elias processo civilizador vol i 23-64

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,,,,.-- -, ELIAS,Norbert. Sociogênese da diferença entre 'Kultur' e "Zivilisation" no emprego alemão. In: O Processo Civilizador, vai. 1. Rio de Janeiro: Jorge zahar,l994. pp.23-64 parte I Sociogênese da diferença entre "kultur" e "zivilisation" no emprego alemão I Introdução 1. O conceito de "civilização" refere-se a uma grande variedade d;-'I fatos: ao nível da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos ,: conhecimentos científicos, às idéias religiosas e aos costumes. Pode se re-] / ferir ao. tipo de habitações ou à maneira como homens e mulheres vivem i '~ juntos, à forma de punição determinada pelo sistema judiciário QU ao modo ;! como são preparados os alimentos. Rigorosamente, fala!!<!.,?,-Eadahá 9~~_'!.ão, possa ser feito de forma "civilizada" ou. "incivílizada". DaCser'sempre di-' -fídisunúi,iiar emalgümas palavras tudo Ó-qüe-se'põ~e descrever como ci- vilização. Mas se examinamos o que realmente constitui a função geral do con- ceito de civilização, e que qualidade comum leva todas essas várias atitu- i des e atividades humanas a serem descritas como civilizadas, partimos de I uma descoberta muito simples: este conceito exprcs.sa a consciência que o Oci- I dente tem de si mesmo. Poderíamos até dizer: .a consciência nacional. Ele.d resume tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois 'ou Ir'êsS:éculos I" se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas "mais primitivas". Com essa palavra, a sociedade ocidental procura des- crever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: o: nível d~__ ~~_tf!.910J.O~, ~ natureza _cl~,I'l@$. mlill~ir-ªs, o dcsenvolyim~nJ.o....,ge) sua cultura científica ou visão do mundo,_.em.l!i~ais. . 2. "Oviiliãção",- porém, não significa a mesma coisa para diíeren->, tes nações ocidentais. Acima de tudo, é grande a diferença entre a forma I como ingleses e franceses empregam a palavra, por um lado, e os alemães, I :j.. por outro. Para os primeiros, o conceito resume em uma única palavra

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Page 1: ELIAS Processo Civilizador Vol I 23-64

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ELIAS,Norbert. Sociogênese da diferença entre 'Kultur' e "Zivilisation" no emprego alemão.In: O Processo Civilizador, vai. 1. Rio de Janeiro: Jorge zahar,l994. pp.23-64

parte I

Sociogênese da diferençaentre "kultur" e "zivilisation"

no emprego alemão

I

Introdução

1 . O conceito de "civilização" refere-se a uma grande variedade d;-'Ifatos: ao nível da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos ,:conhecimentos científicos, às idéias religiosas e aos costumes. Pode se re-] /ferir ao. tipo de habitações ou à maneira como homens e mulheres vivem i '~juntos, à forma de punição determinada pelo sistema judiciário QU ao modo ;!

como são preparados os alimentos. Rigorosamente, fala!!<!.,?,-Eadahá 9~~_'!.ão,possa ser feito de forma "civilizada" ou. "incivílizada". DaCser'sempre di-'

-fídisunúi,iiar emalgümas palavras tudo Ó-qüe-se'põ~e descrever como ci-vilização.

Mas se examinamos o que realmente constitui a função geral do con-ceito de civilização, e que qualidade comum leva todas essas várias atitu- ides e atividades humanas a serem descritas como civilizadas, partimos de Iuma descoberta muito simples: este conceito exprcs.sa a consciência que o Oci- Idente tem de si mesmo. Poderíamos até dizer: .a consciência nacional. Ele.dresume tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois 'ou Ir'êsS:éculos I"

se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas"mais primitivas". Com essa palavra, a sociedade ocidental procura des-crever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: o:nível d~__~~_tf!.910J.O~, ~ natureza _cl~,I'l@$. mlill~ir-ªs, o dcsenvolyim~nJ.o....,ge)sua cultura científica ou visão do mundo,_.em.l!i~ais. .

2 . "Oviiliãção",- porém, não significa a mesma coisa para diíeren->,tes nações ocidentais. Acima de tudo, é grande a diferença entre a forma Icomo ingleses e franceses empregam a palavra, por um lado, e os alemães, I :j..

por outro. Para os primeiros, o conceito resume em uma única palavra

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24 o processo civilizador

seu orgulho pela importância de suas nações para o progresso do Ocidentee da humanidade. Já no emprego que lhe é dado pelos alemães Zivilisation,significa a1go de fato útil, mas, apesar disso, apenas um valor de segundaclasse, compreendendo apenas a ~arência externa de seres humanos,. a ,~u-perfíç;i~s.tên~-ª, A palavra pela qual os alemães se interpretam,'

I - • '- '----'--, ... ~- :

q.t:Jem~s do gue qualquer _~utra,_t:~.Rrcssa-lhes o orgulho em s~.nr.Qp.oo\''__realizações e no próprio ser.-LKultur;..

3. Um fenômeno peculiar: Palavras como "civilização" em francês'\ ou inglês, ou o alemão Kultur, são inteiramente claras no emprego interno

da sociedade a que pertencem. Mas a, forma pela qual uma parte do mun-do está ligada a elas, a maneira pela qual incluem certas áreas e excluemoutras, corno a coisa mais natural, .!lS avaliações ocultas gl,le implicitamentefazem cgm. elasLtu4titçLtornª-difíciLgefini-las para ulILestr1l1!ho.'--

O conceito francês e inglês de civilização pode se referir a fatos políticos~J çu econÔ~ic~_rcligjosos 0ti técnicos, morais ou sociais. O conceito alemão r '

--'< de Kultur alude basicamente a fatos intelectuais, artísticos e religiosos e apre-!senta''7tendência de traçar uma J1ítidãr~li~=-d~isÓriaénire (at~~~st~ tipo, ipor UJlJ--.l'!.<Iº'-.efatos PQli1icos,.econômícos.e sociais, por outro. O conceito l ,fiClllcês e inglês de civilização pode se referir <l. reali?açQ~s, ip-as também aaJitudes ou "comportamento" de pessoas; pouco img~lJ:taI!do~{!:_J:~liz.'!.~unão alguma coisa·J'~'Q_E()llc~i!.~alemfuL.d~Lt.u!'.J~IlU;9nh·a~~L~ ref~ênciaJ 1

a "comporta@en!o"k..0 valor. que a.pessoa.tem ellLYLrtu,dc:uiç,_suamer~-IItência e conduta, sem absolutamente qualquer realização, ~muitosecullilário.HO sentido especifié~~nte alemão do conceito de Kultur encontra sua expres-i:são mais clara em seu derivado, o adjetivo kulturell, que descreve o caráter, i

e o valor de d(:tel11),ipado,s_{>rmlutos humanos" e nª~.ya!()!.J~trÍnseco da"gçs§,0a..Esta palavra, o conCcito inerente a kulturell, porém, não pode ser.:traduzido exatamente para o francês e o inglês.

A palavra kultiviert (cultivado) aproxima-se muito do conceito ocidentalde civilização. xttcerto ponto, representa a forma mais alta de ser civilizado.

\ Até mesmo pessoas e famílias que nada realizaram de kulturell podem ser.1\ kultiviert. Tal como a palavra "civilizado", kultiviert refere-se primariamente \.;, à forma da conduta ou comportamento da pessoa. Descreve __a qualidade J,

-~-----'~~-'- " -,---~- I~ociald~1:Jessoas, suas habitações,'" s,',u,asmaneiras, sua falaL SI!.'lS---LQ':lpas"ao I'

contrário de kultureIl" que nâo alude diretamente às próprias pessoas,~asexclusivamente a realizaçõ-es-huin'anaspeculiares. --'-'---------- ---, .. 4.-''Hrü;tra dIferençae'Utre-'os dois'---=~~~ceitosestreitamente vinculada

a isto, "Civilização" descreve um processo ou, pelo menos, seu resultado.Diz respeito a algo que está em movimento constante, movendo-se incessan-temente "para a frente". O conceito alemão de kultur, no emprego corrente,

1> I implica uma relação diferente com movimento. Reporta-se a produtos huma-nos que são semelhantes a "flores do campo"," a obras de arte, livros, siste-----.-------~----------

conceitos de "civilização" e "cultura"

i'

, mas religiosos ou filosóficos, nos quais se expressa a individualidade de um, i povo.,O.s,o!}ceit§''!§_Kultur delimita. .

i J" ç' A,té c,e",rt,o, P,o,n,t,o" o'_,_,co,n,'c,,ei"t,(),_,9,~.c,iV1-!,~'~,,aç",~-,()_m,_',in,im,',iza, aS~ifere,nças. nac,1,'0-.: ais entre os pOYQs:,enfatiza o qu_e_éçomum a todos os seres humanos ouI -~rão,dosqu~_o p.9ssue~ -= ,deviriã' ~ê~lô:Manifesta a aw.qçp-P-fialiça

de povos cujas fronteiras nacionais e identidade nacional foram tão plena-mente estabelecidos, desde séculos, que deixaram de ser tema de qualquerdiscussão, povos que há muito se expandiram fora de suas fronteiras e colo-nizaram terras muito 'além delas.. Em contraste, ~iJº alemão de Kultur dá. ênfase,especial_ª-.çljie-

í~~!lç~ nacionais e à identi~~c!.~_-º--a~0_~ul~:.r._d~_&~~ Principalmente emvirtude disto, o conceito adquiriu em campos como a pesquisa etnológica eantropológica uma significação muito além da área lingüística alemã e dasituação em que se originou o conceito. Mas, esta situação é aquela de um'povo que, de acordo com os padrões ocidentais, conseguiu apenas muitotarde a unificação política e a consolidação e de cujas fronteiras, duranteséculos ou mesmo até o presente, territórios repetidamente se desprenderamou ameaçaram se separar. Enquanto o conceito de civilização inclui a função-de dar expressão a uma tendência continuamente expansionista de gruposcolonizadores, o conceito de Kultur reflete a consciência de si mesma' de umanação que teve de buscar e constituir incessante e novamente suas frontei-ras, tanto no sentido político como espiritual, e repetidas vezes perguntar a

l/Si mes,ma: ,"QUaL é, realmente, nossa i,dmtidade?" A orientação do conceito! .alemão de cultura, com sua tendência ~ demarcação e ênfase em diferenças,I e no seu detalhamento, entre grupos,' corresponde a este processo histórico:

J As perguntas "O que é realmente francês? O que é realmente inglês?" hámuito deixaram de ser assunto de discussão para franceses e ingleses. Du-rante séculos, porém, a questão "O que é realmente alemão?" reclamousempre resposta. Uma resposta a esta pergunta - uma entre várias outras- reside em um aspecto peculiar do conceito de Kultur.

I' 5. As auto-imagens nacionais representadas por conceitos como Kultur:i, e "civilização" assumem formas muito diferentes. Por mais diferente que seja',' a auto-imagem dos alemães, que falam com orgulho de sua Kultur, e a de1franceses e ingleses, que pensam com orgulho em sua "civilização", todosI consideram axiomático que a sua é a maneira como o mundo dos homens, .\. c_orno um todo, quer servisto e lúlgaêTó'--Õ-alenlãõpõde;- quem sabe, tentar I

, explicar -ãIí--anceses e ingleses o~que -'entende pelo conceito de Kultur. Masdificilmente pode comunicar o mínimo que seja do meio formativo nacionalespecífico e valores emocionais axiomáticos que para ele a palavra reveste. ,

Franceses ou ingleses poderão talvez dizer ao alemão que elementos"tornam o conceito de civilização a suma da auto-imagem nacional. Mas pormais razoável e racional que este conceito lhes pareça, ele também nascede um conjunto específico de situações históricas, e está cercado também por

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\>-_.'}

I!

/

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26 o processo civilizador

uma atmosfera emocional e tradicional difícil de definir, mas que apesardisso constitui parte integral de seu significado. E a discussão descambarealmente para a inutilidade quando o alemão tenta demonstrar ao francêse ao inglês por que o conceito de Zivilisatíon de fato representa um valor

.~ para ele, embora apenas de segunda classe.6. Conceitos como esses dois têm algo do caráter de palavras que

ocasionalmente surgem em algum grupo mais estreito, tais como família, seita,classe escolar ou associação, e que dizem muito para o iniciado e pouquíssi-mo para o estranho. ~s~umeP.:l.l9!Jl1~_E~_~~ ~~?~~ê:1~:s:~_:.?_~~ns..:-f~I·;_,,-em_y_.mudalll--coJ:ILO_lill)QQ....ii.Q.....qual..§~?~xp.ressao.. Sifíiâçãô e Tii~!~E!a..9~ I

, ~ypo refletem-se ueías. g_np.ermane~em.jnCOloreSr-nunca-se-tornam ..PI~na-11

Limente vivas para. aqueleLque-não-wmpartilham..Jais experiênciast-qye não 1

falam_..a.partir ..da. mesma_ t.md~o_.e_ da..m~~mfl.-S~.Os conceitos de Kultur e "civilização", para sermos exatos, ,portam o

selo não de seitas ou famílias, mas de povos inteiros ou talvez apenas decertas classes. Mas, em muitos aspectos, o que se aplica a palavras específi-cas de grupos menores estende-se também a eles: s-ª-~~ac!.Qs_.b.asicamente-p()1~1·~P.ªf.Jt ,QQYOs...que...wmparJilha.m.uma t.tª,Q.jçj~,Q_i!_JÜt\!~Ç,i;iº_12 ª-!:Hçllm~·

Conceitos matemáticos podem ser separados do grupo que os usa. Triân-gulos admitem explicações sem referência a situações históricas. Maso ~esmonão acontece com conceitos como "civilização" e 'Kultur. Talvez aconteçaque determinados indivíduos os tenham formado com base em material lin-güístico já disponível de seu próprio grupo, ou pelo menos lhes tenham atri-buído um novo significado. Mas eles lançaram raízes, Estabeleceram-se.Outros os captaram em seu novo significado' e forma, desenvolvendo-os e~olindo.~os na f~l~ e na escrita. Eoram.uSaQºLrl!p.~tiO-ª~~~~~arem,)~mentos efJcJente~.J!ar.a.-e~pressar o_q.ue,...pess.u;ls expeTlmen~~G..Q.m].lJ):l,~_~Ull!~!.~,!l1"comunicar. Tornaram-se palavras da moda, conceitos delemprego comum no linguajar diário de uma dada sociedade. Este fato de-monstra que não representam apenas necessidades individuais, mas coletivas,de expressão. A história' coletiva neles se cristalizou e ressoa. O indivíduoencontra essa cristalização já em suas possibilidades de uso. Não sabe bempor que este significado e esta delimitação estão implicadas nas palavras, porque, exatamente, esta nuance e aquela possibilidade delas podem ser deri-

\

~Vadas. !1g~!lSpor'l~e lhe arece uma coisa natural, or ue des~e a infânciaa'p.!.en_~_e_~_y~i-omundo através .daJ~~.,Ç,~es conceitos. O processo sôcial

; de sua gênese talvez tenha sido esquecido há muito. Uma geração os trans-~ ! rnite a outra sem estar consciente do processo como um todo, e os conceitos

sobrevivem enquanto esta .çd~ção º~__experiências passadas e situações.ret!~~~__uf!1_va1Qu:xistencial, uma função na existênCia corlcreiã' dasociedade

: .::.... isto é, enquanto gerações sucessivas puderem identificar .§uas pr§PEi.asy~xperiências .•n~~i~üi~~?'o ~~~.~~~~v.ràS:··bstérmos morrem aos poucos, quan-

. , do as funções e expenencias na vida concreta da sociedade deixam de se.~_..,.,- -"0- __-_.~- -,---- ---

conceitos de "civilização" e "cultura" 27

vincular a eles. ~~_ t:>~tr:.as_~asi~~_e!t:~ap_eE~ adormecem, ou o fazem emcertos-ãSpectos, e ad.9,uirem um novo valor:.~xi~l~!lgáCcQii1-Uiriã noviisituª-

" ção.São relembraifôs entãopõrqUe-algu~ã coisa no estado~~~~'t~-da -socie-i dade encontra expressão na cristalização do passado corporificada nas pa-I ---------.---- ---. .-

i lavras.{:~. . -

11

Desenvolvimento da Antíteseentre Kultur e Zivilisation 2

7. É claro que a função do conceito germânico de Kult ur ganhou vidanova em 1919, e nos anos precedentes, em parte porque uma guerra foitravada contra a Alemanha em nome da "civilização", e por causa da auto-imagem que os alemães tiveram que redefinir na situação criada pelo tratadode paz. •

Mas é igualmente claro, e isto pode ser provado, que até certo ponto asituação histórica da Alemanha após a guerra apenas deu novo impulso auma antítese que há muito tempo encontrara expressão através desses doisconceitos, retroagindo isso até o século XVIII.

