farias, edson. paulo da portela, um herói civilizador (02.06)

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A R T I G O S CADERNO CRH, Salvador, n. 30/31, p. 177-238, jan./dez. 1999 PAULO DA PORTELA, UM HERÓI CIVILIZADOR * Edson Farias ** Rio de Janeiro/ Teu perfume, teu tempero/ É o azul do mar/ O teu olhar coral/ A água viva de sal espraida no teu corpo de luz/ Esse poder que Deus deu/ Quan- do o Rio se lamenta/ Uma onda arrebenta sensual e traz de lá/ Sereia liberta da teia das redes para encan- tar/ E vem num cavalo-marinho sobre as águas reinar/ O brilho da veste de brisa no al- tar/ Iorubá de Iemanjá no mar/ Rio de Janeiro o poeta num veleiro veio te contar/ Que o carioca vê a mata atlântica inteira na palma de um coqueiro solar/ Esse é o povo que dança nas ruas/ E o turista que desce na pista do lugar/Quer se tornar moreno/ Primo de Ogun, afilhado de O- rixá/ Faz Jogo do Bicho na sombra leve de um flamboyant/ Em tardes azuis reza no Maracanã/ A oração do futebol e o gol é o Sol. (Guinga e Aldir Blanc - grifos meus) RESUMO: O presente artigo retoma a biografia de Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela, um dos nomes cujo pionerismo inscreve-se nas história e lenda do sam- ba carioca, de acordo com o objetivo de compreender o significado pertinente às táticas e mesmo estratégias de distinção e individuação implementadas nas ações sociais de sujeitos estigmatizados etnicamente. É observado as saídas criativas desses agentes quando fulcradas no cam- po do entretenimento. Aí onde suas condutas são orienta- das por um sentido de especialização das atividades ba- seadas em habilidades culturais-artísticas. Sentido este com decisiva contribuição nas mudanças do perfil da in- serção desses mesmos indivíduos no concerto societário, embora reconhecendo que a consciência prática deles res- pondia em parte aos limites estruturais da sociedade a- brangente. PALAVRAS-CHAVE: Ação, estrutura, sujeito, artista popular, samba e carnaval. * Este texto foi originalmente apresentando no XXII Encontro Anual da Anpocs, no GT de Rela- ções Raciais e Etnicidade. ** Prof. de Sociologia da UFBa e Doutorando em Ciências Sociais, IFCH-Unicamp.

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Paulo da Portela.

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  • A R T I G O S

    CADERNO CRH, Salvador, n. 30/31, p. 177-238, jan./dez. 1999

    PAULO DA PORTELA, UM HERI CIVILIZADOR*

    Edson Farias**

    Rio de Janeiro/ Teu perfume, teu tempero/ o azul do mar/ O teu olhar coral/ A gua viva de sal espraida no teu corpo de luz/ Esse poder que Deus deu/ Quan-

    do o Rio se lamenta/ Uma onda arrebenta sensual e traz de l/ Sereia liberta da teia das redes para encan-

    tar/ E vem num cavalo-marinho sobre as guas reinar/ O brilho da veste de brisa no al-

    tar/ Iorub de Iemanj no mar/ Rio de Janeiro o poeta num veleiro veio te contar/ Que o carioca v a mata atlntica inteira na palma de um coqueiro solar/ Esse o

    povo que dana nas ruas/ E o turista que desce na pista do lugar/Quer se tornar moreno/ Primo de Ogun, afilhado de O-

    rix/ Faz Jogo do Bicho na sombra leve de um flamboyant/ Em tardes azuis reza no

    Maracan/ A orao do futebol e o gol o Sol. (Guinga e Aldir Blanc - grifos meus)

    RESUMO: O presente artigo retoma a biografia de Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela, um dos nomes cujo pionerismo inscreve-se nas histria e lenda do sam-ba carioca, de acordo com o objetivo de compreender o significado pertinente s tticas e mesmo estratgias de distino e individuao implementadas nas aes sociais de sujeitos estigmatizados etnicamente. observado as sadas criativas desses agentes quando fulcradas no cam-po do entretenimento. A onde suas condutas so orienta-das por um sentido de especializao das atividades ba-seadas em habilidades culturais-artsticas. Sentido este com decisiva contribuio nas mudanas do perfil da in-sero desses mesmos indivduos no concerto societrio, embora reconhecendo que a conscincia prtica deles res-pondia em parte aos limites estruturais da sociedade a-brangente.

    PALAVRAS-CHAVE: Ao, estrutura, sujeito, artista popular, samba e carnaval.

