lógica tão natural quanto a associação de uma pessoa e seu nome.

Por sua vez, a posição de destaque do Ivory, denota um dos vetores essenciais do mecanismo capitalista: a concorrência. Se era o sabonete campeão de vendas da categoria, deduz-se que, à época, que a competição já era uma catalizadora dos movimentos estratégicos

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das empresas. O primeiro movimento de maior preocupação com marcas surgiu em companhias que estavam participando do mercado do varejo e precisavam utilizar a publicidade, enquanto no setor estritamente industrial tudo era sintetizado nas identificações de nome-logotipo e mais alguns elementos de representação, como frotas, ambientes da loja e escritório, comunicados, papelarias institucionais, relatórios e publicações em geral.

Dentro da companhia, nota-se na P&G uma disputa interna entre equipes atrelada ao desempenho dos respectivos produtos que desenvolviam e geriam. Havia nesta empresa a vinculação entre os desempenhos e as verbas destinadas para as ações de publicidade e vendas de cada produto, o que inflamava a competição entre equipes. Da concorrência interna, surge pelo próprio ecossistema do mercado uma metodologia específica para cuidar da conexão entre comunicação e sua “coordenação com vendas e fabricação” (AACKER, 1991): o marketing. Como aponta Aacker, este é o embrião da teoria do branding contemporâneo.

Estas referências históricas denotam um aspecto peculiar: características do mercado dos anos cinquenta parecem ainda bastante atuais. Respeitando os contextos, nota-se que muitos hábitos, constituídos em relação às marcas na atualidade, foram condicionados de acordo com sua própria natureza processual, expressa na relação: marca-empresa, signos-produtos e intérpretes-consumidores e que remonta à sua genealogia. Outros foram instituídos por agentes do mercado, como no exemplo da P&G, que objetivamente influenciaram essa realidade.

Do início fordista do capitalismo moderno até o fim da segunda-grande guerra pode-se considerar o período como a “era da mercadoria”. O centro da dinâmica do mercado eram os produtos, sua qualidade, funcionalidade, preço e disponibilidade. A marca ainda era essencialmente signo-significado. E tudo parecia fazer sentido.

Considerando o salto histórico do período da guerra, que estagnou muitos desenvolvimentos mercadológicos, a partir da década de cinquenta, como se viu, o caminho de expansão global do modelo capitalista norte-americano aconteceu em ritmo cada vez mais acelerado. O american-way que envolvia também a disseminação de metodologias de gestão de empresas e marcas foi exportado para o mundo até configurar um hábito globalizado. Países abriram suas economias, empresas se internacionalizaram, o mercado se hipersegmentou e vimos uma expansão geométrica das empresas e marcas até os dias de hoje.

Segundo a socióloga Isleide Fontenelle, o período do pós-guerra dá início à uma nova fase do capitalismo: a era das imagens, que segundo a autora se estende até nossos dias.

[...] por que, de uns tempos pra cá, se tornou lugar-comum dizer que vivemos numa sociedade das imagens? [...] vivemos, mesmo, uma época marcada pela inflação das imagens que pululam na captura do nosso olhar. [...] A forma de compreensão deste fenômeno, [...] não deve partir de uma descrição constatativa, mas de busca da relação histórica e material desse processo. (Ibid., 2002, p. 19)

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É também o período de gestação da disciplina do branding, cujo nascimento formal se deu na década de noventa. As empresas, a partir dos anos cinquenta, deram continuidade aos movimentos que estavam acontecendo desde os trinta: as marcas cada vez mais assumindo a centralidade da dinâmica. De seu surgimento até hoje, o mercado veio crescendo em um ritmo ininterrupto, enquanto aperfeiçoava as próprias qualidades como a aceleração de seus processos e a quantificação dos volumes de produção, tanto de produtos como ideias publicitárias e lucros.

Fontenelle busca compreender o fenômeno social do fetichismo pelas marcas, suas subjetividades, imagens e produtos. O tema, que envolve a influência das mensagens publicitárias, signos do design, símbolos e subjetividades é extremamente profundo e configura uma rede epistemológica densa. Também é um dos campos de estudo mais correntes sobre as marcas. De forma geral, parece que a produção de saberes tanto do universo strictu-senso quanto latu-senso acaba se concentrando na análise da essência da marca a partir de sua associação binária entre, por um lado, signo-significado e significado-experiência por outro. Na delimitação desta pesquisa e considerando o caráter geral da teoria do branding o foco, no entanto, está em encontrar a coerência de todo o conjunto de significado da marca, pelo método triádico do pragmatismo.

Fontenelle (Ibid., 2002) aponta fatores contextuais e essenciais que evidenciam o modo do mercado e, também, da sociedade de consumo no contemporâneo. A era das imagens está vinculada com alguns aspectos fundamentais para analisar o significado da marca:

• Globalização: o fenômeno é crucial na moldagem do cenário contemporâneo. A

abertura e internacionalização dos mercados trouxe novos desafios e oportunidades para as empresas: alta concorrência, hipersegmentação de setores e internacionalização da operação. Companhias se tornaram multinacionais, cresceram com as constantes aquisições, fusões e incorporações que transformavam negócios em grandes conglomerados, de dimensão mundial.

• Tecnologia: o desenvolvimento integral do mercado acompanhou o ritmo da

vertiginosa evolução tecnológica, tanto em relação aos meios de produção, com novas máquinas e desenvolvimento da informática. Também o surgimento, segmentação de mídias e inovações ferramentais para o trabalho de gestão do negócio, criação, reprodução, produção e disseminação das marcas.

• Explosão do varejo: a massiva expansão de pontos-de-venda e conexão da marca

impulsionou novas metodologias e técnicas de gestão de negócios como franchising (franquia), licenciamento e extensão de marcas. Também a explosão de lojas, shopping-centers, malls que se tornaram parte da cultura da sociedade de consumo. Esta evolução impulsionou, por exemplo, novas técnicas promocionais, promoveu a

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arquitetura para varejo, a engenharia, comunicação visual e design de interiores de lojas.

• Autoevolução: fatores da dinâmica evidenciam a evolução continua e progressiva do

mercado e das marcas por suas próprias alças. Significa também a manutenção e potencialização de vetores do fluxo mercadológico, como a aceleração e a quantificação, no sentido da produção em massa. Como efeito, do contínuo aumento de velocidade, a descartabilidade, diminuição da vida útil de um produto e uma busca incessante por renovação.

• Autorregulação: é interessante constatar que o mercado parece se desenvolver por

seus próprios limites desde seu surgimento. Até os anos oitenta, viu-se o surgimento de movimentos sociais antiglobalização e, também, organizações civis lutando por causas como a igualdade socioeconômica e sindicatos defendendo o direito dos trabalhadores. Estas pressões “externas” levaram o mercado e as empresas em geral a adotarem “códigos de ética” que acabavam sendo moldados essencialmente pelos próprios agentes do mercado. Também regulações sobre práticas empresariais como monopólios, dumping e outras estratégias consideradas nocivas ao desenvolvimento comum. A autorregulação também subentende o desenvolvimento de teorias, metodologias e práticas de gestão mercadológica empiricamente constituídas entre os executivos e demais profissionais especializados participantes destes processos, como contabilistas, economistas, marqueteiros, designers e publicitários que assumiram a tarefa da legislação.

Viu-se a partir da década de cinquenta que os atributos dos produtos não eram suficientes

para convencer apenas pela experiência do uso. O aumento da concorrência significou também um cenário com ofertas cada vez mais similares em atributos e padrão de qualidade. Do próprio meio do mercado e disputa entre as empresas surgiram as teorias, que acabavam sendo definidas por quem está no topo da lista de performance de vendas e lucratividade.

Como conceito, a imagem da marca ganha contornos mais claros no final dos anos 50, início dos 60, devido ao forte vínculo que passa a ter com a televisão. [...] A televisão transmite imagens em movimento, permitindo que os anúncios não apelem diretamente à venda do produto, mas funcionem ‘como uma forma romanceada de comunicação’, uma elaborada narrativa que usa personagens, lugares e situações fictícias. (Ibid., 2002, p. 179)

Algumas empresas então perceberam que era preciso conquistar o consumidor ainda antes

da compra e consumo, apoiados pela evolução das mídias de massa como a televisão, que promoveu uma mudança elementar nas abordagens, conexões, modos de produção de imagem

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e disseminação de mensagens persuasivas. Uma desta marcas é o McDonald´s, franquia mundial de fast-food estudada por Fontenelle em seu livro. A história desta companhia se confunde com a do capitalismo contemporâneo.

Partiu de companhias como McDonald´s, que na época assumiram o papel de vanguarda, a constatação de que o teor de significação não deveria estar mais concentrado nos atributos qualitativos do produto. Com a concorrência também de publicidades, se um anúncio de uma marca com um produto de pior qualidade tivesse mais impacto, o resultado das vendas poderia ser bom e a empresa com o de melhor qualidade poderia amargar resultados ruins. A concorrência acabou por reduzir a capacidade de diferenciação e tornou frágil a decisão de uma empresa em basear sua significação nos atributos funcionais do produto. Partiu-se, então, para o subjetivo, apoiando-se não mais na realidade fenomênica do produto ou especificamente no nome da instituição, mas sim na idealização de um momento de vida em que a persona central é uma representação do consumidor. Sedimenta-se o que no ecossistema da comunicação comercial é conhecido como “publicidade lifestyle”, em que mais que os produtos, a imagem infere modos de comportamento. Rapidamente, ne velocidade do varejo, as marcas foram assumindo o papel de definidoras de tendências de comportamento, contribuindo para as habituações culturais, que envolvem profissionais e consumidores.

Durante as décadas de cinquenta e oitenta, o trabalho de criação e comunicação comercial estava concentrado principalmente nas mãos da publicidade, atendendo a contínua necessidade de produção de imagens e discursos das marcas. O design, apesar de assumir a responsabilidade técnica pela representação dos elementos da identidade corporativa e definição dos sistemas de aplicação, era uma disciplina de suporte, funcional, que seguia o ritmo ditado pela publicidade e os executivos de marketing das empresas. Design se tornou uma disciplina altamente estratégica somente depois do advento do branding, nos anos noventa.

A partir da década de 1960, a literatura sobre marketing sofreu uma inflexão coma difusão das ideias de autores como Peter Drucker e Theodore Levitt, que passaram a salientar as diferenças entre marketing e vendas e a importância do enfoque no consumidor e não na produção. (Ibid., 2002, p. 161)

A marca emancipando-se, infere o deslocamento virtual do tempo e, como veremos com

mais ênfase, da origem. O sentido cada vez mais se constituiu das projeções de “si”, pela vista do consumidor, cujos pensamentos são influenciados para o “olhar futuro”. Evidencia a construção do significado a partir da subjetividade das mensagens e imagens, que indutivamente orientam a conduta posterior ao consumo. Antes, como vimos, o início de uma relação marca-consumidor era principalmente originada pela experiência fenomênica, agora, pela experiência subjetiva.

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Como o teor passou a ser a projeção do consumidor, a origem como empresa foi deixando de ser uma entidade física atuante no tempo presente para constituir-se como uma projeção do próprio indivíduo que consome. A marca como promotora de uma curiosa interlocução entre “si” com “si mesmo”.

A uma sociedade na qual a mídia assume o lugar de ‘suposto saber’ corresponde, por sua vez um sujeito performático. Interessa a imagem que ele consegue projetar de si mesmo, as impressões superficiais, os disfarces, as máscaras. [...] Na base dessas mudanças é possível vislumbrar um desejo social por ser cuidado, controlado; enfim, por um “mundo planejado e saneado” que, de modo nenhum, “deva ser uniforme e enfadonho na sua falta de opções e alternativas”. [...] A variedade será mantida apenas como uma opção entre ações, todas racionais e seguras, de forma que o drama da vida se torne puro entretenimento. (Ibid., 2002, p. 191, 192, 271)

O entretenimento essencial desta sociedade das imagens é consumir: produtos, imagens,

estilos de vida, projeções de si em uma autofagia e renovação contínuas. E deste contexto extraem-se fatores que até hoje essencialmente combinam as equações das estratégias de marcas: conceito, imagem, diferenciação, projeção, entretenimento, fantasia, variedade, segurança, valor, estilo e concorrência. Fatores que também se conjugam na moldagem dos hábitos, tanto dos consumidores quanto das empresas e profissionais até nossos dias, cada um lidando com os fatores ao seu modo.

A marca finalmente assume o centro da dinâmica, vira símbolo, trazendo consigo o repertório do signo e emancipando-se do objeto fenomênico, que outrora foi a empresa supostamente real. O produto não deixou de ser foco de desenvolvimento e elemento crucial da reputação da marca, mas tornou-se apenas mais um ingrediente do repertório de signos conjugados pela marca, bem diferente de sua posição de destaque na “era da mercadoria”. Enquanto isso, a “origem” foi se dissipando para se tornar uma ideia que existe na mente do consumidor.

“Embora as marcas, desde longo tempo, tenham tido um papel no comércio, não foi senão no século 20 que branding e associações de marca se tornaram centrais para os concorrentes”. (AACKER, 1991; p. 7). Na perspectiva dos desenvolvedores e pensadores da marca, estas décadas representam mais uma mudança histórica, estrutural e sistêmica do capitalismo. É quando se inicia a “era das marcas” como é referenciado pela maioria dos teóricos da disciplina. E de fato parece ser adequada esta designação, desde que agora são primordialmente símbolos, antes que imagens. Considera a amplitude e retrata a potência das marcas no contemporâneo.

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A guerra de marketing será uma guerra de marcas, uma competição de domínio de marca. Os negócios e os investidores reconhecerão as marcas como os mais valiosos ativos da empresa. Este é um conceito crítico. É uma visão de como desenvolver, fortalecer, defender e gerenciar o negócio. Será mais importante dominar mercados do que possuir fábricas e a única forma de dominar mercados é possuir marcas dominantes. (LIGHT, in: AACKER, 1991, p. IX).

Nos anos noventa, Larry Light (1941-), teórico canadense do marketing e branding

preconizava a realidade contemporânea. As marcas efetivamente galgaram a importância de representarem o ativo de maior valor de uma companhia. Então, aos fatores citados na apresentação de características da era das imagens, agrega-se agora um dos mais relevantes para a marca contemporânea:

• Valor: foi neste período que surgiu o insumo para a teoria do valor da marca, que configura a lei central do branding. Surge da complexa conjunção entre a potência simbólica em uma constituição binária entre valor subjetivo e valor objetivo. Da premissa da imaterialidade da marca, o branding busca a conexão lógica entre estas duas dimensões. Também configura o paradigma central das discussões que buscam justificar a questão: quanto vale uma ideia? Como o contexto vem demonstrando, vale muito, mais que os “valores objetivos”, como a qualidade do produto e processo fabril. O efeito direto foi a incursão da marca em um espectro especulativo, assim como o flutuante mercado das ações. Não há consenso sobre o método de aferição, o que tem deixado contabilistas insatisfeitos com a incapacidade metodológica de aferir o valor subjetivo ao analisar o balanço financeiro de uma companhia, como pude verificar em seminários de branding e na literatura. Este fator, como veremos adiante, é sintomático da incoerência lógica nas teorias, pela perspectiva pragmática-triádica deste estudo.

O objetivo geral do marketing foi moldado pela necessidade de conjunção entre a comunicação, a coordenação de vendas e o desenvolvimento e fabricação do produto. Basicamente a associação entre o subjetivo e objetivo com a concentração no fluxo e relação entre estas partes. Ganhou envergadura estratégica e constitui-se como ciência aplicada do mercado desde então.

Com a emancipação gradativa da marca e a definitiva ocupação do espaço simbólico percebeu-se que era necessário agora expandir a conjunção, envolvendo a amplitude do processo: definição de estratégias de negócio, orientação para desenvolvimento de produto, identidade corporativa, métodos de gestão financeira e operações, comunicação, interlocuções com variados intérpretes, pesquisa e análise de contextos sociocultural econômico, avaliação de impacto ambiental e tantas outras partes que integram o processos de uma empresa no mercado. Este cenário é bem representado pelos gráficos de Aline Wheeler (p. 19 e 20).

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Viu-se necessário ampliar também os limites do conhecimento, já que agora era preciso dominar a técnica de constituição de símbolos. Assim o branding rumou para as ciências acadêmicas em busca de teorias em áreas do conhecimento como a Psicologia, Sociologia, Comunicação e Linguística, além de Economia, que sempre forneceu fundamentos teóricos para o mercado. Foi preciso compreender a teoria da cognição ao mesmo tempo que lógicas de gestão financeira, com a responsabilidade de orientar as decisões estratégicas mais importantes do negócio.

Surge então uma nova metodologia, denominada de “branding” que, na língua portuguesa, não encontra uma tradução direta, assim como “design”. Basicamente se refere a “gestão integral da marca”. Um método de conjunção das variadas instâncias da empresa com o objetivo de criar, desenvolver e gerir marcas para que se tornem potências simbólicas e promovam a potência financeira. Chamou para si a responsabilidade da conjunção entre negócio, empresa, produto-serviço, produção, distribuição, comunicação, vendas, interações e relacionamentos. Colocou-se como a conexão teórica que orienta a lógica geral deste processo que agrega todo ecossistema de uma empresa. Assim como o marketing, o branding surgiu do próprio seio do mercado, da experiência empírica; e vem cada vez mais evoluindo e caminhando para a emancipação.

Al Ries vai ainda mais longe e visualiza uma ‘época em que o próprio conceito de marketing vai se tornar obsoleto, sendo substituído por um novo conceito chamado branding, que trata em última instância, da gestão das marcas. [...] dada a importância da marca para o mundo atual dos negócios, todas as ações de marketing, e da empresa como um todo, deverão estar subordinadas ao branding. (FONTENELLE, 2002, p. 163)

De fato, o que Al Ries anunciava no início dos dois mil se tornou realidade. Pelo menos para uma parte do mercado, a que representa o grupo das marcas de melhor performance, o branding é a disciplina primordial das estratégias de negócios. Apesar de na opinião pública o termo não ser tão conhecido, os conceitos que institucionaliza são involuntariamente incorporados na sociedade. Durante os últimos anos frequentemente perguntava para pessoas que não eram do meio profissional das marcas se conheciam o tal “branding”. Muito poucos diziam ter escutado ou lido alguma vez a palavra. Praticamente ninguém sabia o que significava. Diferente do “design” e “marketing”, bastante populares.

Até dentro do ecossistema do mercado, ainda parece restrita e exclusiva às marcas de alto valor e profissionais de nível estratégico. Nas muitas reuniões que fiz, com empresas de variados tipos, havia uma distinção entre perfis e, também, pontos-comuns. Nas de médio e pequeno porte, não considerando as start-ups, que são geralmente bastante alinhadas com as teorias do branding, os executivos e donos das empresas muitas vezes também não conheciam

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o método. Nas grandes corporações, os executivos de marketing e de outras áreas diziam estar habituados com a disciplina, mas em sua maioria, como percebi na experiência empírica, não faziam ideia exatamente do que aquilo era. Até na agência em que trabalhei, poucos profissionais estavam habituados com as teorias e os diretores muito menos. No entanto, todos tinham noção da importância das marcas para o desenvolvimento dos negócios.

Muitos executivos dos clientes e empresas com quem conversei e que diziam conhecer o branding entendiam-no como um método para desenvolvimento estratégico do conceito, representações e identidade da marca atendendo as demandas das decisões estratégicas e administrativas. Uma espécie de evolução e fusão entre marketing, design, publicidade, arquitetura para varejo e outras técnicas. Não consideravam que a gestão do negócio como um todo era também do escopo das leis das marcas e que até o modo de trabalho, processos e relações internas faziam parte da constituição de seu significado.