Parece que foi Kant quem primeiro expressou uma experiência e antí-teses específicas de sua sociedade em conceitos correlacionados. Em 1784,escreveu ele, nas Idéias sobre uma História Universal, do Ponto de Vista deUm Cidadão do Mundo: "Cultivados a um alto grau pela arte e pela ciência,somos civilizados a tal ponto que estarnos sobrecarregados por todos os tiposde decoro e decência social ... " /

, , nA idéia da rnoralidade", acrescentava, "t2-arte da cultura. A aplica-" \-;.; I ção desta idéia, porém, que resulta apenas ~_!ll)alogiLdJunQ(alidade...no \ :..!~~~,!-à ~~r~. ~~decência vi~ível~~q~i~~!~a~~ ao processo civilizador." 1 i ',(

. Por mais que essa formulaçao da antítese ja pareça, no momento de! ..lsua gênese, próxima da nossa, seu ponto de partida concreto nas experiên- .cias e situação de fins do século XVIII, embora não careça de conexão his- :tórica com as experiências nas quais assenta seu uso presente, ela é, apesar ;disso, muito diferente. O contraste aqui, caso em que os porta-vozes da bur-

)'

Referência ao tratado de Versalhes, que pôs fim à Primeira Guerra Mundial -à qual Elias, escrevendo antes da Segunda, se refere sempre como "a guerra", exceto,obviamente, na introdução por ele redigida em 1968 e que vai em apêndice. Extre-mamente lesivo para as potências que haviam perdido a' guerra, o tratado de Versalhescausou muita revolta e indignação, especialmente entre os alemães. (RJR)

I

I

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28 conceitos de "civilizoçõo" e "cultura" 29o processo civilizador

~'guesia alemã em desenvolvimento, a intelligentsia 3 alemã de classe média,: falam ainda em grande parte "do ponto de vista de um cidadão do mundo",I relaciona-se apenas vagamente, e na melhor das hipóteses secunda-riamentc ,i com um contraste nacional. §~.llaspecto pdncipal~ um_contril..!'~jnterno na

" i: sociedade, 'l!ffi~ntr.a~LuociaLq.pJ::>-,JlpesaLde.....tudo9--port.a dentro d~si>--clc," I formasigrilãcatizac.n.germe, do. contrast!LºªÇ.tº~~: o contraste entre a nobre- '

: za cortesã, que usava predominantemente a língua francesa e era "civilizada"

I segundo o modelo francês, e um estrato de intelligerusia de classe média quefalava alemão, recrutado principalmente entre os "~c:.c~~ºrq"dÇ>~,p.!iI]~}p~s",

i burgueses, ou funcionários públicos no sentido mais amplo, e ocasionalmenteil também em meio à nobreza proprietária de terras.

Esta iruelügentsia constituía um estrato muito distante da atividade po-~,L-- __ '- ... -- -- ..- - .J

Ií~\ca, mal pensava ..~m jermos políticos, e apenas experimentalmente ern j 'termos nacionais; sua legitimação consistia principalmente em suas realizações I ,i

\ ,.intelectuais, científicas ou artísticas. Em contraposição a ela há uma classe ii\ i superior que nada "realiza", no sentido em que as outras o fazem, mas para' \~,: cuja auto-imagem e autojustificação a modelagem de seu comportamento:

característico e diferente é fundamental. E é nessa classe em que pensa Kantquando fala de ser "civilizado a tal ponto que estamos sobrecarregados" de

'/me,rQ "decoro e decência social", Sde "a~gi,ª, çle,.mo!]J.i5lad~.com amor à'lJ.Qnr~'. E é na polêmica entre o estrat~ Í!1L~lligentsiq. alemã de classe \ 'rriédia e a etiqueta da classe cortesã, superior e governante, que se origina' i

• Q,S.QIJTI:Mte entre Kultur e Zivilisation na Alemanha. ,1\ p<?lêm!~!l.L!!2-~anto, \ ;~_era rnais.~l1.Il!Í1~~ma~-1l...mpladO.q!l~."§.!:lacristali~~ão ness~s dois conceitos. li

- 8, Suas origens podem ser buscadas em meados do século XVIII,ainda que apenas como um murmúrio do pensamento, muito mais abafado doque ficará na segunda metade do século. Uma boa idéia disto pode ser obtidaem artigos sobre Hoi, Hôilichkeit e Hojmann (Corte, Cortesia, Cortesão),excessivamente longos para aqui serem reproduzidos na íntegra, publicadosno Zedler Universal Lexicon de 1736. 4

a estima da pessoa. Mas como são poucos os juizes corretos das duas! E quan-tos menos as consideram dignas de honra! As pessoas, preocupadas demais comexterioridades,,-_s.Í!º__muito mais-,influenciadas "peJo que atinge-exterii.amente' seussenti.do,s,-es;;ecialme~t;'·qU;;ndo as circunstâncias concomitantes 'são de ordem aafetar-lhes especialmente a vontade. Isto funciona com toda a precisão no casodo cortesão.

< Em termos simples, sem interpretação filosófica e em relação clara com\,\,configurações sociais específicas, é expressa aqui a mesma antítese formulada;'por Kant, refinada e aprofundada no contraste entre cultura e civilização:

~) '''cort~~i~~)(!,<:rI].a~nganª,dora vs. "yirtude"_~a. Mas o autor apenas,~ 'menciona isto de passagem e com um suspiro de resignação. Após os meados

'do século o tom muda gradualmente. A ,lJutolegitimação da classe média pela'virtude e as realizações tornam-se mais p7eciSás e enfáticas e a polêmica con-

~

'Ira as maneiras externas e "" iciais encontradas nas cortes fica maisexplícita. '1 '

~.', 'l' ,,"I o!. ~ --'I('~...... V~.:' I {10 ~. .-; f '

lU

Exemplos de Atitudes de Cortena Alemanha

9. Não é fácil falar' sobre a Alemanha em termos gerais, uma vez quenessa época notam-se características especiais em cada um de seus muitosEstados. Mas apenas algumas serão, finalmente, decisivas para o desenvol-vimento do todo. Delas o resto se segue naturalmente. Além disso, certosfenômenos gerais apresentam-se mais ou menos claramente em toda parte.

Para começar, há o c!.~S2.0Vºª-rnç.Itt.o.-~pavorosLdevastação.econô--1lJlica do país após a Guerra dos Trinta Anos. No século XVII, e aindamesmo no século XVIII, a Alemanha e, em particular, a burguesia alemã: ,são pobres em comparação com os padrões francês e inglês. O comércio, em -,..1

especial o comércio externo que fora altamente desenvolvido em partes dopaís no século XVI, está em ruínas. Desmoronou a imensa riqueza das gran-des casas mercantis, parcialmente devido à mudança nas rotas de comérciodevido à descoberta de novas terras no ultramar e, até certo ponto, em

: conseqüência do longo caos da guerra. O que sobra é uma burguesia de, pequenas cidades, ç1ehorizontes. estreitos, vivendo basicame!lJ~.90 atendímen-: to de necessidades locais. " ., :li p~~~;";diõ1ieiro disponível para luxos tais como literatura e arte. 'Nas cortes, nos casos em que há recursos suficientes, as pessoas imitam in-satisfatoriamente a conduta da corte de Luís XIV e falam francês, O alemão,"a língua das classes baixa e média, é pesadão e incômodo. Leibniz, o único

•._------- ...•--_.

A cortesia indubitavelmente deriva seu nome da corte e da vida cortesã. Ascortes dos grandes senhores são teatros em que todos querem fazer sua fortuna.Isto. pode ser adquirido conquistando-se o favor do príncipe e dos membrosmais importantes de sua corte, O indivíduo, por conseguinte, não poupa esforços

:Ii'para se tornar agradável a eles. E nada realizá isto melhor do que fazer o outrot f acreditar que estarnos prontos para servi-Io até o máximo de nossa capacidade,I e em todas as condições, Não obstante, nem sempre estamos em condições de

assim proceder e talvez, por boas razões, não queiramos assim agir. A cortesiaserve como substituto de tudo isto. Através dela damos .ao outro tantas garan~ /tias, at.raVés,d"e,."~.'..Q.~.~ ._.~qn.9.l!t...a....~iil, que ele forma umaexP.'~CilitiVã-favorável. [..de nossa disposição de servi-to. Isto lhe desperta a confiança, da qual se desen-võlve- i~~~pij'yçÚneniiL·ümã·- afeição por nós, com o resultado de que ele \se torna ansioso para nos fazer o bem. Isto é tão comum no caso da cortesia:j

Ir que confere uma vantagem especial àqueles que a possuem. Sem dúvida, de~~ veriam realmente, ser a ~~iIida~e_ e a .virtude .os fatores que nos conquistassem 1

/

I;

,~

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30 o processo civilizador

:.filósofo cortesão alemão, o único grande alemão dessa época cujo nome des-i perta aplausos em círculos cortesãos mais amplos, escreve e fala francês ou:i latim, raramente o idioma nativo. E o problema da língua, o problema do

.1

··que pode ser feito com este .i<:~~n&2.!!ç.lli!.oidioma, ocupa-o também, como.~cupou tantos outros.

. . O francês espalha-se das cortes para a camada superior da burguesia.1 Todas as honnêtes gens (gente de bem), todas as pessoas de "conseqüência"lo falam. f.&-arlLanc.ês é Q síro"p_Ql<Lde....s.taJus de toda a classe superior.

Em 1730, a noiva de Gottsched escreve a seu prometido: "Nada é maisplebeu do que escrever cartas em alemão." G

Se o indivíduo fala alemão, é considerado de bom tom incluir tantaspalavras francesas quanto possível. Em 1740, E. de Mauvillon escreveu emsuas Lettres Françoises et Germaniques: ••••Há apenas alguns anos, não sediziam quatro palavras de alemão sem se acrescentar duas francesas." Issoera le bel usage (o bom emprego). 6 E ele tem mais a dizer sobre o aspectobárbaro da língua alemã. Sua natureza, diz, é "d'être rude et barbare" (serrude e bárbara). 7 Saxônios afirmam que "qu'on parle mieux l'Allemand enSaxe, qu'en aucun autre endroit de I'Empire" (O alemão é mais bem faladona Saxônia do que em qualquer outra parte do Império). Os austríacos fazema mesma alegação a respeito de si mesmos, no que são acompanhados porbávaros, brandenburguenses e suíços. Alguns estudiosos, continua Mauvillon,querem estabelecer regras de gramática, mas "il est difficile qu'une Nation,qui contient dans son seln tant de Peuples indépendans les uns des autres,se soumette aux décisions d'un petít nombre des Savans" (é difícil para umanação que abrange tantos povos independentes entre si submeter-se às deci-sões de um pequeno número de sábios).

Neste como em numerosos outros campos, à classe média, pequena eimpotente, couberam as tarefas que na França e Inglaterra eram desempe-

~ \ nhadas principalmente pela corte e pela classe alta aristocrática. Foram os ;.,'1> "servidores de príncipes" cultos que tentaram, em primeiro lugar, criar, em':

uma classe intelectual particular, os modelos do que o alemão é e, destamaneira, estabelecer; pelo menos nesta esfera intelectual, ,Uma unidade .$le-

I mã que ainda não parece realizávcl na esfera política. O conceito de Kultur\ tem a mesma função.

Mas, no' início, a maior parte do que vê na Alemanha parece tosco eatrasado a Mauvillon, um observador bem versado na civilização francesa.Refere-se ele à literatura e à língua nos termos seguintes: "Milton, Boi1eau,Pope, Racine, Tasso, Moliêre e praticamente todos os poetas importantesforam traduzidos na maioria das línguas européias. Os poetas alemães, na'maior parte, são apenas tradutores."

E continua: "Dêem-me um nome criativo em seu Parnaso, citem-me umpoeta alemão que de dentro de si mesmo tirou uma obra de reputação. De-safio-os a fazê- 10." 8 ' ,

conceitos de "civilização" e "cultura" 31

r 1O. Poderíamos dizer que esta era a opinião leiga de um francês mal-: orientado. Em 1780, porém, 40 anos após Mauvillon e nove anos antes da, Revolução Francesa, quando França e Inglaterra já haviam ultrapassado as! fases decisivas de seu desenvolvimento cultural e nacional, quando as línguas. desses dois países ocidentais haviam muito tempo antes encontrado sua forma

clássica e permanente, Frederico, o Grande, publica uma obra intitulada DeIa littérature alemande, 9 na qual lamenta o escasso e insuficiente desenvol-vimento da literatura alemã, alinha mais ou menos as mesmas afirmações so-

._ bre a língua alemã que haviam saído da pena de Mauvillon e explica como,- 'em sua opinião, pode ser remediada a lamentável situação.

Sobre a língua alemã, diz: "Considero-a uma língua semibárbara, que:se íraciona em tantos dialetos diferentes como a Alemanha tem províncias.

, , 'Cada grupo local está convencido de que seu pá/ais é o melhor", Descreveo baixo nível da literatura, lamenta o pedantismo dos intelectuais alemães

, e o pouco desenvolvimento da ciência do país. Mas encontra também uma: i razão para isto: considera o empobrecimento __alemão como resultado de I' .1

i g~ incessantes e do in.5.uficiente desenvolvimento do ~.o.E1ér~ e..da b'!!i/~';F'·.. guesla .. , lJ-~ão é". diz ele, "ao espírito ou ao gênio da nação que devemos atri-"

buir o pequeno progresso que fizemos, mas pôr a culpa em uma sucessão' -/df' ' deixou arruinad bl

\:e atos tnstes, uma guerra apos outra que nos eixou arruma os e po res ,~não só em dinheiro, mas em homens, também." !

I ' Fala do lento começo da recuperação da prosperidade: "O Terceiro\I1 Estado não mais enlanguece em vergonhosa degradação. Pais educam seus I/ ~filhos se~ se endividarem. Eis que começa ,a feliz rev~lução ~ esperamos ..'0

.'J'~. 'E profetiza que, com crescente prospendade, ocorrera tambem um .!l_~e.~c~-.r : , mento da arte e ciência alemãs, um processo civilizador que dará aos alemães

• u~lugar igual entre-as ci"emais nações: e é esta a feliz revolução a que se ,,/refere. E compara-se a Moisés, que anteviu o renascimento de seu povo sem II~v

: experimentá-lo. .11 . Tinha razão Frederico? Um ano após a publicação de sua obra,

em 1781, vêm à luz Die Rauber (Os Bandidos), de Schiller, e a Crítica darazão pura, de Kant, seguidos em 1787 por Don Carlos, do primeiro autor,e Iphigenie, de Goethe. Daí se seguiu todo o florescimento da literatura efilosofia alemã que conhecemos. E tudo isto parecia lhe confirmar a pro-fecia.

Esta nova eflorescência, porém, estivera há muito tempo em gestação.A língua alemã não adquiriu esse novo poder expressivo em apenas dois outrês anos. Em 1780, ano de publicação de De Ia littérature allemande, estalíngua há muito deixara de ser o patois semibárbaro a que se referia Fre-

. derico. Já surgira uma coleção completa de obras que hoje, em retrospeeto,'consideramos de grande importância. O Gõtz von Berllnchlgen, de Goethe,

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32 o processo civilizador

chegara às ruas sete anos antes, Jfcrther já estava em circulação, Lessing jápublicara a maior parte de suas obras dramáticas e tc6i-icãs, incluindoLaokoon (Laocoonte) em 1776 e Die Hamburgische Dramaturgie (Drama-turgia de Hamburgo) em 1767. Frederico falecera em 1781, após a publica-ção de seu trabalho. Os escritos de Klopstock haviam sido publicados muitoantes, como o Messias, que veio a lume em 1748. Tudo isto sem contar oSturm und Drang, peçasde Herder, e uma série completa de romances muitolidos, tais corno Das Fráulein von Sternheim, de SOQhied~Ja.Rocbe. Muitotempo antes despontara na Alemanha uma classe .de compradores, um públi-co burguês - mesmo que ainda relativamente diminuto - g~e.~~.ipl.~I~~.SªY1l..por essasobras. Ondas de grande agitação intelectual varreram a Alemanhae encontraram expressão e'.!L...aI.:tigc~,.Ii.~rQs,..peças de te'!t.rp c ou!ras obras.

, A1f!lguª~~mã tornara-s~ica e flexível.Nada disto Frederico sequer sugere em seu trabalho. Ou não o vê ou

não lhe atribui importância. Menciona uma única obra da jovem geração, amaior obra do período de Sturm und Drang e do entusiasmo por Shakespea-re, Gõtz v01i Berlinchingen Caracteristicamente, alude a essa obra em cone-xão com a educação e formas de divertimento das basses classes, os estratosmais baixos da população:

A fim de se convencerem da falta de gosto que reina na Alemanha até nossosdias, basta comparecer aos espetáculos públicos. Neles verão encenadas as obrasabomináveis de Shakespeare, traduzi das para nossa língua; a platéia inteira entraem êxtase quando escuta essas farsas, dignas dos selvagens do Canadá. Des-crevo-as nestes termos porque elas pecam contra todas as regras do teatro, regrasque não são em absoluto arbitrárias.

[

Olhem para os carregadores e coveiros que aparecem no palco e fazem dis-cursos bem dignos deles; depois deles entram reis e rainhas. De que modo ·pode

."'. esta mixórdia de humildade e. grandiosidade, de bufonaria e tragédia, ser como-i vente e agradável?

Podemos perdoar Shakespeare por esses erros bizarros; o começo das artesnunca é seu ponto de maturidade. .

Mas vejam em seguida GÓIZ von Berlinchingen, que faz seu aparecimentono palco, uma imitação detestável dessas horríveis obras inglesas, enquanto opúblico aplaude e entusiasticamente exige a repetição dessas nojentas imbeci-lidades.