    * Este texto foi originalmente apresentando no XXII Encontro Anual da Anpocs, no GT de Rela-es Raciais e Etnicidade.

    ** Prof. de Sociologia da UFBa e Doutorando em Cincias Sociais, IFCH-Unicamp.

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    INDIVDUO, SOCIOLOGIA E BIOGRAFIA

    Nascido quando a ento capital do Pas era sacudida pela execuo do projeto de moderniz-la, parte da reordenao scio-poltica, cultu-ral e econmica do Pas, Paulo Benjamin, ou mais popularmente conhe-cido como Paulo da Portela, integrou a populao, sobretudo negro-mestia, que teve de redefinir-se material e simbolicamente enquanto grupo social nos subrbios da cidade. Definiu-se a um heri civilizador. No encaminhamento desse processo, esteve na vanguarda do projeto e do encadeamento scio-histrico das prticas que constituiu a funo do sambista como artista popular e protagonista da imagem turstica do Rio de Janeiro. O objetivo expresso neste trabalho, porm, enfrenta de incio uma dificuldade, a um s tempo, terico-metodolgica e epistemolgica. Porque retoma inexoravelmente o problema em torno dos nexos, para falar como Giddens (1989), da dualidade ontolgica da teoria social, ou seja, a dualidade agente individual e coletividade nas cincias sociais algo hoje manifesto nos esforos em guindar a teorizao sociolgica do abismo dicotmico que a grande maioria das escolas e correntes tericas abriram entre ao e estrutura, durante o sculo vinte.1 As quais separa-ram em demasia o concerto estabilizado em normas e regras de conduta, necessrios continuidade regular da ordem societal, e a competncia prpria s pessoas em constituir modalidades singulares de intervir sobre esses mesmos constrangimentos. Separao essa no redutvel mecani-camente base cannica oferecida pelos clssicos da disciplina. Como demonstra Elisa REIS (1989), as concepes a respeito do homo sociologicus, seja em Durkheim ou em Weber esto perpassadas pela dualidade fun-dada sobremaneira na oposio ao homo economicus, vicejada no mbito da teoria clssica da economia poltica. Diante desta entidade movida pela racionalidade dos interesses egoisticamente sobressaltados, um e outro

    1 Fao referncia aos esforos de diversas abordagens da sociologia, como apresentam-se em contemporneos trabalhos, a exemplo dos de Giddens, Alain Touraine, Habermas, Bourdieu, Skocpol, entre outros, cuja insatisfao com os modelos tericos predominantes no ps-guerra, evolucionismo, estrutural-funcionalismo, interacionismo simblico, etnometodologia e estrutu-ralismo, alm das correntes do marxismo, revela-se na tendncia dos ltimos em operar dicoto-micamente, privilegiando ou ao ou estrutura.

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    autores oferecem a proposta do indivduo inscrito nas malhas simblicas e materiais de determinado concerto societal.

    Grosso modo, em ambas abordagens em Durkheim e Weber do tema da individualidade em conexo ao da estrutura, sobressaltam a necessidade de cotejar os dois aspectos entrecruzando-os, sem confundir um e outro mas tomando-os enquanto cruciais compreenso das prti-cas sociais nas sociedades modernas complexas. Por um lado, no se tra-ta de considerar toda uma linha de raciocnio que reduz a questo do in-divduo superestrutura ideolgica do mundo burgus ocidental, em nome de um naturalismo para o qual o sujeito se dissolve diante de obje-tividades abrangentes.2 Mas, por outro, tambm no significa tomar sub-jetividades como que em um vcuo de relaes sociais. Em Weber, ob-serva Habermas, a nfase dada ao indivduo encontra contrapartida no ajuste entre modernidade e racionalismo ocidental; ajuste este fundamen-tador tanto da autonomizao de esferas culturais de valores mas igual-mente implicado s condutas orientadas por sentidos teleolgicos, mar-cantes de um modo de vida interado com personalidades descentradas em relao ao primado comunitrio e da soberania da exemplaridade do passado (HABERMAS, 1990a, p. 13-4).

