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CENTRO UNIVERSITÁRIO BELAS ARTES DE SÃO PAULO Bacharelado em Artes Visuais: Pintura, Escultura e Gravura Manual civilizador para um peso sem nome Renan Marcondes Cevales São Paulo 2013 PROCEDIMENTO GERAL DE AÇÃO - Localizar a experiência contida na função. INSTRUÇÕES PARA REALIZAÇÃO

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Page 1: Manual civilizador para um peso sem nome - artigo de TCC

CENTRO UNIVERSITÁRIO BELAS ARTES DE SÃO PAULO Bacharelado em Artes Visuais: Pintura, Escultura e Gravura

Manual civilizador para um peso sem nome

Renan Marcondes Cevales

São Paulo 2013

PROCEDIMENTO GERAL DE AÇÃO

- Localizar a experiência contida na função.

INSTRUÇÕES PARA REALIZAÇÃO

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CENTRO UNIVERSITÁRIO BELAS ARTES DE SÃO PAULO Bacharelado em Artes Visuais: Pintura, Escultura e Gravura

Corpo, suor, giz, saliva. Vou virar massa logo logo.

Manual civilizador para um peso sem nome

Renan Marcondes Cevales

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Bacharelado em Artes Visuais: Pintura, Escultura e Gravura do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo como parte dos pré-requisitos para a obtenção do grau de Bacharel em Artes Visuais, sob a orientação da professora Drª. Juliana Moraes.

São Paulo 2013

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RESUMO

Manual civilizador para um peso sem nome é uma solo performance que dá sequência à pesquisa sobre contenção, comportamento e conteúdo que venho realizando no decorrer do curso. Sempre através de uma relação entre sustentação e equilíbrio, viso evidenciar o peso que os objetos possuem nas construções corporais. Dentro dessa pesquisa, o atual trabalho se constitui em uma série de funções objetivas nas quais busco a experiência corporal na relação com os seguintes objetos: tábua de madeira, giz de louza, lápis grafite, cadeira e um gaveteiro de aço.

O texto a seguir reflete sobre a minha produção, discorrendo sobre uma mudança de pensamento ocorrida entre os trabalhos anteriores e o trabalho apresentado, sobre o qual discorro no segundo capítulo. Por entender o texto como um espaço também regrado por uma estrutura, divido-o em três momentos intercalados: o texto do artigo, em formatação padrão; o texto das experiências corporais decorrentes da ação, cuja ordem é mais poética e que se situa no limite direito da folha; o texto descritivo das ações realizadas durante a performance, sempre colocado na abertura dos capítulos, dentro de uma caixa pontilhada.

Palavras-chave: Subjetividade. Peso. Contenção. Comportamento. Formatação.

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SUMÁRIO

A. Preparação do espaço [da necessidade de uma introdução] p. 5

B. Entre pesos [nova corrosão do que já se sedimentou] p. 10

[Do peso do objeto] p. 11 [Do peso do corpo] p. 15

C. Virar nada [quando o corpo se desfaz dos seus anexos] p. 19

[limite | produção] p. 20 [limite | destruição] p. 22

D. Desenho [uma possibilidade de finalização] p. 26

[de como o Manual se organiza]

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o mestre gira o globo

balança a cabeça e diz

o mundo é isso e assim

livro alunos aparelhos somem pelas janelas

nuvem de pó de giz

Paulo Leminski

Os objetos não deviam impressionar nosso tato, visto que não vivem. Servimo-nos deles, colocamo-os em seu lugar, vivemos no meio deles: são úteis, nada mais. E, a mim, os objetos tocam-me, é insuportável. Tenho medo de entrar em contato com eles, como se fossem animais vivos.

Jean-Paul Sartre

Ver a barata de Kafka encontrar os pés invertidos de Baselitz.

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A – PREPARAÇÃO DO ESPAÇO [da necessidade de uma introdução] A.1 – Carregar um gaveteiro de aço pelo espaço. A.2 – Colocar o gaveteiro próximo a um dos vértices da área de madeira situada no centro da sala. A.3 – Retirar a primeira gaveta.

A.3.1 - Levá-la até a área de madeira. A.3.2 – Derramar o giz dentro dela. A.3.3 – Recolocar a gaveta em seu lugar. A.4 – Repetir o procedimento (A.3) nas outras gavetas do gaveteiro.

INSTRUÇÕES PARA REALIZAÇÃO (bloco A)

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Ah, se fosse possível tirar a pele fora com um facão e ver o que tem por baixo, ver que cor tem essa espécie de bolor que parece ter se formado entre carne e poros! Talvez seja água o que se busca, tentar extrair líquido de um corpo em pedaços. É toda uma geografia da qual eu tenho que me desfazer, nós compreendemos que o corpo é um percurso longo, trilha em metáfora. Tudo se ausenta dele, menos a água. Reservatório fluido, que errou no percurso dado.

Manual civilizador para um peso sem nome (fig. 1) é uma solo performance1 que

reflete sobre a relação entre a execução funcional de um gesto e a experiência de um corpo. A

partir de outros tipos de relação física com objetos de escritório, estabelece um jogo de peso,

equilíbrio e sustentação. Resulta de um ano de testes e ensaios semanais, que por sua vez

partiram de uma pesquisa sobre os antigos manuais de comportamento (como Dos Deveres,

de Cícero e A civilidade pueril, de Erasmo de Rotterdam). Sua duração aproximada é de

quarenta minutos e é realizada em um espaço interno com área mínima de 6 x 6 m. Dentro

desse espaço há, centralizado, um quadrado de 2 x 2 m, composto por uma estrutura de seis

vigas de madeira cacheta de 5 x 100 x 10 cm. A área interna desse quadrado é forrada no

início da performance com dez mil gizes brancos e ao seu redor estão dispostos: uma cadeira,

um gaveteiro de aço, diversos lápis grafite e uma tábua de madeira de 150 x 30 x 5 cm. A solo

performance é estruturada em quatro momentos principais, e a relação que o corpo estabelece

com esses objetos é sempre de peso e leveza, evidenciando através do equilíbrio (ou de sua

impossibilidade) como a relação entre corpo e objeto é um processo dialético de moldagem e

resistência do corpo.