E continua: "Depois de me ter referido às classes baixas, é necessárioque eu prossiga com a mesma franqueza no tocante às universidades."

r" 12. O homem que assim fala é o que fez mais do que qualquer de. seus contemporâneos pelo desenvolvimento político e econômico da Prússia

e talvez, indiretamente, pelo desenvolvimento político da Alemanha. Mas atradição intelectual em que se formou e que nele encontra expressão é acomum à "boa sociedade" da Europa, a tradição aristocrática da sociedade I'de corte, anterior à nação. E ele lhe fala a língua, o francês .. Pelos padrões- - ----.-._--~

conceitos de "civilização" e "cultura" 33

de seu gosto, mede a vida intelectual da Alemanha. Os modelos prescritoslhe determinam o julgamento. Outros desta sociedade, muito tempo antes,referiam-se a Shakespeare de forma bastante parecida. Em 1730, por exem-pio, Voltaire deu expressão a pensamentos muito semelhantes no Discourssur Ia tragédie, no qual apresenta a tragédia Brutus: "De modo algum finjoaprovar as irregularidades bárbaras que a saturam (a tragédia Júlio César, '

. de Shakespeare). Surpreende aperias que não haja ainda mais disto numa \(I J obra e.scrita. em uma e!a de ignorân.da ~.ar um,..b.9.m~IlL.~..~t.l~ ~.~~smo. JJ; c~~ue naO ~e mestre •...exc~to s~_ 2.!.6p-nQgemo." ,

O que Frederico, o Grande, diz sobre Shakespeare é, na verdade, a opi-!nião geral ,g.íLÇJ~lta-d<LEuropa, ql!.~....§.º-.s~Le.xp-~~.-e~ês. Ele inem "copia" nem "plagia" Voltaire ..~eve é sua sincera oIili!i.ão.\pessoal. Não acha graça nos chistes rudes e incivilizados de coveiros e gentedamesma laia, ainda mais se aparecem misturados com os grandes senti-mentes trágicos de príncipes e~~Js. Acha que nada disso tem forma clara e Jconcisa ~ue são" razeres das classes ~". É desta maneira que seus.comentários . evem ser compreen ~ão são nem mais nem menos indi-' /viduais que a língua francesa que usa .. Ç.Q.mçLel~!_atestam sua fi1iaS.~J!-Y__I1),a

!sociedade particular. E o paradoxo de que, enq~~_t.9_.~~~l'.<J~i~.caera l.>~s-\ [siana, sua tradição estética era francesa (ou, mais exatamente, absolutista de, ('Corte), não é tão acentuado como os atuais conceitos de uniformidade nacio-

-. 'nal poderiam sugerir. Ele está inseparavelmente ligado à estrutura peculiar'.dessa sociedade de corte, cujas instituições e interesses eram multifariamente':fragmentados, mas cuja estratificação social se fazia em estamentos cujo

.~ );;gosto, estilo e língua eram, de maneira geral, os mesmos por toda a Europa),~ As peculiaridades dessa situação ocasionalmente geravam conflitos ín~~, \rimos no jovem Frede:ic? e, aos poucos, ele .se deu conta .d.eque os interesses~ do governante da Prússia nem sempre podiam ser conciliados com a reve-:: ~ rência pela França e a observância de costumes cortesãos. 1Q Durante toda~lsua vida, esses conflitos ocasionaram certa desarmonia entre o que ele fazia

~-:_ como governante e o que escrevia e publicava como ser humano e filósofo.Os sentimentos da intelligentsia burguesa alemã em relação a ele mos-

travam às vezes um igual paradoxo. Seus sucessos militares e políticos deramà auto-consciência alemã um tônico de que há muito carecia, e para muitosele se transformou em herói nacional. Mas sua atitude em questões de línguae gosto, que encontrou expressão na obra sobre a literatura alemã, emboranão apenas nela, era exatamente o que a lrüelligentsia do país, melhor dizen-do, enquanto inielligentsia alemã, tinha que combater .

A situação dessa classe tinha seu análogo em quase todos os maiores"Estados alemães e em muitos dos menores. No topo, por quase toda a Ale- .,

manha, situavam-se indivíduos ou grupos que falavam francês e decidiam a ;'política. No outro lado, havia uma intelligentsia de fala alemã que de modo:geral nenhuma influência exercia sobre os fatos políticos. De suas fileiras

I/

II

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34 o processo clvilizador

saíram basicamente os homens por conta dos quais a Alemanha foi chamadade terra de poetas e pensadores. E deles, conceitos como Bildung e Kulturreceberam seu cunho e substância especificamel1t(: alemães.

IV

A Classe Média e a Nobreza de Corte na Alemanha

-,./

13. Constituiria um projeto notável (e sobremaneira fascinante) de-'!.> monstrar o quanto as condições espirituais e ideais específicas de uma socie- I

i dade absolutista de corte encontraram expressão na tragédia, francesa, que! Frederico, o Grande, contrapõe às tragédias de Shakespeare, e o Gõtz; A im-i portância da boa forma, a marca característica de toda "sociedade" autên-

tica; ~Lcontrol~sentimentos individuais pela razão, esta uma necessidadevital para todos os cortesãos; o ~ºmQ.~!"ª,rnento_r~~IYaC!O--.JLaeliminação de!99as as ex ressões plebéias, sinal específico de uma fase particular narotapara a "civilização" - tu Qjstotem sua mais pura m~nifestaç~-º~ia

~~ássiça. O que tem que ser ocultadõ na vida cortesã, todos os sentimentose atitudes vulgares, tudo o que "a pessoa" não diz, tampouco aparece na

\ tragédia. Gente de baixa posição ~oçiªl~ q!!~,-I)-ª"raest!Lclass~_sjgnifi~~m,Lcará.t.eLW, nela não tem lugar. Sua forma é clara, transparente, precisamente

j~ regulada, tal como a etiqueta e a vida cortesã em geral. 11 Apresenta os \membros da corte como eles gostariam de ser e, ao mesmo tempo, como ospríncipes absolutos os querem ver. E todos os que viveram sob o moldedesta situação social, fossem ingleses, prussianos ou franceses, tiveram seugosto conformado ao mesmo padrão. O próprio Dryden, que depois de Pope."é o mais conhecido poeta cortesão da Inglaterra, escreveu sobre o teatroprimeiro inglês quase na mesma veia que Frederico, o Grande, e Voltaire;leiamos o epílogo de Conquest of Granada:

Tendo a finura (wit) atingido um mais alto grau,E nossa língua nativa se tornado mais refinada e livre,Mulheres e homens ora falam com mais graça (wit)Em suas conversas do que os poetas as descrevem,

º vínculo. com-ª-l!i)tratifjç..ação social é muito clara noj!!iZQ, estético .:Frederico~-igiia-ime;te, defende-s~-da falta de gosto de se justapor no palco

i a "grandeza trágica" de príncipes e rainhas com a "rudeza" de carrega-,. \1 dores e coveiros. Como poderia ter ele compreendido e aprovado uma

lobra dramática e literária que focalizava, acima de tudo, a luta contra di-ferenças de classe, um trabalho que tinha a intenção de mostrar que não

conceitos de "civilização" e "cultura" 35

) só os sofrimentos de príncipes e reis e da aristocracia cortesã, mas tambémos de pessoas situadas mais baixo na classe social, têm sua grandeza e suajragédia?

Na Alemanha, igualmente, a burguesia torna-se mais próspera. O reida Prússia percebe este fato e diz a si mesmo que ele levará ao despertarda arte e da ciência, a uma "feliz revolução". A burguesia, porém, falauma língua diferente da usada pelo rei. Os ideais e gosto da juventude bur-guesa, seus modelos de conduta, são quase o oposto dos seus.

Em Dichtung und Wahrheit (Poesia e verdade), Livro 9, escreve Goe-'.;;the: "Em Estrasburgo, na fronteira francesa, libertamo-nos imediatamente,do espírito dos franceses. Descobrimos que seu estilo de vida era reguI..a-[mentado e aristocrático demais, fria a sua poesia, destrutiva sua crítica li- "terátla~-eabstrusa eJnsatIsfatória sua filosofla:T

'

Escreve Gõtz com este estado de espírito. Como poderia Frederico, oGrande, o homem do gosto esclarecido, do absolutismo racional e aristo-crático-cortesão, tê-lo compreendido? De que modo poderia o rei ter apro-:vado as peças e teorias de Lessing, que elogia em Shakespeare exatamente i "

I r o que Frederico condena: que as obras do dramaturgo inglês ajustam-se!. muito mais ao gosto do povo do que os clássicos franceses? }

"Se alguém houvesse traduzido as obras-primas de Shakespeare ...para os nossos alemães, sei com certeza que teria colhido melhores resul-tados do que fazendo-os conhecer Corneille ou Racine. Para começar, aspessoas sentiriam muito mais prazer nele do que neles."

,\. ~§~ing escreve estas palavras em suas Cartas sobre a literatura mais'recente (Parte 1, carta 17) e pede, e escreve, dramas burgueses apropria- /dos à recém-despertada autoconsciência da classe burguesa, ~que acredita 'v

que os membros da corte não possuem o direito exclusivo de screm'gran--de~~'~sta odiosa distinção que os homens--tiaçãram entre si," diz, "a na- \---- ~-

'; ~r~~ª-de~e. Ela distribui, as......qJ.lalidadesdo coração_§.~m qualquer pre-./J[j fçr.ência_12eIQL.!!.Q.brese pelos ricos.'?" .

. ~ Todo o movimento literário da segunda metade do século XVIII éproduto de uma classe social - e, conseqüentemente, de ideais estéticos -.que se opõe às inclinações sociais e estéticas de Frederico. Por isso mesmo,nada têm a lhe dizer, e ele, por seu lado, ignora as forças vitais já ativas àsua volta e condena o que não pode ignorar, tal como o Gõtz. Este movi-mento literário alemão, cujos expoentes incluem Klopstock, Herder, Les-sing, os poetas do Sturm und Drang, os poetas de "sensibilidade" e o cír-culo conhecido como Gõttinger Hain, o jovem Goethe, o jovem SchilIer etantos outros, certamente não é um movimento político. Com raras exce-ções, não encontramos na Alemanha, antes de 1789, idéia alguma de açãopolítica concreta, nada que lembre a formação de partido político ou pro-grama partidário. Mas de fato encontramos, sobretudo no mundo oficialprussiano, propostas, e também o início prático, de reformas em termos de

.~ I~ '~.:

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36 o processo civilizador

absolutismo esclarecido. Em filósofos como Kant deparamos com o desen-volvimento de princípios básicos gerais que, em parte, se opõem diretamen-te às condições vigentes. Nos trabalhos da jovem geração do Gõttinger 'Hain surgem manifestações de violento ódio a príncipes, cortes, aristocra-tas, afrancesadores, à imoralidade das cortes e àf~igiº~zjm!êl~ç~ual. E portoda a parte, entre os lóVeliS<ra classe média, identificamos sonhos vagos i

de uma nova Alemanha··Uilida:-de·Úffia--viaa "natur!il.'..' _, "natural" em !contraste com a \ida "antinatural" da...s.Qciedade de c~-, .~_.freqüeDte-Ji

mente um irresistível d~le!t~_c.º_f!l suaQ~óp!ia _~~lI~g.rân.çLa".A~.sentimen!.9s.Pen~am~ni()~sentimentos - l}!~~-Dada ue pudesse, em qualquer!

~tid9~ culminas em ação política COncreta. A estrutura esta socleãaae iabsolutista de pequenos Estados não proporcionava uma abertura a ela. Ele- ;mentos burgueses ~ui.ri.ram...~~a, maso ..arcahO.l.l.ÇQ.doustados I;flbsolutistas perman~_S~JL.inabalªdo. Os elementos burgueses foram excluídos, f

de tõdã- e- qüãlqüer atividade; Na melhor. das hipóteses, podiam "pensar el' ~e~er" ind.ependenteme~, mas não agi[ da mesma forma. I

Nessa situação, a: literatura torna-se o escoadouro ma;; importante. 1\ Nela, a I.l2Y.ª"-~u.tºçº-n.!iaJ~9~e o '0E.o__gescoPleI1talJ.!~lJ,ts-com a ordem vi- .

gente expressam-se de forma mais ou menos encoberta. Nela, que o apa-,. relho dos Estados absolutos havia liberado até certo ponto, a geração jo-

vem da classe média contrapunha seus novos· sonhos e idéias contrárias, e~m eles a língua alemã, aos ideais corte.s.ã&..s.

Conforme dito acima, o movimento literário da segunda metade do( século XVIII não tem caráter político, embora, no sentido o m.ais amIili>' . --. . _ ..-_.- ..-: ~.ossível, constitua manif.estacão de ll_ITLmQyjment~socÚi.ç·-uma transforma-

ç.~_oda sociedade. Para sermos exatos, a burguesia como um todo nele ain--) da não encontrava expressão. Ele começou sendo a efusão de uma espécie

~ de vanguarda burguesa, o que descrevemos aqui como intelligentsia declasse média: numerosos indivíduos na mesma situação e de origens sociaissemelhantes espalhados por todo o país, pessoas que Se compreendiam por-que estavam na mesma situação. Só raramente membros dessa vanguardase reuniam em algum lugar COmo grupo durante um período maior ou me-nor de tempo. Qll~~_~ernpre vivia~i!'9!ados ou. sQ~!i>i.~~_'!.~~:...emrelação ao povo, m~_Qessoas _de segy_nda classe..aQs olhos dlLa!ist~!:...~<i?

'cortesã.

---R-;;petidamente, encontramos nessas obras ~.Iigação entre, taL p.osiB.O' :~iaL~º~_iQ.~_is __!1elll§.'p~~~lados: q,.3!.~~ª-<L.à.liºerd9-de~ ..f~-1!~ç~o_ s(~litáJ:t~,a J!.ndiç~ às em2S.g~~A!?~$~Of~1.!.o,sem à· .frEio clL'~o

'--~~. Nô-·Werther, cujo sucesso demonstra como esses sentimentos eramltípicos de uma dada geração, isto é dito de maneira bem clara e inequívoca]

Em data de 24 de dezembro de 1771, lemos: "O sofrimento resplen-decente, o tédio reinante entre as pessoas detestáveis aqui reunidas, a com-

conceitos de "civilização" e "cultura" 37

petição entre elas por posição, a maneira como constantemente procuramiliêT6!'-· delúnpas~·âf" na frente do outro. __"

E em 8 de janeiro de 1772: "Que tipos de pessoas são estas cuja almainteira se ra~i_<:ano cerimonial e cujos pensamentos e desejos o ano inteirocentralizam-se em -Cõm~··pode·maproximar ...uma, cadeira da mesa?"

E em 15 de março de 1772: "Rilho os dentes ... Após o jantar nacasa do conde, andamos de um lado para o outro no grande parque. Apro-xima-se a hora social. Penso, sabe Deus sobre nada." Ele permanece ali, os

'nobres chegam. As mulheres murmuram entre si, alguma coisa circula entreos homens. Finalmente, o conde, um tanto embaraçado, pede-lhe que se re-tire. A nobreza sente-se insultada ao ver. um burguês entre seus membros.

"Sabe", diz o conde, '''acho que os convivas estão aborrecidos em9 vê-lo aqui.'... Afastei-me discretamente da ilustre companhia e me dirigi

a M., a fim de observar o pôr-do-sol do alto da colina, enquanto lia nomeu Homero o canto que celebra como Ulisses foi hospitaleiramente rece-

'- bido pelos excelentes .&.\l.ardad_()!~~.~eporcos.", Por um lado, ~Qerfici'!!i~~ade, cerimôníac.conversas.Jnrrnaís: por ou- )

(

tro, vida interior, profundidade de senl\!!lento, abso~Q. em livros, desen- II. volvimento efilpersonalidiide individual. TemOs o-mesmo contraste referido li

por Kant, na antítese entre Kultur e civilização, aplicado aqui a uma situa- Ição social muito específica.

No Werther, Goethe mostra também com particular clareza as duas ,frentes entre as quais vive a burguesia. "O que mais me irrita", lemos naanotação de 24 de dezembro de 1771, "é nossa odiosa situação burguesa.

! Para ser franco, sei tão bem como qualquer outra pessoa como são neces-sárias as diferenças de classe, quantas vantagens eu mesmo lhes devo. Ape-nas não deviam se levantar diretamente como obstáculos no meu caminho."Coisa alguma caracteriza melhor a consciência de classe média do que essadeclaração. _Â.!...E...0rtasdebaixo devem permanecer fechadas. As que ficam

l \..~ci~a têm que estar abertas. E como todas as classes médias, esta estava\ \ aprisionada de uma maneira que lhe era peculiar: lliLQ...E.?dia~nsq.LQP'. I derrubar as paredes que bl9queaYiJ.ffi a ascensão por medo de que as que; "a separayam dos estr~os maiLbai~os pude~.sem [email protected]~.Q....§._t.~9E~ - c

., Todo o movimento foi de ascensão para a nobreza: o bisavô de Gocthe\fora ferreiro.P seu avô alfaiate e, em seguida, estalajadeiro, com uma clien- \tela cortesã, e maneiras cortesãs-burguesas. Já abastado, seu pai tornou-seconselheiro imperial, burguês rico, de meios independentes, possuidor de ti- 'tulo. Sua mãe era filha de uma família patrícia de Frankfurt.