    Do ponto de vista de Durkheim, parte o incmodo vis norma-tivo atrelado sua anlise, est suscitada a interpretao do individualis-mo no quadro de um processo de aprendizado de carter coletivo na formao do eu. Processo esse no redutvel s malhas da interveno instrumental das atividades de produo material, mas identificada pela construo de uma conscincia moral. Algo recuperado tambm por

    2 A referncia aqui no apenas matriz marxista e tendncia nela manifesta em subordinar o sujeito s leis do materialismo histrico no caso, a superao revolucionria da propriedade privada e da diviso social do trabalho implicariam na dissoluo da conscincia indivualista mas tambm s correntes estruturalistas e ps-estruturalistas que supem a primazia ocidental concedida ao indivduo maneira de uma estilizao terico-filosfica da categorizao evolu-cionista, a qual justificaria o imperialismo no autocentramento do cogito humanista sobre as alte-ridades simblicas ou ainda, restringindo o tema aos dispositivos discursivos inclusos nas tcni-cas de dominao. Mesmo a perspectiva de Louis Dumont, quando debrua-se sobre o individualismo no Ocidente, o reconhece to-somente no interior da interpelao estrutural da ideologia moderna (DUMONT, 1985, p. 270-8).

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    Habermas, quando sugere, no curso do desenvolvimento do eu e naquele de-senvolvimento da evoluo dos concertos societais, a interface entre as estruturas da intersubjetividade produzida lingisticamente (...), pois estas seriam to constitutivas para os sistemas de sociedade quanto as estruturas de personalidade (HABERMAS, 1990b, p. 14). Por isso, o esquema habermasiano de reconsti-tuio do projeto moderno recolhe em Durkheim elementos outros para alm de um agir econmico e administrativo racional visando a fins:

    E. Durkheim e G. H. Mead consideram que os mundos da vida racionali-zados estavam marcados antes por uma relao, tornada reflexiva, com tradies que haviam perdido a sua espontaneidade natural, pela univer-salizao de normas de aco e uma generalizao de valores que desvin-culam o agir comunicacional de contextos estritamente delimitados e lhe abrem amplos campos de opo, e finalmente por modelos de socializa-o orientados para uma formao de identidades-de-eu abstractas que foram o adolescente a uma individualizao (HABERMAS, 1990, p. 14).

    Portanto, para os objetivos deste artigo, interessa preservar a duali-dade ontolgica, caracterstica da problematizao sociolgica em torno do eixo ao e estrutura. Nesse sentido, vou retomar a inteno de percorrer a histria de vida de Paulo da Portela, considerando que a biografia reconhecida como tcnica e gnero de narrativa literria que em si mesma aponta para a situao estrutural cujo primado do ente individual introduz um patamar outro nas relaes scio-humanas e na diferencia-o das interdependncias funcionais. Logo, concordando com a crtica de Bourdieu a certa magnificao da histria de vida como mtodo de conhecimento histrico-sociolgico (BOURDIEU, 1997, p. 74-82), a pr-pria individuao reconhecida aqui como um componente estrutural da ao, mas medida que a tenho como propriedade das recorrncias es-pacio-temporais das prticas sociais. Quer dizer, tais componentes estru-turais das prticas implementadas por agentes esto em sintonia com a competncia cognitiva destes nos nveis da prtica e da discursividade, e no naquilo que concerne s coletividades. Tambm considerando o da-do de que as pessoas apropriam-se criativamente da histria que vivem3

    3 A Teoria da Estruturao de Anthony Giddens, exatamente porque retoma reelaborativamente a dualidade ontolgica inserida em autores como Durkheim e Weber, serve de fonte ao princpio terico-metodolgico central nessa argumentao (ver GIDDENS, 1989, XVIII e 192).

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    e, para falar nos termos da etnometodologia, os indivduos no somente portam os sentidos como espcie de objetividade coercitivamente externa mas o vivem, o realizam e os reinterpretam ao interpretarem suas atitudes.

    De acordo com essa angulao, se vai observar a reconstituio bi-ogrfica, seja enquanto tcnica de narrao da histria de vida, seja ainda como maneira de apreenso de tendncia mais ampla das condutas soci-ais espacio-temporalmente situadas. A partir da esto encerradas dois princpios centrais abordagem neste trabalho: 1) o agente social no se restringe ao suporte do sentido padronizador de uma interao social, maneira parsoniana, mas consiste em uma entidade capaz de atribuir e recriar os sentidos; 2) a individualizao, portanto, incorporada no apenas como um atributo colado ao agente pelas determinaes homo-geneizantes do concerto societal, porm diz respeito tambm ao modo como, segundo circunstncias e recursos especficos (culturais, simbli-cos e materiais), os sujeitos podem desenvolver tticas que incidem sobre o sentido. Deste modo, se essas intervenes no subvertem toda uma ordem, podem contudo permitir ao indivduo inserir no seu posiciona-mento na teia social tanto diferena quanto distino, ao mostrar a capa-cidade de impor a prpria vontade (...) mesmo contra resistncias (WEBER, 1992).