O branding, em sua primeira fase evolutiva, que corresponde ao fim da década de oitenta, surgiu essencialmente como um braço metodológico do marketing. Assim, as premissas gerais eram definidas pelos teóricos do marketing e o branding se ocupava de encontrar fórmulas para viabilização das ideias. Mas não demorou muito para que se desenvolvesse como ciência aplicada, começando a produzir o próprio insumo teórico, resultado de casos bem-sucedidos de marcas no mercado que, por suas experiências de gestão estratégica, geram conceitos e orientações para métodos e práticas que se disseminam no mercado como leis gerais.

Nos anos noventa, o branding teve grande expansão nos Estados Unidos, tornando-se indispensável para a gestão de negócios focados em mercados competitivos e valorização de ativos, principalmente companhias com ações em bolsas de valores. Foi também nesta década que a produção teórica se intensificou e, tanto obras quanto seus autores, ganharam notoriedade. A maioria da bibliografia específica disponível no Brasil, por exemplo, corresponde a edições lançadas nos anos noventa. Como é comum em ciências latu-senso, o branding se desenvolveu a partir da prática e evoluiu para a teoria. Naturalmente, a maioria dos autores são também profissionais de consultorias e escritórios estratégicos de negócios, marca, design, publicidade, executivos, administradores entre outros.

Entre muitos autores desta fase dos anos noventa, destaco aqueles que foram pesquisados para este estudo, principalmente: Al Ries, David Aacker, Douglas Atkins, Jack Trout e Scott Bedbury. Apesar das obras terem sido publicadas pelos últimos trinta anos, suas teorias basicamente sustentam até hoje as premissas mais gerais da marca. Cada autor tem um estilo próprio de argumentação e pude identificar pelo menos dois tipos de discursos mais característicos. Um em que o texto segue estilo “publicitário”, mais informal e repleto de opiniões. Outro com maior rigor metodológico, buscando aproximar o branding dos modos científicos das ciências stricto-sensu.

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Al Ries, por exemplo, é um célebre teórico-profissional autor de obras que até hoje são lidas e recomendadas, como a já citada “Posicionamento: A Batalha por Sua Mente” (Pioneira, 1993). Mas também possui outras publicações relevantes como “As 22 Consagradas Leis das Marcas” (Makron, 2000) e, já em meados dos anos dois mil, “A Origem das Marcas” (Makron, 2006). Seus textos seguem o jeito “publicitário” e deixam evidente se tratar de um profissional que por sua experiência, é capaz de teorizar sobre a própria prática. Seus textos são informais e em muitos aspectos com afirmações que parecem duvidosas, vagas, bastante gerais e superficiais. Durante os próximos capítulos, veremos algumas referências. Mas a sugestão de “montar em cavalos” para o sucesso profissional, como citado no capítulo anterior, é um bom exemplo do tom de seu discurso.

David Aacker, por sua vez, representa o grupo de autores que apresentam uma análise mais formal, buscando evoluir a teoria a partir de bases metodológicas e rigor para sua emancipação como disciplina científica-empírica. É autor de obras clássicas como “Marcas: Brand-Equity, Gerenciando o Valor da Marca” (Elsevier, 1998). Nele há importantes fundamentos tanto de premissas quanto metodologias que estruturam o racional do branding, com a preocupação de não estabelecer opiniões, como Al Ries, mas análises e hipóteses que amarram a teoria sob a premissa geral da marca para sua evolução como potência simbólica.

Já nos anos dois mil em diante, continuou a evolução da teoria a partir das bases lançadas entre o fim da década de oitenta e início de noventa. Novos autores começaram a participar desta composição de conhecimento, como Catherine Kaputa e Aline Wheeler, mencionadas anteriormente. Muitas destas obras, como as de Kotler, Aacker e Ries são parte das bibliografias de cursos de marketing e branding. Além da literatura, conhecimentos também são disseminados em palestras e congressos das áreas. Destaca-se a influência destes teóricos para o pensamento de profissionais que se dedicarão a manter as lógicas do sistema em funcionamento: “[...] já fizemos mais de mil palestras sobre posicionamento para grupos de publicitário sem vinte e um países.” (RIES; TROUT, 1981, p. 3), diziam Ries e Trout nos anos noventa.

No Brasil, podemos considerar que o branding chega ao mercado nacional praticamente no fim dos noventa e começo de dois mil. Mas só ganha impulso na década seguinte, que corresponde a grande parte do período de minha experiência empírica associada com o desenvolvimento desta pesquisa. Assim como nos Estados Unidos, começaram a surgir também teórico-profissionais que se destacaram como Jaime Troiano, proprietário da consultoria Troiano Branding. Também José Roberto Martins.

Com o avanço do branding para o universo acadêmico-científico, a Semiótica, como vimos, foi descoberta e vem sendo cada vez mais buscada para incrementar o repertório teórico das marcas. Por sua via, esta pesquisa também é resultado desta conexão, por exemplo. Na

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década de dois mil, começaram a surgir obras de autores brasileiros, como Clotilde Perez, autora de “Signos da Marca: Expressividade e Sensorialidade” (Thomson, 2002) e Lucy Niemeyer com “Elementos da Semiótica Aplicados ao Design” (2AB, 2007).

Depois de analisar muitas literaturas e somando a perspectiva formada na experiência, identifico um “estado emocional” que compreende praticamente o mercado e ao estado da arte como um todo, resumido na palavra: entusiasmo. Considerando as obras literárias do branding que alcançam a opinião e espaço público, acessível em livrarias e sebos, é o que se percebe. Fica evidente até pelos títulos de obras como: “O Novo Mundo das Marcas”, de Scott Bedbury (Campus, 2002), “O Culto às Marcas” de Douglas Atkins (Cultrix, 2007), “O Império das Marcas” de J. R. Martins e Nelson Blecher (Negócio, 1997) e “Como Construir Marcas Líderes” de David Aacker (Futura, 2000).

Enfim, a produção de saber técnico e acadêmico cada vez maior denota um caráter crucial: a imaterialidade da marca é uma concepção de amplitude universal. Os textos de teóricos do branding, opiniões de profissionais e até as análises críticas consensualmente se desenvolvem a partir da mesma premissa. Portanto, questionar sua coerência lógica, pode desfigurar todo este repertório de saberes e fazeres e mostra-se como uma tarefa desafiadora na medida do entusiasmo com as marcas na atualidade.

Mas como Peirce explica, a experiência é uma realidade inevitável, que nos coloca diante dos fatos duros e da dúvida, como um dilema imediato e mediato entre significados, signos e fenômenos. A dúvida nos faz pensar, instiga a pesquisa e investigação e, com bases lógicas científicas adequadas como o pragmatismo, vem a possibilidade de verificar se realmente há incoerência no pensamento das marcas contemporâneas, bem como o apoio para hipóteses de nova conceituação, rompendo hábitos e aparentes certezas.

Mas, para além das consequências as que se submete conscientemente uma pessoa que aceita a palavra, existe um vasto oceano de consequências de conhecimento, mas quiçá revoluções sociais. Ninguém pode saber o poder que uma palavra ou frase pode ter para mudar a face do mundo [...]. (PEIRCE, 1878, p. 160)40

Esta afirmação teórica-científica apoia a aventura crítica diante de um desafio de tanta

envergadura em busca da origem da lógica do conceito da marca com a realidade que ela infere e considerando, nesse percurso, a orientação ética de conjugar o todo das consequências. Ao vislumbrar este quadro, foi inevitável questionar o inquestionável.

_______________

40 C.P., 5.388-410, 1878. Cf. How To Make our ideas Clear. 1878. In: PEIRCE, C. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2015. p. 160.

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3.

Marcas e contradições

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3.1 O problema da origem-objeto da marca.

A análise do contexto combinada com o pragmatismo apontou características importantes

do mundo das marcas para a investigação da questão central. Alguns fatores são relativos ao

modo de operação do sistema capitalista que invariavelmente moldam a dinâmica do

desenvolvimento e ação das marcas, tais como: aceleração (velocidade de produção),

quantidade (altos volumes de produção e lucros), descartabilidade (renovação contínua),

hipersegmentação (inovação contínua) e concorrência. Em contrapartida, a partir dos anos

noventa a marca foi alçada ao mais alto grau de valor, o símbolo, se tornando uma generalidade

tão comum quanto necessária.

Neste capítulo, vamos abordar com mais ênfase aspectos da natureza das marcas que, na

hipótese proposta, algumas se mostram críticas, tendo em vista sua propensão à binaridade entre

signo-símbolo, símbolo-experiência. Neste contexto, seu objeto é dissolvido em inúmeras

possibilidades, assim como suas consequências lógicas. Tanto no caso particular de minha

atuação direta quanto em outros coletados em pesquisas envolvendo entrevistas e matérias sobre

desvios de conduta ética de empresas, notou-se o grande volume de ocorrências. Envolvem

problemas internos como disputas entre profissionais, falsa meritocracia, excesso de trabalho,

pressão psicológica, funcionários insatisfeitos e dependentes, defasagens salariais, precarização

de condições de trabalho entre tantos outros. Em aspecto geral, vemos também com frequência,

pela imprensa, notícias que mostram companhias envolvidas em ilegalidades como exploração

de trabalho escravo, dano ambiental, desvios financeiros, práticas mercadológicas abusivas,

sonegação de impostos e corrupções com o governo.

Pela ótica pragmática, a recorrência de contradições também é sinal de fenômeno de

terceiridade. Denota um hábito, ou modo de conduta comum. Como evidenciado no relato do

cotidiano de trabalho, era normal lidar com incoerências, continuamente, até que passavam a

“fazer sentido”, expresso na conformação do tipo: “faz parte do modo de ser destas profissões,

não há o que fazer, é assim mesmo”, entre outras. Um conformismo latente, em que o hábito se

ocupava de orientar o corpo-mente para o meio-fim, a ponto de transformar a realidade em uma

analogia com o corpo-máquina cartesiano que, por sua vez, é a tônica do capitalismo fordista-

taylorista. A dúvida é: haveria conexão entre estes “hábitos” e o problema do objeto difuso?

Esta pesquisa surge da conjunção entre a experiência fenomenológica, incursões teóricas

e orientação pragmática, que foram abrindo inúmeros outros caminhos possíveis para pesquisa

do tema da marca, alguns bastante profundos e talvez polêmicos, como questionar a lógica do

branding ou os modelos clássicos de pensamento sobre as leis do mercado. Ou seja, segue pela

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via crítica e expansão da análise do problema. Mas nos avanços dos estudos, notei que,

invariavelmente, chegava-se ao ponto em que era necessário voltar às origens das teorias para

compreender se não era ali que poderia haver de fato alguma incoerência primordial. Parti da

hipótese de que a “marca” abrangia essa realidade, além do universo símbolo-consumidor. Pois

a terceiridade da marca infere a existência de lei, regras, hábitos que orientam as condutas em

espectro geral. Então, levando-se em consideração que ela existe na mente dos consumidores,

como a teoria do branding apresenta, supõe-se que seus discursos e repertórios de signos são

orientados para eles, mas as leis, evidentemente, não são os mesmos que as elaboram.

Supostamente tem-se que, em geral, o teor da mensagem de uma marca é carregada de

humanismo, fantasia, encantamento e idealismo, retratando mundos possíveis e realidades

virtuais positivistas. Apesar de promover o entretenimento, carrega consigo a responsabilidade

ética pela consequência e coerência de seu próprio conceito, discurso e ação no contexto, tanto

no nível do indivíduo-consumidor, quanto do coletivo de públicos com que interage, que muitas

vezes compreende grandes parcelas da sociedade. Também o cuidado com o meio-ambiente e

respeito às culturas locais. Este é o script da positividade do espírito das marcas. Na atualidade,

por exemplo, as mais antenadas são as primeiras a adotarem discursos de transformação, como

vemos hoje na tendência da representação da diversidade.

Observando este caráter, tem-se supostamente que o “discurso ético-humanista-idealista”

configura seu terceiro grau e significado mais geral. Supõe-se que toda sua lógica deveria estar

constituída e coerente com este símbolo, que remete primordialmente para sua responsabilidade

social, seja na dimensão “interna” ou “externa” da empresa/marca. Mas ao observar o contexto,

alguns destes belos princípios se desfazem na velocidade da produção de ideias. Lembrando do

gráfico de abrangência de Aline Wheeler e a análise do contexto do capítulo anterior, foi

necessário então compreender o que de fato era essa “conexão simbólica”, ou seja, como ela se

traduzia nos ambientes internos das empresas e da agência que pesquisei, considerando ainda

seus processos, organizações, fluxos, infraestruturas, manutenção operacional e métodos como

signos desta conjunção. A dúvida é: como estes valores tão subjetivos se mostravam presentes

nestas realidades?

Mas além desta questão, já vimos que a marca se tornou o maior ativo de uma empresa,

sendo a diretriz estratégica de todo o negócio, moldando a dinâmica por suas metas. Faz

prevalecer o sentido “objetivo-financeiro” sobre o “subjetivo-imagético”, orientado ao

consumidor que até então era a premissa geral. Naturalmente, o estudo caminhou para a

necessidade de investigar a origem do significado da marca, porque de certa forma estes valores

muitas vezes se mostram ambivalentes e contraditórios. Qual é a lógica das mediações entre

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eles, considerando a marca como definidora da premissa-guia? Neste trabalho em especial, a

intenção é compreender a relação lógica entre: objetivo + mediativo + subjetivo, que configura

uma suposta equidade e irá servir como referência para a identificação do objeto. Não falamos

do objeto-coisa-produto, mas do objeto pragmático, ou seja, o suposto “ser” que torna a marca

real. O desafio está em reconfigurar a marca a partir de “si” mesma: conhecer o “eu-marca”.

A hipótese é constituir a lógica-triádica a partir do objeto gerador de ideias que é

autodeterminado e existencialmente presente. Considerando que a marca é renovadora de

ideias, discursos e condutas articulados para sua manutenção, o sentido desta investigação é em

si muito simples. Supostamente haveria um “objeto-comunicativo-pensante” gerador destes

discursos. Logo se imagina o consumidor, mas nesta via de análise, considera-se a amplitude

de intérpretes. A questão também traz à tona a necessidade de revisão não apenas do conceito

atual do branding, da marca como potência simbólica, mas também aquele de sua significação

comum, igualmente válida, que afirma que é o signo que expressa uma origem. Concepção esta

moldada ainda antes da era da mercadoria.

Como vimos na análise do contexto, esta origem hoje é tão difusa quanto o objeto oculto

da teoria. Se o signo remete à uma suposta integração e unidade existencial, vimos que por

“dentro” da marca há uma rede complexa, dissociada e ambivalente muitas vezes,

principalmente em seu núcleo principal, o escritório central. Do que se trata, enfim, a conexão

simbólica em conjunção com o signo e o objeto? E, considerando a origem, qual é seu

propósito? Para aquecer, vejamos alguns casos que surgem da direta análise do quadro até aqui

apresentado.

Se consideramos a empresa, veremos que deve atender as demandas estratégicas da

marca-símbolo, como a teoria orienta os métodos. Ou seja, ela se constitui e age pela marca e

não exatamente por “si”, considerando o conjunto de indivíduos que a compõe. Os serviços de

SAC (Serviço de Atendimento ao Consumidor), a produção, um atendente de loja e até o

executivo que desenvolve as estratégias, por exemplo, sustentam o discurso, significado e

praticam a norma de conduta da empresa. São treinados para atenderem suas dinâmicas e têm

regras definidas para atingirem seus objetivos. Em muitas companhias, principalmente as mais

conservadoras e de grande porte, com organogramas de hierarquia vertical e modelo de gestão

tradicional, muitos trabalhadores não participam da geração do “pensamento” da marca. Estão

compartimentalizados e ocupados com meios e fins. Muitos não têm espaço de opinião e, como

presenciei nos anos de trabalho, sua ação é reduzida ao cumprimento de ordens com indireta e

direta censura ao pensamento crítico, dependendo da empresa. Além disso, não participam da

distribuição de lucros, já que seus salários fazem parte da lista de custos. Não são exatamente

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o corpo que pensa, mas o corpo que age, não sem pensar, mas pensando em como agir para

atender demandas que lhes são determinadas a partir de premissas gerais de abrangência muito

além da dialogia marca-consumidor. Eis a confusão da origem, retratada na sua teoria.

[...] na visão de Randazzo (1993, p.24) ‘a marca é ao mesmo tempo uma entidade física e perceptual’. O aspecto físico de uma marca, [...], diz respeito ao produto propriamente dito, sua embalagem e rotulagem. [...] Entretanto, o aspecto perceptual de uma marca existe no espaço psicológico – na mente do consumidor. (RANDAZZO, In: PEREZ, 2004, p. 10)

Marcas comerciais e industriais, como sabemos, não vieram ao mundo com a formação

da Terra muito menos podem ser consideradas como absolutamente imateriais, como os mais

entusiasmados teóricos do branding acreditam ser sua natureza: puro objeto do pensamento.

Posso afirmar com certeza, sem maiores justificativas, que um tênis não é capaz de pensar e,

assim, não consegue assumir o protagonismo das ideias, ao contrário do que diz Randazzo que

indica o indica como objeto. Não podemos imaginar estas coisas participando de um brainstorm

ou uma reunião estratégica de negócios, dando ideias ou tendo “sacadas” para a próxima

campanha da marca ou determinando o caminho para o aumento de valor de mercado. Salvo se

o produto é uma “pessoa”, como um pop-star da música. A possibilidade de o objeto ser o

produto é descartado assim como uma promoção relâmpago. Ele figura também como um signo

da marca, apesar de sua materialidade. É um extrato real que manifesta a capacidade inventiva

e produtiva deste que assume o papel de origem. Mas não pode, evidentemente, assumir o lugar

da fala, em nome de todo o universo de intérpretes.

Também é mais ou menos assim com os designers, publicitários, arquitetos, marqueteiros

e outros criativos, que atuam como extensões pensantes da marca sem necessariamente

pertencerem a ela. Traduzem o que o produto quer dizer, entendem suas necessidades de

linguagem e possuem os meios técnicos para atenderem as estratégias. No olhar da teoria do

branding, são como psicógrafos destas entidades abstratas. A publicidade, geralmente

desenvolvida por terceiros, como uma agência, também assume a necessidade de traduzir as

vontades da marca, utilizando métodos persuasivos para transformar um briefing objetivo em

um conjunto subjetivo de imagens e textos. Dominam a retórica, traduzem, conhecem e falam

por ela, mas não são propriamente seu “corpo”. Sem dúvida constituem parte fundamental da

marca, mas não representam seu todo, capazes de assumir o lugar da fala em sua integridade.

Estas origens do discurso publicitário e das formas do design, assumidas por profissionais-

criativos conjugam partes constituintes e fulcrais no processo de significação da marca e que

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também denotam contradição. Por exemplo, qual a origem e motivação que faz vir ao mundo

um briefing para uma campanha de vendas? Não é da mente do criativo, geralmente.

Teorias do branding apontam então para o consumidor, que seria o “ser” que representa

as ideias da marca, que existem de fato na sua mente. Mas representar e “ser”, é outra coisa.