1 Nomeio o trabalho de solo performance por ele se situar entre um solo de dança e um trabalho de performance. Como exemplo de outro artista que usa essa denominação, pode-se citar Ricardo Iazzetta e seu trabalho Noiva despedaçada (2009).

Figura 1. Manual civilizador para um peso sem nome, 2013. Performance. Fotografia: Jorge Feitosa. Fonte: Acervo do artista

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No primeiro momento o corpo prepara o espaço no qual a ação ocorrerá para, no

segundo momento, experienciar uma movimentação equilibrando um pedaço de madeira em

suas costas. No terceiro, realizado dentro da área dos gizes, o corpo se sustenta sobre os lápis,

sob o gaveteiro de aço e destrói os gizes. O quarto momento constitui-se da ação de andar

sobre a mesma tábua de madeira, equilibrada em uma extremidade sobre a cadeira e sem

apoio na outra.

Nesse percurso, objeto e corpo interferem um no outro, por exemplo: o peso do corpo

destrói aos poucos o giz e o pó decorrente dessa destruição adere gradualmente na pele do

performer e no ambiente. Sempre em silêncio, o barulho dos gizes evidencia a fragilidade do

objeto em relação ao corpo. Já a vestimenta inicia-se cinza para terminar alterada pelo branco

do giz.

O processo de criação do trabalho se deu em duas etapas. A primeira teve a duração de

quatro meses (agosto a novembro de 2012), quando foi realizada uma série de ensaios

semanais com duração de quatro horas cada. Já a segunda encontra-se em processo, com a

redação do artigo e a finalização da obra.

Nos quatro meses iniciais me propus a experimentar livremente diversas

possibilidades e materiais para a performance (fig. 2). Todos os ensaios foram gravados,

editados e registrados em um diário de bordo, gerando um extenso material textual e gráfico

que me serviu tanto como registro quanto estímulo para a obra (Anexo A). Todo esse

processo vinha ao encontro de um desejo antigo de criar uma performance sequencial cuja

lógica interna fosse decorrente de seu processo de criação e não de uma racionalização prévia.

Figura 2. still frame de vídeo de registro da segunda semana de ensaios. Fonte: Acervo do artista.

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Além dos ensaios, realizei duas apresentações públicas2, buscando uma relação com o público

a partir do que experimentava em ateliê. Isso me permitiu retirar elementos que não

funcionavam (como a carne animal, a máquina de escrever e a fita crepe, por exemplo) e

manter o que se configura no trabalho final.

Talvez haja um espaço no qual as coisas deixem de existir. Mais próximo do que se imagina, utopias de alguém que se depara com fragmentos deslocados de um corpo. Talvez seja água, parece. Não é fácil definir a ordenação das palavras quando elas se liquefazem.

Manual3 marca um momento de mudança importante em meu trabalho no que tange

principalmente à minha concepção de formação da subjetividade. Nesta mudança, uma antiga

dualidade hierárquica na relação entre homem e animal dá espaço a uma percepção mais

fluida dessa relação, que naturalmente leva o trabalho a outros lugares. No texto, utilizo-me

do contraponto entre Manual e trabalhos prévios realizados para lançar luz sobre essa

mudança – ainda recente - ocorrida no meu percurso de pesquisa.

No primeiro capítulo, nomeado Entre pesos, apresento os eixos e procedimentos

principais que vêm constituindo minha pesquisa desde 2010, ano de início da produção em

performance e de sua exposição pública, introduzindo o antigo pensamento que movia minha

produção artística. Discorro sobre alguns trabalhos específicos e quais procedimentos são

constantes em minha pesquisa, para que seja possível perceber como eles se reconfiguram a

partir do Manual. Em Virar nada, segundo capítulo, debruço-me sobre o atual trabalho,

focando no uso de um roteiro prévio pela primeira vez em meus trabalhos e sobre a relação

entre produção e destruição a partir da ação com os gizes.

Uma vez que minha solo performance transita entre a ação de realizar uma função e a

experiência potencial dessa ação, trago também no texto essa distinção. Por isso é importante

citar que existem liberdades tomadas em relação à formatação padrão de um artigo, de acordo

com as normas da ABNT. Essas liberdades existem devido a um entendimento da relação

entre texto de artista e trabalho poético não como coisas separadas, mas como diferentes

materializações de um mesmo pensamento acerca do mundo. A condição dessas interferências

com o artigo visa se aproximar à determinadas condições do meu corpo na performance,

tornando não somente o conteúdo do texto, mas também sua forma, motes de reflexão sobre o

trabalho.

2 Os primeiros esboços de Manual foram apresentados nas seguintes mostras: Exposição Arte pública e intervenção urbana (setembro de 2012 - Passagem literária da Consolação), Free to Fall (outubro de 2012 - Tucarena) e 41º Salão de arte contemporânea Luiz Sacilotto (abril de 2013 – Santo André). 3 Devido à sua extensão, o nome da performance será abreviado para Manual no decorrer do artigo, visando maior fluidez na leitura.

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O texto, dividido em quatro momentos (assim como o Manual), sempre se inicia com

a descrição objetiva das ações que devem ser realizadas durante a solo performance, realizada

em tópicos dentro de uma caixa cinza pontilhada. Misturadas ao texto do artigo, realizo

interferências de textos escritos durante o processo de pesquisa, geralmente após ensaios do

trabalho ou execuções públicas de performances. São textos de ordem mais poética, que além

de serem formatados em outra fonte e em cor cinza clara, são posicionados no limite da folha,

a um passo de extrapolá-la e ultrapassando a margem de 2,5 cm requerida. Da mesma forma

que meu corpo incide de maneira subjetiva em um espaço formatado, desejo incidir também

através do texto nesse espaço formatado em Times New Roman 12, dentro de uma folha A4.

Encontro referência visual para meu trabalho no trabalho da artista Rebecca Horn

(Michelstad, 1944) e do performer Xavier Le Roy (França, 1963), que discutem o corpo em

diferentes linguagens, porém sempre na chave que relaciona corpo e estrutura. Horn, em suas

primeiras videoperformances e instalações, mostra o objeto como extensor do corpo humano e

alterador de sua relação com o espaço. No artigo, refio-me a sua obra Pencil Mask, elencando

pontos de encontro com minha pesquisa performática. Já Le Roy questiona o corpo e sua

relação com a biologia através de trabalhos presenciais de performance cuja aproximação com

a dança contemporânea é essencial, como podemos perceber no paradigmático trabalho Self

Unfinished.