    Quanto alternativa de recorrer ao relato biogrfico como ponto de partida deste estudo, devo o seguinte esclarecimento. Estou tomando como parmetro metodolgico a biografia feita por Hannah ARENDT (1994) da tambm intelectual alem e judia Rahel. Realizada a partir de registros ntimos da prpria biografada, a obra de Arendt apanha um contexto histrico no qual os registros dos sentimentos comeam a ser acentuados. Os relatos de Rahel valem-se do despudor em relao s o-pinies e aos afetos, dando realce singularidade individual e ao acaso. o instante quando as premissas do romantismo alemo ganhavam impor-tncia, na esteira da crtica superficialidade observada na atitude do nobre corteso, que seria prisioneira da artificialidade das convenes. Ora, existe uma homologia entre o sentido da conduta do personagem biografado, ao relatar-se em textos-dirios, e a frmula adotada por A-rendt para tanto traar a histria particular de vida de Rahel quanto refle-

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    tir sobre a singularidade de uma poca. Quero propor que tambm para Paulo da Portela estava em questo para o agente sua individualizao, mas enquanto cidado e artista negro sob a rubrica do sambista. Recor-rendo s propriedades vigentes espacio-temporalmente, visava ele se in-serir, ao lado daqueles pertencentes ao crculo de sociabilidade deflagra-do pelo samba, no seio dos parmetros morais de dignidade previsto na coordenao dominante do sentido das condutas vistas como legtimas.4 Ento, os seus esforos de distino podem ser lidos maneira da tenta-tiva de impor uma outra classificao coletiva pessoa negra, de acordo com um status resignado. Afinal, Paulo da Portela compartilhava de uma das convenes da sociedade abrangente, ou seja, da mesma valorao do ideal europeu-burgus de civilizao, que se manifestava na crena em relao ao dado herico do artista. Ao mesmo tempo, acredito, suas iniciativas no campo cultural coparticiparam para a deslegitimao da conveno que, atrelada ao padro discursivo cientificista de dominao tnico-racial, definia o universo afro-brasileiro como expresso anacrni-ca de um estgio arcaico e primitivo da cadeia evolutiva da humanidade, logo inapto a coparticipar da modernidade junto a outros hbitos identi-ficados com o passado colonial (VELLOSO, 1987; SCHWARCZ, 1993).

    Estou definitivamente acrescentando alguns complicadores ten-dncia de tornar de maneira unilateralista a manipulao, por parte dos

    4 direta a referncia obra de Norbert ELIAS (1995) a respeito de Mozart. Recolho a a proposta de empreender uma abordagem sociolgica imergindo no itinerrio biogrfico de um agente in-dividual, visando destacar como o ethos ascencional incorporado s condutas e atitudes desse a-gente manifesta os controles sociais de uma poca mas, ao mesmo tempo, como este agente cri-ativamente exerce a liberdade de subverter valores, no ao neg-los mas potencializ-los em ins-tncias sem precedentes, alcanando assim uma caracterstica de extraordinariedade, de geniali-dade, ainda que tal aventura transmute-se em espcie de bumerangue contra ele prprio. Nesse sentido, interessa a maneira como tais agentes catalizam valores, vontades e elementos simbli-cos e materiais, tornando-os recursos, em situaes especficas, pressionando um contexto e contribuindo na instituio de outra atmosfera scio-simblica e mudana social. No caso em questo, a metodologia homloga crena permeante de um concerto societal na capacidade inerente de certos indivduos de diferenciarem-se por seus dotes pessoais, sobretudo quanto a tudo que remeta s habilidades artsticas (no raio de extenso que vai das belas-artes ao dos esportes e prticas ldicas). Para tanto, conferem os delineamentos ltimos desta pesquisa a tarefa em se ocupar da singularidade desta situao estrutural das aes, que chamo de modernidade, on-de individualismo e afazeres artsticos assumem o status de diferenciao social confere, estando a-bertos a apropriaes vrias mas em acordo com as prescries do seu estatuto em ltima instn-cia. Sobre o mesmo tema, ver tambm FEATHERSTONE (1997, p. 81-103).