Eles fornecem, através de pesquisas de mercado, as informações necessárias que a empresa

necessita: seus sonhos, personalidade e sua realidade. Assim, conseguem impulsionar novos

planejamentos, a criação de produtos e serviços, lançamento de marcas, discursos da

publicidade e até práticas internas das empresas para venderem sonho e promessas de

experiências futuras, muitas vezes sem de fato corresponderem às expectativas geradas, ou até,

causando ainda mais problemas para a vida de seus clientes. São a energia que sustenta a

máquina, cedem suas interioridades para uso de outro, esperando deste a solução para

problemas pessoais. Em síntese, por um lado figuram como números em uma planilha

financeira, por outro, são fonte de inspiração e motivo existencial das marcas.

Por último, também não são, segundo a teoria, uma empresária, um dono, ou investidora,

CEO, presidente, gestora ou qualquer outro cargo que indique uma pessoa tenazmente pensando

em como ampliar a margem de valor da marca. Em muitos casos, estes executivos não

participam diretamente do processo de criação. Avaliam e dão opiniões, mas em geral, não

criam as “sacadas”, conceitos para as campanhas publicitárias e não atuam junto com os outros

profissionais nos caóticos processos cotidianos da comunicação, por exemplo. Estabelecem as

causas, intencionalmente, parcialmente ou equivocadamente cientes dos efeitos que surgem a

partir de suas decisões e enxergam a marca como um meio para atingir os fins traçados em

planilhas financeiras.

Em si, a questão da marca que este estudo aborda parece uma simples adequação de lógica

ao discurso teórico, mas é necessário lembrar que, na orientação pragmática, uma

ressignificação também é correlata a uma mudança de hábitos. Paralelamente, pelo olhar ético,

o intento é saber “quem” é este “objeto” que assume a responsabilidade e integridade não só

pelos belos discursos humanistas, imagens de desejo e ideias divertidas, mas também, o todo

das consequências. Avançar com a combinação entre o problema do objeto e o senso ético,

considerando a influência da marca no contemporâneo, tem sido uma porta aberta para um novo

mundo de possibilidades e hipóteses. Em suma, o que esta pesquisa apresenta é uma alternativa

para a abordagem do tema que pode render positivas discussões e quiçá, mudanças de hábitos.

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3.2 Abduções, diagramas, metáforas e hipóteses para pensar a marca.

O conjunto de referências da experiência fenomenológica, teorias, estado da arte e

pesquisas de contexto formaram o corpo para análise da questão. Quando a abdução dos

fenômenos gerou a dúvida, deu origem ao pensamento dedutivo-hipotético que teve como

recurso outro vetor metodológico que representa a matriz conceitual triádica e, também, é

tópico importante da teoria de Peirce: os diagramas.

A demonstração apenas esboçada prova também, com bastante força, a conveniência

de construir nosso diagrama de maneira tal a permitir uma visão clara do modo de conexão de suas partes, e da composição destas partes em cada estádio de nossas operações sobre ele. (PEIRCE, 1906, p. 176)41

A representação diagramática é um capítulo à parte em sua teoria, tema que por si é um

campo vasto de estudos. Neste trabalho, veremos alguns aspectos que foram aplicados para o

estudo da marca com apoio do pragmatismo. Diagramas ou grafos, termo também utilizado

pelo filósofo, são reflexos da capacidade associativa da mente, uma faculdade essencial do

pensamento. É um extrato da observação fenomenológica e raciocínio combinados para

encontrar a coerência entre particulares e gerais de um outro signo.

Um significado muito habitual e “verdadeiro”, no sentido pragmático, como o da palavra

“Sol”, permite inúmeras representações que podem variar de um simples círculo amarelo até

rebuscadas formas artísticas ou realistas de uma imagem 3D. Entre as diversas formas de

representação também há o diagrama propriamente dito que, em design, configura o tipo de

desenho “aramado”. Uma referência comum são as plantas arquitetônicas ou projetos de

engenharia. O triângulo da marca demonstrado na introdução ou os gráficos orbitais de Aline

Wheeler também são bons exemplos.

O diagrama é uma segundidade, faz uma espécie de mediação entre o significado e o

objeto, denotando seu conjunto de qualidades, a organização interna e, também, a forma geral.

Auxilia também a tornar mais factíveis ideias muito abstratas. Talvez por minha habituação ao

design e a representação de formas visuais, os diagramas foram um recurso essencial para o

andamento do estudo, desde seu início. Permitiram a ampliação ainda maior do contexto e

entendimento da teoria de Peirce bem como auxiliaram o mapeamento do processo integral da

marca. Desde então inúmeros gráficos, diagramas e mapas foram produzidos, fornecendo

referência para análise dos conceitos do branding.

_______________ 41 C.P., 4.533. In: The Monist, pp. 492-546, vol. 16, 1906. Apud: PEIRCE, C. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2015. p. 176.

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Como Peirce indica, com os diagramas pode-se observar a relação entre as partes que

integram um todo e mais ainda, representar a inserção do objeto no contexto, revelando

parâmetros essenciais para a análise dos fluxos e lógica geral. No percurso, as formas de

representação diagramática foram testadas de inúmeras maneiras. Na bibliografia semiótica

aplicada ao design e até na obra de Peirce surgem diversas referências à forma triangular, por

exemplo. Na teoria do branding diversos estilos são utilizados, circulares, caixas, tabelas,

orgânicos e diagramas figurativos com pictogramas.

Durante a pesquisa, conforme a leitura do sistema teórico avançou, em certo estágio

estava na Metafísica, que tem correlação lógica com a Semiótica e a Fenomenologia e compõe

a arquitetura filosófica do realismo. A metafísica de Peirce é especial e ao invés de

fundamentar-se na teologia, como foi comum na história do pensamento ocidental até a era

moderna, é composta pela realidade, com o acaso, falível e contínuo. Em outras palavras, se

existiam os universais, ou leis comuns para todas as existências, elas estariam evidenciadas pelo

comportamento do Universo, revelado por ciências naturais como a Física, Astronomia,

Química e Biologia. Este aspecto é sui generis de sua teoria, e fica registrado por exemplo no

conceito não antropocêntrico de “mente” e “cognição”, que é uma ruptura ao modo de pensar

as existências e realidade do mundo natural e físico. Surgiu desta inspiração teórica, então, uma

forma de representação diagramática do signo que venho utilizando nos gráficos desde então.

Com a figura da Terra como referência (próxima página), tem-se a representação dos

conceitos que foram adotados nos diagramas que venho utilizando nos estudos das marcas. Por

mais arbitrário que possa parecer esta associação, um conjunto de qualidades expressos por esta

imagem auxiliaram a identificação do problema lógico do conceito apresentado pelo branding.

A Terra, assim como as marcas, é existente e real. Se é real, conjuga logicamente o objeto,

signos e o significado e configura um fenômeno de terceiridade. É também um ponto de

conexão e potência simbólica, haja vista a quantidade de conhecimento gerado sobre ela desde

a antiguidade mitológica até as ciências contemporâneas. Também é habitual para todas

existências nela presentes, plantas, animais, pessoas, terra, água, rocha, ar e tudo mais. Como

algo real, assume uma materialidade, volume e forma, ocupando um ponto no espaçotempo.

Constitui uma unidade, integrada, concreta, particular, diversa e repleta de qualidades sensíveis.

Tem conduta regular, hábitos, como seus movimentos de rotação e translação. Ao mesmo

tempo é o cenário de mudanças contínuas que acontecem tanto em seu mais íntimo interior, nas

placas tectônicas e na superfície. A Terra é como um organismo, viva. É, por si, complexa e

independentemente dos astrofísicos, uma realidade que se deixa abduzir por seus signos.

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Ilustração 1: imagem 3D da Terra com corte denotando sua natureza interior. Fonte: Shutterstock; NASA.

Podemos perceber parcialmente a materialidade da Terra, em nossos contextos locais,

mas uma visão de conjunto como esta é impossível. O objeto não é oculto, mas também não

pode ser observado diretamente como uma unidade em sua forma síntese, a circunferência

completa. A experiência fenomênica é apenas possível por signos, como esta imagem 3D.

Experenciamos pequenas partes deste todo, mas não duvidamos que ela existe e é assim quase-

redonda, um pouquinho achatada. Conjuga outras milhares de existências em comum, dos mais

variados tipos e matérias, orgânicas e inorgânicas, da Natureza em seu esplendor e da criação

humana. Toda esta incrível diversidade constituindo elementos qualitativos de sua significação.

Pontua-se um fator importante para a metáfora visual do signo-marca: considerar que a

Terra não é um puro objeto do pensamento humano. Este sim é que parece ser sua criação, de

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certa forma. Em contrapartida, do ponto de vista de um intérprete do sistema solar, como Marte,

o planeta é também um signo. Faz parte de uma realidade em que milhares de outras existências

coexistem, das mais variadas formas, tipos e potências. Interage e se comunica com a Lua, Sol

e outros planetas do Sistema através de seus campos gravitacionais.

Integra-se em uma complexa, intricada e imensurável rede que é o Universo. Nesta

realidade, age por si e é autodeterminada, tem sua personalidade e identidade. Mas também

interage com todas as outras existências e forças cósmicas externas. Age e reage. Afeta e é

afetada. Convive com outros milhares de outros individuais, conjugados no mesmo

espaçotempo infinito, do qual conhece apenas uma ínfima parte.

Dentro de si, há uma potência interna que a mantém viva, mas que só existe porque está

conjugada com toda sua corporificação: suas camadas internas e superfície, ou face externa.

Mas este íntimo não é conhecido, permanece oculto, denotando sinais de sua existência, como

a lava dos vulcões. No entanto, esta integridade é o que conjuga seu significado.

A Terra, viva e ativa, é uma primeiridade, sendo a superfície seu contato com o Cosmo.

No interior, todo um volume de matérias, placas tectônicas, rochas derretidas e camadas. Um

complexo sistema que constitui uma representação de sua segundidade “interna”, como o

organismo. E, por fim, um terceiro, o núcleo, quente e pleno de energia que é origem de seu

campo magnético. O magnetismo, por sua vez, serve como analogia da linguagem, ou signo,

que é produzido e emitido pelo existente para o meio externo.

Neste exercício hipotético, considere que vamos fazer um exame laboratorial do objeto,

tirando-o do contexto para observá-lo como puro individual, como se pudéssemos apagar todo

o fundo, deixando só ele e o nada. Assim caminhou uma parte do estudo, em paralelo com o

mapeamento contextual. Viu-se necessário compreender a semiótica da marca enquanto

particular e unidade existencial. A marca por si mesma. Depois integrá-la com seus intérpretes

diretos, individuais e grupos. Por fim, a conjunção em um contexto geral espaçotempo.

Adaptando-se essa metáfora às marcas, tem-se um direcionamento de representação para

análise de sua constituição triádica, enquanto individual. Trata-se de algo existente, real que,

portanto, possui uma manifestação concreta. A superfície é sua conexão com o meio exterior,

o mercado e, também, seu ponto de conexão com a realidade fenomenológica. Supõe-se que a

marca é uma “coisa-existente”. Também tem a capacidade de cognição que denota possuir seus

próprios “órgãos” sinestésicos, como um SAC e canais de contato.

A “superfície” também subentende seu repertório de signos ou o conjunto daquilo que

pode ser percebido por um outro intérprete, também existente e interagente. Sua segundidade

envolve a capacidade de linguagem, memória e pensamento associativo. Linguagem expressa

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pela publicidade, design, arquitetura e, também, comportamento (atitudes). No caso da Terra,

seus movimentos, gravidade e magnetismo. Mas também corresponde uma dimensão

existencial interna, que, se na Terra envolve todos os processos químicos das partículas que a

compõe, muitas delas em contínuo movimento causado pelo calor e energia gerada destas

interações; na marca pode-se compreender como todo o ecossistema interno de uma empresa,

o lado de dentro, como venho referenciando. E por fim o núcleo oculto, mas real, do qual só

temos acesso por signos. Na marca, corresponderia ao símbolo, a terceira dimensão do

significado e origem dos discursos e atitudes autônomas do seu corpo integrado.

Neste estudo, a associação da forma para o diagrama tem caráter próprio. No aspecto

simbólico, triângulos ou pirâmides representam a teoria do branding. A forma a apoia em uma

base na qual ela se fixa. Ao mesmo tempo é como uma flecha apontada para o alto. Remete a

ideia do símbolo da marca no ponto mais alto, fazendo-nos entortar o pescoço para olhar para

cima, com as projeções e sonhos de um tempo futuro. Como analogia para a dimensão deste

estudo, os pontos-base representam a ideia de estar fixo pelos hábitos, enquanto se projeta uma

idealidade.

O retângulo, por sua vez, representa a capacidade de manter uma natureza essencial,

independentemente das interferências externas. Estático, tende a manter posição, preservando

seu interior. Uma forma que, neste exercício visual, representa a propensão natural do

pensamento de “enquadrar” conceitos e, também, denotar atributos formais da linguagem.

Levando estes aspectos em consideração, chegamos à forma síntese que se adequa à

representação diagramática do signo, pela visão aqui proposta. Temos então o círculo ou esfera,

forma que remete ao movimento contínuo e integrado com a realidade. É a mesma

representação utilizada por Aline Wheeler, mas neste estudo em particular, associada com os

fundamentos da teoria de Peirce.

A esfera sofre a direta e imediata ação de um agente externo e reage. Comparando com

as outras formas, é a mais suscetível a mudanças e, assim que reage, rodando e movendo-se no

espaço, também mistura tudo o que está dentro e na superfície. Conota a ideia do núcleo interior

que, nesta metáfora, representa a marca como símbolo e está associada, na representação

concêntrica, como a parte íntima do pensamento.

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Temos então a síntese:

Gráfico 5: representação sintética-diagramática exterior e interior do signo adotada nos mapeamentos da marca. Fonte: autoria própria.

Considere então que o círculo azul “1” representa um objeto existente como a Terra ou a

marca. Constitui-se como uma realidade, particular e integrada que pode ser percebida por sua

aparência exterior. Ao lado vemos a mesma forma com outros círculos concêntricos que

representa seu interior, onde vemos uma abstrata representação das dimensões semióticas.

Deve-se considerar, no entanto, esta abstração apenas um apoio para análise. Considerando a

ótica de Peire, as categorias formam uma conjunção indissociável, organizada pelo fluxo natural

da cognição a partir da abdução e não tem exatamente linhas divisíveis.

Com o tempo e avanço das leituras da teoria do Idealismo Objetivo e Cosmologia de

Peirce, que tem origem na realidade fenomênica, adotei o critério de “equidade” ou simetria

entre as categorias lógicas (como representação de “coerência”), mudando um pouco o desenho

anterior:

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96

Gráfico 6: representação sintética-diagramática do signo com conceito de simetria. Fonte: autoria própria.

A análise pragmática, como já vimos, orienta para a integração do signo ao contexto do

qual faz parte, para a compreensão de seu significado e semiose. Nos diagramas, corresponde

a inserção da “bola-marca” em um espaçotempo de múltiplas interações e trocas de signos.

Remete às formas naturais do Universo e seus movimentos, processos, sistemas e redes que são

típicos e inusitados, contínuos e descontínuos, reais ao infinito. Surge uma variedade de linhas

retas, misturadas com espirais, ondas, fractais. Novamente, o conceito de fundo vem da

associação com a Física do Universo.

No percurso da pesquisa, por mais inusitado que pareça, essas metáforas e analogias

forneceram mais insumos para pensar as marcas do que elementos extraídos da teoria do

branding. As referências apresentadas (próxima página) conjugam fundamentos teóricos

primordiais associados à teoria de Peirce que vêm contribuindo para a expansão do estudo.

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97

Ilustração 2: se a Terra fosse a marca, estaria integrada nesta realidade aqui representada. Fonte: autor desconhecido. Disponível em: <https://wallpaperplay.com/board/solar-system-wallpapers>. Acesso em 14 maio. 2019.

Ilustração 3: representação da “origem” e das potências cósmicas. Fonte: DK FindOut!. Disponível em: <https://www.dkfindout.com/us/space/stars-and-galaxies/birth-star/ >. Acesso em 14 maio. 2019.

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Ilustração 4: imagem que indica os movimentos espirais e orbitais do universo, sugerido como representação do caráter evolutivo do signo no espaçotempo. Fonte: autor desconhecido. Disponível em:

<https://wallpaperaccess.com/3200-x-1800>. Acesso em 14 maio. 2019.

Ilustração 5: representação da realidade ampliada em sua diversidade, infinita e contínua. Fonte: autor desconhecido. Disponível em: <https://wallpaperaccess.com/3200-x-1800>. Acesso em 14 maio. 2019.

Ilustração 6: imagem que representa a lei do Acaso de Peirce, no contexto desta metáfora. Fonte: autor desconhecido. Disponível em: <https://wallpaperaccess.com/3200-x-1800>. Acesso em 14 maio. 2019.

Page 99: Marca significa? - PUC-SP

99

Nos últimos anos, uma gama de representações diagramáticas possíveis foram surgindo,

mais ou menos complexas, conforme o enfoque do mapeamento como no exemplo abaixo:

Gráfico 7: exemplo de mapas desenvolvidos no estudo. Fonte: autoria própria

Em síntese, a concepção do contexto ampliado na representação diagramática pode ser

associada com as imagens de redes, em que a marca aparece como ponto-nodal:

Gráfico 8: representação do contexto sendo a marca um ponto-nodal. Fonte: autoria própria

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Vimos na Introdução e apresentação do contexto que, por mais que a teoria do branding

tenha teorizado a marca-imaterial, há a inevitável condição existencial de sua interação. Surgem

no mundo cores, sons, odores, texturas, letras, imagens e palavras em forma de anúncios e

discursos publicitários. Esta rede de signos torna o seu originador um existente necessariamente

presente e cognoscível. Por outro lado, haverá o intérprete, o consumidor, uma existência que

abduz os sinais da marca e introjeta o sentido. Acontece uma interação, evidenciada por uma

frequente rede de ação, assimilação e reação. Entre um e outro, um intercâmbio de signos em

um contexto espaçotempo da realidade. Vamos, então, utilizar um diagrama-base para a

investigação sobre o problema do objeto-origem com base nesta concepção.

Gráfico 9: mapa-base utilizado no estudo para a análise do problema do objeto. Fonte: autoria própria.

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Este é o gráfico-base que tenho utilizado para análise da marca, considerando uma relação

entre dois existentes. A ideia é que sirva de referência, junto com as informações que viemos

abordando até aqui para o prosseguirmos na investigação do conceito de marca comercial,

conforme a teoria do branding postula.

Outra metáfora visual surge diretamente associada à ideia deste gráfico e tem sido

elementar para apoiar o pensamento sobre a marca no contemporâneo: a representação de um

diálogo ou conversa entre dois individuais ou grupos. Pode-se considerar que a marca dialoga,

já que é apoiada por pesquisas de mercado e do consumidor e, também, efetivamente estabelece

relações de contato direto. Assimila desejos e opiniões do consumidor, devolvendo-lhe um

produto e discursos publicitários. Mas, de fato, busca estabelecer hábitos, tentando convencê-

lo de que a experiência de uso do produto-serviço é boa o suficiente para ser repetida outras

vezes. Em relação aos apoios visuais de diagramas e metáforas, a ideia do diálogo abriu outro

caminho muito interessante para pensar as marcas na hipótese. Vimos que teóricos do branding

como Al Ries e Catherine Kaputa atribuem um valor universal para a teoria, sustentando a ideia

do “eu-marca”. Aacker, por sua vez, ao argumentar sobre as associações de significado,

introjeta um teor metodológico ao exercício de pensar a marca como uma pessoa:

Se o seu carro se tornasse de repente um ser vivo, que tipo de pessoa esperaria que fosse? [...] Todas as pessoas, naturalmente, possuem uma personalidade e um estilo de vida que é rico, complexo, e também vivaz e distinto. Mas uma marca – mesmo uma máquina como um carro – pode ser impregnada de uma série de características muito similares de personalidade e de estilo de vida do consumidor, ou de seu proprietário. (Ibid., 1998, p. 132)

Como pude averiguar na prática profissional, este tipo de associação é comum e, desde

os noventa, gerou uma variedade de métodos que são utilizados em projetos de significação da

marca. A “personalidade” baseada no comportamento humano é uma etapa do

desenvolvimento, procurando definir o mood, estilo de vida, jeito, comportamento, astral,

espírito, alma e a corporificação ideal da marca, termos correntes entre profissionais.