O pai de Schiller era cirurgião e, mais tarde, major, mal remunerado;mas seu avô, bisavô e tataravô haviam sido padeiros. De origens sociais se-melhantes, ora mais próximas ora mais remotas, dos ofícios e da adminis-tração de nível médio vieram Schubart, Bürger, Winkelmann, Herder, Kant,Friedrich August Wolff, Fichte, e muitos outros membros do movimento.

~~'

~

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38 o processo civilizudor

14. Na França, ocorria um movimento análogo. Ali, também, emconexão com mudança social semelhante, grande número de homens notá-veis emergiram de círculos da classe média, entre eles Voltaire e Diderot.Na França, porém, esses talentos eram recebidos e assimilados sem maioresdificuldades pela grande sociedade de corte de Paris. Já na Alemanha, aosfilhos da nascente classe média que se distinguiam pelo talento e inteligên- ,cia era negado acesso, na sua grande maioria, à vida cortesã-aristocrática. \ i

Uns poucos, como Goethe, conquistaram certa preeminência nesses círcu-los. Mas, à parte o fato de a corte de Weirnar ser pequena e relativamentepobre, Goethe foi uma exceção. De modo geral, permaneceram muito altas \ l

. segundo os padrões ocidentais, as paredes entre a intelligentsia de classe i ."-média e a classe superior aristocrática na Alemanha. Em 1740, o francês \ t-Mauvillon anota que "observamos nos gentil-homens alemães um ar alta-neiro que chega ao ponto da arrogância. Emproados de urna linhagem cujaextensão estão sempre prontos a provar, desprezam todos aqueles que não

. são analogamente bem dotados". "Raramente", continua, "~.tra~é-\\[~.5s. Mas não menos raramente .SãO vistos comportando-se de forma" simples e afável com membros da classe média. E se desdenham conúbio

com eles, ainda menos lhes procuram a companhia, quaisquer que sejamseus mérítos.v-s .

Nesta divisão social muito nítida entre nobreza e classe média, confir- : •mada por incontáveis documentos, lIJ!Liator decjsjyo era sem dúvida a in-~\ I digência relativa de ambas. Ji\QJ~Y..!l-vaos nobres a se is.~, utilizando

J<: a prova de ancestralidade como o instrumento mais importante para lhespreservar a existência social privilegiada. Por outro lado, bloqueava à clas-se média alemã a principal rota pela qual ascendiam os elementos burgue- ,ses de países ocidentais casavam e eram recebidos pela aristocracia: atra- Jvés do dinheiro.

Mas quaisquer que tenham sido as causas - sem dúvida altamentecomplexas - dessa separação muito nítida, ~I~§!-!Ham~..P!ii~º-$Ll!.\L_dJLfu- ,

\ s~~.. e.f!tre_..()_Ll!!º-~!os aristocrát~çº$ de_.corteeQs.vl!lor_~~º<!~5:.aºo.s.nº_m9-\ rito intrínseco, por um lado, e os modelos e valores burgueses fundamenta-\"dó·s-·.~.as-r~.!:!izaçõC::2.por outró,' infIuencio~ durante longot~~p~ ~ 'cãfáiér

-) I riâciónal alemão, à medida que este foi emergindo desde então. Esta divisão 1 '

! explica por que uma corrente lingüística principal, a linguagem dos alemães; educados, e quase toda a tradição intelectual recente enfeixada na literatura,receberam seus impulsos decisivos e aprovação de um estrato intelectual declasse média que era muito mais pura' e especificamente classe média que

: a correspondente intelligentsia 'francesa e mesmo mais que a inglesa, esta. última parecendo ocupar uma posição intermediária entre as da França eAlemanha.

A P~~}l!_'!.~e~t9~i~º-!ª-mento, o destaqu~_~~.e.~\!.9fico e ~~istintivo,'que antes vimos na comparação entre o conceito alemão de Kultur e o oci-

':,.,.

39 ,.:'./

conceitos de "civilização" e "cultura"

dental de "civilização", aqui reaparecem como característicos do desenvol- \vimento histórico alemão.

Mas não foi só externamente que a França se expandiu c colonizououtras terras mais cedo em comparação com a Alemanha. Internamente,também, movimentos análogos são muitas vezes identificados em sua histó-ria mais recente. De particular importância neste sentido foi a difusão demaneiras aristocráticas de corte, a tendência da aristocracia de corte a as-similar e, por assim dizer, colonizar elementos de outras classes. O orgulhosocial da aristocracia francesa é seinpre muito grande e a ênfase em dife-renças de classes nunca perde importância para ela. As paredes que a cer-cam, porém, têm mais aberturas e o acesso à aristocracia (e assim a assi-milação de outros grupos) desempenha aqui um papel muito maior do quena Alemanha.

A expansão mais vigorosa do império alemão ocorre, em contraste, naIdade Média. A partir dessa época, o Reich alemão diminuiu lenta mas inin-tcrruptamentc. Mesmo antes da Guerra dos Trinta Anos, e muito mais após,os territórios alemães são confinados de todos os lados e forte pressão éaplicada em quase todas suas fronteiras externas. Por 'isso mesmo, as lutasdentro da Alemanha entre os vários grupos sociais que competiam poroportunidades limitadas e pela sobrevivência e, por conseguinte, as tendên-cias para distinções e exclusões mútuas em geral foram mais intensas do!]que nos países ocidentais em expansão. Tanto quanto a fragmentação do'

li . território alemão em grande número de Estados soberanos, foi este isola- ji mento extremo de grandes segmentos da nobreza face à classe média alemã ,.';:/

}i!l,9..l!..edificultou a formação de U!)1asoc~_da,de unific~~a,. centra!, ~~s~- ...,;'I J

t'belecessc um modelo, o que em outros paises adquiriu importância decisi- };l/

/, : va, pelo menos como fase no caminho da nacionalidade, pondo sua marca, '/'. I: : em certas fases, na língua, nas artes, nas maneiras, e na estrutura das emo- J

f . ções.

vExemplos Literários da Relação entre a Intelligentsia

de Classe Média Alemã e a Cortej

15. Os livros de classe média que obtiveram grande sucesso de pú-"I

blico após meados do século XVIII - isto é, no período em que essa 'classe se expandia em prosperidade e autoconfiança - mostram com muita .)

i Lclareza a que profundidàdeeramserÍtidãi"'essas- diferenças. Demonstram -')J

também que as diferenças entre a estrutura e a vida da classe média, por

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40 o processo civitizaâor conceitos de "civilização" e "cultura" 41

um lado, e a classe superior cortesã, por outro, eram acompanhadas pordiferenças na estrutura do c;>mportamento, vida emocional, aspirações em.9ralic!ªQ.e.E indicam - por força, unilateralmente - como elas erâm

'_ ~istas no campo da classe média.Temos um exemplo disto no conhecido romance de Sophie de Ia Igl-

~ Das Friiulein von Sternheim, 15 que tornou a autora u'ma das mulheresmais famosas de seu tempo. "Todo o meu ideal de jovem mulher," escreveuCaroline Flachsland a Herder depois de ler Sternheim, "suave, delicada,~arido~a•. orgulhosa, virtuosa, eenganacta..: Passei preciosas --e maravilhosashoras lendo o livro. Ai de mim como ainda estou longe de meu ideal, demim mesma."16

O curioso paradoxo existente 110 fato de que Caroline Flachsland.jcomo tantas outras mulheres de formação semelhante, ama seu próprio so-frimento - que incluía ser enganada, juntamente com caridade, orgulho evirtude, entre as qualidades' da heroína ideal com que deseja se parecer.- é altamente característico do estado emocional da intelligentsia de classe]média e, em especial, das mulheres entre ela, nessa era de sensibilidade. A.

, heroína de classe média é enganada por um cortesão aristocrático. A adver-l;'l} I' tência, o medo de um "sedutor"; socialmente superior, que não pode ca-l.

sar-se com a moça por causa da- distância social, o desejo de receber sua';atenção, o fascínio da idéia de penetrar no círculo fechado e perigoso e, I,

I finalmente, a empatia identificadora com a moça enganada, tudo isto cons-] .i titui exemplo da ambivalência específica que obcecava a vida emocional.'; dos membros da classe' média - e não apenas de mulheres - no tocante'] 'I à aristocracia.; Das Frãulein von Sternheim é,. "-~~~pecto, a contrapartida\ 1

L feminina de Werther. AmbaLaLºbras trata!ll de.emaranbamentos específi-/:cos de classes que se traduzem em sentimentalismo •....sensi.bili.dª-deL-e n_uani i

ças correlatas de emoção.= O problema de qu~ trata o romance: Uma moça do campo, de altosi'

1

1•.}princíPiOS, originária de uma classe de proprietários de terra, chega à corte.!,Jl , O príncipe, aparentado com ela pelo lado da mãe, a deseja como amante. I' \

: Não vendo outra escapatória, ela busca proteção junto ao "vilão" do ro- !9;, mance, um lorde inglês que vive na corte e que fala~.!atamente comol ~

! numerosos círculos de classe média teriam imaginado _q!!Lf~edu-1 '1 tor aristocrático" e que'-produzumcleito._ cÔi:!l.ic~porque, __~~_§'«JILQ.ensa-:

ni~llXº~JJ~Lsesens\Ú:a·-Usaiidõ-expiessõeL.<k-.classe mé~ Mas graças a ele,também, a heroína conserva su-ªyi.rt~~ sua superioridade moral, compen-;

I sações por sua inferi~ridade de ci;s~e, e màrr~.':::-··P""""'~-=--===:-. ,--i;-.0_- . ".. --';r--- _,_ ~.. _- -..---- ----.-- ...- .-

E e assim que fala a heroína, Frãulein von Sternheim, filha de um co-ronel agraciado com um título: 11

eles, enche-me de desprezo e piedade. A sede de distrações, de novos atavios,de admiração por um trajo, uma peça de mobiliário, um novo prato absurdo,oh, minha Emília, como se agita e adoece minha alma ... Não vou falar da falsaambição que trama tantas intrigas vis, rasteja diante do pecado ocultado pelaprosperidade, ~~com..Jlespr~zo_ !\.__ ~Etud.e_.e o méri!2 e, indiferente, faicom que outros se sintam inteITZes.

"Estou convencida, tia", diz ela após alguns dias no palácio, "de quevida da corte não se coaduna com meu caráter. Meus gostos, minhas in-

'Iclinações, divergem dela de todas as maneiras. E confesso a minha bondosa

\

tia que iria embora mais feliz do que aqui cheguei."\: ! "Querida Sophie", responde a tia, "você é realmente uma moça ex-

l<> traordínarlamente encantadora, mas o velho_~gário lhe encheu a cabeça deidéias~pedantes. Esqueça-as um pouco." 18

Em outro trecho, Sophie escreve: "Meu amor pela Alemanha acabade me envolver em uma conversa na qual tentei defender os méritos damãe-pátria. Falei com tanto entusiasmo que minha tia me disse depois queeu tinha feito uma bela demonstração de ser nela.d~.Jlm professor. .. Estarepreensão me deixou mortificada. Foram insultadas as cinzas "de-meu paie avô."

O clérigo e o professor - estes são realmente os dois representantes .'mais -importantesuoã-íntelligentsía administrativa de classe média, duas fi- . Jguras sociais que desempénliiiiam-papeld-êCísIVü'nã- fo-imaçãõ~e difusão de ;\ I uma nova língua alemã culta. Este exemplo mostra com muita clareza !

jJ como o vago sentimento nacional desses círculos, com suas inclinações es- ,.!~o pirituais, não-políticas, parece burguês à aristocracia das pequenas ·cortes. i i

Ao mesmoteinpo; .Clérigo e professor chamam atenção para o centro so-cial mais importante na modelação e disseminação da cultura de classe mé- .dia alemã: a universidade. Dela, geração após geração de estudantes disse- .minaram pelo país, como mestres, clérigos e administradores de nível mé-dio, um complexo de idéias e ideais marcados de uma maneira particular.A universidade alemã foi, nesse. sentido, o, C(mjr.llp-~s_o__dª-_çl~~m~_dia, à •

J ... " .... ---.'l. ~_ºr..te.

Desta maneira, é nas palavras com que o pastor poderia fulminá-lo dopúlpito que o vilão da corte se expressa na imaginação da classe média: H

..:,..J

Você sabe que nunca concedi ao amor qualquer outro poder sobre meus sentidos,cujos mais delicados e vivos prazeres propicia... Todas as classes de beleza seentregaram a mim... Delas fiquei saciado... Os moralistasv . , podem dizer oque quiserem sobre as finas redes e armadilhas com as quais capturei a virtudee o orgulho, a sabedoria e a frigidez, o coquetismo e mesmo a religiosidadede todo o mundo feminino ... O amour satisfez minha vaidade. Trouxe do maisatrasado lugar do campo uma filha de coronel cujo corpo, mente, e carátersão tão encantadores que ..•

Ver como o tom, o estado de espírito que está na moda na corte, reprime osanseios mais nobres de um coração admirável por natureza, ver como evitar aszombarias de senhoras e cavalheiros elegantes significa rir e concordar com

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42 o processo civilizador

f:- Vinte e cinco anos depois, antíteses, idéias e problemas correlatos se-

melhantes ainda podem merecer um sucesso de livraria. Em 1796, o Agne,von Lilien,20 de Caroline von Volzogen, 312arece nas H~.

INeste romance, a mãe, da alta aristocracia, que por razões misteriosas tem.que mandar educar a filha fora do círculo da corte, diz:

~~

Sinto-me quase grata pela prudência que me obriga .a mantê-Ia longe do círculono qual me tornei infeliz. }lma formacão sêria e sólida da mente é rara naalta sociedade. Você poderia ter-se transformado em uma pequena boneca quedança de um lado para o outro ao sabor da opinião.

E a heroína diz de si mesrna.ê-

Eu pouco sabia da vida/ convencional e da linguagem de pessoas mundanas. Meusetincípios simples achavam paradoxais muitas coisas que uma mente tornada

\ .mais maleável pelo hábito aceita/ sem esforço. Para mim era tão natural como

La noite seguindo-se. ao dia li!Jllentar a jovem enganada e odiar o enganador,JW:ferír a virtude à honra e a honra à vantagem própria. Na opinião. dessasociedade eu via todas essas .idéias de cabeca para baiXO. .

Ela descreve em seguida o príncipe, um produto da civilização fran-cesa:2:a

"·O';príncipe, que' tinha' entre '60 e 70 anos de idade, oprimia a si mesmo e aosdemais. com a rígida e antiga etiqueta que os filhos dos príncipes alemãeshaviam aprendido na corte do rei francês e transplantado para seu próprio solo,

·embora •. reconhecidamente, em dimensões algo reduzidas. O principe aprendera'. "~O pela idade e. hábito a mover-se quase com naturalidade sob esta pesada arma-'. ',.du'i-a',de cerimônia. Com relação às' mulheres, observava a cortesia elegante,

·'exagerade, da' era pretérita da cavalaria andante, de' modo que sua pessoa nãoi lhes era desagradável, mas ele não podia deixar nem por um instante a esfera·das boas maneiras sem se tornar insuportável. Seus filhos ... viam no pai apenas~o,déspota. ,

. ··~/!j.;..t("::·.M maneiras car~caturais, e~tre. os membros da. corte, ora me. pareciam ri-) ,_I'dlculas ora larnentâveis, A reverencia com que+podiam, ao aparecimento de seu\:J'-<'lsenhor, convocar imediatamente do coração para as mãos e pés, o olhar gra-

/ ;, !cioso: ou raivoso que lhes trespassava o corpo' como um choque elétrico ..• a" :concordância imediata de suas opiniões com as palavras mais recentes caídas dos

~lábios principescos, tudo isto achei incompreensível. Pareceu-me que estava!assistindo a um teatro de marionetes.\... ' . ~.

1r. Corte~l~..2!l.broissã~hoas-maneiras, por um lado, e ~d.u~aç.ã2_sólida e ,I:.1 p~ef.~rência. pela. virtu?e. antes da .h0E!.~, por outro: ,a literatura alemã' na J""~ segunda metade do século XVIII abundLd~ssas.....an~s. Em data recen~

, te como 23 de outubro de 1828, Eckermann diz a Goethe: "Uma educaçãotão completa como o Grão-Duque parece ter recebido é sem dúvida rara en-

Revista literária: Horas. (RIR) .

-:": .I~, J.