A carne é agente passivo do discurso, fictício e neológico. Desculpa, quer dizer: eu sou. Eu sou.

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B – ENTRE PESOS [nova corrosão do que já se sedimentou]

[do peso do objeto] B.1 – Ir até a placa de madeira posicionada contra a parede. B.1.1 – Posicionar o corpo contra ela. B.2.2 – Ser a placa de madeira. B.2.3. – Não engolir a saliva produzida. B.2 – Pegar a placa de madeira com ambas as mãos. B.3 – Equilibrar a placa sobre a nuca, pescoço e entre as escápulas. B.4 – Não deixar a placa cair.

[do peso do corpo]

B.5 – Subir na cadeira (mantendo instrução B.4).

B.6 – Colocar a boca contra o encosto da cadeira (mantendo instrução B.4).

B.7 – Levantar corpo e coluna em cima da cadeira até ficar ereto (mantendo instrução B.4 até quando for possível).

B.8 – Pensar.

B.9 – Encontrar o ponto máximo de equilíbrio entre o corpo e a cadeira.

INSTRUÇÕES PARA REALIZAÇÃO (bloco B)

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[Do peso do objeto]

Aprendo com o objeto, construo com ele, troco com ele. Relaciono-me, enfim. Aos poucos aprendo, as manobras tornam-se claras, os pesos se balanceiam, eu me mesclo e fecho os olhos. Não compartilho a tensão que depois ouvi ter se instaurado na ação. Eu confio nos objetos, e eles em mim também. Os machucados, os roxos, as pontadas, as caídas, são talvez formas de agradecimento por parte deles, pois como falar senão marcando o corpo? Sinto a madeira pesar em cima de mim, como tanta coisa pesa, e penso como o costume nos adapta aos pesos invisíveis. Meu viver é buscar conforto em um espaço em reforma. Dado momento, minha boca encosta um encosto de cadeira. Um corpo comportado também pulsa, e eu talvez sobreviva à insconstância dos espaços.

Três temas sempre me interessaram e se mesclam desde o início de minha pesquisa:

conteúdo, contenção e comportamento. Para materializar esses temas e suas relações,

determinados procedimentos sempre foram constantes, dos quais cito três que permanecem

até Manual: a distensão temporal; o jogo de peso e leveza entre corpo e objeto através do

equilíbrio e da sustentação; a tentativa de mímese corpórea entre corpo e objeto.

Esse embate entre corpo e objeto se dá em meu trabalho pois acredito que, no ajuste

comportamental dos corpos, os objetos possuem papel crucial, por sempre serem funcionais, o

que implica uma construção específica do corpo para seu uso. Todos que lerem esse artigo já

passaram pela experiência de ficar algumas horas sobre um caderno de caligrafia aprendendo

a controlar a impulsividade do gesto infantil para construir cada letra como deve ser no seu

espaço pré-determinado. Hoje, nossa relação com os instrumentos de escrita é objetivada ao

ato de escrever. Reside aí uma das perguntas mais cruciais que movem minha produção

artística: o quanto de naturalidade existe na nossa relação com o objeto?

Havia, porém, no início da produção, uma certa hierarquia por mim estabelecida entre

o natural e o cultural. Entendia o corpo comportado como mais do que um corpo docilizado e

em cujos gestos há medida, mas contido e formatado a uma cultura e suas regras, assim como

uma camisa tem sua forma original contida para entrar em uma gaveta. Vejo hoje nessa

comparação entre o corpo e a camisa um exemplo dessa distinção quase maniqueísta entre

uma possível essência original do homem e uma cultura externa a ele que reformatasse essa

originalidade.

Trago como exemplificação desse antigo pensamento que permeava minha produção a

videoperformance Como evitar preocupações (fig. 3). Nela, o vídeo em loop mostra a ação de

ler um livro durante alguns minutos. Meu corpo, posicionado à direita da tela, permanece

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lendo, apenas mudando as páginas do livro. Num ímpeto, destruo todo o livro. Da mesma

forma repentina que destruo o livro, volto a ler o que restou dele calmamente. Esse choque

entre as duas ações buscava evidenciar dois tipos de relação que se poderia ter com aquele

objeto: a primeira, que eu julgava racional e comportada – o que até então se aproximava da

minha ideia de “humanidade” - correspondia à função do livro e à progressão requerida para a

leitura; já a segunda - a ação de destruir o livro - era considerada por mim na época como

“animal”, simplesmente por possuir um objetivo que não fosse construtivo. Hoje, esses

limites entre a animalidade e a racionalidade são muito mais borrados, assim como o próprio

entendimento de função como uma qualidade decorrente da racionalidade. Passo a entender

ambas ações como essencialmente humanas, simplesmente objetivando resultados e sendo

motivadas por experiências diferentes.

Corpesa (fig. 4) parte de questões próximas às do vídeo anterior, porém sua realização

possibilita outra chave de reflexão, pois lida com peso e leveza, e não com uma relação

hierárquica entre ações. Com duração de 00:03:25 h, o vídeo mostra minha cabeça servindo

de sustentação para diversos livros sobre arte e performance, que vão sendo empilhados sobre

ela no decorrer do vídeo. Em dado momento, a forma orgânica do meu corpo e suas mínimas

movimentações, como a respiração, fazem com que todos os livros caiam sobre mim. Não é

uma concepção minha do que seria um gesto animal ou humano que dá margem à discussão,

Figura 3. Como evitar preocupações, 2010 (still frames). Vídeoperformance. Cor. Som. Fonte: Acervo do artista.

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mas sim a impossibilidade causada pelo peso físico dos objetos. É esse peso que me interessa,

e sobre o qual me debruço neste primeiro momento do artigo.

Movendo-me desconfortávelmente sem nunca aproximar as costas do encosto, encosto-me sobre os ossos da coluna, juntos como um teto de vigas, e desmonto sobre um segundo enquanto as projeções se desfazem, uma a uma. Mãos no rosto, olho encharcado pela água mineral. Desenho no rosto o contorno de uma escolha. E esfrego.