Veremos que esta associação traz consigo uma contradição muito interessante para

análise. No decorrer da pesquisa, quanto maior foi a ampliação e inserção da marca no contexto,

mais a ideia da “persona” foi se mostrando o “ponto-nodal” para a compreender o problema do

objeto-origem. No contexto da teoria do branding, mostra-se contraditória com uma lei básica

da cognição, ignorando a alteridade como coparticipante na formação da identidade cognitiva.

Nos itens seguintes este será um tópico: a consciência do alter, o externo, de fora, o outro, nos

permite a consciência de “si”. Deduz-se um “eu” da marca. A questão é: eu quem?

Page 102: Marca significa? - PUC-SP

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É polêmica a sugestão dos teóricos para que qualquer indivíduo adote a teoria do branding

para a vida, “montando em cavalos” e definindo a própria personalidade como uma imagem

aos olhos do outro, sendo potencialmente difusa e vazia enquanto “objeto”. Mas ao mesmo

tempo, pode ser a chave para compreender a própria incoerência da teoria.

O que percebi nos últimos vinte anos, é que a marca realmente parece estar na mente das

pessoas, dos teóricos do branding, executivos, designers, publicitários, consumidores e demais

participantes do seu processo. O problema é a conexão simbólica. O que quero salientar aqui é

o fato de que as marcas realmente e diretamente afetam a vida das pessoas. São feitas,

consumidas e suprimidas por elas. Mas pela teoria, o objeto é difuso, pode ser o produto, o

logotipo ou o consumidor.

A hipótese então caminha assim: e se a marca fosse como um corpo, orgânico, existente,

integrado, pensante, comunicativo e interagente? No diagrama do diálogo ou interação da marca

com o intérprete-consumidor, troque as circunferências ou esferas por pessoas. Tente pensar no

“eu-marca” e sua conjunção existencial. Pode-se começar como dois individuais, mas depois,

conforme inserção no contexto, mais vai se ampliando a natureza coletiva da marca, tanto

“dentro” quanto “fora”.

Nas imagens da próxima página, temos outras referências para pensar a marca por “si

mesma”. Na ilustração 7, a representação de sua primeiridade: um existente, icônico, íntegro e

individual, integrado na realidade com as diversas existências. Um ser cognoscente e

cognoscível, dotado de um corpo sensitivo, que absorve do externo os signos vitais para a vida

e tem suas próprias qualidades fenomenológicas.

A imagem do organismo (ilustração 8), assim como na metáfora da Terra, seria sua

segundidade interna, representada pelo complexo sistema orgânico do corpo em rede, com

movimento, fluxo, enquanto integrado e interagindo continuamente enquanto vivo. Remete a

ideia das associações entre diferentes signos, índices organizados logicamente, assim como a

capacidade de linguagem e memória. O cérebro (ilustração 9) representa a terceira dimensão da

cognição, conjugando: conceito, ideia, significado, símbolo, teoria, lei, regra, generalidade,

síntese, redundância, indução, argumento e hábito. Também há outras referências como a rede

neuronal e a origem da vida. Creio não ser necessário demonstrar a lei do acaso, mas o “erro”,

como sabemos, é inerente ao processo orgânico.

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Ilustração 7, 8 e 9: representações do “eu-signo” utilizadas como metáforas da constituição triádica do “eu-marca”. Fonte: [7]; fusão de imagens, autoria própria; imagem de fundo: Getty Images. [8]; Fonte: Sergiy Chernykh, Shutterstock. [9]; Fonte: fusão de imagens, autoria própria; imagem do cérebro: autor desconhecido. Disponível em: <https://dlpng.com/png/356522>. Acesso em: 27 de mai. 2019.

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Ilustração 10: neurônios, metáfora de rede e sistema. Fonte: SCIEPRO, Getty Images.

Ilustração 11: conceito da origem do “eu-signo” orgânico. Fonte: Shutterstock.

Assim como no exemplo da Terra esta metáfora é muito rica para pensar as marcas no

contemporâneo, em que o mercado se vê absorvido por tendências como a inovação, as redes e

sistemas. A sugestão deste trabalho é, assim como na associação com o Universo, utilizar outros

parâmetros para pensar as marcas, não extraídos da própria teoria do branding. Nestas imagens

repara-se um traço comum, o organismo é coletivo e individual. Junta célula, órgão, molécula,

osso, pulso elétrico, pensamento e um universo de particularidades, todas conectadas,

interagentes, colaborativas e juntas, formando uma unidade. Para fazer evoluir a investigação,

vamos utilizar como apoio os mapas semióticos do signo e da interação (gráfico 6, p. 96 e

gráfico 8, p. 100). Supõe-se, ao considerar o “eu-marca”, a conjunção entre:

• 1. Objeto: pela teoria do branding ele aparece difuso, variando ora entre o produto,

repertório geral de signos da marca e o consumidor. Para o designer, o objeto são suas

ideias e layouts, enquanto um investidor vê o objeto como números financeiros. Mas para

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a composição triádica do “eu-marca”, de acordo com a orientação pragmática, como

mostram os gráficos de apoio, é preciso que haja um objeto, concreto, cognoscível e

cognoscente. Uma unidade existencial, supostamente integrada, organizada e

autodeterminada.

• 2. Signos: não apenas o nome/logotipo, arquitetura de loja, produto, uniformes,

publicidades, design e o conjunto de representações destinadas ao consumidor. Na

ampliada visão pragmática, inclui-se também todo o ecossistema interno que envolve:

métodos, infraestrutura, tecnologia, padrão organizacional, fluxos, interações entre

diferentes áreas da empresa, coordenação de ações, implementação de estratégias e

planejamentos, modos de trabalho colaborativo, organograma, hierarquia, sistemas em

rede, controle financeiro, manutenção de operação, interações com fornecedores, governo

e outros relacionamentos. Ou seja, as associações que compreendem sua “segundidade

interna”. Também pode-se compreender como meios utilizados para realizar as ideias,

considerando a conjunção e associação. No universo do branding, corresponde ao corpo

teórico-metodológico desenvolvido a partir da premissa.

• 3. Significado: símbolo ou conjunto de ideias que formam a generalização e síntese.

Compreende as premissas-guias que orientam toda a conduta da marca, considerando a

conjunção integral das dimensões “interno”, “externo” e “alterno”, ou seja, a lógica do

fluxo evolutivo entre as partes. Corresponde ao “valor”, triadicamente composto entre

subjetivo, mediativo-associativo e objetivo. Na teoria, refere-se à premissa-guia da marca

material e seu argumento central.

Gráfico 10: diagrama base do “eu-marca”. Fonte: autoria própria.

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Imaginar a marca como um organismo, complexo e lógico (pensante), é um desafio e abre

o caminho para interessantes hipóteses. Com base nesta metáfora, não se espera identificar um

corpo, único e realmente individual da marca. Que organismo então seria esse? Será que a

marca inevitavelmente deve ser imaterializada, já que esse corpo só pode ser ocupado pela

“persona” virtual? É o que tentaremos compreender adiante.

Para tentar responder à questão e constituir o mapa, vamos desenvolver a análise partindo

de três dimensões do significado que são associados ao termo marca e conjugam a origem

etimológica e definições técnicas. Descobrindo essa origem, poderemos destacar condições e

elementos referenciais relevantes para compreender o problema do objeto e constituir o “eu0-

marca” com apoio do pragmatismo.

3.3 Origem etimológica: o primeiro grau do significado.

Em princípio, o problema do significado universal da marca comercial envolve também

a origem etimológica do termo, em contraste com o sentido contemporâneo. Sua história

acompanha o surgimento das trocas de produtos e comércio entre povos desde a antiguidade e

evoluiu junto com o capitalismo.

Em seu grande conjunto simbólico, podem-se identificar três diferentes teores, que

parecem ter sido moldados como uma “sobreposição de camadas de significado”, conforme

mudanças contextuais e históricas. Da raiz etimológica vem o sentido que se tornou comum no

léxico popular e anuncia seu significado mais simples. Remete ao inglês clássico “mark,

merk”42 (sinal, limite). No latim, é equivalente a “signum”43 (marca, sinal).

O dicionário on-line Michaelis da língua portuguesa apresenta vinte e três associações de

sentido, entre elas, algumas relacionadas com atitudes, feições, emoções humanas e sinais

naturais. Temos então o primeiro grau de significado relativo com: “ação ou efeito de marcar;

sinal ou impressão num corpo causado por pancada, contusão, doença ou moléstia; sinal de

nascença na pele de uma pessoa ou em pelo de animal”44.

_______________ 42 Disponível em: <https://en.wiktionary.org/wiki/mark>. Acesso em: 5 out. 2018. 43 Disponível em: <https://pt.glosbe.com/la/pt/signum>. Acesso em: 5 out. 2018. 44 Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?id=WoE9y>. Acesso em: 5 out. 2018.

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Corresponde ao significado mais geral, que remete à ideia de um sinal que foi deixado no

mundo por algum existente ou acontecimento. Poderia ser uma pegada de um animal, o som do

trovão ou crateras de choques de meteoros na Lua. Este primeiro grau, refere-se a marca como

puro signo, índice de outro diferente do primeiro (o animal em si e sua pegada, por exemplo).

O signo que refere um objeto, não necessariamente presente, é então parte do DNA do

significado de marca. Diretamente associa a condição de origem, ou seja, o “ser” ou “coisa”

que registrou o sinal de sua presença e permanência em um contexto do espaçotempo.

3.4 Origem contextual: o segundo grau do significado.

Vem então o segundo grau, que reúne inúmeras possibilidades, como nos exemplos do

dicionário da língua portuguesa: “sinal ou expressão que revela sentimento e estado físico ou

emocional; conjunto dos traços físicos, estilo e modos que são individuais, característicos e

marcantes de alguma pessoa ou coisa; caráter, cunho, natureza, jaez”.44

Neste segundo grau, o significado depende de uma contextualização mais complexa,

relativo ao signo inserido em um momento específico do espaçotempo. O signo primeiro é

associado com outros e a partir da abdução, deduz-se uma possibilidade, como a hipótese de

um estado emocional pela observação das feições e atitudes. Conjuga o primeiro grau, pois o

objeto permanece, mas agora o signo primeiro participa de uma reunião de outras qualidades,

ou “conjunto de marcas”. Juntos tornam-se índices de um terceiro e conjugam primeiro e

segundo: ícones e índice, objeto e signos. Das inúmeras classificações possíveis na segunda

escala de significado, surge a “marca” pelo contexto do mercado. Ainda no dicionário de

português, acessível para a opinião pública temos:

Nome, termo, expressão, desenho ou símbolo ou combinação desses elementos que serve para identificar a propriedade, a categoria e origem de mercadorias ou serviços de uma empresa e para diferenciá-los dos concorrentes; identificador da empresa ou do fabricante. [...] O nome, associado a um ou mais itens de uma linha de produtos, que é usado para identificar a fonte ou caráter do item ou dos itens. [...] A empresa dona de uma marca. [...] O próprio produto.44

Significado que remete à etimologia anglo-saxônica de “brand”, como indica o teórico

português João Lemos Diogo (2013): “a designação anglo-saxónica brand tem a sua origem no

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antigo escandinavo brandr. O seu significado era literalmente associado ao ato de queimar a

insígnia do proprietário no produto, “e foi nesse contexto que os saxões adotaram esse termo”45.

Um registro para designar o artesão, criador, agricultor ou comerciante, atestando sua

origem e diferenciando-o de outros similares. Marca como um sinal visual, uma assinatura, um

emblema, palavra dita ou impressa que designa procedência do produto é enraizado em sua

etimologia e história na cultura ocidental. A marca funciona como um nome próprio que, como todo nome próprio, indica uma ascendência de origem, passando a funcionar como símbolo desta origem. Ela tem o poder de identificar, no produto ofertado, a empresa vendedora que o produz, marcando esse produto com a insígnia da distinção. (SANTAELLA, in: PEREZ, 2002, Prefácio)

Um dos primeiros passos de um negócio é adotar um nome e um logo, como caminho

natural para a participação no mercado. Neste momento, surge a necessidade de uma “marca”.

Reforça-se, nesta acepção do termo, o teor do significado como o próprio signo, o desenho, a

imagem, a cor, a letra e a palavra. Este conceito parece bastante razoável. Não é difícil imaginar

que durante décadas, profissionais-teóricos influenciaram a designação legal, jurídica e

reguladora utilizada por órgãos normativos como o INPI “Instituto Nacional da Propriedade

Industrial”, até hoje. Apesar de habitualmente o termo associar o nome/logotipo, no atual

mundo das marcas não podemos mais considerar esta intrínseca relação entre o termo e a

percepção fonética-visual como suficientes para delimitar o sentido. Diante da explosão de

estímulos multissensoriais com os quais estamos sujeitos no cotidiano atual, devemos

considerar muito mais conexões quando relacionamos as experiências com marcas. O estático

do signo impresso ou gravado a fogo foi assimilado ao movimento, cores, luzes, sons, cheiros

e sabores.

Quando o branding assumiu a competência da teorização da marca, ainda nos anos

oitenta, a definição apresentada pelo design ainda era recorrente. Mesmo que tenha promovido

a significação do termo para o símbolo, manteve também, até hoje, a explicação do signo.

Vejamos alguns exemplos:

Entendo por marca a distinção final de um produto ou empresa e que traduz de forma marcante e decisiva o valor de uso para o comprador. É um sinal distintivo. (BAIRON, in: PEREZ, 2002, p. 10)

_______________

45 Disponível em: <https://marcating.wordpress.com/2013/09/02/a-origem-da-marca/>. 7 out. 2018.

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Uma marca é um nome diferenciado e/ou símbolo (tal como um logotipo, marca registrada, ou desenho de embalagem) destinado a identificar os bens ou serviços de um vendedor ou de um grupo de vendedores e a diferenciar esses bens e serviços daqueles dos concorrentes. (AACKER, 1991, p. 7)

Parece que há um desarranjo entre índice-símbolo. Ambos se tornam sinônimos. Na

hipótese deste estudo, entende-se que são conjugados com o objeto, mas em si diferentes. Por

esta ótica o símbolo é real, mas não pode ser percebido em sua forma plena, porque parte dele

está dentro do pensamento. Compreende o todo do significado, integrando memória e

experiência. Desta forma, não conseguimos “ver” a ideia, que em si é um puro abstrato, mas

sim, seus signos. Quando se observa o logo de uma empresa, estamos abduzindo o todo ou

apenas um elemento do grande conjunto simbólico?

3.5 Origem do valor: o terceiro grau do significado.

[...] a base econômica dos países deslocou-se substancialmente do sistema produtivo para o consumo, movendo-se da racionalidade material para o plano do desejo e, portanto, para o campo da subjetividade. Neste contexto de consumo, as marcas assumem destaque nas relações de compra e venda [...] para se transformarem-se em poderosos e complexos signos de posicionamento social e de ser no mundo. (PEREZ, 2002, p. 3)

Nos anos noventa, acontece uma inflexão: surge o branding e a marca atinge o terceiro

grau do significado. Enquanto era estritamente o signo, uma indicação de uma outra existência,

muitas vezes distante do observador, a preocupação do trabalho para os profissionais de criação

publicitária e design era cuidar das questões formais e atender as demandas de briefings dos

clientes. Este teor não mudou muito hoje, continua como parte essencial do propósito destas

áreas de saberes técnicos.

A partir dos anos oitenta, no entanto, vimos na apresentação do contexto, diversos fatores

que evidenciavam mudanças profundas na dinâmica sistêmica do capitalismo e as marcas

ganharam uma potência de significado que antes não tinham. Se a empresa determinava as

estratégias que incluíam o desenvolvimento de seus signos, como origem, assumia o papel de

objeto e de significado geral. Mas comparando com as novas leituras, principalmente do

branding, vê-se que esta significação está subposta e marca significa outra coisa. No dicionário

de língua portuguesa Michaelis encontramos, entre as várias definições, as que correspondem

Page 110: Marca significa? - PUC-SP

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este terceiro grau: “característica ou atributo superior que faz alguém ou algo sobressair em

relação aos demais; espécie, tipo.”46

No contemporâneo, as marcas ganharam o status do valor. A justificativa apresentada

pelo branding, apoiado pelo contexto, é de que o consumidor contemporâneo não se satisfaz

mais apenas com os produtos, mas experiências e realizações de seus próprios sonhos e

vontades. Se antes era uma sinalização funcional e identitária da origem, agora protagoniza

efetivamente a tarefa de orientar estes indivíduos em suas escolhas, planos e desejos pessoais.

Usando uma palavra tendenciosa e vaga que está no discurso do mercado, é como uma coaching

de comportamentos e conformação de hábitos. A marca imaterial tornou-se então uma lei geral,

de amplitude universal. Na bibliografia tanto latu-senso quanto strictu-senso, positivista ou

crítica, o seu conceito no contemporâneo foi tacitamente aceito e incorporado aos hábitos.

Vejamos alguns exemplos de sua definição, por Clotilde Perez:

A marca é uma conexão simbólica entre uma organização, sua oferta e o mundo do consumo. [...]existe em um espaço psicológico, na mente das pessoas, dos consumidores. Consiste em uma entidade perceptual, com um conteúdo psíquico previamente definido, mas que é absolutamente dinâmico, orgânico e flexível. [...] Com o decorrer do tempo o nome da marca se desliga do fabricante e ela passa a ser vista como a produtora de discursos com objetivos e valores específicos, cabendo essa tarefa de amplificação do seu escopo à publicidade. (Id., 2002, p. 4, 46, 48)

Por Aline Wheeler:

A criação de valor é o objetivo inegável da maioria das organizações. A busca por sustentabilidade. [...] uma marca é um ativo intangível; a identidade da marca e o que inclui todas as expressões tangíveis, dos sites à embalagem, defendem esse valor. (Id., 2009, p. 58)

Por J. R. Martins:

Intangíveis que são, as marcas são também sustentadas por diversas fundações perceptuais, como a eficiência, supervisão e, principalmente, inteligência. MARTINS, in: AAKER, 1998; p. XVII)

Até nas abordagens críticas, como no exemplo de Isleide Fontenelle:

[...] seus signos são uma tentativa de dar forma ao que, radicalmente, não tem forma. Imagem de marca é uma forma que se dá a algo que, concretamente, materialmente, não existe. É como a alma a que se referia a Benjamin: ela só existiria dentro e a partir de nós! (Id., 2001, p. 195)

_______________ 46 Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?id=WoE9y>. Acesso em: 5 out. 2018.

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Não são necessárias mais citações para evidenciar que, na atualidade, a marca é definida

como algo puramente imaterial, “oca” por dentro, como a socióloga Isleide Fontenelle se refere.

Oca no sentido material, porque é preenchida de ideias que surgem no mundo pelas imagens e

discursos. São diferentes termos utilizados para definir uma natureza: intangível, conexão

simbólica, imaterial, inexistente e entidade psíquica.