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    grupos dominantes, dos elementos tnicos subalternos, sobretudo identi-ficados com a matriz afro-brasileira, nos esquemas da dominao poltica do Estado e do comrcio de smbolos e significados pela indstria cultu-ral (ver FRY, 1982). Para demonstrar o meu argumento, recorro justa-mente a um trabalho biogrfico realizado sobre Paulo da Portela, em 1980, assinado por Marlia Trindad Barbosa da Silva e Lygia Santos no rastro de uma srie de obras similares focalizando nomes clebres da cul-tura popular no Rio de Janeiro.5 Como confessa uma das autoras, no prefcio segunda edio do livro, que para realizar a obra teve, no es-foro de distanciamento da sua condio de intelectual, membro da clas-se-mdia, habitante da Zona Sul carioca, de deparar-se com o esqueci-mento oficial a que estava submetido aquele ilustre desconhecido homem negro, de meia idade, de classe pobre, curso primrio incompleto, lustrador de profis-

    so, carreira artstica de relativo sucesso (?), casado, sem filhos, morador do subrbio,

    morto na virada dos anos 40 para os 50 (SILVA & SANTOS, 1989, p. 15). Mas ela prpria reconhece que o interesse pelo projeto redundava do prprio personagem, tal como outros heris marcados pela ascendncia tnica negra Silas de Oliveira, Pixinguinha, Heitor dos Prazeres e Ismael Silva escaparam de dissolver-se na condio de escravos:

    medida que essas evidncias se impunham, mais crescia a meus olhos a figura de Paulo: sem cultura oficial, sem respaldo das anlises de Gilberto Freyre, Arthur Ramos, dison Carneiro, Roger Bastide, Pierre Verger, Jacob Gorender, de uma boa dezena de brasilianistas e de tantos outros autores, apoiado apenas na prpria intuio e no seu talento de ante-projeto de artista, como modestamente se intitulava, o negro humilde de Oswaldo Cruz concorrera mais para derrubar a muralha com a trombeta ritmada dos seus sambas e a delicada firmeza de seus propsitos do que toda a turma do lado de c, qual eu no podia negar pertencer. (Idem, i-bidem grifos meus).

    Certamente, correto o contra-argumento de que h nas palavras da bigrafa a manifesta inteno de ressaltar o herosmo do personagem, mitific-lo ao lado dos demais citados, entronizando-os no panteo da

    5 Em sua maioria, esses trabalhos so vencedores de concursos de monografias promovidos pela Funarte e foram lanados em livros pela mesma instituio. Entre os biografados, figuras como Cartola, Carlos Cachaa, Silas de Oliveira, Ismael Silva.

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    histria dos no-vencedores, dos derrotados pela marcha triunfal da his-tria da dominao, parafraseando Walter Benjamin. E ela procura resga-t-lo, num esforo detonado pelo sentimento de vergonha da posio privilegiada que tinha, em compartilhar da cultura colonialista, de valo-res ticos e estticos deplorveis, responsvel pela muralha intranspon-vel erguida entre o seu mundo e o dele. Como, igualmente, correto perceber o trao de um imaginrio comum a muitos mediadores culturais no Pas, atravs do qual enxergou nas classes populares, e nas minorias tnicas, espcie de reserva moral e resistncia cultural dominao bur-guesa e s maquinaes da sociedade de consumo. Pelas lentes desse i-maginrio, os grupos subalternos foram vislumbrados maneira de alte-ridade simblica radical, bons selvagens e autnticos. E diante deste ou-tro, muito alm de relativizar seus valores, membros de uma faco da inteligncia de esquerda percebiam a superficialidade, mesmo a falsidade dos seus hbitos civilizados (ver FARIAS, 1995, p. 4; OLIVEM, 1989).

    Porm a mitificao da trajetria de vida de Paulo da Portela, crei-o, est na contrapartida do sentido, diria, herico que o biografado em-prestou sua conduta. E o longo trecho da mesma autora, apresentado a seguir, evidencia a fora mobilizada em sua empreita, muito embora, verdade, ele no tenha auferido, como veremos, os melhores frutos pelos seus esforos:

    Hoje, no ano da graa de 1989, ainda que o dbito com o descendente de escravo continue mais ou menos do tamanho da dvida externa do Brasil, foroso admitir que alguns passos foram dados, mesmo considerando-se que as mais significativas homenagens pelo centenrio da Abolio da Escravatura tenham partido de comunidades negras e pobres como a de Paulo da Portela. Foi a Vila de Martinho e Rua com a sua QUIZOMBA. Foi a Mangueira de Cartola com os Cem anos de Liberdade Realidade ou Iluso. Foi o reconhecimento da importncia de Zumbi e da conscincia negra. A fora de trabalho (mal) assalariada do Pas continua sendo negra. O ne-gro ganha mal, come mal, mora mal, no tem acesso escolaridade regular, aufere menos vantagens que o branco de idntica qualificao profissional, isto apenas para ilustrar perifericamente uma situao vigente nesta socie-dade em que nem todo pobre negro, mas quase todo negro pobre. So negras nossas cozinheiras, nossos motoristas, nossos faxineiros, nos-sos contnuos, nossos lixeiros. Nossos doutores so brancos. As excees confirmam a regra.