,. -Ó, .,. • i .

conceitos de "civilização" ~ "cultura" 43

tre personagens principescos". "Muito rara", responde Goethe, "Há muitos,para ser exato, que podem conversar inteligentemente sobre qualquer as- li

sunto, !!!.as não possuem conhecimentos profundoseapenaaarranham .a su- 'Q~!Íície. E isto não é de espantar, se pensamos nas espantosas distrações e!truncamentos que a vida da corte acarreta". :;

Em uma ocasião, utiliza com grande clareza o conceito de Kultur nes- i ite contexto: "As pessoas com quem convivi", diz, "não tinham idéia do \que seja erudição. Eram cortesãos alemães e esta classe não possui nenhu-]ma Kultur'Ps E Knigge observa certa vez explicitamente: "Onde mais do Ique aqui (na Alemanha) os cortesãos formam uma ~t?5f~<?~pll:r.~~J.:' I

16. Em todas essas citações há uma situação social bem definida. ÊI Ja mesma que se observa por trás do contraste que Kant estabelece entre:Kultur e civilização. Mas mesmo independentemente desses conceítos.: essa l J:fase e as experiências dela derivadas gravaram-se com profundidade na tra- .....V-i:

~_i.~"~",}diçãoalemã. CLqu~~ ~anifesta ne~ ~oncei.to.-d~ KuTtIl'; ~tes~.entre i ~.</ i.,..N.Of~uperf1CE~~, _e em muitos conceitos correlatos e, acima de

J,

/.' ~udQ auto-imagem do estrato intelectuaLae.. classe média. Esta é uma ca-

\1 níada relativamente delgada que se estende por' toda a área e, por conse-I guinte, é individualizada em alto grau e em uma forma particular. Não

constitui, como acontece com a corte, um círculo fechado, uma "socieda-JIc'" ~mpõe-~e predominantemente d~ administradores, de servidores civis"; no sentido mais amplo da palavra ~ Isto é, de pessoas que direta ou indi-j \retamente obtêm sua rendada corte, mas que, com poucas exceções, nãollpertencem à "boa sociedade" cortesã, à classe alta aristocrática.Ê uma

classe de intelectuais com ampla formação de classe média. A burguesia co-mercial, que poderia ter servido como público para os escritores, é relati-vamente subdesenvolvida na maioria dos Estados alemães no século XVIII.

filA ascensão para a prosperidade apenas ensaia os primeiros passos nesse pIIríodo. Até certo ponto, por conseguinte, os escritores e intelectuais alemães11como. que flutuam no ar. ~J?~_ ~.Jiyr()s s.ã9, seu x:c:;fúgigec;l<?g1íp.jp,.e, as .Itre_~i~a.çé?~y'~_~~~_i~.ãC?,e..!l~..a.~.~e..s~u motivo de orgu11!o. Dificilmente exis-i ) te para esta classe. oportunidade de ação política, d~, metas políticas, Para

J J ela, '?~omércto e aordemeconômica, em conformidade com a estrutura davida que levam e da sociedade onde se integram, são interesses marginais.O comércio, as comunicações e as indústrias são reíãti~amen'tesÜbdesêiivol- j'vidas e ainda necessitam, na maior parte, de proteção e promoção mediante uuma política mercantilista, e não de libertação de suas restrições. O que ~legitima a seus próprios olhos a intelligentsia de classe média do séculoXVIII, o que fornece os alicerces à sua auto-imagem e orgulho, situa-sealémda economia e da política; Reside no que, exatamente por esta razão,é chamado de das rein Geistige (o puramente espiritual) em livros, traba-lho de erudição, religião, arte, filosofia, !!C?,~~.r.iquecimentointerno, nacef.or-!!!a..ção.,-LI!!~~ectual(Bildung) do in~i~fduo, principalmente através de livros,

i.r

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u o processo civili::;ador

na personalidade. Em conseqüência, os lemas que expressam essa auto-ima- I Igem da classe intelectual alemã, termos tais como Bildung e Kultur, ten- \dem a traçar uma nítida distinção entre realizações nas áreas que acabamos Ide mencionar, esta esfera puramente espiritual (concebida como a única de .\

5L I. valor autêntico), e. a .~f._!!!-:ª-. P.21!..'ti.C..~..1-:. ~~.'~. ~ô..mt.·ca. e. soci~l, e~ ..contraste fron- J, .

J i.t.aJ.corno os Iemas da. burguesia asce.nde!!te na França e Inglaterra. O des-'t!!!o peculiar -da burguesia alemã~ ·ã~uiUº.nga imwiência políti~a, e a tar-dia unificação· nacional. atuaram continuamente na mesma direção, refor-

_.Çandoconceitos e ideais desS.UilLo. Desta maneira, o desenvolvimento doconceito de Kultur e os ideais que o mesmo corporificava refletiram a po-sição da intelligentsia alemã, destituída de uma hinterlândia social impor-tante e que, sendo a primeira formação burguesa no pais, desenvolveu umaauto-imagem manifestamente burguesa, idéias especificamente de classe mé-ia e um' arsenal de conceitos Íncísivos dirigidos s.ontra acJaS§e aHacortesã,...

T Ainda de acordo com: a' situação em que vivia, delineava-se o quê esta\... ~...intelligentsia consi(f~r~va como mais merecedor de oposição na classe supe-

~ rior, como sendo a 'antítese da Bildung e da Kultur. Mas o ataque só é diri-I ~ i:gido.J.ªr~'-tt.~.~.tªnte~~ ..em.geral, resignadamente contra- os.privilégios POlític~.~\j

J;ih I!01.1 sociais da aristocraciâ. EJlLyez.•d..is.~o,volta-se predominantemente contra~ • ~lL~~Q. b~~!1!...o,..,.. 'H .•..• _.~ •. -:-::- ...__ .~._ ••••.. _.. _. __.• -

. Uiiià ôescriçâo muito esclarecedora da diferença entre esta classe inte-lectual alemã e sua contrapartida francesa é também encontrada nas con-versas de Goethe com Eckermann: Ampêrechega aWeimar, (Goethe não° conhecia pessoal~ente,. mas com freqüência o elogiara para Eckermann.)Para espanto de todo mundo, descobre-se que o festejado Monsieur Ampêreé "um alegre jovem na casa dos 20 anos". Eckermann manifesta surpresa eGoethe responde (quinta-feira, 23 de maio de 1827):

I .

Não tem' sido' fácil para você em sua terra nativa, e nós no centro da Ale-manha tivemos que pagar muito caro pela pouca sabedoria que possuímos. Istoporque, no fundo, levamos uma vida isolada, paupérrima! Pouquíssima culturanos chega do próprio povo e todos -nossos homens de. talento estão dispersaspelo país. Um está em Viena, .outro em Berlim, um terceiro em Kônigsberg,o quarto em Bonn ou Düsseldorf, todos separados entre si por 50 ou 100 milhas,de modo que é uma raridade o contato pessoal ou uma troca pessoal de idéias.Sinto o que isto significa quando homens como Alexander von Humboldt pas-sam por aqui e fazem com que meus estudos progridam mais num único dia doque se eu tivesse viajado um ano inteiro em meu caminho solitário.

( . . Mas agora imagine uma cidade como Paris, onde as mentes mais notáveisr- \ •• de todo o reino estão reunidas num único lugar, e em seu intercâmbio, com-

~ .•petição e rivalidade diárias eles Se ensinam e se estimulam. a prosseguir, onde:f\' o melhor de tocias' ·as·~st'~~as da natureza e da arte de toda a superfície da

terra pode ser visto em todas as ocasiões, Imagine. essa metrópole onde cada•ponta que se transpõe e cada praça que se cruza evocam um grande passado.

\E em tudo isto não pense na Paris de uma época monótona e embotada, masna Paris do século XIX, onde durante três gerações, graças a homens como

conceitos de "civilizaçõo" e "cultura" 45

\, lMOli~re, Voltaire, e Diderot, essa. riqueza. de idéias Cai posta em circulação,I: como em nenhuma outra parte de todo o globo, e compreenderá que uma boa

mente como a de Ampêre, tendo se desenvolvido em meio a tal abundância,pode muito bem chegar a ser alguma coisa no seu 24.0 ano de vida.

Mais adiante, diz Goethecom referência a Mérimée: "Na Alemanha')'/I '/não podemos ter esperança de produzir obra tão madura em idade tão v

jovem. Isto não é culpa do indivíduo, mas do estado cultural da nação e i .•da+grande dificuldade que todos experimentamos em, sozinhos, abrir ca- \minha". -

I. ( -A vista de tais palavras, que neste contexto introdutório têm que ser- j .1 <

.:"'»'+f? vir como documentação, torna-se muito claro como a fragmentação polí- 6-'1Jt Y)\/1-' 1 tica da Alemanha se ligou a uma estrutura bem específica, tanto da classe

intelectual quanto de seu comportamento social e maneira de pensar. NaFrança, os membros da intelligentsia estão reunidos em um único lugar,são mantidos juntos em uma "boa sociedade" mais ou menos unificada ecentral; na Alemanha, com suas numerosas e relativamente pequenas ca-pitais, não há essa "boa sociedade" central e unificada. Neste caso, a intel-ligentsia está dispersa por todo o país. Na França, a conversa é um dosmais importantes meios de comunicação e, além disso, há séculos é umaarte; na Alemanha, o meio de comunicação mais importante é o livro, e

. é unia Y!lgua escrita unificada, e não uma falada, que essa classe inte- /,\, ··l~:ct~al de~envolve .. Na Franç.a, até os jove.ns vivem em um ambiente, ~e] ~

~Jtf: ' rca e estimulante intelectualidade; mas o Jovem membro da c.lasse, média -P

T (j/ alemã tem que subir a muito custo em relativa solidão e iS91ªmento. Os\ __ ••. ". _~ __ ._~.. , r' _ _

mecanismos de progresso social são~i~.!:en~~_ ..!!ºs .. dois países. E, final-mente, as. palavras de Goethe mostram com grande clareza o que real-mente significa uma intelligentsia de classe média sem uma hinterlândiasocial. Anteriormente, citamos um trecho em que ele~'tdbuTpouca-cuítürali

(("·ãCõrtesãos. Nesta última, ele diz o mesmo a respeito do povo comum.I,iKultur e Bildung são os lemas e características de um delgado estrato in-·

.1· \ Ilermediário que nasceu do povo. Não só a pequena classe cortesã acima,\ I dela, mas até mesmo o estrato mais amplo em baixo ainda demonstram'J;J \rclatiVamente pouca compreensão pelas realizações de sua própria elite. r'

Não obstante, exatamente este subdesenvolvimento de uma classe bur-].guesa mais ampla, profissional, é uma das razões por que a luta da van-/guarda da classe média, a intelligentsia burguesa, contra a classe cortesã

jsuperior, ~.d.irigiclª pre.domlUant~m.~1f!.S2.ntra .a conduta da mesma, contrac-ª@illrís1ic~umanas_ ~.lJI..i~_t;~n,:_~_"superficl?lidad~!idez ~~~chada",

\~~l]sinceridade", J<... ..~_s~i~_J)or diante. Até mesmo as poucas citações aqui itranscritas mostram com extremâ--clàreza essas conexões. Reconhecidamen- I:

te, só em raros casos e sem grande ênfase o ataque se volta contra conceitos

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46 o processo civiliiador

específicos, contrários àqueles que serviram para a autolegitimação da clas-se intelectual alemã, conceitos tais como Bildung e Kultur. Um dos poucosconceitos contrários específicos é "civilização", no sentido kantiano.

VIo Recuo do Elemento Social e o Progresso

do Social na Antítese entre Kultur e Zivilisation

17. Se a antítese é expressa por estes ou por outros conceitos, umacoisa fica sempre clara: o contraste de características humanas particula-res, que mais tarde servem principalmente para patentear uma lÍntítese na-

~) cional, surge aqui principalmente como manifestação de uma antítese. social.J: Como experiência subjacente à formulação de pares de opostos. tais como

"profundeza" e "superficialidade", "honestidade" e "falsidade", "polidez defachada" e "autêntica virtude", e dos quais, entre outras coisas, brota a \antítese entre Ziviüsaiion e Kultur, descobrimos, em uma fase particular do',

i desenvolvimento alemão, a tensão entre a intelligentsia de classe média e: iI'. a aristocracia cortesã. ~ verdade que nunca se esquece por completo a liga-

ção entre o refinamento cortesão e a vida francesa. G. C. H. Lichtenbergtrata disso com grande clareza em um de seus aforismos, ao falar da dife-rença entre a promesse francesa e a Versprechung alemã (Parte 3, 1775-1779).24 "A última é cumprida", diz, "mas não a primeira. A utilidade daspalavras francesas no alemão! O que me surpreende é que isto não tenhasido notado. A palavra francesa dá a idéia alemã com uma mistura defraude, ou no seu significado cortesão ... Uma invenção (Erfindung) é algonovo e uma découverte algo velho com um novo nome. Colombo descobriu(entdeckte) a América e ela foi a découverte de Américo Vespúcio. Naverdade goút e gosto (Geschmack) são quase antitéticas e pessoas de goútraramente têm muito bom gosto".

Mas só depois da Revolução Francesa é que a. idéia da aristocraciacortesã alemã indubitavelmente recua, e a idéia da França e das potênciasocidentais em geral passa ao primeiro plano. no conceito de "civilização"e idéias semelhantes.

Vejamos um exemplo típico: em 1797 foi publicado um pequeno livrode autoria do émigré francés Menuret, intitulado Essai sur Ia ville d'Ham-bourg, Um cidadão de Hamburgo, o cônego Meyer, escreve o seguinte co-mentário sobre a obra:

Hamburgo é ainda atrasada. Após uma época famosa (bem famosa e quandograndes números de imigrantes se estabeleceram aqui), ela fez progressos (real-

conceitos de "civilização" e "cultura)' 47

mente?); mas para aumentar, não digo completar sua felicidade (isto teria quese pedir a Deus), mas sua civilização, seu avanço na carreira da ciência c daarte (nas quais, como sabem, continuamos ainda no Norte), ela ainda precisade certo número de anos ou de eventos que atraiam para si novas multidõesde estrangeiros (contanto que não sejam mais multidões de seus civilizados com-patriotas) e um aumento da opulência.

Aqui, por conseguinte, os conceitos de "civilizado" e "civilização" jáestão inequivocamente ligados à imagem do francês.

Com a lenta ascensão da burguesia alemã, de classe de segunda cate-goria para depositária da consciência nacional e, finalmente - muito tardee com reservas - para classe governante, de uma classe que, no início,foi obrigada .a se ver ou legitimar principalmente se contrastando com a

..classe superior aristocrática de corte e, em seguida, definindo-se contranações conc~rr.t:.n_t~s,a antítese entre Kultur e Zivilisation, com todos seussignificados correlatos, muda em significação e função: de antítese prima-ôCl-'!1entesocial torna-se primariamente nacional. .

E um desenvolviment-;· p·a-ralelo é experimentado por aquilo que é jul- .gado especificamente alemão: aqui, igualmente, numerosas característicassociais originariamente de classe média, estampadas nas pessoas por suasituação social, trª-Qsformam-se em_c.aracterísticas~acionais. A hQD.estidadee a sinceridade, por~xemplo, são neste momento contrastadas, como carac-terísticas alemãs, à cortesia dissimuladora. A sinceridade, porém, da formaaqui usada, emergia inicialmente como traço característico de pessoa da ;classe média, em contraste com o mundano ou o cortesão. Isto, igualmente, :é visto com clareza em uma conversa entre Eckermann e Goethe. .

"Eu em geral levo para a sociedade", diz Eckermann no dia 2 de maiode 1824, "minhas simpatias e antipatias e uma certa necessidade de amare ser amado. Procuro uma personalidade que se conforme à minha natu-reza. A essa ·pessoa eu gostaria de me entregar inteiramente e nada ter aver com as demais."

"Essa sua tendência natural", responde Goethe, "na verdade não é dotipo sociável. Ainda assim, o que seria de toda nossa educação se não es-tivéssemos dispostos a superar nossas tendências naturais? ~ uma grande <

tolice exigir que outras pessoas se harmonizem conosco. Eu .nunca fiz issQ.Consegui pmestaraZão desenvolver a capacidade de conversar com todasas pessoas; só assim obtemos conhecimento do caráter humano, bem comoa necessária habilidade na vida. Isto porque perante naturezas opostastemos que nos controlar, se queremos nos dar bem com elas. Você deveriaagir da mesma maneira. Não há como evitar isso, você tem que viver emsociedade, não importa o que diga."

São ainda, em sua maior. parte, desconhecidas a sociogênese e a psico-gênese do comportamento humano. Até mesmo colocar questões a esse res-peito pode parecer estranho. Ainda assim, é fato observável que pessoas de

~.

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48 o processo civiiizador

\

unidades sociais diferentes comportam-se de forma diferente e em maneirasmuito específicas. Acostumamo-nos a considerar isto natural. Falamos docamponês ou do cortesão, do inglês ou do alemão, do homem medieval edo homem do século XX, e queremos dizer que as pessoas das unidadessociais indicadas por tais conceitos comportam-se uniformemente de umamaneira específica que transcende todas as diferenças individuais quandocomparadas com as de indivíduos de grupos comparativos: por exemplo,o camponês em muitos aspectos comporta-se de modo diferente do corte-são, o inglês ou o francês do alemão, e o homem medieval do homem doséculo XX, pouco importando o q?anto mais possam ter em comum como

._ seres humanos. .- -Modos de comportamento que diferem dessa maneira são visíveis na

conversa citada acima entre Eckermann e Goethe. Este último é um homemindividualizado em grau particularmente elevado. Em decorrência de seudestino social, modos de comportamento __çollLorigenLsociais_difeJ~!J~Sfunclero-~e_!!el~em-um.ã--unldãae específica. Ele, suas opiniões e seu com-portamento certamente não são nunca, de todo, típicos de quaisquer grupossociais e situações pelas quais passou. Mas, nessa citação ele fala com gran-de conhecimento como homem do mundo, como cortesão, com base emexperiências que necessariamente são estranhas a Eckermann. Ele entendea compulsão de abafar os próprios sentimentos, de suprimir simpatias eantipatias, compulsão inerente à vida cortesã e que freqüentem ente é in-terpretada por pessoas de situações sociais diferentes, e, por conseguinte,com uma diferente estrutura afetiva, como sendo desonestidade ou insin-ceridade. E com o grau de consciência que o distingue como um relativoestranho a todos os grupos sociais, ele enfatiza o aspecto benéfico, huma-no, de sua moderação em afetos individuais. Seu comentário é um dospoucos pronunciamentos alemães dessa época a reconhecer algo do valorsocial da "cortesia" e dizer alguma coisa positiva sobre a habilidade social.Na França e na Inglaterra, onde a "sociedade" desempenhou papel muitomais importante no desenvolvimento global da nação, as tendências de com-portamento de que ele fala tiveram também - embora menos consciente-o,mente do que no seu caso - uma importância muito maior. E idéias detipo semelhante, incluindo fr.:_..d.~..9.1:.l.e~~Q1!.s~l!vemse harmonizar,~~n:~_si ' j~_j~monstraJ_c_oJ)siqçlllÇão _recíproca, _~ll.e o indivíduo neJ.!l sempre deve

. ga..r..vazão .à!) suas emQÇ.q~s, reaparecem com grande freqüência, com omesmo significado especificamente social que em Goethe, na literatura cor-tesã da França, por exemplo. Como um reflexo, por assim dizer, esses pen-samentos eram propriedade individual de Goethe. Mas situações sociaissemelhantes, a vida no monde, geraram em toda a Europa preceitos e.modos de comportamento semelhantes.