Todos eles designam seu terceiro grau de significado. Na teoria de Peirce, a visão

integrada da semiose evidencia uma correlação lógica entre parâmetros e características que, a

partir da Fenomenologia, denotam a terceiridade das marcas: significado, generalização,

síntese, símbolo, argumento, propósito, redundância, hábito e indução. O desafio da análise

semiótica-pragmática é conjugar este grau de significado com todos os outros, a partir da lógica

constitutiva que começa pelo objeto.

3.6 O ponto de inflexão.

O estudo em curso revelou uma semelhança entre o problema da lógica da marca

postulada pelo branding com a crítica de Peirce ao racionalismo cartesiano, que será tema de

futuros textos decorrentes desta pesquisa. Analisando a premissa da marca imaterial, notou-se

uma conexão com a filosofia do cientista francês René Descartes (1596-1650), considerando

que, nos dois casos, as ideias causaram inflexões no modo de pensamento e influenciaram a

humanidade.

Descartes, à época, na Europa Renascentista do século dezessete, participava do levante

científico que provocou uma crise direta com a instituição dominante, a Igreja. Entre as

consequências, podemos citar a história de Galileu Galilei (1564-1642), morto pela Inquisição.

Comentadores dizem que Descartes, sabendo do fim trágico de seu colega cientista, impediu a

publicação de textos, a fim de revisar pontos que poderiam ser polêmicos.

Independentemente disso, vê-se que Descartes conseguiu satisfazer os lados e amenizar

a tensão entre poder e inovação. Moldou uma filosofia apoiada na causa metafísica da existência

de Deus, agradando os anseios do alto clero. Ao mesmo tempo, ao decretar o fim da discussão

metafísica com a solução dos universais, abriu caminho para o pensamento científico e a

explicação dos fenômenos, agradando as expectativas de um novo tempo, em especial da

burguesia.

Page 112: Marca significa? - PUC-SP

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No contemporâneo, o mesmo parece ter ocorrido com a teoria do branding. Para satisfazer

gregos, troianos e consumidores, foi adotada a mesma lógica utilizada por Descartes. O

branding, ao posicionar a marca no terceiro grau e fazer dela origem de toda a lógica,

automaticamente dividiu o mundo em “substâncias”. Com isso, atribuiu à marca o valor de “res

infinita”, ou substância divina, imaterial, intangível, onisciente e eterna. Uma deusa. Teóricos

mais entusiasmados têm de fato teorizado a marca com o mesmo critério da religião.

Douglas Atkins, por exemplo, efetivamente escreveu um livro em que apresenta o método

de desenvolvimento de marcas apoiado na religião: “O Culto às Marcas” (Cultrix, 2007),

conformando o mundo em afirmações gerais como: “os mundos sagrado e profano aproximam-

se cada vez mais, quer gostemos disso ou não” (Ibid, p. 12).

Como alguém pode venerar algo tão banal quanto um par de tênis? [...] Talvez, ponderei, eu achasse as respostas para tantas perguntas se estudasse a expressão máxima da devoção: a que se encontra nos cultos. Se aquelas pessoas se uniam em torno da marca como se estivessem num culto, então por que não examinar diretamente os cultos e a dedicação que inspiravam? [...] Seriam as dinâmicas de atração essencialmente as mesmas? Se fossem, as técnicas geradoras desse grau de devoção seriam utilizáveis em outros contextos? (Id, 1997, p. 12)

Também Al Ries e Jack Trout:

Este livro poderia ter sido escrito sobre religião quanto sobre propaganda. Estamos inventando coisas? Absolutamente. A essência de qualquer religião do mundo é a comunicação. Das divindades, sempre perfeitas. E nem dos fiéis, sempre imperfeitos. Mas dos sacerdotes. (Ibid, 1981, p. 140)

Sendo um universal, não há mais nada a questionar. São leis divinas, causas maiores a

serem cumpridas. O mundo então se divide em duas outras substâncias, de acordo com a certeza

de que a razão é unidade existencial originária e primeira, legado direto da substância infinita.

É a “res cogitans”, pura racionalidade, que representa as estratégias da marca, planejamentos

de negócios, definição de métodos de gestão, coordenação de fluxos e avaliação de

performance. Em suma, correspondem ao determinismo matemático, assim como Descartes

pensava ser o método das ciências, baseada na seleção de quantificações de qualidades extraídas

do mundo para comprovar a lei primeira.

Esta substância é distinta e ao mesmo tempo inevitavelmente associada com a “res

extensa”, que é o corpo, a parte existencial das sensações diretas com o mundo. Esse mundo,

apesar de uma criação divina, segue sua própria dinâmica. É, em si, pura coisa, desprovida de

“alma” (significado) que por sua vez é atribuído e determinado pela “res cogitans”. O corpo,

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como parte inevitável desta realidade hermética, apesar de seus processos internos complexos

é como uma máquina, mantida por atos mecânicos. É imperfeita, errática, fadada ao finito, a

obsolescência e descartabilidade. Nesta analogia, seriam por exemplo, partes da empresa, como

em muitos casos (Nike) o processo fabril.

Representa o limite natural colocado pela Deusa-Marca, para vivenciar a completa

idealidade da “res infinita”, inalcançável. Assim foi moldado o mundo das marcas, cabendo aos

indivíduos olhar para ele e, com toda convicção, encontrar os meios para experiências

particulares e ao mesmo tempo ínfimas deste eterno. As marcas ficam, os corpos vão e ninguém

é feliz para sempre. Em poucos meses tem um novo celular na praça, o melhor de todos. Nas

palavras dos teóricos do branding:

O produto é algo que é feito na fábrica; a marca é algo que é comprado pelo consumidor. O produto pode ser copiado pelo concorrente; a marca é única. O produto pode ficar ultrapassado rapidamente; a marca bem-sucedida é eterna. (KING, in: AACKER, 1991, p. 1)

Se a razão guia a conduta para uma experiência, tem-se a consciência de que a idealidade

plena supostamente não será alcançada em vida, mas o fim é aproveitar os momentos possíveis

e finitos desta plenitude. Todo este esforço induzido pelo hábito, em um percurso

individualizado, custe o que custar.

A razão como substância separada da extensa, tende a enxergar o “real” como seu objeto

de manipulação, meio para alcançar a causa maior. Também é extrato da substância divina,

terceira, ocupando um grau segundo na hierarquia lógica, buscando controlar o primeiro. No

século XVII, Descartes acredita ser o homem, o único ser capaz desta faculdade, moldando uma

filosofia essencialmente antropocêntrica. Ao ler Peirce dizer que a capacidade da mente

também aparece nas abelhas e até nas matérias inorgânicas, tem-se ideia da diferença de visões.

O filósofo francês buscava moldar um método científico, um intento necessário e

fundamental para o desenvolvimento humano. Proporcionou importantes avanços para ciência

moderna. Mas o problema estava justamente no fundamento lógico e não no intento geral. Para

Peirce, lógicas binárias deixam muitas lacunas não respondidas para uma apurada investigação.

Por exemplo, séculos depois da morte do filósofo francês, no século dezenove, pensadores

talvez não tão bem-intencionados quanto a causa de Descartes, se apoiaram na lógica binária-

dualista como fundo para teorias da qualificação entre racionalidade e irracionalidade, na forma

de segregação racial ou justificação de superioridade de um povo ou sociedade sobre outra.

Bem, a análise desta associação teórica é muito complexa e rende um estudo próprio. Mas estes

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aspectos associativos entre teorias que vêm sendo ainda estudadas, contribuem para o

prosseguimento desta análise. A questão, com o exemplo citado é compreender: a que existente

corresponde a “res extensa” da marca?

Antes de analisar esta constituição, vamos pontuar o exato momento da inflexão, que traz

consigo uma contradição elementar. A premissa geral apresenta que ela existe dentro da mente

do consumidor. Automaticamente, ao pontuar o interno do pensamento, deslocou o ponto de

origem e, também, o tornou oculto, variável para cada indivíduo-intérprete. Primeiramente,

pode-se deduzir que está coerente, já que o consumidor de fato é a origem das ideias da marca

e seu propósito de existência.

Mas a questão da origem aqui tem outro viés: pode-se considerar que o mundo é uma fonte

de inspiração para ideias e invenções, como marcas e produtos. Mas qual é o corpo-mente

integrado que assimila estas referências, trabalha com elas, cria e devolve ao mundo um

produto, a mensagem publicitária, o nome/logotipo, um propósito? O próprio consumidor?

Com base nesta condição, teríamos a seguinte forma diagramática de uma interação da marca:

Gráfico 11: a conversa platônica entre “eu” e “eu mesmo”. Diagrama da interação do intérprete com a marca pela orientação teórica. Fonte: autoria própria.

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Pela orientação semiótica-pragmática, esta interação parece não fazer sentido com o que

a marca de fato parece ser. Não se trata de uma criação individual que envolve uma ação

autônoma, como cozinhar a própria comida, fazer um desenho em uma folha ou procurar agir

de outro modo. Coisas que fazemos para nós mesmos, usando produtos. De forma objetiva, tem

lógica essa explicação? O problema é que, pragmaticamente, uma ideia geral infere uma

conduta e então estamos possivelmente diante de um problema complexo do tamanho do

mercado globalizado. Na hipótese desta pesquisa, é uma contradição evidente, com

consequências críticas, apesar do entusiasmo indicar uma coerência natural.

A partir desta inflexão, ergue-se uma pirâmide de conhecimento e desdobramentos

teóricos e metodológicos que variam muito entre autores do branding. Surgem diferentes meios

para alcançar os fins mercadológicos, mas que em geral são visões particulares de uma mesma

coisa, de acordo com a experiência de cada um. A diversidade de métodos de aferição do valor

da marca disponíveis são reflexo de uma intensa produção de conhecimento e é um positivo

sinal de evolução de uma ciência. Porém, como vimos na análise de contexto, de fato parece

não haver evolução, mas contínua renovação cada vez mais acelerada de ideias para manterem

o mesmo racional, sendo essa uma das invariáveis de sua natureza.

3.7 Métodos: a diferença lógica entre branding e Pragmatismo.

No aspecto metodológico, ressalta-se a diferença elementar entre branding e

pragmatismo. Ambos são “métodos”, assim como os próprios autores apresentam, baseados em

princípios-guia gerais. Evidentemente tratam de naturezas diferentes, cada uma pertencente a

um tipo de conhecimento e universo da ciência. A diferença central é que Peirce elaborou um

método universal para a investigação científica, enquanto o branding é naturalmente

segmentado, erguido por suas próprias experiências particulares e ecossistema. Ou seja, o

pragmatismo tem a responsabilidade de orientar o pensamento científico em dimensão geral,

válido para todas as áreas do conhecimento e, na hipótese desta pesquisa, também para

disciplinas latu-senso, como branding e design.

É necessário distinguir o conceito de Peirce do pragmatismo, para não confundir com as

tendências dualísticas das ciências racionalistas ou binaridades lógicas, atribuindo ao método

um papel utilitarista causal. Ela não foi concebida para adequar-se à mera comprovação de uma

lei pela insistência de sua aplicação, independentemente das consequências gerais. O

objetivismo reducionista, por exemplo, não corresponde ao seu propósito, como parece ser a

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116

natureza da teoria do branding ao fundar uma premissa de amplitude universal a partir de um

recorte estreito da relação marca-consumidor. O pragmatismo orienta a investigação a começar

pelos fenômenos, considerando sua extensão e profundidade, para verificar a validade da lei.

Peirce situa o Pragmatismo como um método para o pensamento que “organiza” nossa

forma de compreender e agir. Colocava-se contrário a todas as teorias que se ancoravam em

dualismos da mente e da matéria, divididos e contrastantes, sendo o corpo limitador da expansão

da razão. Opõem-se ao cogito cartesiano que pressupõe a hierarquia da razão sobre matéria que,

para Peirce, não era capaz de sustentar um método lógico para a explicação da realidade,

propósito universal da ciência. A proposta de Peirce não é hierarquizar substâncias

determinando um caráter indutivo para a investigação científica. Parte da iniciativa da

conjunção e organização dos modos de raciocínio: 1. Abdutivo; 2. Dedutivo e 3. Indutivo.

Começa pelo abdutivo com a Fenomenologia e a classificação dos fenômenos primeiros,

segundos e terceiros. Fornece o repertório para a Semiótica, que busca compreender o mapa

associativo das mediações de um fenômeno, entre ícone, índice e símbolo. Evolui para o

espectro metafísico, com a constituição geral de leis e formação de hábitos na conjunção objeto,

signo e significado. O processo de raciocínio é uma interação destas dimensões, não adequada

com a ideia de “pontos-fixos” ou espaços limítrofes e seriados em ordenação hierárquica. O

pensamento é fluido e conjuntivo, e a organização natural destas dimensões são modos e hábitos

do próprio pensar constituídos pela evolução. Esta coordenação lógica não possui uma

hierarquia, mas um movimento contínuo cuja origem “não-fixa” é a realidade que denota a ação

do acaso e a abdução como invariável começo da cognição. Ainda nas palavras de Peirce:

Eu desempenho uma abdução quando eu (tanto assim) expresso numa sentença alguma coisa que eu vejo. A verdade é que a completa fábrica do nosso conhecimento é uma sensação feita de pura hipótese confirmada e refinada por indução. Nem mesmo o menor dos avanços pode ser feito no conhecimento além do estágio do estúpido espalhafatoso, sem fazer uma abdução a cada passo. (PEIRCE, C., in: MERRELL, 2012, p. 102).

Tomando-se como base a classificação pragmática dos modos de raciocínio, tem-se que

uma teoria, uma vez instituída como significado universal tenderá à configuração do

pensamento para a relação que tem início na Indução, passando pela Dedução até atingir a

Abdução. Molda então o processo: 3 > 2 > 1. Isso quer dizer que um significado se torna um

hábito e orienta uma conduta. Esta organização do pensamento funcionará assim, até que a

abdução denote uma ocorrência inesperada que desconfigura esta construção mental, obrigando

o pensamento a reconstituir o processo: 1 > 2 > 3. Este é um fluxo contínuo.

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Ressalta-se a diferença crucial entre uma ciência indutiva (branding) e outra abdutiva

(pragmatismo). Para este estudo, importa a associação com a questão da origem: são opostas.

O branding molda sua lógica “de dentro para fora”, enquanto Peirce descreve o contrário. A

ideia, então, é testar a reconstituição da lógica da marca pela primeiridade.

Em conjunto com o contexto, cada modo de raciocínio produz consequências próprias. A

hipótese que surgiu com o estudo é que há duas tendências diferentes a partir de cada premissa.

Pelo branding, a disjunção, ou desassociação do objeto com o símbolo. Com o pragmatismo, a

conjunção, ou associação do “ser-integrado” com a realidade. Pela visão pragmática, estas

condições também contribuem para compreender a diferença teórica, como também o problema

lógico do pensamento da marca. Veremos nos itens seguintes como este é um fator crítico do

problema.

Como teoria e método instituídos, o branding naturalmente orienta um vasto repertório

de geração de conhecimento por indução, a partir de premissas universais e imutáveis. E o

problema não é a indução, que é uma faculdade natural e necessária do pensamento, mas sua

coerência com a dedução e a abdução, assim como entre argumento, proposição e termo. O

papel de uma teoria deve ser de fato instituir uma verdade e conduzir uma conduta, instituindo

um hábito, nas ele deve ser positivo em seu sentido pragmático, que envolve o todo das

consequências. Não se busca um absoluto, já que o acaso e o erro fazem parte do processo

renovador e contínuo para a evolução do conhecimento. Busca-se compreender a realidade.

3.8 O ponto de inflexão e suas consequências teóricas.

A palavra objeto é bastante curiosa neste cenário, porque o que procuro entender é qual a

lógica da teoria em conexão com o cotidiano do desenvolvimento das marcas que, considerando

os acontecimentos habituais, fazem as pessoas se sentirem máquinas, números ou coisas.

A hipótese é que tanto a premissa quanto o corpo teórico denotam contradições

conceituais elementares que correspondem às ocorrências negativas coletadas nos anos de

experiência empírica. Para evidenciar os problemas, selecionei aqueles que parecem

fundamentais para sustentarem esta hipótese. A proposta é revelar que, em todo o repertório de

significado da teoria do branding, há realmente pontos de inflexão, que denotam um dualismo

latente e crítico, assim como na distinção mente-corpo cartesiana. Das muitas referências,

usaremos como base o método do brand-equity, de David Aacker (1991).

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Em seus textos, Aacker apresenta profundas análises e possibilidade de métodos de

construção de marcas e negócios. Molda a teoria a partir da premissa imaterial da marca e a

constituição binária entre valor subjetivo e valor objetivo. Então propõe a técnica do brand-

equity, que busca a gestão estratégica e coordenada de todas as dimensões que a marca envolve.

Na clássica obra “Marcas, Brand-Equity, Gerenciando o Valor da Marca” (Negócio, 1998),

sugere a constituição lógica em cinco pilares:

1. Lealdade à marca; 2. Conhecimento da marca; 3. Qualidade percebida; 4. Associações da marca; 5. Outros ativos da empresa.

Na tabela de Aacker da próxima página, os pilares são descritos e organizados por um fluxo

indutivo, que visa a composição binária e final do valor subjetivo, em primeiro plano e objetivo,

como segundo. Cada um deles gera um conjunto denso de conceitos e desdobramentos

metodológicos. Para o foco desta pesquisa, não será necessária uma longa análise de cada um

deles, veremos os vetores mais relevantes para a investigação sobre o objeto oculto. Mas este

caminho será traçado por outra via, com a orientação do método pragmático-triádico. Durante

as análises, os pilares de Aacker foram reorganizados conforme orientação pragmática:

1. Qualidade percebida; 1. Outros ativos da empresa. 2. Associações da marca; 2. Conhecimento da marca; 3. Lealdade à marca; A partir desta conjunção, foram definidos outros vetores, extraídos da teoria do branding

que correspondem às três fundamentações lógicas e definem seu propósito, conforme os

teóricos a apresentam. Nesta ordem:

1. Valor 2. Identidade/posicionamento 3. Performance

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Gráfico 12: tabela da constituição do brand-equity da marca, segundo David Aacker (1991, p. 284).

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Em contrapartida, foram também compostos três vetores pragmáticos, que surgiram da

orientação teórica de Peirce na leitura das evidências fenomenológicas e que indicaram três

naturezas de problemas relacionados com o racional da marca:

1. Experiência; 2. Ética; 3. Lógica.

A análise das contradições é consequência do cruzamento destas duas classificações

(branding versus pragmatismo) com apoio em mapas e referências de casos. Porém seguiremos

o caminho pragmático que inverte a lógica da teoria do branding:

1. Experiência x Performance: • Outros ativos da empresa (empresa, por exemplo); • Qualidade percebida (produto).

2. Ética x Identidade/Posicionamento:

• Conhecimento da marca (identificação); • Associações da marca (repertório de signos).

3. Lógica x Valor: • Lealdade à marca (hábito).

Para avançar na investigação central sobre a questão do objeto disperso, vamos nos

concentrar no item: 1. Experiência e Performance. É a partir dele que a pesquisa tem avançado

para as outras dimensões 2 e 3 da reconstituição pragmática da marca, estudo em pleno curso e

que também tem revelado inflexões críticas decorrentes da contradição na primeiridade.

Envolvem questões relacionadas com leis enraizadas no ecossistema das marcas como o

posicionamento e o valor, que serão temas de futuros artigos. O problema a ser superado, nesta

dissertação, é o objeto.

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3.9 Experiência x Performance; e a hipótese do eu-marca.