Interessa-me explorar a condição de objeto aos olhos do espectador e, através dessa

aproximação, mostrar o quanto dos objetos está inserido em nós e o quanto de nós existe no

objeto. Esse fascínio pela reversibilidade entre corpo e objeto que permeia minha produção

pode ser visto na fala de Hans-thies Lehman, teórico do teatro contemporâneo, ao falar sobre

o psicanalista Donald Woods Winnicott:

Winnicott desenvolveu o conceito de objeto de transição e demonstrou o que propriamente nos fascina no objeto: o fato de que ele se torna sujeito e com isso desperta a sensação de que nós mesmos, em contrapartida, não seríamos simplesmente sujeitos vivos, mas, em parte, objetos. (LEHMAN, 2007, p. 349)

Em outro momento, o autor discorre especificamente sobre a objetificação corporal na

performance: O artista performático [...] organiza e realiza ações que afetam o próprio corpo. Na medida em que seu corpo não é usado somente como sujeito do manuseio, mas também como objeto, como material significante, anula-se o distanciamento estético tanto para o próprio artista quanto para o público. (LEHMAN, 2007, p. 228)

Figura 4. Corpesa, 2010 (still frames). Videoperformance. Cor. Som. Fonte: Acervo do artista

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Acredito que, entre corpo e objeto, aquele sofre maior alteração para se adequar ao

objeto do que o oposto, mesmo ciente que esse pensamento contradiz certos princípios do

design. Uma cadeira é criada para que o corpo se sente e, assim, consiga produzir mais sem o

cansaço que ele teria ao realizar as mesmas ações de pé. Porém, nossa adequação a esse

objeto já é tão corporalmente enraizada que os corpos passam a se ajustar às cadeiras, e não o

oposto. Essas extensões criadas pelos objetos alteram nossa forma de compreender e de nos

relacionar com o mundo, criando regulagens de ação cotidianas. Acredito ser função da arte,

conforme cita Rebecca Horn: “fugir do ritmo infinito das regulagens humanas, perturbar e

inverter os ritmos de dia e noite” (HORN, 2010, p. 116).

Trago essa citação da artista Rebecca Horn pois também busco essa fuga do que ela

chama de regulagens humanas, o que aproxima nosso trabalho e as questões que os

circundam. Durante a primeira fase de seu trabalho, a artista criou uma série de extensores

corporais que alteravam a relação do corpo com o espaço. Deles, trago como exemplo Pencil

Mask (fig. 5), de 1972. Nesse trabalho, Horn cria uma carapuça para sua cabeça feita por

diversos lápis, e realiza a ação de desenhar em uma folha branca não mais através da mão,

mas sim pelo movimento de sua cabeça, feito horizontalmente.

Figura 5. Rebecca Horn. Pencil Mask, 1972. Videoperformance. Fonte: www.contemporaryartetc.com

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[Do peso do corpo]

Tudo o que eu pedi o tempo inteiro foi por precaução. Eu fui precavido, para que não houvesse descontrole do corpo. Eu me mexi pouco, eu sentei demais. Esperei. Um turbilhão interno foi silenciado por tempos para que meu corpo não virasse barata acordada, sempre de costas para a terra. Quebraria o pescoço de quem me dissesse uma palavra lógica hoje, eu num momento de desmonte da sintaxe. Por isso eu anulei o objetivo, hoje me movo por mover. Se estou no rio, aceito o fluxo da água e deixo que ela me desmonte, que retire parte por parte do meu corpo para o mar. Corpo-fluxo-oferenda. Uma gota cai no giz. Expelir líquido do corpo me exige a exaustão.

Em 2012, realizei a performance Desassossego (figs. 6 e 7), com duração de quatro

horas e realizada no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Em um espaço composto

por caixas de papelão e fragmentos soltos de objetos de madeira, a performance duracional

consistia na tentativa de um corpo em se adequar a essas estruturas, buscando zonas de

conforto. Ao encontrar possibilidades de repouso em determinada área, o corpo instalava-se

momentaneamente nela, criando imagens híbridas e efêmeras entre o vivo e o inanimado. Sem

um percurso prévio, a movimentação lenta do corpo buscava evidenciar as impossibilidades e

escolhas que eram realizadas no momento da ação.

A partir dessa performance, constatei que não são só os objetos que pesam sobre meu

corpo. Meu corpo também pesa sobre eles, e muito. Durante o trabalho, o risco constante de

me machucar, de cair ou de quebrar as madeiras me mostrava que aqueles objetos não

suportavam inteiramente meu corpo. Quando deixo de usá-los funcionalmente e me proponho

uma experiência corpórea e subjetiva com cada um deles, a relação entre corpo e objeto passa

a ser um jogo de forças, tempo e confiança.

Figuras 6 e 7. Desassossego, 2012. Performance. Fotografia: Jorge Feitosa. Fonte: Acervo do artista

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Cito essa alteração na relação que usualmente se tem com esses objetos pois isto é de

extrema importância durante a ação. Sentir esses objetos sobre mim e o quanto de peso eles

agregam implica ao meu corpo outra velocidade, que por vezes beira a inação. Esse tempo

distendido, somado com a longa duração de boa parte dos trabalhos que realizo, torna-se

elemento significativo na minha pesquisa. Esse local entre a pausa e a necessidade de

movimentação aparece constantemente no meu trabalho por sempre tratar de um repouso

insuportável ao corpo. Respirar dentro de uma caixa ou sob diversos livros; equilibrar parte

do corpo sobre lápis; deitar-se sobre uma viga de madeira, são todas ações em que a pausa

como estado (no meu caso, o repouso) é buscada dentro de meios extremamente

desconfortáveis.

Um parágrafo e uma caixa, e tudo o que reside dentro daquele espaço. Um parágrafo, uma caixa e agora, meu corpo, também espaço que contém e é contido (mesmo contendo algo ainda disforme). Eu me soterro por madeira, eu me soterro por conceito. E me lixo, e corrôo, e raspo, e retiro, e sedimento. Escrever cada vez me parece com a retirada de pele à força, e sempre com a crença de que por baixo haverá madeira. Talvez haja, de fato. Mas e para chegar até ela? É preciso tanta estrutura? Observo agora como, para escrever, eu mal olho para a cadeira na qual me sento, e só minhas costas enxergam o enconsto da cadeira, a boca apenas simula frases que projeto e desisto de transcrever.