Analogamente, o comportamento descrito por Eckermann como seu -em comparação com a serenidade aparente e a afabilidade que ocultam

'"\

conceitos de "civilização" e "cultura' 49

sentimentos reprimidos, que se desenvolveu inicialmente nessa fase do mun-do aristocrático de corte - c1aramente.I'oqe..se_!:_~conhe.çido COIT)o~Q.rigi-nando-se na__esferade classe média de pequenas cidades da época. E cer-tàmenteDão é encontrado apenas na Alemanha:;-nesTa-esfeia. Nesse país,porém, devido à representação, com grande clareza, do ponto de vista declasse média 'pela intelligentsia, estas e atitudes semelhantes tornam-se vi-síveis em grau excepcional na literatura. E se repetem nesta forma relati-vamente pura, produzida na divisão mais nítida e mais rigorosa entre oscírculos da corte e da classe média e, acima de tudo, no comportamentosocial dos alemães .

: '; As unidades sociais que chamamos nações diferem muito na estrutura>, í, ,da personalidade de seus membros, nos esquemas através dos quais a vida! \J

emocional do indivíduo é moldada sob pressão da tradição institucionali- I-Izada e da situação vigente. O típico no comportamento descrito por Ecker-Jman é uma forma específica de "econOI!).iª--~IL.J!fetos", que consiste na i i'

clara admissão de inclinações individuai;- que Goeth-;-Considera insociáveis, \1

e contrárias à formação de afetos necessária para que haja "sociedade". JNa opinião de Nietzsche, muitas décadas mais tarde, esta atitude sem-

pre foi típica e nacional dos alemães. Por certo sofreu modificações nocurso da história e não tem mais a mesma finalidade social que no tempode Eckermann. Nietzsche a ridiculariza. "O alemão, diz em Além do Beme do Mal (Aforismo 244), "adora a 'sinceridade' e a 'integridade'. Comoé confortador ser sincero e Íntegro. Este é talvez o mais perigoso e enga-nador de todos os disfarces no qual o alemão é perito, esta honestidadealemã confidencial, obsequiosa, que sempre mostra suas cartas. O alemãose entrega, olhando ao mesmo tempo com seus confiantes e azuis olhosalemães - e os estrangeiros imediatamente o confundem com seu camisãode dormir." Este - deixando de lado o juízo de valor unilateral - é um "dos muitos exemplos de como, com a lenta ascensão da classe média, suas ~características sociais específicas se transformaram em características na-cionais.

O mesmo é claro na opinião seguinte de Fontane sobre a Inglaterra,encontrada em Ein Sommer in London (Dessau, 1852):

A Inglaterra e a Alemanha se relacionam da mesma maneira que forma e con-teúdo, aparência e realidade. Ao contrário das coisas, que em nenhum outropaís do mundo exibem a mesma solidez que na Inglaterra, as pessoas se dis-tinguem pela forma, pela aparência mais visível. O indivíduo não precisa ser umcavalheiro, precisa apenas dos meios para parecer que é, e se torna tal. O indi-"víduo não -predsa-tei razão; precisa--aperias colocar-se dentro das formas darazoabilidade, e terá razão ... Por toda a parte, aparência. Em nenhum lugarinclina-se mais o homem a aballdonar-se cegamente ao mero brilho de umnome. O alemão vive para viver, o inglês para representar. O alemão vive parasi mesmo, o inglês vive-para- os outros.

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50 o processo civilizador

, Talvez seja necessário mostrar com que exatidão esta última idéia coin- I

cide com a antítese entre Eckermann e Goethe: "Dou plena expressão àsminhas simpatias e antipatias", diz Eckermann. "Temos que procurar, mes-,

_mo a contragosto, harmonizar-nos com os demais", argumenta Goethe. ."O inglês", observa Fontane, "tem mil confortos, mas nenhum confor-

to. O lugar do conforto é tomado pela ambição. Ele está sempre pronto paraser recebido e conceder audiências... Muda de roupa três vezes ao dia; àmesa observa - e também na sala de estar e de visitas - certas leis pres-critas de decoro. É um homem distinto, um fenômeno que nos impressio-'na, um mestre de quem recebemos lições. Mas com nosso assombro semistura uma nostalgia infinita de nossa Alemanha pequeno-burguesa, ondeas pessoas não têm mesmo uma vaga idéia de como representar mas sãocapazes de tão esplêndida, confortável e aconchegantemente viverem."

O conceito de "civilização" não é mencionado. E a idéia de Kultur ' .(alemã aparece nesse trecho apenas remotamente. Mas vemos nesse exemplo,

como também em todas essas reflexões, q,u~"a antítese alemã entre Zivili-sation e Kultur não se sustenta sozinha: é parte de um co, texto mais' amplo..ú; em suma, l!_expressão da auto-imagem ª~J:I.lã. E aponta para as ~e-!.eIlças em autolegitimação, em caráter e comportamento total que, no iní-cio, existiram preponderantemente, embora não exclusivamente, ~en1re-.de-terminadas classes e, em seguida, entre"ª._l1ªç.1i(Lal.eJJJ,ã~tras nações.

-c

\\

parte II

Sociogênese do conceito decivilisation na França

I

Introdução

1. Seria incompreensível que, na antítese alemã entre Bildung e Kultur,por um lado, ~. a mera Zivilisation externa, por outro, a antítese socialinterna recuasse e a nacional se tomasse dominante, não tivesse o desen-volvimento da burguesia francesa seguido, em certos aspectos, exatamenteo curso oposto ao tomado pela alemã.

Na França, a intelligentsia burguesa e grupos importantes da classemédia foram atraídos relativamente cedo para a sociedade cortesã. O velhomeio de distinção da nobreza alemã, a prova de ancestralidade * - quemais tarde, numa transformação burguesa:-ass!!..~luné;vi·VióãÍla legisla-ção racial alemã -, certamente não esteve de todo ausente" na-tradição J

frãncesa, mas, sobretudo depois do estabelecimento e consolidação da "mo-narquia absoluta", não desempenhou mais um papel decisivo como barrei-ra entre as classes. A infiltração de círculos burgueses por tradições especi-ficamente aristocráticas (que na Alemanha, com a separação mais rigorosaentre as classes, produziu efeito profundo apenas em certas esferas. comoa militar, sendo nas demais muito limitada) teve proporções muito diferen-

. , tes na França. Nela, já no século XVIII, não havia mais qualquer grandediferença em costumes entre os principais grupos burgueses e a aristocra--cia de cort~.-·E·-ri1esmo que, com a ascensão mais forte da classe média apartir de meados do século XVIII - ou, em outras palavras, com a am-

• Referência à legislação anti-semita imposta pelos nazistas, nos anos 30. (RJR)

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52 o processo civilitador

\-..~\

pliação da sociedade aristocrática através da maior assimilação de gruposimportantes de classe média - comportamento e costumes mudassem de-vagar, isto aconteceu sem ruptura, como continuação direta da tradiçãoaristocrática de corte do século XVII. Tanto a burguesia de corte cÇlmo aaristocracia de corte falavam a mesma língua, liam os mesmos livros eobservavam, com gradações particulares, as mesmas maneiras. E quando asdisparidades sociais e econômicas explodiram o contexto institucional doancien. régime, quando a burguesia tomou-se uma nação, muito do que ori- I

gínariarnente fora caráter social específico e distintivo da aristocracia decorte e depois também dos grupos burgueses, de corte, tomou-se, em um,movimento cada vez mais amplo, e sem dúvida com alguma modificação, \;

I caráter nacional. As convenções de estilo, as formas de intercâmbio social,"o controle das emoções, a estima pela cortesia, a importância da boa falae da conversa, a eloqüência da linguagem e muito mais - tudo isto é ini-

: cialmente formado na França dentro da sociedade de corte, e depois, gra-\ dualmente, passa de caráter social para nacional.

Aqui, também, Nietzsche percebeu claramente a diferença, "Em todosos lugares onde havia uma corte", diz ele em Para Além Jo Bem e do Mal(Aforismo 101), "havia uma lei da fala certa e, por conseguinte, tambémuma lei de es.tilo para todos os que escreviam. A linguagem de corte, além \ ' :,"disso, é a língua do cortesão que não tem um tema especial e que mesmo ,','" ,(I,em conversas sobre assuntos eruditos proíbe todas as expressões técnicasporque elas têm um ressaibo de espesWLz~ção; este o motivo por que, empaíses que possuem uma cultura de corte, o termo técnico e tudo o que),trai o especialista é uma mácula estilística, Agora que todas as cortes se .

,transformaram em caricaturas... ficamos surpreendidos ao descobrir que'f' I mesmo Voltaire era muito exigente neste particular. O fato é que todos es-, '

: tamos emancipados do gosto da corte, enquanto que Voltaire era a suai consumação!", Na Alemanha, a intelligentsia de classe média cheia de aspirações do

século XVIII, formada em universidades que ~p~çializavam em deter-!l!inados assuntos, desenvolveu auto-expressão c cultura próprici-s-nas artes';e ciências. Na França, a burguesia já era desenvolvida e próspera em um

, grau inteiramente diferente. A emergente intettigentsia possuía, além da aris---tocracia, também um numeroso público burguês. A própria intelligentsia,

como outras formações de classe média, foi assimilada pelo círculo de corte.E aconteceu que a classe média alemã, com sua ascensão muito lenta parao espírito nacional. cada vez mais identificou como caráter nacional da vi-zinha nação aqueles tipos de comportamento que havia observado primeirae predominantemente em suas próprias cortes. E tendo ou julgado essecomportamento como de segunda classe ou o rejeitado como incompatívelcom sua própria estrutura afetiva, desaprovou-o também em maior ou me-nor grau 110S vizinhos.

,i

conceitos de -ci~ilitação- e "cultura" 53

2. Talvez pareça paradoxal que na Alemanha, onde as barreiras so- ,ciais entre a classe média e a aristocracia eram mais altas, menos numero- ./sos os contatos sociais e mais consideráveis as diferenças, em maneíras.: ,durante muito tempo as discrepâncias e tensões entre as classes não tenham!'-tido expressão política, ao passo que na França, onde eram mais baixas i

as barreiras de classe e incomparavelmente mais Íntimos os contatos sociais \entre elas, a, atividade política da burguesia tenha se desenvolvido mais \cedo e chegado a uma precoce solução política a tensão entre elas. )

O paradoxo, no entanto, é apenas aparente. A longa recusa da políti- ",ca real a conceder o exercício de funções políticas à nobreza francesa, o c

envolvimento desde cedo de elementos burgueses no governo e na adminis-,tração, o acesso deles até mesmo às mais altas funções governamentais,sua influência e promoções na corte - tudo isto teve duas conseqüências:por um lado, o contato social íntimo e contínuo entre elementos de origemsocial diferente e, por outro, a oportunidade de elementos burgueses seempenharem em atividade política logo que amadureceu a situação social.je, antes disso, um forte treinamento político e uma tendência a pensar em ~

\ termos políticos. Nos Estados alemães, de modo geral, aconteceu quase'~ exatamente o oposto. Os mais altos cargos do governo eram, via de regra,t reservados à nobreza. No mínimo, ao contrário de sua contrapartida fran-

cesa, a nobreza alemã desempenhou um papel decisivo na mais alta admi-nistração do Estado. Sua força como classe autônoma nunca foi tão radi-calmente quebrada como na França, Em contraste, a força de classe daburguesia, em conformidade com seu poder econômico, permaneceu rela-tivamente fraca na Alemanha até bem dentro do século XIX. A separação'-

, I~mais radical entre os elementos de classe média e a aristocracia de corterefletia-lhes a fraqueza econômica comparativa e a exclusão dos cargos mais

! importantes do Estado. /'3. A estrutura social francesa tornou possível que a oposição mode-

rada, que veio crescendo lentamente desde meados do século XVIII, se fi-zesse representar com certo sucesso nos círculos mais internos da corte.Seus representantes. porém, ainda não formavam um partido. Outras for-mas de luta política ajustavam-se melhor à estrutura institucional do ancienrégime, Formavam eles na corte uma camarilha, embora sem organizaçãodefinida, mas eram apoiados por pessoas e grupos que formavam a socie-dade de corte mais ampla e no próprio país. A grande variedade de inte-resses sociais encontrava expressão, na corte, em conflitos entre essas diques,reconhecidamente de forma um tanto vaga e com forte infusão de interessespessoais os mais diversos, mas, ainda assim, esses conflitos vinham a lumee eram solucionados.

O conceito francês de civilisation, exatamente corno o conceito alemãocorrespondente de Kultur, emergiu nesse movimento de oposição na segun-da metade do século XVIII. Seu processo de formação, função e significa-

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540 o processo civiíizador

\'- ,

do foram tão diferentes dos implícitos no conceito alemão como as cir-cunstâncias e costumes da classe média nos dois países.

Não deixa de ser interessante observar como o conceito francês decivilisation, tal como surge inicialmente na literatura, assemelha-se ao. con-ceito ao qual muitos anos depois Kant opôs seu conceito de Kultur. A,.primeira evidência literária da evolução do verbo civiliser para o conceito \de civilisation é encontrada, de acordo com descobertas modernas.P na 1obra de Mirabeau, o. pai, na década de 1760.

"Maravilho-me de ver", diz ele, "como nossas opiniões cultas, falsasem todos os sentidos, se enganam no que consideramos ser civilização.Se perguntar o que é civilização, a maioria das pessoas responderia: sua-vização de maneiras, urbanidade, polidez,· e a difusão do conhecimentode tal modo que inclua o. decoro no lu~r de leis detalhadas: e tudo issome parece ser apenas a;á~Za~;'-d-;;-'--~Trtu&:-;-nãõ' sua'''fac'e, e civilizaçãonada faz pela sociedade se não lhe dá por igual a forma e a substância davirtude." 26 Isto parece-se muito com o que então se dizia, na Alemanha,sobre os costumes de corte. Mirabeau, igualmente, compara o que a maio-ria das pessoas, segundo ele, considera ser civilização (isto é, polidez eboas maneiras) com o ideal em cujo nome a classe média em toda a Eu-ropa se alinhava contra a aristocracia de corte e através do qual se legi-timou - o ideal da virtude: Ele, também, exatamente como Kant, vin-cula o conceito de civilização às características específicas da aristocraciade corte, e c~m razão: isto p~rque o hornnz.e civilisé nada mais era do \ \que uma versao um tanto amphada daquele tipo humano que representava \ \,o verdadeiro ideal da sociedade de corte, o honnête homme.

Civilisé era, como cultivé, poli, ou policé, um dos muitos termos, nãoraro usados quase como sinônimos, com os quais os membros da cortegostavam de designar, em sentido amplo ou restrito, a qualidade específicade seu próprio comportamento, e com os quais comparavam o refinamentode suas maneiras sociais, seu "padrão", com as maneiras de indivíduos maissimples e socialmente inferiores.