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    S que nossa msica tambm negra, assim como a cozinha, a alegria, a criatividade, a cor morena, a sensualidade, o amor pela luz e pelo sol, pe-lo ritmo, pela cor, o samba, o carnaval, a caipirinha, a feijoada. Iemanj e acaraj. Rio de Janeiro e Bahia. Bantu e Iorub. Quem paga os direitos autorais? E a que se percebe a fora inexplicavelmente antropolgica dessas cul-turas de frica, que mesmo coexistindo com as culturas oficiais do colo-nizador, protegidas pela situao, mesmo tendo raramente ultrapassado o limiar da oralidade, vm devorando gradativamente as manifestaes cul-turais opressoras e se impondo, soberanas. Repetindo o fenmeno do Helenismo, quando o dominador romano sub-meteu-se passivamente fora intelectual e artstica da sempre insupervel Grcia, pode-se identificar, sobretudo no Mundo Novo, uma espcie de Africanizao. Uma nova esttica se impe espontaneamente, o repetitivo padro europeu sendo substitudo por outro, inteiramente renovado. H cinqenta anos atrs, Paulo queria colocar sapato e gravata nos ne-gros da Portela, que se sentiam mais belos alisando as carapinhas. Hoje, os jovens brancos da classe mdia alta encaracolam os cabelos, vestem camises coloridos, usam trancinhas, cangas, sandlias. Ontem, Paulo julgava importante ir s escolas de samba divulgar entre negros e vir cidade mostrar aos brancos a Portela, o bom-maneirismo e as artes negras. Nos anos 70, um outro portelense ilustre, Antnio Candeia Fi-lho, fundou o Grmio Recreativo de Artes Negras Quilombo, em Coelho Neto. Os notveis da cidade, brancos e negros, que iam l aprender. Mesmo sobre uma cadeira de rodas, a trajetria de Mestre Candeia parece ter sido menos rdua que a de Paulo, embora o trao de unio entre ambos fosse um enorme idealismo e a crena inabalvel no talento da raa. Mestre Paulo e Mestre Candeia, covardia! (SILVA & SANTOS, p. 15-6).

    Em instante algum a bigrafa faz a interrogao muito embora perceba a eficcia das aes do velho sambista a respeito dos elemen-tos mobilizados por Paulo na consagrao no-oficial da sua memria. Ao contrrio, at mesmo considera naturais os mecanismos sociais que atuaram na transformao desses elementos em recursos sagazmente manejados pelo biografado. Para vocalizar as indagaes no realizadas, como ento Paulo celebrizou-se como trao de unio entre duas culturas6 para repetir o postulado culturalista norteador da biografia realizada por Silva & Santos? Em que medida a dicotomia entre a situao de penria

    6 A propsito o ttulo da obra biogrfica sobre Paulo da Portela justamente Paulo da Portela: Trao de Unio Entre Duas Culturas, revelador do argumento a partir do qual est fundamentada toda a reconstruo da histria de vida realizada pelas autoras e, penso, aponta ao projeto individual do biografado mas, igualmente, assinala a peculiaridade do concerto societrio o qual constituiu.

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    e subalternidade scio-econmica das pessoas negras no Pas e a valori-zao do status da cultura negra envolve o modo mesmo da produo de identidades individuais e coletivas na modernidade, considerando lgicas diversas a atuantes, tantas das vezes conflitantes? Por outro lado, tal a-firmao da mesma cultura negra, enquanto identidade coletiva tanto referenciada pela referncia (para resgatar a idia de Gilberto Freyre) cidadania ldica brasileira, quanto implicada no campo do gosto, do he-donismo e das atividades de diverso, no diria respeito ao carter dual que marcou (e marca) as condutas de agentes cujo sentido das aes conciliam tensamente a vontade de distino (poder, respeito e dignida-de) e os condicionamentos estruturais atuantes sobre as escolhas, per-cepes e formas de cognio, no caso o prprio entendimento do eu como um sujeito dotado de profundidade subjetiva, no interior do qual aninham-se dons potencializadores de talentos e competncias diferen-ciadoras, interadas ao movimento de diferenciao funcional e a diviso social do trabalho?7