Justamente por ser tão importante essa sensação física gerada pelo objeto que opto

pela performance ao vivo. A relação imediata entre o corpo do performer e o corpo do

espectador gera o que Amelia Jones (1998, p. 106) entenderá como um modelo

fenomenológico de intersubjetividade. Para a teórica, o trabalho de performance ao vivo se

fundamenta pela reversibilidade de percepção e expressão entre o propositor e o observador.

É-me caro esse reconhecimento corpóreo por parte de quem me vê na situação em que me

encontro, dos outros estados atingidos durante a ação e de quais sensações são

compartilhadas.

Além da distensão do tempo e aparente imobilidade, a tentativa e erro também são

constantes no meu trabalho, devido ao jogo de forças que sempre estabeleço entre mim e os

objetos. Na performance Exercício sobre a construção4 (figs. 8 e 9), a tentativa e erro

aparecem no exercício constante de equilibrar o corpo sobre objetos de escritório

extremamente pequenos e leves como: clipes, apontadores, lápis, papéis, etc. Nesse trabalho,

já existe uma aproximação com algumas escolhas de Manual, como: o uso dos lápis, a

4 Realizada em 2012 no Liceu de Artes e Ofícios (Mostra Paralela da 30ª Bienal) e premiada em 2013 no 41º Salão de Arte Contemporânea Luiz Sacilotto.

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interferência do giz sobre meu corpo e a maior dificuldade do equilíbrio. A partir desse

momento, sinto que o corpo não mais se mescla ao objeto, mas repele-o, como polos distintos

de um ímã. Aqui, a frustração e a dificuldade do corpo na relação com os objetos se

evidenciam, colocando-me mais próximo do meu intuito de materializar a fragilidade dos

corpos.

Cai uma gota, eu continuo a me mover. Cai saliva sem querer, eu não controlo a boca na catarse. Eu passei muito tempo sem tocar, simplesmente parado, esperando. O braço vai de um lado para o outro e bate nas minhas costas. Molhado, começo a entrar no mar. Entro pela cabeça, com os olhos fechados para me proteger. Sempre me perguntei por que Lady Macbeth lavava as mãos com tanto desespero. Por que justo essa ação? Movo movo movo movo movo movo movo movo novo, buscando extrair água. Às vezes grito, não dá pra controlar. Um corpo grosso, moído e vermelho. Cada vez mais vermelho, reação química que eu nunca vou entender.

É possível perceber gradualmente uma alteração sutil no tratamento dado entre a ação

do corpo e o objeto. Se inicialmente o maniqueísmo estava presente no tipo de ação realizada

(como no caso do jogo entre leitura e destruição do livro de Como evitar preocupações)

constato que nos trabalhos posteriores há uma maior dissolução dessa dualidade, porém

percebo que ainda pensava nessa distinção entre homem e animal / cultura e natureza como

um mote para a produção e na anulação da função como uma possibilidade de me aproximar

de uma “animalidade”. A performance Desassossego, por exemplo, tem como fonte

inspiradora as páginas 147 a 150 do livro Vigiar e Punir, de Michel Foucault, que falam sobre

a articulação corpo-objeto no surgimento da ideia de manobra. Reverto esse processo, através

da execução de um gesto que seja desfuncional, acreditando que apenas na falta de função

Figuras 8 e 9. Exercício sobre a construção, 2012. Performance. (stills de vídeo de registro) Fonte: Acervo do artista

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objetiva há possibilidade de uma experiência realmente subjetiva do corpo. É ainda, em outra

instância, um pensamento próximo da dualidade entre ler e destruir um livro.

A partir do projeto do Manual e das leituras e pesquisas decorrentes dele, as coisas

mudam. Passo a ter um contato mais aproximado com outros viezes da concepção do sujeito e

sua relação com a natureza, como a psicanálise, o neodarwinismo e a filosofia pós-

estruturalista.

Quanto mais mergulho, mais dói. As juntas se torçem e o sangue explode por dentro. Começo a borbulhar, elas saltam pequenas a cada passo mal dado. Uma gota caiu nas costas para me fazer lembrar. Escreveria um livro sobre você, se eu pudesse, é impossível não perceber o quanto dói o movimento em excesso. Tento de mil maneiras, sempre. O cheiro pesa, pesa, pesa. O piso levita, torna-se areia, metade do corpo na orla e metade debaixo do mar. Call me Ismael, mas não deixe de buscar a baleia. Branca como o giz, ela viraria serpentina aos meus pés.

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C – VIRAR NADA (ou quando o corpo se desfaz dos seus anexos)

[limite | produção] C.1 – Entrar na área de giz. C.2 – Pegar os lápis grafite dispostos no chão. C.3 – Colocar cada lápis no espaço entre o corpo e a viga de madeira que delimita a área de ação. C.4 – Equilibrar todos os lápis.

[limite | fragmentação] C.5 – Destruir todo o giz. C.6 – Pegar o gaveteiro de aço. C.7 – Carregá-lo para a área de giz. C.8 – Sustentá-lo sobre o corpo.

INSTRUÇÕES PARA REALIZAÇÃO (bloco C)

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[limite | produção]

A execução do gesto como cumprimento de itinerário pré-estabelecido versus a potência gestual desinteressada, eu também ouvi. Talvez aqui haja algo a ser pensado, ainda mais quando falo de corpo-máquina e de possibilidades subjetivas dentro de uma ideia fechada de comportamento. Gosto da ideia de se ver mais do que um corpo, e dessa subjetividade ser notada pelo tipo de relação que se estabelece entre eles. Caio ao chão rebatendo as pernas ao meu redor. Inalo um pouco do giz. Corpo, suor, giz, saliva. Vou virar massa logo logo. Coloquem-me num tanque, talvez dê para conter. Talvez não.