Conceitos como polítesse ou civilité tinham, antes de formado e fir-mado o. conceito civilisation, praticamente a mesma função que este último:expressar a auto-imagem da classe alta européia em comparação com ou-tros, que seus membros consideravam mais simples ou mais primitivos, eao mesmo tempo caracterizar o tipo específico de comportamento atra-vés do qual essa classe se sentia diferente de todos aqueles que julgava maissimples e mais primitivos. As palavras de Mirabeau deixam muito clara aextensão em que o conceito de civilização foi inicialmente uma continuaçãodireta de outras encarnações da autoconsciência de corte: "Se eu pergun-tar o que é civilização, a maioria das pessoas responderia: suavização demaneiras, polidez, e coisas assim." E Mirabeau, da mesma forma que Rous-seau, embora talvez com mais moderação, inverte as valorizações existen-

conceitos de "civilização" e "cultura" 55

teso Você e sua civilização, diz ele, da qual se sente tão orgulhoso, acre-ditando que o eleva acima do homem simples, têm pouquíssimo valor: "Emtodas as línguas ... em todas as idades, a descrição do amor de pastorespor seus rebanhos e seus cães toca nossa alma, por embotada que esta estejapela busca do luxo e de uma falsa civilização." 2f/

A atitude da pessoa em relação ao "homem simples" - e, acima detudo, em relação ao "homem simples" na sua forma mais extrema, o "sel- \ A

vagem" _ é em toda parte, na segunda metade do século XVIII, um sím-bolo de sua posição no debate interno, social. Rousseau lançou o ataque·mais radical à ordem de valores dominante em seu tempo e exatamentepor este motivo sua importância direta para o movimento de reforma decorte/classe média da int elligerüsia francesa foi menor do que poderia sersugerido por sua ressonância entre a apolítica, embora intelectualmentemais radical, intelligentsía de classe média da Alemanha. A despeito de

; todo o radicalismo de sua crítica social, porém, Rousseau não chegou aforjar um contraconceito inclusivo e unificado contra o qual lançar as crí-ticas acumuladas. Mirabeau pai cria-o, ou pelo menos é o primeiro a usá-lo

. j em seus escritos. Talvez ele houvesse circulado antes em conversas. Dohomme civí/isé ele deriva uma característica geral da sociedade: civilisation.Sua crítica social, como a de outros fisiocratas, porém, é moderada. Per-manece inteiramente dentro do contexto do sistema social vigente. É, naverdade, a crítica de um reformador. Enquanto os membros da intelligentsiaalemã de classe média, pelo menos n- mente, nos devaneios de seus li-vros, forjam conceitos que divergem frontalmente dos modelos da classealta, e desta maneira lutam em território politicamente neutro todas as ba-talhas que não podem travar no plano político e social porque as institui-ções e relações de poder existentes lhes negam instrumentos e mesmo alvos,enquanto eles, em seus livros, opõem às características humanas da classealta seus próprios novos ideais e modelos de comportamento, a intel/i-gentsla reformista de corte da França permanece durante muito tempo no /'contexto da tradição de corte. Esses franceses desejam melhorar, modificar, 1 Jadaptar. A parte alguns estranhos, como Rousseau, não opõem ideais e mo-f·· ~

. delas radicalmente diferentes à ordem domi~a~:e, ~as idea~s reformados e ~modelos dessa ordem. As palavras "falsa civilizaçâo" contem tudo o que,a diferencia do movimento alemão. Os escritores franceses sugerem que ~,falsa civilização deve ser substituída pela autêntica. Não opõem ao h0171m~'

civilisé um modelo humano radicalmente diferente, como faz a illtelligentsid 'burguesa alemã com o termo gebildet er Mensch (homem educado) e com',a idéia de "personalidade". Em vez disso, escolhem modelos de corte afim de desenvolvê-Ias e transforrná-los. Dirigem-se a uma inle/ligentsia crí-tica que, direta ou indiretamente, escreve e luta dentro do amplo contextode uma sociedade de corte.

'.

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56 o processo civil izador

11

Sociogênese da Fisiocracia e do Movimentode Reforma Francês

4. Recordemos a' situação da França após meados do século XVIII.Os princípios mediante os quais era governada e sobre os quais, em

particular, fundamentavam-se a tributação e os direitos alfandegários eramde modo geral os mesmos que nos tempos de Colbert. As relações inter-nas de poder e interesses, a estrutura social da própria França, porém. ha-viam mudado radicalmente. O protecionismo rigoroso. a defe~a da indústrianacional e da atividade comercial contra a concorrência estrangeira ha-viam, na verdade, contribuído decisivamente para o desenvolvimento davida econômica, aumentando, assim. o que importava mais que tudo parao rei e seus representantes - a capacidade tributária do país. As barreirasao comércio de cereais. os monopólios, o sistema de armazenamento, e osmuros tarifários entre as províncias protegiam. em parte. os interesses lo-cais, mas. acima de tudo, haviam, de tempos em tempos, preservado aparte mais importante para a paz do rei e talvez a de toda a França, Paris,das conseqüências extremas das más colheitas e dos preços em alta - dafome e da revolta.

Mas, entrementes, haviam-se expandido a capital e a população do'país. Comparadas com o tempo de Colbert, as relações de comércio ha-viam se tornado mais densas e amplas. a atividade industrial mais vigorosa,

<, \ as comunicações melhores. e mais Íntimas a integmçã9 econômica e a inter-:"C) .' c!~~ndência do _!.~rri1óLL<L-francês. Segmentos da burguesia começaram a.!: achar incômodos c absurdos a tributação tradicional e o sistema de direitos

.aduaneiros, sob cuja proteção tinham crescido. A pequena nobreza rural ie latifundiários como Mirabeau viam nas restrições mercantilistas à eCOIlO:-',mia agrícola um impedimento e não um incentivo à produção do campo. I

'Nisto aproveitaram bastante as lições de um sistema comercial inglês mais.~livre. E. mais importante que tudo. uma parte da própria alta administra-iI ção reconhecia os efeitos nocivos do sistema vigente: à frente desses admi-

nistradores despontavam os seus tipos mais progressistas. os intendentes. de província, representantes da única forma moderna de burocracia que oancien régime produzira. a única função administrativa que não era, como

-.as demais. negociável e, portanto. hereditária. Esses elementos progres-:'sistas da administração formaram uma das mais importantes pontes entrea exigência de reforma. que se fazia sentir no país, e a corte. Direta ou in-

_:.'"

conceitos de "civilização" e "cultura" 57

diretamente, representaram. na luta entre os grupos de corte por posiçõespolíticas decisivas (principalmente, os ministérios), um papel de grandeimportância.

Já notamos acima que essas lutas não eram ainda os conflitos maisimpessoais. políticos, que se tornaram mais tarde, quando os vários inte-resses seriam representados por partidos em um sistema parlamentar. Osgrupos da corte que. pelas mais diversas razões, competiam nela por in-fluência .e. cargos, porém, eram, ao mesmo tempo, núcleos sociais atravésdos quais os interesses de grupos e classes maiores podiam encontrar ex-pressão no centro controlador do país. Desta maneira, tendências reformis-tas eram também representadas na corte.

I J1 . Pel.a segunda ~etade .do ~~culo XVIII, os reis ,não mais governavam'I :;arbltranamente. MUIto mais visivelmente do que LUIS XIV, por exemplo,

I eram prisioneiros de processos sociais e dependentes de cliques e facçõesda corte. algumas das quais se prolongavam extensa e profundamente pelopaís e nos círculos de classe média.

. ,A íisiocracia cº.nsti~~u.~a~.~nifest-ªções teóri~eS5-ª~s_i~:-. I:;' I testinas. Não se limita em absoluto à economia, sendo na verdade um sis-) ·t~ma.-emgrande escala dereform.CLp,01ítka e social. Contém, de forma in-

cisiva, abstrata. dogmática, endurecida, idéias que - expressas de maneiramenos teórica, dogmática e precisa, isto é como exigências práticas de re-formas - caracterizam todo o movimento' do qual ,lJ,Y'gQ,t. na ocasiãoencarregado das finanças. foi um dos· expoentes. Se esta tendência (quenem tinha nome nem organização unificada) tivesse que recebê-Ia, poderiaser chamada de burocracia reformista. Mas esses administradores tinham

btambém. indubita~ellmente p~r_t~á~ .. ~~_s!_s.:~~~~~os ~.!!.!~ntsia e Aa jurguesia comerciar. \.I

--ÊntreosqUedesejavam e exigiam reforma, de resto, lavravam consi- <;}

deráveis diferenças de opiniões sobre, Q_tip.cu:le....r.efonmL_necessária. Alguns . .eram inteiramente a favor de uma. reforma ....Q.~Lsm~a de tributação e damaquinaria estatal, mas, também, rÚüitõ" mais_p(QteciQp.i.8itL9Q_.q.UL<2S...J~-sioc~~~í~~_Rº..r ....__qÇ.n2J2.l.9.F~'~bonnais foi um dos principais representantes'dessa tendência, mas seria interpretá-lo mal. e a outros das mesmas idéias.incluí-los, por causa de sua atitude mais fortemente protecionista, sem maisressalvas entre os "mercantilistas''. A polêmica entre Forbonnais e os fisio-cratas é a antevisão de uma divergência que, na moderna sociedade indus-

\ trial, levaria a repetidos choques entre os defensores do livre comércio e~~j~os do protecionismo. Mas ambos os l!-~os fazem parte d~,Il1-,?viment~or-. /'" mista de, sl~se média. . .

'. '\,' Por outro lado. !lão~~_çm-ªbsolutQ yerQaQ.~que toda a bur!@~iª-de=.. -';'.~j :·~ejass~_.a __:reforma e que apenas. a _f!Tistocracia a ela se.J>pusesse. Houve certo"'~i número de grupos claramente identiíicáveis de classe média que resistiram

. até o fim a qualquer tentativa de reforma e cuja existência, na verdade, es-

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58; o processo civilizador

\

tava ligada à preservação do ancien régime na sua forma original. Essesgrupos incluíam a maioria dos altos administradores, a nob!~s.~~r:·obe,cujos cargos eram propriedade de família no mesmo sentido em que umafábrica ou empresa é hoje propriedade hereditária. Incluíam também asguildas de ofícios e, em bom número, ()~_tinancist~s. E se a reforma fra-ll~' :;ccassou na França, se as disparidades da sociedade-finalmente romperam de' :.:~.,':~.forma violenta o tecido da estrutura institucional do ancien régime, grande :I parte da responsabilidade coube .~.~p..9.siç"ão desses grupos de classe média, ;,;.. Esta descrição mostra com grande clareza um aspecto importante neste ,I'

'

contexto: ao passo que na França dessa época a classe média já repre-:sentava um papel político, o mesmo não acontecia na Alemanha. l'I..<!.S!ª,-..9

d~tr~tq,i.~.t~l~çJ!l~Uimi!E:~_~~ferª._ill!.,l)1~Dte .. e.rías idéia~ na França, jun-,'. i, tamente com todas as demais questões humanas, os problemas sociais, eco-.

~ nôrnicos, administrativos e. políticos se situavam dentro da Iaixa de interes-;~ ses da iruelligentsia de corte/classe média. QLâis1cmas-..alem~es de pensa.-/

~enJ(),-~m.Ç9~~r.ª~~~T~I2.enas acadêmiÇQLTinham por base sociaL...a~t l!!1J",,,~<!.?º-~Jª-.fLJ.2a,se.sQ.ciaLdtL.QnQ.c--'!JllergitLa fisiocracia eram a cort~~_ª~?.~!e~~~e de corte, ~n~,~_~sforço j.!lt~lectual--\Lis~ob~tivos con1:

retos espegHcQs .•...tais como influenciar o ~ ..sm suas amantes .~-'5':-'são bem conhecidas as idéias básicas de Ouesnay e dos fisiocra ..l r,i

tas. No seu Tableau économique (1758), Quesnay descreve a vida econô- ;! :'mica da sociedade como um processo mais ou menos autônomo, um círculo : I,

fechado __d_e_pr.oçl.uç1í(),cj~u.!~ção,. e reprodução. de bens. Fala das leis natu- i ' '~rais de uma vida social em harmonia com a razão. Baseando sua argumen-i :",.

" ta'Çã; .nessa idéia, Quesnay opõe-se à intervenção arbitrária dos goverf;l!l,n- ~t~s no ciclo econômico. Desejaque estejam conscientes das .1(!is..~esTe:-inm >.de guiar-lhes os processos, em vez de baixar decretos desiníorrnados ao _§.a- ,"~or.A<: ,caprich~. Exige a liberdade de comércio, em.. particular 'd'O ~orÜércio j};de cereais, porque a auto-regulação, o livre jogo de forças, criam em sua iopinião uma ordem mais. benéfica para consumidores e produtores do que i!

. a_re~ul.amentação tr~di~ional vinda d: cima e as incontáveis barreirasilOj!,--- comercio entre provmcias e entre paises.

Mas admite francamente que os processos auto-reguladores devem ser -;I'':Compreendidos, e orientados, por uma burocracia sábia 5!. escIarecida. Temos !: aqui, acima de tudo,.a diferença na maneira como os reformadores fran- :

ceses e os ingleses reagiram à descoberta da auto-regulação na vida econô-j :rnica. Quesnay e seus seguidores permanecem sem exceção no contexto do "sistema monárqulco vigente. Deixam intocados os elementos básicos do anJ,cien régime e de sua estrutura instÚucional. E isto se aplica ainda mais aos \\segmentos da administração e intelligentsia cujas posições mais Se aproxima-vam da sua e que, de forma menos abstrata, menos extremada e de cunho

~~is pr.á.t.ico, chegam a. re~u:tados semelhantes aos, do grupo. pr~ncipal dos 1'. Jfisíocratas. No fundo, a posiçao comum a todos eles e por demais Simples: em " --4

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conceitos de "civilização" e "cultura" 59

Ir termos aproximados, não é verdade que os govemantessejam todo-podere-\ '. sos e possam regu.lar todos os a. ssu.ntos humanos .com...0 jUlgu.em conveniente ,/

" I A sociedade e a economia têm leis próprias q,u...eresistem.~i!lterf.~rên_cil! '"

/'\iriacTêinãr de goverPantes e-::-:d~._Jo.r.:ç~"-Porêonseguinte, deve ser formada .•\ !!.Ifla administração esclarecida, racional, que governe de acordo com as"leis naturais" dos processos· sociais e, destarte, de acordo com a razão.

-,I 6. O termo qivilisation; no momento em que foi cunhado, era um:<. \..~c1aro refl~x.o. dessas idéias reformista.s, ~es.mo. que neste termo a idél'~ de:." : homme civilisé conduza a um conceito mdicativo de costumes e condições

li da sociedade vigente como um todo, ele é, em primeiro lugar e acima de:',1 tudo, ~p..illsãQ de Qp.asiçã.Q, <k....,crítica soçXª-l. A isto se adiciona a. ,dIcompreensão de que o governo não pode baixar decretos a seu talante, mas {Ienfrenta resistência automática de f9FÇ,~.2.~i~~.!1_ôBi.l,l1-ªs se suas det,e~i_-~.

'; n~g?es não .!oreIl!._.orientada~ _Ror u..!!L.~1I.t9 conhecif!l~_nto d~~ for~~,_ e

\. [leis, a cOI!mrGen.s.ªº_.deJl.IHLaJLmes1!lQ._Q..gQyel1Jº.JlJais absoluto é imPQ:-.

.. !-trnte d~nte do dinamism9_-º-Q.._d~g.!lyolvim~!lto social, ~ ..de q~l!_Q desastre 1.

A leo .:.:~os;.~õ·"s9!'!:1meiilii"-~-a É1k~º;...§o__º~fJªgr.ª-.cI.º_LIL~lQ_govema.arbltrário, J~ ..\"antinat~ge,-.5p·~~io~a.I". Conforme já foi dito a.ci~a, ~sta compreens~o 1 ~

/ . . se expressa na Idem fisiocrata de que os fatos SOCiaiS, tais ..fQ!!l.!>-º!.f.eno- l': menos naturais, são partes_~l.e _!!!lL.pr.Qc.e.s.sQ.Qrdenado. Esta mesma compre-é . .

. '1 em'ãõ manifesta-se Q1Lflvolu&,ão do anterior civilisé Eara ° termo ciVilisa-J! tiQn. cQotribui.mL<t E.ara lheºl!-!" ...E.!!.l...,;;igllific?d()'q\le transcenóe'o llldivídiio ..

.{ As dores de parf()dareVôlução industrial, que não p0<!@!!L!lE" mais', I.

i c.ompreendid.a.sJ:QIl1Q.J.esultado_~dc.J!ç.ªq_A<2. ..gov!-~, ensinaram ao homem, 1<,:: 'por um curto momento e pela primeira vez, a pensar em..sLmeSlllll. e em ).-J.sua.J;Xistência social cQlIlO.JJm••Jl~~SSQ. Se estudamos inicialmente o termocivilisation na obra de Mirabeau, percebemos claramente que esta desco-berta o leva a considerar, a uma nova luz, toda a moralidade de seu tempo.Vem a considerar esta moralidade, esta "civilização", também como uma"]manifestação cíclicae deseja que os governantes lhes percebam as leis aJ~

. fim de usá-Ias. Este o sentido do termo civilisation nessa fase inicial de ~seu emprego. " . '\

/" No seu AmL d!s hommes, argumenta Mir1!,beau em certa altura que

\

'1 superabundância de dinheiro reduz a população, de modo que aumentao consumo por indivíduo. Acha que esse excesso de dinheiro, caso seitorne grande demais, "expulsa a indústria e as artes, .lançando, desta ma-'neira, os Estados na pobreza e no despovoamento". E continua: "A vistadisto, notamos como o ciclo de barbárie a decadência, passando pela civi-.lização e a riqueza, poderia ser invertido por um ministro alerta e hábil,

,,:e nova corda seria dada à máquina antes que ela parasse." 28 Esta fras~e." J

l".irealmente sumaria tudo o que. se to.rnaria característico, em termos mUi.to i:gera~s, do pont~ ..de vist~.-!~n.Eamental dos fisioc~s: a concep.ção de .~2- \.: norma, população c, finalmente, costumes como um todo ínter-relacio-I \•....••.....•..- ",-- "'.": ...----. --~.........,. -,.... \,

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':60 o processo civilizador" . ~.'