Performance é um termo-chave para o branding, assim como a tão buscada experiência

positiva da marca. Configura o fim do processo, que se originou internamente com os conceitos,

estratégias e brainstorms, desdobrou-se em métodos e práticas, até atingir o meio externo em

forma de algum signo: uma publicidade, produto/serviço e qualquer outra conexão com o

intérprete-consumidor.

Se para o branding é um terceiro e último, pelo pragmatismo corresponde à categoria da

primeiridade, que envolve a sinestesia e percepção imediata do momento presente. Nosso

caminho então é outro. A hipótese é que a marca se apresenta ao mundo como uma

particularidade existencial, autônoma, pensante e interagente. A tarefa então é compreendê-la

por ela mesma. Com esta proposta em mente, vamos analisar os conceitos de performance e

experiência da marca do branding e sua concordância com a premissa primeira, relacionando a

delimitação da pesquisa à experiência fenomenológica deste “mundo interno”. Além disso,

confrontar estes conceitos, bem como o significado de “qualidade percebida” de Aacker, que

corresponde ao entendimento comum do mercado, em contraste com o conceito pragmático.

O percurso da investigação, a partir da primeiridade, revelou o clímax da questão que de

certa forma paralisa a continuidade da constituição lógica da marca pela argumentação do

branding, mas também abre novos meios para revisão do seu conceito. Seguindo a premissa

inicial de que a marca existe na mente do consumidor, este “eu-marca” seria composto

curiosamente da seguinte forma:

Gráfico 13: diagrama do “eu-marca”, segundo a premissa da marca-imaterial. Fonte: autoria própria.

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Pela representação que mais se adequa com a natureza indutiva do branding temos:

Gráfico 14: diagrama do “eu-marca”, na forma do branding. Fonte: autoria própria.

Tomando-se como base a premissa geral do branding, o consumidor é a origem

fenomênica e o imenso repertório de signos forma o conjunto de índices que denotam a

existência concreta deste “eu-pensante”. Dentro da mente dele, habita a marca. O objeto

pragmático, então, supostamente é o consumidor em “carne e osso”. Sendo o eu-marca o ser

que consome, a teoria do branding molda o seu corpo por esta diretriz, tornando secundárias

todas as outras manifestações tangíveis e objetivas. Por exemplo, Aacker coloca a empresa

como elemento complementar em sua proposta de constituição do brand-equity, na “caixa” de

“outros ativos”, que corresponde ao patrimônio concreto, infraestrutura, frota, máquinas,

parques industriais, escritórios, centros de logística e demais componentes, incluindo os

trabalhadores. Está separada de “qualidade percebida” que supostamente envolve a experiência

fenomenológica, mas na tabela do brand-equity aparece no grau dos pilares que correspondem

à formação do valor subjetivo da marca (gráfico p. 119).

Em relação à empresa, o que acaba ocorrendo é que, para o sucesso de um negócio, estes

ativos são subvalorizados em relação ao subjetivo da marca e muitas vezes representam seus

limites, bem como um inevitável custo operacional que deve ser controlado para salvaguardar

uma boa margem de lucro final. Em nossa análise, vamos colocar na mesma “caixa” a empresa

e a qualidade percebida, porque ambas correspondem à interação de primeiridade. Se no

branding há uma tendência para separar a empresa da qualidade, significa a desconsideração de

alguns aspectos muito importantes que conjugam a experiência da marca. Neste caso, parte

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desta qualidade, deveria envolver a ótica do trabalhador, quem faz o produto ou participa dos

processos internos de desenvolvimento da marca, supostamente a empresa em seu conjunto.

Mas muitas vezes parte desse “objeto” está distante, em uma fábrica na China, Filipinas ou

Bom-Retiro, sofrendo o peso da pressão capitalista. Vejamos o que nos diz Aacker sobre a

“qualidade percebida”:

A qualidade percebida pode ser definida como o conhecimento que o consumidor tem da qualidade geral ou superioridade de um produto ou serviço pretendido, em relação a alternativas. A qualidade percebida é, antes, o conhecimento dos consumidores. (AACKER, 1991, p. 88)

Esta afirmação resume o teor de significado da palavra “qualidade” de uso corrente no

mercado. Vê-se que é moldada pela relação entre marca-consumidor. Na era da mercadoria, até

os anos cinquenta do século vinte, a qualidade era o foco das companhias e parâmetro de

diferenciação e escolha para os consumidores. Este caráter como sabemos não mudou, mas no

contemporâneo, tornou-se complemento da “qualidade subjetiva”. A publicidade, design e o

conjunto sistêmico de signos da marca geram, na mente do consumidor, um sentido prévio e

geral de qualidade que pode ou não ser confirmado na experiência. Muitas vezes, no entanto, o

subjetivo é tão mais influente na constituição de um significado que, mesmo que o produto

fique aquém das expectativas, ainda assim o teor da experiência da marca não é abalado.

De certa forma, a percepção sensorial do produto-serviço se enquadra na substância

extensa, como a realidade suscetível ao erro e que pode não corresponder exatamente às

expectativas. Para o consumidor, a avaliação torna-se individualizada e dispersa, porque não

tem parâmetros para aferir a qualidade, a não ser pelo efeito e experiência particular. Ele muitas

vezes não tem ideia exata daquilo que consome, quando muito, lemos o manual de uso e as

referências da embalagem com descrição de componentes. Em produtos alimentícios, por

exemplo, tem a tabela nutricional e coisas como acidulantes, conservantes, ácidos e outros

elementos dos quais geralmente não se tem muita ideia o que são. A experiência do consumidor

é concentrada em sua sinestesia, no sabor, odor, visual, tato e sons, independentemente de como

aquilo tenha sido feito. Vemos cada vez mais consumidores preocupados com a saúde e com

aquilo que consomem, procurando informações sobre as matérias-primas e processos de

produção. Mas como comportamento geral pauta-se a decisão de compra/uso pela reputação da

marca.

Cabe então à empresa organizar esta rede produtiva sob critérios e rigores no controle de

qualidade. Por exemplo, não muda muito para o consumidor saber que dentro dos iPhones há

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peças produzidas em fábricas da China, a mesma origem de muitos produtos piratas

comercializados no Brasil e no mundo. Com a origem difusa, subentende-se, pela imagem

projetada da marca Apple, que esta fábrica na China supostamente segue os mesmos padrões

de qualidade do escritório em Palo Alto, Califórnia. Repare que Aacker usa a expressão

“percebida” e na citação deixa claro que não se trata de um sentimento imediato, mas construído

previamente por uma associação de signos que inferem uma noção de qualidade. O branding,

como teoria, induz o pensamento à ação dos desenvolvedores da marca e seu reflexo está no

comportamento do consumidor.

A “qualidade percebida” que Aacker define, então, não está apoiada exatamente na

realidade fenomênica, mas na capacidade de indução da marca sobre o senso prévio de

qualidade e seu efeito na experiência. A empresa então passa a se esforçar para corresponder à

imagem, encontrando seus próprios meios para tornar objetivo o que é proposto pelo discurso.

Não é uma constituição de significado em organização e conjugação, mas um processo de

ordenação e disjunção.

O problema é que, muitas vezes, a empresa não consegue corresponder a potência da

imagem e passa a buscar outras formas para garantir a qualidade percebida em detrimento da

objetiva. Cabe aos órgãos de controle como o Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia,

Qualidade e Tecnologia), Procon (Programa de Proteção e Defesa do Consumidor), Ibama

(Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), entre outros a

fiscalização técnica e aplicação de multas. Pelo mercado, surgiram métodos como a

sustentabilidade, RSC (Responsabilidade Social Corporativa), compliance e órgãos normativos

como o CONAR (Conselho Nacional Auto-Regulamentação Publicitária).

Se pelo governo ou sociedade civil surgem contrapartidas que exigem a formulação de

códigos de ética e normas, supõe-se a real ocorrência de desvios éticos de conduta por empresas

no mercado em geral. O que parece, então, é que a responsabilidade ética pela qualidade real e

objetiva é exclusivamente da empresa e não do governo ou consumidor. Em princípio, tudo se

baseia em uma relação de confiança.

Para o consumidor, a indução da marca pode ser poderosa o suficiente para conformar

por autoridade um pensamento tenaz de uma idealidade a priori, independente dos fatos. Essa

sobreposição do subjetivo sobre o objetivo produz uma inflexão crítica: a possibilidade do

desvio ético na consideração da qualidade real. Muitos autores do branding, como Al Ries não

tem pudores em assumir que qualidade pode ser fruto de pura fantasia. Se o posicionamento da

marca for eficaz, o produto não precisa ser, mas parecer ser.

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[...] às vezes não é importante, para os clientes, saberem o quanto você é bom, basta acreditarem que você é melhor (ou pelo menos não tão bom quanto) que um dado concorrente. (Ibid., 1981, p. 133)

Já Aacker evidencia a necessária coerência entre a experiência fenomênica e a “qualidade

percebida”. Mas com todo seu cuidado analítico, deixa escapar as tais inflexões. Em obras de

outros teóricos este traço também é comum. Em uma página apresentam preocupações éticas

relevantes, na outra contradizem o que disseram antes. Mesmo Aacker:

Fazendo percepções corresponder à qualidade real. [...] Uma maneira é gerenciar os sinais de qualidade, como os níveis de preço, ou a apresentação dos empregados ou as instalações. Cada um destes itens pode proporcionar uma sugestão ao consumidor. (Ibid., 1991, p. 104)

Reitera-se que não precisa necessariamente ser, mas parecer ser, já que o subjetivo tem

mais valor que o objetivo. Em um escopo teórico que orienta profissionais e executivos das

marcas, uma afirmação como essa abre margem para configurações de métodos que muito se

adequam a necessidade das empresas de reduzir custos de produção e aumentar a margem de

lucros. Aacker também não vê problema no fato de a qualidade ser um extrato da indução,

construída pelas decisões de conjunção entre preço e lucratividade, potencializados pelo valor

subjetivo. A “qualidade induzida”, termo que parece mais adequado que “percebida”, é um fator

essencial para qualificação do produto e sua determinação de preço, como por exemplo, aqueles

considerados Premium.

Para fazer parte de uma categoria Premium, uma marca tem que oferecer um caso digno de confiança ou demonstrar que é superior na qualidade, ou que realmente pode proporcionar status que justifique um preço Premium. [...] Os clientes percebem a Zeiss como um líder tecnológico, sem conhecer as especificações dos modelos, ou sem saber exatamente de que forma eles são superiores. (Ibid., 1991, p. 122, 128)

Assim, muitas clientes entusiasmadas compram roupas de marcas como Zara, Le Lis

Blanc, Cori, Gregory, Renner sem saber que o produto é feito por trabalhadoras escravas, como

se vê abertamente reportado na imprensa47.

_______________ 47 MELLO, João. In: Levantamento traz lista de marcas de roupas flagradas com trabalho escravo. São Paulo: portal de notícias GGN, 2016.

Disponível em: <https://jornalggn.com.br/direitos-humanos/levantamento-traz-lista-de-marcas-de-roupas-flagradas-com-trabalho-escravo/>. Acesso em: 7 ago. 2018..

48 Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2016/03/02/interna_mundo,520225/apos-denuncia-de-uso-de-mao-de-obra-infantil-nestle-e-hershey-se-defe.shtml>. Acesso em: 7 ago. 2018.

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Ou também as famosas marcas de chocolates da Nestlé e Hershey. As tradicionais

empresas foram denunciadas por contratação de mão de obra infantil na África, em regime de

exploração, caso também divulgado pela imprensa48. A qualidade percebida do produto, em

dimensão pragmática, deveria envolver também a qualidade de vida destes trabalhadores. As

empresas alegam não terem controle sobre seus fornecedores, mas sem dúvida cabe a elas a

responsabilidade de atestar a qualidade de trabalho de seus parceiros comerciais para confirmar

se estão de acordo as normas éticas que postulam como leis gerais.

Colocar alguma responsabilidade sobre o consumidor, sedento por autossatisfação, então,

parece ser equivocado. Ele está imerso em uma rede de induções poderosas que ocultam

consequências de sua participação nesta realidade, concentrando-se nas projeções de si e

possíveis autorrealizações. Além disso, está convencido pela reputação do nome que lhe garante

a ideia de uma origem idônea. A responsabilidade da empresa pela qualidade supostamente

deveria ser obrigatória para qualquer serviço prestado ou produto vendido, seja na qualidade

real que o consumidor percebe ou nas condições de trabalho de quem produz. Afinal entende-

se que marcas visam o bem-estar coletivo, em primeira instância, pois assim se coloca sua

premissa geral.

Por esta hipótese, revela-se a inflexão teórica da teoria do branding, expressa na

contradição de Aacker sobre a qualidade percebida, que de fato não precisa ser real. Se a lógica

se aplica ao consumidor, deve valer também para o ambiente interno de trabalho e

desenvolvimento das marcas, integralmente, incluindo o processo fabril. Mas na lógica do

branding, o argumento da qualidade percebida enquadra-se nas induções da marca, como

sentido do valor.

A qualidade percebida dá lucro. De acordo com estudos utilizando dados de milhares de negócios nos debates PIMs, melhora os preços, a participação no mercado o ROI. Adicionalmente, a qualidade percebida foi classificada como o mais alto ponto de vantagem competitiva numa pesquisa de gerentes de unidades de negócio. (Ibid., 1991, p. 287)

Aacker se refere ao PIMS (Plant Information Management Systems) que são

sistemas/softwares de big-data alimentados com informações. Eles associam dados por

variáveis determinadas para extrair uma classificação ou mensuração. “[...] inclui informações

sobre dúzias de variáveis, tais como ROI (Retorno sobre Investimento), qualidade percebida,

participação no mercado e preço relativo [...]. (Ibid., 1998; p. 91). Estas plataformas que

compõe o big-data da empresa, de certa forma representam o extrato da experiência

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fenomenológica da marca em um mercado. Informam o que o objeto difuso produz de efeito e

pode ser averiguado pela avaliação geral da performance. São as fontes de confirmação do valor

objetivo. Já a qualidade que envolve a empresa, aos olhos da teoria, se relaciona com os métodos

de gestão organizacional. Internamente deve estar efetivamente associada ao processo de

trabalho, com boa infraestrutura e condições saudáveis, em respeito as legislações. Qualidade

não é assunto novo para o mercado e perfaz a busca das empresas desde o século passado.

A socióloga Isleide Fontenelle (2002), no entanto, apresenta uma análise de que a

qualidade foi assimilada ao repertório metodológico da mercadologia no sentido de “controle”

do processo da produção, como referência ao modelo taylorista de meados do século vinte. Cita

o exemplo do método criado pelo McDonald´s, o QSL&V (Qualidade, Serviço, Limpeza e

Valor [preço])49, que constituíram os pilares do seu modelo organizacional. Este tipo de método,

internacionalizado como lei para todo o mercado, era um meio de controle para garantir a

entrega de “qualidade percebida (ou induzida)”, com a prerrogativa da marca e seu mundo

subjetivo. Basicamente, um mecanismo de controle do meio de produção e cadeia de

fornecedores.

O efeito direto da qualidade percebida versus real é o princípio de uma dualidade posterior

que permeará todas as correlações do significado e se resumem nas distinções das

“substâncias”: subjetivo e objetivo. Ao mesmo tempo, a premissa hierarquiza estas duas

substâncias, colocando uma sobreposta à outra. Parece ser o subjetivo seu princípio: os valores

que compreendem o aspecto “humanista” da marca, preocupada com o bem-estar social,

traduzido em seu discurso para o consumidor. Ou não?

O método imediatista de aumento de margem de lucro se pauta, em seu modo crítico, a

conter gastos ao limite, precarizando infraestrutura interna e valorização salarial da equipe, o

que diretamente interfere na qualidade da produção. Este caráter se revela por exemplo na

conduta de grandes empresas da atualidade. Esta dualidade está no terceiro grau do significado

e se reflete diretamente na realidade fenomenológica. Seu predicado direto é o reducionismo

do espectro da marca na configuração de sua premissa e partes do “corpo-empresa”, por

exemplo, acabam ficando de fora da conjunção primordial subjetiva.

Uma questão então é compreender a relação entre empresa e negócio que, no repertório

da teoria, se mostram como substâncias distintas. Para a visão do negócio, a empresa aparece

como meio para um fim e não originadora de um significado.

_______________ 49 FONTENELLE, I. In: ibid, 2002, p. 144.

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128

Uma relação complexa que a marca procura mediar, mas o contexto tende para fragmentações

e disjunções. Para resolver, a teoria do branding propõe que o significado varie de acordo com

quem assume o papel de objeto do “eu-marca”. Se é originariamente oca, à espera de algum

individual preencher seu volume de significado, acaba satisfazendo todos os gostos e assim

cumpre seu papel universal. Cada corpo veste a marca ao seu modo.

Observe os gráficos seguintes. Conforme varia o ponto de vista, vemos que a marca se

molda de diferentes maneiras, o que diretamente abala o caráter de lei universal pretendido pelo

branding, na visão pragmática. Tem-se por exemplo um “eu-negócio” e um “eu-empresa” com

conjunções diferentes, além do “eu-consumidor” que vimos anteriormente (p. 122).

Pelo ponto de vista do agente do negócio, proprietários, executivo estratégico, diretorias e demais cargos de governança temos:

Gráfico 15: diagrama do “eu-marca”, segundo a ótica do executivo de negócios. Fonte: autoria própria.

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Pela vista da empresa:

Gráfico 16: diagrama do “eu-marca”, segundo a ótica da empresa. Fonte: autoria própria.

Outro conceito que assume teor indutivo é a “experiência da marca”, que hoje é um tema

bastante corrente para os teóricos do branding. “Mesmo as transações mais corriqueiras podem

ser transformadas em experiências memoráveis”, dizem B. Joseph Pine e Jams H. Gilmore, da

The Experience Economy (in: WHEELER, 2012, p. 28). Trata-se primordialmente da imagem

da experiência a priori de “si” e não da imediata interação com o objeto. Uma experiência pré-

moldada que torna a realidade apenas o palco para a performance individual. A realidade serve

para a simples conformação de uma ideia preconcebida que ignora os possíveis efeitos

colaterais, já que o indivíduo está concentrado em satisfazer seus desejos.

A teoria do branding parece atribuir um viés semiótico à “experiência”, envolvendo as

“transações mais corriqueiras”. Infere a necessidade de pensar em todos os pontos de contato

de uma marca com o consumidor. Uma preocupação com o momento presente da interação. Ao

mesmo tempo, a publicidade lança a imagem da projeção, guiando a mente para o futuro. A

compra configura uma etapa da experiência, que culmina na individualidade do uso.

Experiência do cliente. [...] A equipe de gestão de marca precisa enxergar além das pranchetas e vero mundo pelos olhos do consumidor. Comprar tornou-se uma atitude a ser assumida e festejada. O próximo terremoto disciplinar no mundo da gestão da marca é a experiência do consumidor: construir fidelidade e relações duradouras em cada ponto de contato. (WHEELER, 2012, p. 28)

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130

Então, a que se refere a tal experiência da marca? Entende-se a do consumidor, que

envolve a abdução dos signos da publicidade, a compra e uso do produto. Este conceito

inaugurou uma vertiginosa ascensão de projetos de arquitetura, vitrinismo, design de interiores,

comunicação visual-ambiental, na trilha da loja como os “novos templos” da sociedade de

consumo. Também as mais inovadoras técnicas de contato digital. A “experiência da marca”

fomentou o desenvolvimento e geração de novos conhecimentos com a “estratégia sinestésica”,

ou seja, persuadir o consumidor explorando todos os sinais possíveis, envolvendo a percepção

como um todo: sons, aromas, layout da loja até, em alguns casos como as grandes redes de

varejo, torná-las núcleos de confraternização e entretenimento social.