Há uma passagem no célebre filme Tempos modernos (1936), de Charles Chaplin, na

qual o vagabundo, de tanto realizar a ação funcional de apertar um parafuso, sai após o seu dia

de trabalho parafusando tudo o que lhe passa pela frente. Há, nesse caso, uma crítica muito

direta à automatização fordista do gesto, decorrente de uma tecnificação crescente do trabalho

no final do século XIX. Vilém Flusser, em seu artigo Para além das máquinas, discorre sobre

esse processo de funcionalização do trabalho. Entendendo o trabalho como um gesto, Flusser

analisa o percurso do gesto do trabalho na história da humanidade até chegar a nossos dias,

levando o autor a citar que o trabalhar no seu sentido clássico e moderno tem sido substituído pelo funcionar. Já não se trabalha para realizar um valor, nem tampouco para valorizar uma realidade, antes se funciona como funcionário de uma função (FLUSSER, 1998, p. 13)

Esse gesto funcional do trabalho já está internalizado na nossa realidade de tal modo

que incide na nossa própria subjetividade. O gesto que produz e que está inserido num

contexto capitalista é o gesto de um sujeito cuja subjetividade também está sendo construída

na mesma máquina5. Como aponta Peter Akseli Virtanem ao tratar da obra de Guatarri,

estamos inseridos em um sistema econômico no qual a percepção ético-estética do mundo é

produzida junto a qualquer outro objeto que utilizamos (VIRTANEM, 2012, p. 52).

Não vejo mais razão para crer que o homem contemporâneo seja destituído de uma

subjetividade natural perdida ou alterada pela cultura. O mesmo ocorre com o objeto, pois

mesmo que ele requisite do corpo uma organização específica para seu uso – o que questiono

em minha pesquisa – ele é criado a partir de uma necessidade evolutiva do homem.

5 É possível pensar que o costume de uma repetição gestual realizada num período de tempo e num espaço físico delimitado escapa do campo do trabalho. Ter como lazer a repetição de uma série de exercícios físicos realizados repetitivamente dentro de uma academia em um horário e cronograma pré-determinados me parece muito um espelhamento dessa ação do trabalho que estamos discutindo.

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Repensando a citação da artista Rebecca Horn (pagina 14), relacionando-a com meu projeto,

percebo que a questão não é abrir mão do gesto funcional e simplesmente partir para uma

experiência livre do corpo com o objeto, acreditando que nela haverá mais subjetividade. O

ponto da pesquisa é aceitar a presença inegável da funcionalidade em nossa relação com o

objeto e, a partir disso, encontrar possibilidades de deslocamento e subjetivação (fig. 10).

É por esse motivo que Manual é meu primeiro trabalho com um roteiro a ser seguido.

A discussão só se faz presente a partir do momento em que eu possuo uma série de funções

objetivas às quais o corpo precisa responder, mas que me proponho a encontrar, a partir delas,

uma experiência corporal que me leve para outros lugares e que me permita uma discussão

estética a partir de uma função fria. Não há mais a negação da função como em Como evitar

preocupações ou a simples experimentação a partir da subversão da função como em

Desassossego. O que há é o uso da função para sua própria discussão através do pensamento

artístico e crítico sobre ela.

As ações, porém, atuam nessa discussão de formas distintas. Equilibrar minha cabeça

sobre lápis (ação C.4) é uma ação que, pela sua própria natureza, já subverte uma relação

usual que temos com o objeto. Porém, parece-me cada vez mais que a potência da obra não

está simplesmente na subversão da ação proposta, mas sim em como ela me proporciona um

ganho experiencial interno para me mover à proxima ação (no caso, a destruição do giz) ou

como ela interfere na experiência para prosseguir a função programada. A ação D.2, por

exemplo, de colocar a cadeira na área de giz, passa de uma ação simples para uma tarefa

Figura 10. realização da ação C.4 de Manual. Fotografia: Jorge Feitosa. Fonte: Acervo do artista.

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extremamente difícil ao meu corpo, pelo cansaço e dor acumulados durante as ações

anteriores. Já a ação de perder o equilíbrio sobre a cadeira, que me leva à queda de costas, é

diretamente continuada pelo ato de me reerguer para a realização da próxima ação, como se

aquela queda não houvesse afetado em nada meu corpo. Como apontado logo na capa deste

texto, a questão agora é localizar a experiência contida na função, para produzir a partir dela

uma subjetividade de outra ordem, que não decorra de uma necessidade do sistema capitalista.

[limite | destruição]

Em dado momento do processo de pesquisa do Manual, desmontei uma máquina de

escrever peça por peça, e me intrigou como a minha compreensão de sua estrutura aumentava

à medida que eu a destruía. Assim como a máquina, entender meu corpo e a subjetividade que

o transpassa requer um processo de desmonte, de erosão do corpo. É um paradoxo, mas a

construção pressupõe algum tipo de destruição.

Eu passo. Eu morro. Roo. Corroo.

Eram diversos cristais que batiam contra meu rosto (Abramovic saberia a sensação)

Entraria num espaço pro corpo responder, mas só se ouviria o barulho do giz.

Onda fluida e o cheiro pesado do sexo, o giz me lembra quando arrasto.

Eu-rio, e me lixo. Não entendo mais o sujeito como uma unidade central da subjetividade. Como

podemos ver com o filósofo Slavoj Zizek em sua fala sobre Lacan e o pensamento ideológico

alemão, o sujeito é local de passagem, vazio constitutivo que impulsiona a subjetivação, sem

ser preenchido por ela. A simbolização seria uma tentativa de unificação dessa ameaça de

desintegração da subjetividade (ZIZEK, 1999). Entender o sujeito como dimensão de

resistência-excesso nos permite pensar que, se sempre sobra ou falta algo a essa dimensão, é

preciso resolvê-la, o que cria um lugar de embate desse sujeito entre natureza e cultura. Zizek,

por trabalhar entre as fontes da psicanálise e do idealismo alemão, cita:

Dito de maneira diferente, o que me interessa muito, já no idealismo alemão, é a ideia de que, com a negatividade (pulsão de morte), não há natureza nem cultura, mas algo intermediário. Não podemos passar diretamente da natureza para a cultura. Alguma coisa sai terrivelmente errada na natureza: ela produz uma monstruosidade antinatural, e eu afirmo que é para lidar com essa monstruosidade, para domesticá-la, que simbolizamos. (ZIZEK, 2006, p. 83)

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É nesse lugar, que Zizek chama de mostruosidade, que desejo trabalhar. Nele, busco

um corpo que se desmonte completamente, que se desligue de um corpo cotidiano. Lembro-

me constantemente de Xavier Le Roy, grande influência para meu trabalho desde que conheci

sua produção. Em Self Unfinished (figs. 11 e 12), performance de 1998, a ação robótica

maquinal que constitui a primeira parte do trabalho dá origem a um corpo completamente

reconfigurado. A formação prévia do artista como biólogo permite-lhe compreender essa zona

disforme entre a natureza e a cultura aqui discutida, apresentando no trabalho citado esse

estranhamento através da criação de figuras híbridas, que fogem da ideia primária que temos

do humano.