'\ [nadO' deseD.volvendo-se cicJicamente; e a tendência política reformista que J .)-. dirige finalmente este conhecimento aos govemantes, a fim de capacitá-los. j

~ pela compreensão dessas leis, a orientar os processos sociais de urna ma- iI neira mais esc1arecida e racional do que até então. ]r

Na dedicatória que Mirabeau faz ao rei em 1760 de seu Théorie del'Impôt, no qual recomenda ao monarca o plano fisiocrata de reformatributária, continua presente a mesma idéia: "O exemplo de todos os im-périos que precederam o de Vossa Majestade, ~que.: c9mpletaTa}ILo_ciclo

\ de civilização, seria prova detalhada do que acabo de propor.")l f'" .A critica de Mirabeau, nobre proprietário de terras, à riqueza, ao luxo. h

.) e a todos os costumes vigentes dá uma coloração especial a suas idéias. 1 :r A verdadeira civilização, pensa, situa-se em um ciclo entre a barbárie c \ ._a falsa civilização, "decadente", gerada pela superabundância de dinheiro.:A missão do governo esclarecido é dirigir este automatismo, 'de modo que ia sociedade R-0ssa florescer em um -cllis.o~édiQ31l.tt~~Jb.áriLLa~ç.a.~~. Aqui, toda a faixa de problemas latentes em "civilização" já é idiscernível no momento da formação do conceito. Já nessa fase ela está:ligada ~.Jdéia j.~_<k~!.iência_olL'.'declínio", que reernerge repetidamente, iem forma visível ou velada segundo o ritmo das crises CÍclicas. Mas pode- imos também ver claramente que este desejo de reforma permanece sem Iexceção ~!ltrCLd-º-.C.ºllt<;xto_.do.siSl~!I!ª-~-º~~ent~ ~~!l~lado d~,~8ID..a,le que não opõe, ao que critica nos costumes do tempo, urna imagem ou'.conceito absolutamente novos, mas, em vez disso, parte da ..()r:..d.e.!!l_gisten-:;~, desejando melhorá-Ia: através de l!t~~d1!sll.~!>eis···e-"·~s.çl<lI~S toma- \;idAas .pelo governo a "falsa civilização" mais uma vez se. tºrl1ªrj_QP~u- ytêntíca,

'- '-"-'---1. Nesta concepção de civilização talvez haja inicialmente numero-sas nuances isoladas de significado. Mas ela contém elementos que atendemàs necessidades gerais e experiência dos círculos reformistas e progressistasda sociedade parisiense. E o 'conceito ganha um emprego cada vez maiornesses círculos, à medida que se acelera o movimento de reforma com acrescente «ºI]1.~s:i~i~..?_!(.ãoe jrlilJt~!riªlização.

O último período do reinado de Luís XV constitui uma época de vi-sível debilidade e desordem no velho sistema. Crescem as tensões internase externas. Multiplicam-se os sinaiLde..-tr.ansfQLrn!l~ão ~ial.

~

Em 1773, caixotes de chá são lançados ao mar no porto de Boston\. Em. 1776, as colônias americanas da Inglaterra declaram sua. i..n.d..ep.endên-

~ cia: o governo, proclama ela, é nomeado para assegurar <!.. {~li.ci.c!ª_ct~A.of .RQYQ.. Caso não obtenha sucesso neste particular, a maioria do povo temo_<;l.jr.§itQ..de destituí-lo.

Os círculos da classe média francesa simpáticos à reforma observamcom a maior atenção o que acontece no outro lado. do mar, e tambémcom urna simpatia na qual suas tendências sociais reformistas se misturam

conceitos de "civilização" e "cultura" 61

com a crescente hostilidade nacional contra a Inglaterra, mesmo que suasmentes mais influentes pensem em tudo, menos na derrubada da monar-quia.

Simultaneamente, a partir de 1774, há a crescente impressão de que 'Ié inevitável o confronto com a Inglaterra e de que preparativos devem ser 'feitos para a guerra. No mesmo ano, 1774, morre Luís XV. Sob o novomonarca, a luta pela refOfI!1a dos. sistemas administrativo e tributário é Iimediatamente reiniciada com renovado vigor tanto nos círculos maiS res- /tritos quanto mais amplos da corte. Como resultado desses conflitos, Tur-I.[·got é aclamado no mesmo ano, ao se tornar contrõleur général des finan-l'ces, por todos os elementos reformistas e progressistas do país. :

"Finalmente chegou a tão. retardada hora da justiça", escreveu o fiSiD-11

crata Baudeau, sobre a nomeação de Turgot. Na mesma ocasião, afirmou.D'Alembert: "Se o bem não prevalecer agora, é porque o bem é impos-\sível". E Voltaire lamenta estar às portas da morte no momento em que Ipode observar que a "virtude e a razão foram postas em seus lugares".29 )

Nesses mesmos anos, a palavra civilisation, surge pela primeira vez I.como um conceito amplamente usado e mais ou menos preciso. Na pri- timeíra edição da Histoire philosophique et politique des établissements et '0

du commerce des Européens dans les deux Indes (1770), do padre Ray- 'fnal, a palavra não ocorre nem uma única vez; na segunda <ill4), ela é \"usada freqüentemente e sem a menor variação de significado como termoindispensável e geralmente entendido't.ê?

rf No S)!§teme de lanature, de Holbach, publicado em 1770, não apa-~ recea palavra civilisation. Mtts no seu Systême social, editado em 1774,i ela é usada com freqüência. Diz ele, por exemplo: "Nada há que opÕrÍha f

mais obstáculos no caminho da felicidade pública, do progresso da razão \thumana, de toda a civilização dos homens do que as guerras contínuas .(para os quais príncipes estouvados são atraídos a cada momento." 31 Ou,em outro trecho: "A razão humana não é aind_íL..Sllficientementeexercitada;a civilização dos põ"J~--;-;izose completou ;ri~a; obstáculos inumeráveis seópüseram-a"te agora ao-prõgesso -do conhecimento útil, cujo avanço só:poderá contribuir para -~ '~p;rl~çº~!!1~.!iio-de>~;;~7 g~ernoL I!<?~sasleis.

r! nossa educação, ..nossas instituições e ..n_<?.~~ª-=-m()i~:;'32·..... /, O 'conceitó subjacente a esse movimento esclarecido de reforma, social-I

mente crítico, é sempre o mesmo: qye o aprimoramen!lL-<illL.ins.tituiçi)es. I;dLeducaÇ.&.9~d-ª.J.ti"'§~_~JealizadD-peJ.Q .....;~mentQ dos c~s. Isto I I~ão sjgnifu;~'erudjção" no sentido alemão do século XVIII, porquanto os I ''Vque aqui se expressam não são professores universitários, mas escritores, li"funcionários, intelectuais, cidadãos refinados dos mais diversos tipos, uni-;1dos através do medium da "boa sociedade", os salons. O progresso será !I' 0\obtido, por conseguinte, em primeir~ lugar :e.ela ilustI.a!(ão~.doW~~,;..Uovê~ \nantes em conformidade com a "razão" ou a "natureza", o que vem a ser I

'. *.;:: - ~

.-\("\" .... ),\.-, ..• :~,~-'\

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62 o processo civilizodor

l)a mesma coisa, e em seguida pela nomeação, para os principais cargos,:i:de homens esclarecidos (isto é, reformistas). Certo as~ecto desse pro-I ~c~sso~.~sta totlll_p-ªS~Ql!_ª-_m'A~igºªd-ºJ)oi ~_~n~itofix~o: civi-J lis(1.tion. O que era visível na versão individual que Mirabeau tinha do con-

.1

1ceito, Qquenão~f-ºra ainda P9)i~tº-pela sociedade, e que era caracterí.sticode todos os movimentos de reforma, era encontrado também aqui: uma

i ~"~~--ªÍirmªção e uma meia ne~ção da ordem vigente. A sociedade, deste,. i ponto de vista, atingi~ª uma fase particular na rota para a civilização.~ : Mas era insufi~nte. Não podia ficar parada nesse ponto. 9_Er().f~s~on-

~! .tlnl!a."ll.e_deyia_ seLle.y'a.dQ_adiante: ',-ª-civilização dos povos ainda não11 : §~ ..c-ºllJ.p]etou,"

{' I Duas idéias se fundem no conceito de civilização. Por um lado, elai: constitui um contraconceito.geral ª-.oJ~rrO~S1ágio da sociedade, a barbâ-

rie, Este sentim-ento há llJ.:ul!º_~meava a sociedade de corte'. Encontrara;;:; expressãõ· aristocrática de corte em termos como· politesse e civilité.

Mas os povos não estão ainda suficientemente civilizados, dizem oshomens do movimento de reforma de corte/classe média. ;\_~ivilização ~o.é apenas.llI!l:.e.§.!ã.do,.~@"l2r.9..Egs.P_ que .<1eye prosseguir. ~s!e é o novo .elemento manifesto no termo civilisation. Ele absorve muito do que sempre ,féz·acorte acreditar-·sêt~ em comparação com os que vivem de maneiramais simples, mais incivilizada ou mais bárbara '- um tipo mais elevadode sociedade: a idéia de umpadrão de moral e costumes, isto é, tato social,considera.ção pelo próximo, e numerosos complexos semelhantes. &.L!l1ãOS\·1~ c1a~~~a em ascensão, ~_J:Joca dos membros-do-movimento reíor- j~ist.a,J_ll111~a a idéia sobre o que. é Il.~ç~ssá.tiQ..pa~a.Jomar cjvi1i~auma soci~d~de. O processo de civilização do Estado, a-Constituição, a edu- 1:cação e,·por conseguinte, ()s segmentos mais numerosos da população, aeliminação de tudo o que era ainda bárbaro ou irracional nas condiçõesvigentes, fossem as penalidades legais, as restrições de classe à burguesiaou as barreiras que impediam o desenvolvimento do comércio - este pro-cesso cívilízador devia-ªeglJÍI:se....ao refiilam~to de _ma.:Qeiras e à pacifica-

'\, 9_ão int~tll~A.º-país .i?eíos;reis. .-- ..- ~.w~_,"O rei conseguiu", disse certa vez Voltaire a respeito da era de LUIS

XIV, "transformar uma nação até então turbulenta em um povo pacífico,perigoso apenas para seus inimigos... As maneiras foram suavizadas ... " 33

Mais tarde veremos com mais detalhes como foi importante essa pacifica-'rção interna para o processo civilizador. Condorcet, contudo, que era em

\; \i comparação a Voltaire um reformista de geração mais jovem e já muito, l~mais inclinado à oposição, comenta da seguinte maneira a reflexão acima

'11" li de Voltaire: "A despeito da barbárie de algumas das leis, a despeito das/ I falhas dos princípios administrativos, do aumento dos impostos, de sua

forma pesada, da dureza das leis fiscais, a despeito das máximas perni-ciosas que pautam a legislação governamental sobre comércio e indústria

t

conceitos de "civilização" e "cultura" 63

e, finalmente, a despeito da perseguição aos protestantes, p.odemos Obser_jvar que o povo no reino vivia em paz sob a proteção da lei." J

Essa enumeração, que não deixa de ser uma justificação integral da .;ordem vigente, dá idéia de muitas coisas que se pensa carecer de reforma. '\Fosse ou não o termo civilisation usado aqui explicitamente, ele se rela-ciona com tudo isso, com tudo o que ainda é "bárbaro". '

Esta discussão mostra com muita clareza a divergência entre os fatos .',que ocorriam na Alemanha e os conceitos vigentes no país: demonstra que Ios membros da emergente intelligenisla de classe média situam-se na Françaparcialmente no círculo da corte e, assim, na tradição aristocrática decorte. Falam a língua desse círculo e a desenvolvem ainda mais. Seus com- v-porta~~.!1tos...~~~~ sã()~~~~~~~.&_JnQ<1~-ªd9s..segun-'\Ido o padrão dess.a tradição. St:!lS conceitos e idéias não são em absoluto

\J ~ras antíteses aos da aristocracia. Em torno de conceitos aristocráticos;.•• de corte, co~o a idéia de "ª-~.-siyiliªdo", cristalizam-se, de conformidade

'?' (com sua posição social no círculo da corte, mais idéias que al'.()nt.!l!!!....rei-/ . vin.dicações políticas e econômicas, idéias que, devido à situação social di-

ferente eà diferente faixa~e experiência da intellifJ!!!.tsia germânica, eram;~i:!i:iiiande parte estranhas a ela e, de gualquer modo, para ela menQ.U,e-;levantes.'---Aburguesia francesa - politicamente ativa, pelo menos parcialmente

Ildesejosa de reformas, e até, durante um c.urt.o... período, revolucionária -~ \,permaneceu estreitamente vinculada à tradição _de corte em seu comporta-

..;-1 mente e no controle de suas emoções, me~mo depois de demolido o edifí-"'cio do velho regime. Isto porque, graças a estreito contato entre círculos':

\aristocráticos e de classe média, grande parte das maneiras cortesãs muito.~empo antes da revolução haviam sido também aceitas pela classe média.

1i ~ode-se depreender, então, que a .t~YJ>J.!lçãQ.J)urm~~ na França, ~a

\i, 1,1p~,truinJQa...xe.lhfu.,,~trp.1!.!tagolUica, llã~ _s~1L'fe.rte~ade dos cos~:, 'imes tradicionais. '

) fi - A intelligerüsia alemã de classe média, de todo impotente na esfera:,,(' . !política, WJ?S!!.ª int~lectu.almente :adiE!l, f2!Í2!!-1l~~..::tr~.cliç~9-;-J?~n- :<, ir,.amente,.,burmy,§,a, divergindo radicalmente da tradição da aristocracia de I

~orte e de seus modelos. O caráter nacional alemão, que aos poucos des-pontou no século XIX, não era, para sermos exatos, inteiramente destituí-do de elementos aristocráticos assimilados pela burguesia. Não obstante,no tocante a gnl.ndes_ªr~as da tradição cultural e do comportamento, ascaracterísticas espe~ificamente de c1assemédia predominaram, sobretudo na

( divisão social mais nítida entre os círculos burguês e aristocrático e, com

L ela, um.a .he.terogeneidade relativa nos costumes alemães sobreviveu muito, depois do século XVIII. ... .~ J

/í O cOIl-cêito frances de clviliJ.ation reflete o ftldo social específico dal..! . ;. burguesia da nação exatamente como o conceito de Kultur reflete o ale-,J \.

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64 o processo civiiizador

'~;mão. O conceito de clvilisation é inicialmente, como acontece com o de-"'(' Kultur, um instrumento dos círculos de classe média - acima de tudo, da

, · intelligentsia de classe média - no conflito social interno. Com a ascen-A, são da burguesia, ele veio, também, a sintetizar a nação, a expressar a

'_auto-imagem nacional. ~ª-p.róllria revolução, a civilisation (que, natural-11 mente, .!!!fer~~e sobret~do, ~ um I!!'~7ess~_~t.:.aE~al,-a uma' evo~ução, e n~o!j 1!pan.p~!1ºJ1__~~n<!a_~~~__significado ongmal comow_gm.ma __~~ r_el?nn,,!0~'[1 des.emp--eMLqp_alqy,eLpap.eLdC-I.clevQ entre os slogans revolucionários, Toi:-I nando-se a revolução mai-s moderada, pouco depois 'da virada do século,

ela inicia sua jornada como um brado de união por todo o mundo. Já em~uma época tão remota como essa, atingia um nível de significado que justí-'ficava as aspirações francesas de expansão nacional e colonização. Em1798, partindo para o Egito, Napoleão grita para suas tropas: "Soldados,estais iniciando uma conquista de conseqüências incalculáveis par;a a civi-

[

--tização'" Ao contrário da situação vigente ao ser formado o conceito, a! partir de entãoo ,,!iS, nações, consideram o processo o,<lC civilização como ter-'; minado em suas sociedades; elas são as transmissoras 'a outrem de, uma _ci-o.vilização existente ou acabada, as porta-estandartes da civilização ~m

marcha. Do processo anterior de civilização nada resta na consciência dasociedade, exceto um vago resíduo. Seus resultados são aceitos simples-mente como expressão de seus próprios talentos mais altos; l},ão interessa

j '1.0 tato .e,a.. questão. de_co,Illi?J' no decorreLdOL_s,~.s:uIQs,~.ÇQ~l!lento, CJ~il!o~ado:.se..CriStaolizou.!DL

o

.,consciência_d~_ suoa. P:6PoJ.'0ia.sn..P..e..rio.rid.adeo-~sa lo; :.,. .'Sm!Jzaçaa:._passa_ a servir; p.~IQ_IDeno.sª~nAç2~L9..~_ se__.torp"~!_a_~- li .í1 C!!!isJiLQ9..!:.asde..J::J)lÔ1Ú~Se, por conseguinte, __!!m_ tipo, de oclasse; superior.para ~

-' ' ..,~, - ,.'." -----'----- I!

Igrandes segmentos do mundo não-europeu, como justificativa .. de_seu--º.9-"

• mínio, no -mesmo grau em que antes os ancestráis-- do conceito de civiliza- :,'I çãõ'-- politesse e civilité, s~ª-!!!..,C!~_j1l.SJiJi.c.ação__àaristocracia de _ç.9rte. 1:

Na verdade, uma fase fundamental do P!º~e.s_s~L,Ç.i:yilizMiorfoi concluí- Ida no exato momento ~rrLqv.e. o.o~.consciênd~çiyilizaç&o, a co~sci~nci~ J!

l~tn~J,'1~~~iii~~~:~,~~~t:'~;Ba&(';hjC;~:;'f;~~~~<&:~..do _Ocident..e_-- ---Êsta fase primitiva do processo civilizador, i!9uela em ~l1.HULc_on_~iên-'\cia.__c!q_processo mal existia e o conceito de civilização sequer surgira ainda,será discutida no capítulo seguinte.

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