Da necessidade contínua de monitorar a performance, controlar a qualidade da marca e

induzir experiências, subentende-se o propósito de averiguar a atuação de um existente que, à

sua maneira, causa algum efeito na realidade. Nota-se que o consumidor não vive de fato a

experiência da marca, mas aquela de si mesmo. Não se trata evidentemente da performance de

sua vida particular com a preocupação, por exemplo, se com o uso do produto, o sujeito

consegue de fato conquistar o pretendido, considerando o todo da promessa da imagem. Pelo

contrário, admite-se indiretamente que a marca é uma conjunção que compreende a empresa e

seu ecossistema: a partir do negócio, passando pela produção até a venda e relacionamento pós-

venda. Na visão aqui sugerida, a experiência da marca seria aquela relativa aos indivíduos que

fazem parte do coletivo-empresa. Estes sim, vivenciam-na diretamente, de forma integral:

mente-corpo, cotidianamente. Aí se aplica a experiência de si mesmo enquanto trabalhador, já

que supostamente ele compõe o “interno”, tornando factível a ideia da experiência pragmática.

Enfim, com esta hipótese, vem uma constatação geral sobre a teoria do branding que, em

seu desenvolvimento teórico, acaba denotando sua real natureza: marca é um recurso

financeiro-metodológico-estratégico. É o que de fato parece constituir o teor geral da disciplina.

Ou seja, em outras palavras a empresa pode ter ou não ter uma marca. Se antes era símbolo,

volta a ser signo, o que automaticamente contradiz a premissa geral, da marca imaterial do

consumidor. Ressalta-se que, pela via deste estudo, não mais se separam empresa, o conjunto

de signos e a marca. Não cabe também determinar uma decisão: ter ou não ter uma marca.

De maneira geral, sintetiza-se a constatação da pesquisa sobre a natureza da marca no

contemporâneo, referenciando o gráfico do diálogo dos mapas-base de estudo. Não se pode

afirmar que a marca participa de uma interação real com seus intérpretes, no sentido semiótico-

pragmático da mútua construção de sentidos. Denota-se um fluxo unilateral, em que a marca

assume o papel de orientadora da conduta e dos modos de pensar por um propósito. Pensar em

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131

diálogo da marca parece uma visão romantizada e idealista, em comparação com sua real

condição, buscando ocupar o papel exclusivo de um monólogo.

Chegamos então à hipótese central da pesquisa que tem sido o campo de análise dos

últimos anos. Para prosseguir, é preciso compreender a “qualidade” pelo conceito pragmático.

Refere-se ao qualissignos, ícones e sinais abduzidos da primeiridade fenomênica. Estas

qualidades ativam nossos sensores e pensamento, aparecendo à mente como objeto focal da

atenção ou de forma colateral e difusa, assim como percebemos naturalmente o externo. Como

braço da ciência normativa, a Estética orienta o trabalho da investigação para a ampliação do

exercício sensitivo imediato da realidade com um olhar despretensioso e entrega corporal ao

momento da percepção. Mesmo que inevitável, a rápida iniciativa de significar e prejulgar o

que é percebido pela indução, deve ser suspensa ou refreada. O exercício fenomenológico

convida a suspender o julgamento porque há na consciência o caráter primeiro que lembra,

antes de qualquer definição, que o objeto é o que é, existente, livre de qualquer valoração,

surgindo como processo espaçotemporal e consensual de constituição do significado. Peirce

deixa claro em seu texto o fundamento estético:

Partindo de minha doutrina das categorias, parece-me que um objeto, para ser esteticamente bom, possuirá uma multiplicidade de partes todas organizadas de maneira a produzir uma qualidade positiva imediata e simples; além do mais, não importa a natureza dessa qualidade; pode ser que nos enjoe, assuste, ou que nos incomode de qualquer outra maneira a ponto de roubar o gozo estético [...] – mesmo nesse caso o objeto permanece estético, embora as pessoas se achem incapacitadas para contemplá-lo calmamente. (C.P., p. 6)50

A Estética então é essencialmente correlata com a primeiridade fenomenológica dos

qualissignos, ou ícones. Em qualquer circunstância, a mente está operando em contato e fluxo

com o mundo exterior e dele estamos absorvendo qualidades que nos geram sensações

particulares, sejam elas de espanto ou conformidade. Mesmo o que é habitual manifesta uma

sensação que é extrato da percepção do externo.

Há, contudo, uma sua face interior que é dada pelos fenômenos que ele denomina qualidades de sentimento (quality of feelings). Elas aparecem fenomenologicamente em infinita multiplicidade, como as cores, os odores, os sons etc., enfim como qualissignos que tomam uma consciência e a constituem. [...] tais qualidades de sentimento se correspondem com qualidades que estão nos fenômenos, e que constituem contínuos reais de qualidades. (IBRI, 2018; p. 12)51

_______________ 50 C.P., Lectur V, 130. In: PEIRCE, C. Pensadores. Escritos Coligidos. São Paulo: Nova Cultural, 1989. 4 ed. p. 6.

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Qualidade, portanto, constitui um grau do significado fundamental. Envolve o senso

ampliado do espectro da marca e da necessidade de sua reconstituição pragmática, partindo da

dúvida gerada pela fenomenologia com a abdução das qualidades estéticas do cotidiano do

desenvolvimento das marcas. Então para constituir o “eu-marca” vamos nos basear no sentido

de qualidade para a filosofia de Peirce que compreende a origem do processo da cognição e tem

direta conexão com a existência objetiva. Propõe-se, pela hipótese levantada, que ao invés de

qualidade percebida, se denominasse qualidade real/objetiva como termo mais adequado para

conjunção pragmática.

Na reconstituição do “eu-marca”, chega-se à dedução de que o objeto da marca é o

conjunto, coletivo de pessoas que assume o lugar da origem e, também, a responsabilidade real

por todos as consequências das ideias que gera. Afinal, nesta conjunção, a marca corresponde

à mente-pensante, sua generalidade e a empresa em seu ecossistema, o organismo e corpo. O

interno envolve uma complexa rede e signos que constituem a mediação entre a ideia original

e a realidade que, efetivamente, chega ao mundo pelas mentes e mãos do coletivo de

funcionários. Mas ao mesmo tempo, refuta-se um reacionismo, aceitando aquele significado de

segundo grau que, na teoria do design dos anos cinquenta, definia a marca como signo, sinal ou

registro de propriedade/origem.

Partindo do “corpo-coletivo” e seu ecossistema como origem, ou seja, objeto, a

experiência profissional passou a ser parâmetro a hipótese. Abriu-se a possibilidade para

ressignificação da marca considerando que o símbolo é resultado da integração e participação

coletiva de mentes e corpos, todos unidos por uma conexão simbólica. Juntos, além de buscar

o bem-estar do consumidor, visam também a evolução individual.

A marca então se tornaria o ponto de conexão simbólica entre os diferentes extratos deste

corpo em rede, mas opera como um sistema integrado que possui pontos nodais e capilaridades.

No entanto, não possui uma parte mais importante que outra, já que todas elas são

interdependentes. Não mais hierarquia, ordem e controle, mas organização, fluxos e vivência,

aprendizagem e evolução conjunta. Como a concepção de um corpo, orgânico e integrado. Para

finalizar, como referência para o intento de reconstituir o “eu-marca” pela ótica pragmática,

temos então o seguinte mapa:

_______________ 51 IBRI, Ivo. A dupla face dos hábitos – tempo e não-tempo na experiência pragmática. São Paulo, 2018, p.12. Referência extraída do original:

“Esse ensaio é uma versão traduzida do original Ibri, Ivo A. - The Double Face of Habits - Time and Timeless in Pragmatic Experience. Rivista di Storia della Filosofia, Milano, Italia, nº 3, 2017, pp. 455-474.”

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Gráfico 17: diagrama do “eu-marca”, dimensão do objeto. Fonte: autoria própria.

Na reconstituição do eu-marca pela via pragmática com o mapa triádico, partindo da

abdução fenomênica, o objeto foi identificado e configurou a hipótese da primeiridade da

marca. Abriu o caminho para o exercício de integrar 1 > 2 > 3.

A hipótese então é de que falta o vetor Ética (sentido pragmático), na composição teórica

do branding. A evidência base, de acordo com a delimitação da pesquisa é a desconsideração

real da amplitude de intérpretes que a marca interage na definição das premissas essenciais da

identidade da marca imaterial e, como resultado, a não consideração do todo das consequências

de suas ações. Na teoria do branding, como nos mapas de Aline Wheeler, a dimensão integral

da marca é representada, mas de fato, no cotidiano, as coisas eram diferentes. Do contraste entre

conceito e realidade, emerge então a hipótese de reconstituição da segundidade, a partir do

mapa pragmático, que indica o objeto da marca como o coletivo-empresa, ou núcleo gerador.

Na segundidade da marca, então, a lógica deduz que constituem esta dimensão todos os

signos necessários para que esse corpo-coletivo possa tornar real aquilo que pensa. Por esta via,

constitui-se um espectro complexo que não é controlável, mas organizável. Nele estão incluídas

todas as mediações “internas” necessárias para sua existência e comunicação do núcleo

originador com o meio exterior: um nome-logotipo, sistema de signos, linguagem e discurso,

infraestrutura, tecnologia, sistemas, métodos, processos, fluxos, modelo organizacional, áreas

internas, produção, logística e demais componentes, de acordo com a marca-empresa.

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[...], em vez de falar de identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso exterior [...]. (HALL, 1992; p. 24)

Deste conjunto múltiplo de signos, considerando uma participação ativa e interação do

corpo-coletivo no processo, vem a hipótese se seria possível buscar um caminho contínuo de

identificação, como sugere o sociólogo Stuart Hall (1932-1914), em que a potência interna deste

coletivo seria naturalmente revelada, conforme a soma das potências individuais. Os signos

representativos poderiam ser convertidos em “aprendizado em processo”, mudando conforme

a experiência e evolução da marca (eu-coletivo). Assim como um corpo, orgânico, evolutivo,

com a revelação contínua da real potência da ideia geral da marca como resultado de um

conjunto, que se torna também uma plataforma para evolução de cada indivíduo participante.

É a hipótese da marca formada pela potência expansiva a partir de sua integração e interação

fenomenológica no mercado. Remete a concepção de conjunção ou associação de diferentes,

organizados logicamente como o organismo.

Esta hipótese tem sido um tema bastante profundo da pesquisa, que está em pleno

andamento. Não há conclusões nem métodos, mas possibilidades de experiências de uma nova

abordagem da identificação da marca: ao mesmo tempo que considera o outro e aprende com

ele, devolve sua singularidade que, na hipótese, é caracterizada pelo seu empenho no bem

comum. É mutante, mas tem seus traços singulares e na interação com seus intérpretes, vai

evoluindo em conjunto. Vai se significando, conforme vai vivendo.

Como temos visto, a ideia não é negar a subjetividade, mas conjugar estes atributos pela

coerência pragmática. O cerne da questão da identidade aqui apresentada fornece as bases para

a hipótese da última dimensão do “eu-marca” e talvez a que revela a inflexão mais crítica, que

envolve compreender o propósito existencial.

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Gráfico 18: diagrama do “eu-marca”, dimensão do objeto + signo. Fonte: autoria própria.

Chegamos então na terceira dimensão da constituição pragmática do “eu-marca”, que

compreende sua terceiridade. Na reconstituição pragmática até agora identificamos o objeto-

coletivo, o corpo-organismo-coletivo, também, sua segundidade, o vasto, incontrolável e

organizável repertório de signos que formam o conjunto da linguagem consigo mesma e o

mundo. Não só nome-logotipo, mas também todo o fluxo interno do ecossistema de uma

empresa-marca em operação. Corresponde ao organismo em identificação contínua.

Agora falta constituir a dimensão da mente deste “ser-cognoscente-cognoscível”. Na

teoria de Peirce, a terceiridade congrega conceitos que temos visto até aqui: o significado,

símbolo, lei, regra, teoria, valor, raciocínio indutivo, hábitos, interpretação, argumento além de

vetores como a faculdade de pensamento quantitativo, a generalização e síntese. No caminho

pragmático, pegamos o sentido 1 > 2 > 3, contrário à teoria do branding que naturalmente infere

3 > 2 > 1. Então enquanto vamos para o fim, é ao mesmo tempo um recomeço desta conjunção

contínua da cognição e existência pelo processo: abdução > dedução > indução / indução >

dedução > abdução, e assim sucessivamente. Da identificação emerge a consciência do “eu”

terceiro, que integra todas as dimensões anteriores para constituir uma unidade integrada.

Existência concreta, um corpo-mente integrado à forma que tem e assume a responsabilidade

ética, e não moral, pelos discursos e as consequências das ideias considerando o todo das

consequências, como as condições de trabalho de toda a rede produtiva.

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Um “ser” que acredita em suas concepções e sabe que tem o poder de induzir pessoas,

e não números a adquirirem um hábito positivo, e não negativo. Que também traz um propósito

social, conjugado com a potência individual. A hipótese é que marca parte de uma ideia, que

nasce de um indivíduo ou grupo e só se torna real quando se configura como corpo-coletivo.

Conjugado, tem significado, assume signos diversos e começa a interagir e evoluir. Temos

então a constituição 1 > 2 >3; 3 > 2 > 1 como processo-origem.

Uma ideia como uma marca não surge por indução, mas representa a consolidação em

significado de uma abdução do mundo por um indivíduo ou grupo que gerou uma necessidade

de superação. Depararam-se com uma dúvida real que os levaram à um trabalho mental

associativo e dedutivo combinados com o sensitivo que, por fim, geraram uma ideia, hipótese

ou possibilidade. Essa ideia então se entende como o negócio, ou, como se propõe neste estudo,

a marca. Mas até se configurar, este grupo originador experimentou a própria ideia com grupos

de intérpretes e com resultados positivos lançou a hipótese de que a marca é promissora,

podendo evoluir para a continuidade de uma operação e ação mercadológica. Ou seja, a

realidade é a origem da ideia de um negócio-empresa-marca.

A condição inevitável da origem que faz parte da natureza da marca, é que ela surge

como ideia na mente de um indivíduo ou pequeno grupo, que começa a agir, produzir e criar a

si mesmo como signo enquanto visa crescer, expandir seu corpo organizacional evoluindo

cognitivamente e servindo como positiva plataforma de aquisição de lucros. Esta é uma

condição básica e natural do ecossistema do mercado.

A proposta seria compreender que, o que surge na mente de um empreendedor não é um

negócio, mas uma proto-marca, ou uma marca ainda sem nome. O negócio, em si, representa

um dos componentes existenciais necessários para a operação da marca, assim como a empresa.

A hipótese é que o negócio enquanto ideia, seja substituído por marca, o que não altera o fato

de que seu valor é nulo. Quanto vale uma ideia? Nesta concepção: zero. Ela é puro pensamento

e, portanto, não existe no mundo fenomênico. A ideia dentro da cabeça é “nada” para o meio

externo, porque não veio ao mundo por nenhum signo e não comunicou ou permitiu a percepção

de sua existência. Enfim, o que o mapa revela como possibilidade de uma abordagem diferente

para pensar a marca é que sua natureza essencial parece ser o coletivo. Tanto do ponto de vista

do “eu-marca” quanto do “eu-sociedade”.

O “corpo-organismo-coletivo” é em si virtual e real. Não assume um corpo efetivamente,

mas um conjunto deles. Não só corpos, mas conjuga também organismos e mentes. A

experiência fenomenológica direta e imediata deste “eu-marca” que infere sua potência

simbólica corresponde a conjunção e não disjunção. Quando mais junto, mais potência

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simbólica. Ou seja, o significado surgindo da integração deste corpo-signo-mente, não mais

dividido em substâncias, mas em pessoas que pensam e agem juntos por propósitos comuns.

Da hierarquia, ordem e disjunção, a hipótese aponta para a evolução, organização e conjunção

ou integração. Um caminho de pensamento que tem se mostrado não apenas diferente, como

também uma abertura para outra realidade possível. O que muda pensar a marca como corpo-

coletivo; organismo; pensante? Um tema para o futuro.

A proposta é substituir a três possibilidade de significação postuladas pela teoria do branding por uma matriz.

Gráfico 19: Fonte: autoria própria.

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Gráfico 20: sugestão da constituição pragmática do “eu-marca”. Fonte: autoria própria.

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4.

Marcas e possibilidades

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4.1 Experiência, Ética e Lógica: Rumo à integração da marca em um universo de possibilidades.

Desde o surgimento da pesquisa (2009), notei que tive grande dificuldade de transmitir o

que queria dizer sobre o problema da marca, tanto em uma conversa informal com colegas de pesquisa ou trabalho quanto em texto. Sem contar que durante vinte anos pensando imagens, lidar com palavras, torna-se um desafio à parte. E a dificuldade continua até hoje, porém assumindo outras formas, conforme os estudos avançam. Do intento original deste ensaio, provavelmente devo ter deixado mais dúvidas que respostas, o que não deixa de ser um retrato do contexto em que a investigação se encontra.

Apesar de a filosofia de Peirce contribuir essencialmente para a organização do raciocínio investigativo e o pensamento sobre as questões particulares da vida, lidar com a dúvida vejo que é em grande parte indescritível. Está vinculada com a imediata experiência, ainda sem nomes ou signos que a tornem inteligível. A dificuldade de expressão, em si, entendo ser um reflexo da confusão sobre o significado da marca e a percepção direta da contradição entre imagens, palavras e atitudes.

O que posso descrever, conforme a análise de contexto se ampliou, chegando ao senso da influência global e vital das marcas no contemporâneo, é que o estado da dúvida sobre a realidade da teoria do branding se parece com a metáfora visual de um emaranhado de fios ou cabos, cheios de nós e inflexões que tornam muito difícil organizar um mapa lógico de suas conexões, a compreensão do fluxos e a identificação da origem deste grande sistema. A dúvida nos coloca enrolado neste emaranhado, mas pouco a pouco, com a ampliação dos estudos, vai deixando de ser confusão para ser rede.

Este trabalho então é basicamente uma tentativa de registrar o conjunto de quality of feelings que foram reunidos durante o percurso. Representa o início de uma jornada ao contínuo da experiência sem pretensão de, determinadamente, buscar a instituição da lei, mas propor pensar a marca como um processo. Significação ou identificação infere movimento, fluxo, interação, associação, coparticipação, particularização, coletivização, conjunção, contextualização e ética. A proposta é repensar a marca como algo mutante, uma personalidade viva e real. Ao mesmo tempo, partir da hipótese de uma terceiridade integralizada pela coerência lógica, que surge do trabalho colaborativo de diferentes visões e opiniões sobre o tema. O fato é que, independentemente do resultado, a pesquisa revelou uma possibilidade de pensar, comunicar e fazer coisas de outro jeito. Incentivou a hipótese de uma superação real de contradições elementares, que afligem tantos participantes do sistema do mercado.

Com o suporte da filosofia integradora de Peirce, que envolve o método pragmático, notei que sua principal contribuição para o raciocínio não é trazer as respostas universais, mas

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contribuir para lidar com as dúvidas reais. Suas ideias representaram um convite para uma entrega ontológica à complexidade, incentivando a pensar o mundo com o indeterminismo, origem de nossas aflições e também criações. Complexo é pensar um objeto integrado no contexto que nos leva à contínua necessidade de ampliação e abertura da mente para o “alter”. Este que deixa sempre algo no ar, não respondido, muitas vezes conflitante, porém sempre vital para a possibilidade do “eu”.