Em Manual, viso esse desmonte através da exaustão física e da dor. As ações engajam

o corpo em um processo cada vez mais autodestrutivo, no qual o corpo incide destruindo o

objeto (no caso o giz) para depois deixar que o objeto incida sobre ele (o gaveteiro de aço).

Através da realização de uma ação funcional, meu corpo passa a ocupar outro lugar que, de

alguma forma, me parece situado entre a natureza e a cultura. Esse local é gerado no trabalho

através de uma exaustão física quase completa do corpo, que se desintegra ao seu limite em

busca do preenchimento de uma falta constitutiva. Curiosamente, essa desintegração do corpo

só ocorre à medida que o giz (objeto da ação) também se desintegra. Abro aqui espaço para

falar brevemente da relação com o giz e do seu aparecimento em trabalhos anteriores.

Figuras 11 e 12. Xavier Le Roy. Self Unfinished, 1998. Performance. Fonte: http://www.xavierleroy.com/.

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Na série Tentativas pictóricas (2011), os sete

vídeos por mim produzidos visavam o diálogo entre a

pintura e as artes temporais (o vídeo e a performance).

Cada vídeo (fig. 13) apresentava o corpo em relação com

um material usado para pintura ou desenho tentando

realizar uma ação impossível com aquele material (por

exemplo, formatar com o nanquim líquido um retângulo

perfeito), novamente lidando com a ação fadada ao

fracasso. O único vídeo com som era Da construção do

pigmento, que mostrava uma série de gizes sendo

destruídos pelas minhas mãos e braços, em uma relação

direta entre construção e destruição. Em 2012, realizo o

primeiro teste com cem gizes, destruindo-os apenas com

a testa e gerando um hematoma que me acompanhou

durante um mês. Hoje, trabalho com dez mil gizes na

área delimitada da performance, destruindo-os com todo

o corpo.

Há uma materialidade do giz cuja potência só foi

percebida após seu uso em grande quantidade. O

interesse inicial em utilizá-lo veio de sua relação com o

contexto comportamental de ensino. Só depois descobri

seus barulhos, o pó que ele gera ao ser destruído, a

alteração que ele realiza no ar do local, sua dissolução

pelo espaço.

O giz responde ao meu ataque. Faz barulho,

desmonta-se, torna-se menor, recua. A ação de sua

destruição, momento que considero chave do trabalho,

projeta meu corpo à lugares que por vezes reconheço e

por vezes me parecem completamente novos,

desfazendo-se no espaço, assim como o giz. Novamente

Figura 13. Série Tentativas pictóricas, 2011. De cima para baixo, stills dos vídeos: Da construção do pigmento, De camadas e veladuras, Do retângulo perfeito I, Dos respingos de tinta (homenagem à Baselitz), Do retângulo

perfeito II, Da área preta, Do percurso da tinta. Fonte: Acervo do artista.

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corpo e objeto estão em uma relação de interdependência. Se a função é a destruição, é

preciso que ambos se destruam para que o corpo se engaje e mobilize essa dimensão de

subjetivação.

Percebo que Manual exige de meu corpo um pouco a mais do que ele pode fornecer e

suportar: a destruição completa do giz é quase impossível, tanto pela exaustão física quanto

pelos machucados por ele causados. Assim, esse desassossego deixa de ser tema do trabalho e

passa a ser algo gerado a partir de suas proposições. Esse desajuste que vimos acima

teoricamente e que surge no trabalho pela exaustão se configura em um mote essencial para

minha criação artística.

Trabalhei durante algumas horas com o som de um metrônomo 60bpm, o que pareceu evidenciar a relação entre a necessidade de divisão temporal para a produção x a inutilidade e (im)produtividade das minhas ações. Nesse exato momento (1h32 do dia 7 de setembro), eu discuto com uma pessoa que talvez eu ame, ela me diz que acha ótimo estar confortável em certas coisas, eu fico abismado com o nível de conformação nessa frase. Estar confortável é aceitar a conformação que nos é imposta pelo mundo, e talvez por isso meu trabalho tenha buscado tão intensamente o desconforto, pois ele é o único meio de se (im)conformar com o mundo. Penso talvez sobre o próprio processo de criação e como o desconforto é necessário para tanto...

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D – DESENHO [uma possibilidade de finalização]

D.1 – Sair da área de giz.

D.2 – Pegar a cadeira e colocá-la dentro da área de giz.

D.3 – Pegar a madeira e colocá-la sobre a cadeira, de modo a construir uma ponte.

D.4 – Subir na madeira sobre a cadeira.

D.5 – Andar sobre a madeira.

INSTRUÇÕES PARA REALIZAÇÃO (bloco D)

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Imensa dificuldade em (im)por Ao corpo

Tal velocidade Que o ruísse de si mesmo

Imensa placa branca recoberta por pó de grafite, elencando espaços

vazios que escorreriam pelos dedos De outro Ou mesmo

Que partisse Ao meio o pesoço em direção ao ralo do meu sexo

Jamais encontraria como subir sem recortar de mim a compreensão

Imensos dedos brancos, envoltos em palha de aço. Um lápis entra pelo nariz e perfura o cérebro

Do osso À carne

Violados Escorre matemática pelas narinas e a convulsão se dá pela

abstração. Jamais saberia como respirar se não houvesse a sublimação.

Manual é um momento de passagem em minha pesquisa, em que me desvinculo cada

vez mais da necessidade do uso de objetos e ações que remetam a contextos específicos. Em

ensaios abertos, ouvi leituras do trabalho em que um simples encostar contra a parede remetia

à ideia de castigo. Essa abertura me interessa cada vez mais: criar imagens que, quando

desdobradas no tempo, podem fornecer diversas possibilidades de leitura. Algumas dessas

imagens ainda me perseguem, quase de forma inconsciente, como o corpo sem cabeça (figs.