    No est includo entre os objetivos deste artigo responder por-menorizadamente tais questes, mas se quer evidenciar como esto en-tretidos numa mesma teia, simultaneamente e mutuamente referendados, aspectos de ordem coletiva e individual. Acredito que a estratgia na compreenso desse anelamento consiste em refazer seletivamente a traje-tria de Paulo da Portela, considerando a rede que o conformou e da qual ele foi um dos fios constitutivos, isto , a cidade do Rio de Janeiro. Sob esse ngulo, a trajetria de vida de Paulo tomada enquanto signifi-cativa para a compreenso de um perodo histrico no qual mecanismos sociais so ativados por uma multiplicidade de agentes em suas aes,

    7 No se trata aqui de uma verso amenizada da concepo durkheimiana de solidariedade org-nica; o que est em foco o processo social tenso (conflitante e complementar) de constituio da idia de pessoa e de sociedade na histria do Ocidente, manifesto no imaginrio, diria, ro-mntico, ao expressar a contradio indivduo versus sociedade. Tenso medida que ambos os plos entretem-se um ao outro simbioticamente. Portanto, o avano da diviso das funes e da civiliza-o, em certos estgios, crescentemente acompanhado pelo sentimento dos indivduos que, para manterem suas posies na rede humana, devem deixar fenecer sua verdadeira natureza. Eles se sentem constantemente impelidos pela estrutura social a violentar sua verdade interior. (ELIAS, 1994, p. 33).

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    demarcando as linhas-mestras da emergncia e efetivao de alguns dos ndices cruciais do nosso presente.

    A INVENO DO SUBRBIO CARIOCA NA PERIFERIA METROPOLI-TANA DA CIVILIZAO

    O quadro de questes alinhadas acima traz uma vez mais o pro-blema em torno tanto da individualizao quanto da diferenciao social e ainda do par racionalizao/liberdade. O trinmio certamente consiste em aspecto decisivo clssica teorizao sociolgica a respeito da condi-o moderna. Em alguns textos, Simmel, debruado sobre os modos e estilos de vida surgidos com a metropolizao de cidades europias, em meio extenso da industrializao e da diviso social do trabalho, no sculo dezenove, observa a manifestao do que considera uma ambi-gidade original, experienciada pelos tomos humanos na cotidianidade desses centros urbanos:

    O indivduo reduzido a uma quantidade negligencivel, talvez menos em sua conscincia do que em sua prtica e na totalidade de seus obscu-ros estados emocionais derivados de sua prtica. O indivduo se tornou um mero elo em uma enorme organizao de coisas e poderes que arran-cam de suas mos todo o progresso, espiritualidade e valores, para trans-form-los de sua forma subjetiva na forma de uma vida puramente obje-tiva. Aqui, nos edifcios e instituies educacionais, nas maravilhas e con-fortos tcnicos da era da conquista do espao, nas formaes da vida comunitria e nas instituies visveis do Estado, oferece-se uma to es-magadora inteireza de esprito cristalizado e despersonalizado que a per-sonalidade, por assim dizer, no se pode manter sob o seu impacto. Por outro lado, a vida se torna infinitamente fcil para a personalidade na medida em que os estmulos, interesses, empregos de tempo e conscin-cia lhe so oferecidos de todos os lados. Eles conduzem a pessoa como se em uma corrente e mal preciso nadar por si mesma. Por outro lado, entretanto, a vida composta mais e mais desses contedos e ofereci-mentos que tendem a desalojar as genunas coloraes e caractersticas de incomparabilidade pessoais. Isso resulta em que o indivduo apele pa-ra o extremo no que se refere exclusividade e particularizao, para preservar sua essncia mais pessoal (SIMMEL, 1973, p. 23-24).

    Na argumentao simmeliana, as condies postas s experincias da humanidade nas metrpoles modernas, embora tenham contribudo

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    para a efetivao de um imperativo de objetividade agrilhoando as subje-tividades na jaula de ferro aludida por Weber, ao falar da burocratiza-o/racionalizao do ascetismo secularizado, tambm esto na raiz da afirmao de valores e crenas vividos inerentes a cada mnada indivi-dual. Alm disso, estimularam aquelas atitudes compatveis com a de-marcao da diferena entre as entidades individuais, potencializando, assim, o processo de individualizao em ritmo mais intenso. Deste pon-to de vista, os esforos de individualizao estariam na base da deflagra-o da caracterstica psquica da vida mental especfica da modernidade, no instante em que a formao das subjetividades est concatenada com as heterogeneidade e diversidade das funes nos conglomerados urba-nos habitados por milhes de pessoas (VELHO, 1981, p. 17).