Em geral, entendo o sistema filosófico de Peirce como a “teoria da conjunção, integração”. Este é um caráter essencial para a continuidade da pesquisa, associando suas críticas ao racionalismo cartesiano e nominalismo com o repertório do branding, por exemplo. No método lógico binário tende-se à disjunção, separando as partes do objeto de pesquisa e encaixando-as em classificações gerais. A partir da indução primeira, ajusta-se dedutivamente para que, cada uma delas, corresponda à causalidade inquestionável. Desta forma, quanto mais separação, segmentação e fragmentação, mais a causa se fortalece de um exército de individuais, ilhas existenciais, em que a visão do coletivo está na mente de quem tem o poder da razão, primeira e determinada.

Aos indivíduos que, inevitavelmente, vão perdendo o senso de amplitude da realidade, a verdade vai sendo aceita e conformada de acordo com a autoridade e resignação a quem tem propriedade do símbolo, discurso e da imagem. Enquanto isso, cada vez mais vai se perdendo a capacidade do pensamento crítico, abrindo espaço para o entusiasmo causado pela promessa do símbolo (marca) de um futuro melhor, para cada indivíduo-ilha. Um ser propenso a determinar que o ego é a origem da certeza de um “eu futuro” que, por mérito na aplicação dos meios para os fins, sejam eles quais forem, consegue vencer a grande concorrência pela vida ideal.

Disjuntar é o método da simplificação de um problema para fazer confirmar a causa. Já o complexo, ao contrário do que costumeiramente se diz no ecossistema do branding, está mais para juntar as partes que ficam dispersas e ocultas. É olhar a realidade para compreender o tamanho das associações e possível abrangência dos efeitos de nossas ações no mundo. É também pensar na ética não como princípio moral, mas pura realidade, orientadora de uma conduta coerente. Complexa é a conjunção, juntar a mente-corpo que vem sendo separada à força pelos ativos financeiros. Também integrar o “eu” no mundo para que se dê conta de que não é uma ilha e a realidade, um palco para a performance. Um percurso que prescinde fundamentalmente de autocrítica. Pense agora nesse “eu” como a marca e não um indivíduo-ilha.

No caminho da conjunção, por exemplo, vem o senso da importância das marcas no contemporâneo e a hipótese de que hoje não se dimensiona sua real importância e influência na sociedade contemporânea, em nível global. Parece que o objeto difuso faz da marca um tema

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fadado ao entretenimento, à fantasia e à incrível potência de emancipação dos símbolos. Mas a conjunção e a ética, por exemplo, ajudam a compreender que a emancipação é um argumento incoerente, porque ideias não existem sem corpos que as façam reais. Mesmo os termos mais amplos de significado como democracia, equidade, liberdade ou fé não são independentes do coletivo existencial que lhes dê sentido. Se é consenso que o símbolo tem poder sobre o pensamento, é porque se admite a potência do pensamento, ou seja, “seres-organismos-mentes” que em conjunto participam da realidade e da significação.

A proposta de conjunção pela perspectiva aqui apresentada é ligar o símbolo com pessoas. Porque senão elas podem virar números ou pior, uma res extensa, pura corporeidade da qual o que interessa é extrair a produtividade do excedente, como se fossem análogas às máquinas ou apenas coisas como dados (pixels) de um big-data. Não é manter um mundo como esse que move o intento da pesquisa.

Ademais, essas figuras não possuem vida própria e não tem ação real, trata-se de um mito que não está sujeito a críticas como um porta-voz inevitavelmente estaria. (PEREZ, 2002, p. 127)

Ao contrário da isenção, como postulam os teóricos do branding, o propósito geral é

chamar a responsabilidade para “si”, falando como parte do coletivo de pesquisadores, teóricos, profissionais e demais agentes essenciais para a manutenção do sistema e da lógica das marcas. Chamar para uma discussão sobre sua evolução e potência de transformação. Propor que a marca agora passe a ter realmente um “porta-voz” que assume a integral responsabilidade pelo todo das consequências.

Para este intento, não mais se partiria das justificativas de que o consumidor é que motiva tal realidade, atribuindo-lhe também a responsabilidade pelas consequências do consumo desenfreado e a determinação da causa maior, inquestionável e autônoma do valor dos ativos financeiros. Muito menos a concorrência, como lei natural da competição da vida e evolução das espécies. Aliás, com as hipóteses, este que é um pilar fulcral da lógica do mercado começa a perder sentido, quanto mais se percebe que mais que concorrência, o mundo está mais para convivência. Mais que disjunção, a exuberância da Natureza e do Cosmo é um sinal de pura espontaneidade e diversidade, que denota que quanto mais conjunção, mais vida.

Destas hipóteses, muitos campos de pesquisa vão se abrindo, além daquele que menciona Descartes e o nominalismo com a crítica de Peirce ao método científico binário. Outro é o que envolve as leis gerais do sistema capitalista, em um universo tão denso e crítico quanto o primeiro, porque envolve as tais invariáveis que a socióloga Isleide Fontenelle cita em seus textos, com apoio de outros pensadores como o filósofo e geógrafo britânico David Harvey (1935-). Não cabe nem citar algum andamento neste tema, porque é apenas uma hipótese que

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surgiu durante o estudo e apontou uma direção muito interessante a partir da seguinte constatação. Considerando o plano geral do contexto da teoria do branding, viu-se que o problema da “inflexão da marca” está na dualidade da ocupação do espaço simbólico entre o valor subjetivo e objetivo.

Mas o que parece é que o “subjetivo” da marca, representado na imagem e discursos com o tempo é subjugado pelo “objetivo” do ativo financeiro que se torna tão virtual quanto o objeto. Um dinheiro que não se vê materialmente, mas traduzido em signos de conquista e de status individual. Torna a marca signo, meio para um fim, pulverizando a subjetividade dos discursos de missão, valores e princípios éticos. Faz do consumidor número e da amizade uma relação monologa de autoridade. Mas nota-se que muitas das essências da natureza da marca lhe são inevitáveis. Se o branding faz da marca signo, contradizendo sua própria premissa, ao mesmo tempo, seu conjunto teórico é signo de um superior. Há uma hierarquia que o “discurso universal” da marca deve seguir, já que é subordinada às leis o sistema capitalista.

Surge então a hipótese que tem se revelado polêmica e, ao mesmo tempo, chave para a possibilidade de um mundo diferente, considerando um movimento de transformação coletiva. A questão é: seriam as incoerências lógicas da teoria do branding, reflexo de um problema ainda maior: as leis do capitalismo? Em outras palavras, se é possível superar a dualidade da teoria do branding com apoio do método pragmático, seria também possível superar alguma possível incoerência lógica das premissas mais essenciais do capitalismo, as grandes verdades imutáveis, considerando que também podem estar moldadas por uma binaridade elementar (subjetivo/objetivo)? Desta forma, estão passíveis de uma contradição, consenso e superação? Que impacto tem esta hipótese?

Bem, o fato é que o estudo da marca com o apoio do pragmatismo revelou um universo de possibilidades e, também, concordâncias com muitos aspectos de proposições elementares da teoria do branding. Por exemplo, entende-se que é uma ciência prática em expansão e, como teóricos indicam, tem real potencial para centralizar o racional lógico do mercado. Foi tão necessário seu surgimento, quanto sua evolução para que realmente hoje possa fazer parte dos temas de estudo do universo stricto-sensu.

Também corretamente, aos olhos desta pesquisa, posicionou a marca como símbolo, porque de fato a experiência fenomenológica da primeiridade comprova sua terceiridade. O problema está na diferença de abordagem teórico-científica para o termo “símbolo” que, nas ciências do mercado, é geralmente associado binariamente com o signo. Com o pragmatismo, surge o objeto, primeiro e independente de nossas vontades. E o objeto muda tudo, porque traz desafios que não são comuns ao pensamento dialógico de um profissional das marcas, por exemplo.

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Aliás, o que dá repensar a marca considerando a lei do acaso, o falibilismo e o contínuo da realidade como origem? No mínimo uma ótima experiência para a vida, mais que marcas. O ponto é que para superar as dualidades, passa a ser necessário juntar ideias, linguagem e pessoas. Por exemplo, o dilema individual/coletivo que aflige os proprietários dos negócios e é um dos vetores mais importantes que este estudo apontou para a superação dos problemas teóricos da marca vem à tona junto com a constituição do “eu-marca”.

Ao reconstituí-la com apoio dos mapas, surgiu esse “eu-coletivo” que forma uma unidade sem limites demarcados, e não um “eu-indivíduo-ilha” resumido em um manual de identidade.

A marca surgiu como coletivo. O senso é que até o dono da padaria depende do padeiro, do caixa, do cortador de embutidos, do pessoal da limpeza, do entregador delivery e qualquer um que participe de sua empreitada. Assim como uma megacompanhia precisa, além de seus muitos funcionários, também de fornecedores, que formam redes altamente complexas e mutualmente evolutivas. Mesmo se considerar um profissional free-lancer, modo de trabalho cada vez mais comum no capitalismo do imaterial, ele depende de muitos outros para tornar real aquilo que tem para oferecer. Por exemplo para um designer, a companhia de softwares, hardware, a fornecedora de sinal internet, a fábrica de papel e até os agricultores de café que fornecem os insumos originários para a paradinha no meio do expediente e aquela dose de calma em forma de líquido preto. Tudo nessa realidade parece ser fruto do coletivo, inclusive o indivíduo.

A superação da dualidade indivíduo-coletivo é primordial para repensar as marcas no contemporâneo, o que em nada tem relação com negar a propriedade, o lucro, o ganho individual, o mérito pelo trabalho empenhado e a satisfação da concordância dos resultados. A intenção aqui é muito simples. Está somente em tentar encontrar a coerência destas partes que forma o todo do conjunto simbólico, a partir da matriz triádica.

Se a hipótese aponta que a marca é um coletivo, no entanto, muita coisa muda e conceitos que antes tendiam para individualidades, passam a conjugar coletividades. A organização pragmática então ajuda a olhar para a realidade e combinar o símbolo com o propósito. Talvez a grande hipótese que é extraída da análise aqui apresentada é não mais começar a pensar sobre a marca a partir da ideia do valor, mas sim deste senso do coletivo-origem. Qual a natureza de uma marca? O que o estudo indica é sua natural dedicação à evolução da sociedade, e não exclusivamente para o indivíduo que consome, o trabalhador que recebe o salário e o proprietário do negócio, por exemplo, como particulares desassociados simbolicamente.

Se há um conflito eminente, porque então não buscar simplesmente arrumar a lógica, trocando a indução por organização, coparticipação e abdução? Em outras palavras, por que não procurar agir realmente como a marca se apresenta na imagem e no discurso? A marca pode

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ser entendida como um coletivo e ponto-nodal de uma rede de saberes, signos e fazeres, que em suma são a conjunção de potências individuais unidas por propósitos comuns.

Ao vislumbrar no mapa uma primeiridade de corpos ungidos orbitalmente por uma ideia, inúmeras leis universais da marca e do mercado começaram a ruir. Concorrência, divergência, posicionamento, qualidade percebida, valor entre tantas outras uma a uma. Não significa suas refutações absolutas, mas uma ressignificação, integrando-as no processo. Entre os muitos extratos deste mapa do “eu-marca”, alguns vale destacar. A hierarquia vertical se dissipa, e o corpo passa a ser entendido como organismo, rede, sistema, rizoma, como pontos-nodais ou centros. Não significa também horizontalizar, moldando uma geometria cartesiana para o diagrama da marca. Uma equidade idealista, linear e absoluta. A ideia é pensar que a “bola-marca” é, assim, como a Terra, composta de um fluído, coisas que se misturam e que por mais que particularmente possa parecer caótico seu “mundo interno”, tem uma lógica constitutiva que organiza sua natureza e molda sua conduta. Simultaneamente, o pragmatismo orienta esse “ser” a observar o mapa amplificado da inserção contextual de si (como marca) no contemporâneo, integrando-se com a realidade do acaso.

Nesta visão, não se aplicaria mais a lógica da hierarquia, mas talvez da “aproximação gradual” de cada indivíduo do grupo na visão integrada da marca, o que remete a ideia de aprendizado e evolução pessoal. Ou seja, a marca como plataforma de conjunção e potencialização indivíduo-coletivo e continuidade do processo expansível de aprendizado da vida.

A marca como ecossistema de aprendizado abre uma miríade de possibilidades. Entre elas considerar que deveria ser um espaço para troca de saberes e apoio à conjunção mente-corpo. Ou seja, não se desassociam mais o executivo estratégico do operário, porque ambos pensam e agem. Também significa abrir o espaço para a autocrítica, ou seja, incentivo do pensamento deste conjunto, em igual importância na constituição do significado, que por nossa via representa a síntese de todo o repertório da marca (negócio, empresa e marca). Não significa que o operário começa a pensar em design de logo, mas é convidado a ampliar sua visão do contexto, cada vez mais, entendendo sua importância no processo e capacidade criativa e crítica para pensar sobre seu trabalho neste conjunto, buscando uma evolução natural tanto de si como trabalhador quanto do que tem à oferecer aos outros. E da noção do conjunto vem a ideia de que quanto mais a potência individual é incentivada a se aflorar, mais potência o conjunto tem. Como vimos pela ótica pragmática, quanto mais opiniões diferentes sobre um objeto, mais coerência. E se o objeto é o “eu-coletivo-marca”? Supõe-se “pensar integrado”, como um fator essencial do conjunto.

Chega-se em outro ponto nevrálgico que abre outra possibilidade de estudo para o futuro. Entender a natureza lógica do trabalho. De outra forma, qual seu propósito? O que o estudo

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aponta é que ao invés do entendimento comum, de que o trabalho é o inevitável meio para o mérito pessoal na vida, que por sua vez assume a forma da possível conquista da riqueza material, é de fato o que menciono como a descoberta da “potência individual”. O que somos capazes de fazer, com prazer e gosto, não para nós, mas para os outros? Como dito antes, o médico não estuda para se automedicar. Esta parece ser a natureza do trabalho, servir os outros.

Ou seja, cada indivíduo evolui com a possibilidade de revelar suas potências, ampliá-las, descobrir outros saberes e até mudar de área de atuação. Há muitos executivos que são músicos, designers que querem entender de finanças e operário que gosta de filosofia. Ou seja, tem muita potência que às vezes é dissipada ou minimizada pelo determinismo de causas maiores, superespecialização como meta ou necessidade de um salário para sobreviver.

A marca poderia desempenhar esse papel de “ponto de evolução de saberes e fazeres”, assim como pretendem Kotler e de De Bes (2011) com o conceito da inovação. Mas que ao invés de seguir o modo indutivo, seria pela conjunção abdutiva do “eu-marca”. Inovar seria permitir para um trabalhador, a participação no pensamento crítico sobre a organização e o contexto. Assim, a significação seria o resultado do processo dessa conjunção orgânica, que hoje se conhece como “empresa”.

Abrir espaço no mercado para a convivência ao invés da concorrência significaria que quanto mais uma boa ideia se expande mais potência adquire, porque se abre para muitas mais possibilidades, outras mentes pensando ao seu próprio modo o mesmo problema. Juntos vão ampliando a rede de associações possíveis, assim como é na ciência. Por exemplo, quanto vale a lei da gravidade? É complicado tarifar ideia. Conhecimento nasceu para ser livre.

Mas e a questão do valor e propriedade? Como havíamos dito antes, não se busca refutar a teoria do valor nem a necessidade do lucro. Mas sem dúvida que começar a pensar a marca considerando que o valor de uma ideia é zero, vai de encontro com a grande-premissa. Mas então como repensar a lógica do valor? Bem, por que não a partir da conjunção? Ou seja, da própria interação da marca no contexto em concordância com os propósitos, meios e consequências. O que deixa potencialmente de ser símbolo é o valor “em dinheiro” que, este sim, assume o papel de signo; estando na mediação entre evolução do “eu-coletivo-marca” e o “coletivo-sociedade”. Portanto deve ter coerência com o símbolo.

No entanto, o originador de uma ideia poderia sim ganhar direitos de uso de sua matriz, cedendo royalties à um outro núcleo-empreendedor que simpatiza dos mesmos princípios e criações. Quanto mais trocarem saberes mais todos evoluem, porque em si, por mais que tenham semelhanças serão sempre diferentes. Não mais um mercado de cópias, mas redes coletivas de “nós-marcas”. O autor original da ideia de proprietário passaria a ser um “protetor”. Poderia ganhar pequenas porcentagens pela disseminação das ideias logicamente estipuladas. Assim, quanto mais expansão e transformação da própria ideia, mais retorno. Tudo baseado pela real

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conjunção do “eu-marca”. Entende-se, com referências nestes exemplos a visão possível de uma ressignificação geral de todos os conceitos associados às marcas.

Enfim, este trabalho reúne hipóteses que foram surgindo apenas dos exercícios dos mapas. Como intento geral, pretende-se abrir um novo “sentir” para as marcas neste contemporâneo. Se são o centro das causalidades, por que não fazer delas o meio de superação e mudança para uma outra realidade possível? Não baseado mais na imagem in futuro, mas na experiência do presente. Desta forma, o pragmatismo além de ter aberto novos caminhos para pensar o contexto contemporâneo, também contribui para constituir, em coletivo, uma nova epistemologia para o tema da marca e o branding. E assim tem caminhado esta pesquisa, com muitos diagramas em testes de conjunção do “eu-marca” no contexto (veja nas páginas finais com exemplos dos muitos diagramas até hoje desenvolvidos). A ideia é trocar os três pilares originais do branding: 1. Valor; 2. Posicionamento; e 3. Performance; por: 1. Experiência; 2. Ética; e 3. Lógica. Estes são os vetores de trabalho para a hipótese de ressignificação.

Barreiras antes rígidas e intransponíveis estão sendo rompidas. Onde vai dar não se sabe, mas a aventura tem sido real. Para concluir, uma referência às palavras do filósofo e advogado irlandês John Holloway (1947-) que explicitam os caminhos futuros da pesquisa:

Queremos criar um mundo diferente. [...] Nós negamos, mas de nossa negação cresce uma criação, um outro-fazer, uma atividade que não é determinada pelo dinheiro, que não é condicionada pelas regras do poder. [...] O método da fissura é o método da crise: queremos entender a parede não a partir de sua solidez, mas de suas fissuras; queremos entender o capitalismo não como dominação, mas a partir [...] de suas contradições, [...] e queremos entender como nós mesmos somos estas contradições. [...] Teoria crítica, ou teoria da crise, é a teoria de nossa inadequação. [...] tem surgido uma onda nos últimos anos, uma crescente percepção de que não podemos esperar pela grande revolução, de que temos que criar algo diferente aqui e agora. Estes experimentos são possivelmente os embriões de um novo mundo, os movimentos intersticiais a partir dos quais uma nova sociedade poderia crescer”. (Id., 2011, p. 7 e 15)

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Gráfico 21: mapeamento interno. Fonte: autoria própria.

Gráfico 22: mapeamento de conexões. Fonte: autoria própria.

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Gráfico 23: mapeamento de processo e fluxo. Fonte: autoria própria.

Universo de 24: mapeamento da semiose. Fonte: autoria própria.

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Me encontro com Hermana María, anciã indígena, e ela me diz: "Seguimos aprendendo e aprendendo continuamente. É parte do ciclo da vida, e logo vamos para casa...". Amastara, Etiópia, 2016.

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