14 e 15), recorrente desde meus primeiros trabalhos em performance e que percebi surgir em

Manual de forma não intencional. São imagens que ainda pairam sobre a pesquisa, e que

merecem futuros aprofundamentos.

Figuras 14 e 15. Imagens de trabalhos anteriores e fotografia de Manual civilizador para um peso sem nome (foto de Jorge

Feitosa), nas quais pode-se ver a ausência de cabeça nos corpos. Fonte: Acervo do artista.

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Durante o ano de desenvolvimento de Manual, foram realizados diversos trabalhos

cuja demanda de tempo de produção era menor, principalmente nas linguagens do vídeo e do

desenho. A distensão temporal e as ideias de limite, contenção, estrutura e corpo eram sempre

visíveis, de diferentes maneiras. Isso reforça minha pulsão em circundar essas questões e

tentar contorná-la de diversas formas. Além disso, noto cada vez mais que o vídeo e o

desenho são procedimentos que permitem traduzir meu pensamento de outras formas mais

abertas. Um elemento gráfico simples, como uma linha, já é gerador de uma estrutura que,

quando colocada no vídeo, possibilita outras relações entre resistência e moldagem corporal

(fig. 16).

Busco, cada vez mais, lançar mão dessas linguagens para agregar ao trabalho

possibilidades mais amplas de leitura, pensando em necessitar cada vez menos do objeto que

esteja vinculado a contextos comportamentais para discutir sobre comportamento (Manual

ainda possui objetos cujo vínculo é direto, como o giz e o gaveteiro de aço). Por já refletir

sobre esas questões, possuo, em fase inicial, um novo projeto de performance a ser

desenvolvido após Manual, intitulado 1/1: sob a forma de um pesadelo simulador6.

Para terminar o que deveria ser minha conclusão, tomo emprestadas as palavras de

Jorge Larrosa:

6 Pretendo pesquisar quais as implicações corporais da realização de ações que dependem do objeto sem o objeto, utilizando-me do vídeo e da performance para evidenciar essa deformação ocorrida na ação corporal quando ela não mais possui o objeto, mas o simula. O título é uma referência a um trecho do livro de Thierry de Duve Fazendo escola (ou refazendo-a?), 2013.

Figura 16. Infrequência, 2012 (still frame). Vídeo projetado em loop sobre papel milimetrado desenhado. Cor. Som. Fonte: Acervo do artista

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O sujeito da experiência [...] não é um sujeito que permanece sempre em pé, ereto, erguido e seguro de si mesmo; não um sujeito que alcança aquilo que se propõe ou que se apodera daquilo que quer; não um sujeito definido por seus sucessos ou por seus poderes, mas um sujeito que perde seus poderes precisamente porque aquilo de que faz experiência dele se apodera. Em contrapartida, o sujeito da experiência é também um sujeito sofredor, padecente, receptivo, aceitante, interpelado, submetido. (LARROSA, 2002, p. 25)

Assim como o giz em meu trabalho, o pensamento é material em constante

movimentação. Também como o giz, o pensamento demanda uma entrega do meu corpo que

beira a exaustão completa. Justamente por essa imersão tão intensa no trabalho, sinto que

poderia ficar páginas e páginas discorrendo sobre diversos elementos de Manual, mas sem

jamais me apoderar dele, pois ele ainda me transpassa. Aceito ao trabalho ao mesmo tempo

que preciso que ele aceite minha visão sobre ele neste texto.

Penso então sobre os quatro anos de curso e sobre o que é possível se aprender sobre

arte. Toda a técnica, a teoria, as experimentações, a compreensão das diferentes linguagens,

são instrumentalizações que agregam ao artista, mas que não constituem um trabalho de arte.

Das coisas que são imprenscindíveis para um trabalho artístico, tenho certeza que existem

duas: coragem e pensamento. Coragem para se perder no trabalho, para realizar mergulhos

verticais, para afrouxar as bordas entre o próprio corpo e o corpo da obra, mas principalmente,

coragem para pensar. E é esse pensamento - que não se pretende dominar a obra mas ouvi-la -

que permite que as questões que permeiam a visão de mundo de um artista não se resolvam de

forma estanque. Pelo contrário, elas se tornam permeáveis, afetuosas, transitam pelo mundo o

quanto possível, para que sejam materializadas e experienciadas.

Para transpassar. E ser transpassado.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FLUSSER, Vilém. Para além das máquinas. In: BERNARDO, Gustavo (org.). Literatura e sistemas culturais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. HORN, Rebecca. A camisa de força interior dentro do exterior. In: CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL. Rebecca Horn: Rebelião em silêncio. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2010. JONES, Amelia. Body art: performing the subject. Londres: University of Minnesota Press, 1998. LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Rev. Bras. Educ. [online]. 2002, n.19, pp. 20-28. LEHMAN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007. VIRTANEM, Akseli. O discreto charme do precariado. In: GUATARRI, Félix. Máquina Kafka. São Paulo: n-1 edições. 2011 ZIZEK, Slavoj. Arriscar o impossível – conversas com Zizek. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

_______. The ticklish subject. Londres: Verso, 1991

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ABSTRACT

Manual civilizador para um peso sem nome is a solo performance that follows the research on containment, behavior and content that I have been doing throughout the course. Always through a relationship between weight support and balance, it seeks evidence that objects have enormous influence on body constructions. Within this research, the present performance is constitued by a series of objective functions in which I seek bodily experience in relation to the following objects: wooden board, chalk, graphite pencil, chair and steel drawers. The text reflects about my production, and describes a change of thinking occurred between the previous work and the work presented, which I discuss in the second chapter. Understanding the text as a space also ruled by a structure, I divide it into three moments interspersed: the text of the article in standard format, the text of body experiences arising from the action, which order is more poetic and is at the right edge of the sheet, and the text description of the actions taken during the performance, always placed in the opening chapters, within a dotted box. Keywords: Subjectivity. Weight. Containment. Behavior. Formatting.

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ANEXO A DVD com material sobre o processo de pesquisa de Manual civilizador para um peso sem nome.

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E – sair do espaço de ação.

INSTRUÇÕES PARA REALIZAÇÃO