    No livro Individualismo e Cultura, o antroplogo Gilberto Velho res-gata as contribuies de Simmel para refletir sobre o tema da diferena simblica e do encontro/confronto de tradies nos universos metropo-litanos, a partir de trabalhos de campo realizados no Rio de Janeiro, du-rante a dcada de setenta. A seu ver, entre o feixe de grupos das classes mdias urbanas onde predomina o iderio em torno do indivduo como sendo possuidor de um conjunto de potencialidades peculiar que constitui sua mar-ca prpria e que a sua histria (biografia) atualizao mais ou menos bem-sucedida

    daquelas. (VELHO, 1981, p. 22). Em ltima instncia, portanto, as normas e padres reguladores da conduta individual nas classes mdias mostrar-se-iam favorveis s posturas do tipo individualistas, como, por exemplo, os projetos individuais. Pois, na trilha do argumento de Goffman, Velho as-sinala que sobre o projeto individual pesa o imperativo posto ao sujeito de fazer sentido num processo de interao com o outro.

    Sem entrar na avaliao do autor quanto concentrao de um sentido individualista da ao nos segmentos mdios, o que interessa quando retornamos biografia de Paulo da Portela, em se tratando de um homem das classes subalternas populares do incio do sculo, nela a evidncia clara de um projeto de vida elaborado em referncia s vias pelas quais transitara, sobretudo no mbito das sociabilidades de lazer e diverso, onde logrou distino e uma certa, embora efmera, celebrida-

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    de. Quero, assim, reter da proposta de Velho a idia de que os projetos individuais so viabilizados em situaes de intensa fragmentao, porm que em tais situaes os projetos consistem em esforos para engendrar um sentido totalizante sua existncia e tambm ao mbito coletivo do qual faz parte. Por isso, em tais contextos, a racionalidade-visando-fins (aes teleolgicas), bsicas ao aparecimento das projees individuais, desdobram-se sobre um terreno propcio s sadas singularizantes que os sujeitos apresentam como originalidades pessoais. Portanto, o enigma est nos mecanismos que fizeram deste homem de subrbio um porta-dor de valores, a princpio, compartilhados nos sentidos das aes de pessoas das classes-mdias. Talvez, a prpria classificao suburbana do biografado seja uma pista.

    Paulo Benjamin de Oliveira nasceu no dia 17 de junho de 1901, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Aquele fora um dia confuso na cidade, j que moradores do bairro de So Cristvo e usurios do bonde linha 77, cujo percurso conduzia a diversas fbricas (sobretudo de tecidos) situadas nas imediaes da Tijuca, protestaram contra o aumen-to da passagem decretado pela Prefeitura. Filho, ao que parece, no re-conhecido do clebre Mario Benjamin, introdutor dos dramas teatrais no circo brasileiro, Paulo foi criado apenas pela me, em meio s dificulda-des de uma mulher pobre, negra, separada do marido e com trs filhos. Cedo o menino principiou nos esforos de sustento da famlia, traba-lhando na entrega de marmitas para uma penso, no centro da cidade, fator com forte incidncia sobre a sua freqncia cada vez menor nos bancos escolares at o abandono total do colgio (SILVA & SANTOS, 1989, p. 37-38). Scio-historicamente, a vida do menino negro integra-se no contexto ambguo proporcionado pelo enlace entre a abolio do tra-balho escravo e a implantao do regime republicano no Pas. Pois dona agora de direitos civis equiparados aos dos brancos, a cidadania da popu-lao negra se mostrou logo de segunda classe, j que foram de antemo extradas da populao recm-liberta as condies culturais e materiais de concorrer numa sociedade que se queria vertical-capitalista, mas exclui a

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    mo-de-obra negra das melhores qualificaes e condies de circulao, sade, habitao e educao (ver MOURA, 1988, p. 59-67).

    Sem pretender reconstruir em detalhes a seqncia de episdios e eventos desse perodo (ver a respeito SSSEKIND, 1989; SEVCENKO, 1998, p. 7-48), vale lembrar ser este o instante em que, no plano global das relaes sociais, a economia-mundo capitalista conforma-se planeta-riamente. Nos pases da Europa Ocidental e nos Estados Unidos, o in-dustrialismo adentra em um estgio modernizante no qual a eletricidade, o petrleo e as novas tecnologias metalrgicas redesenham, no andamen-to da incorporao da racionalizao-cientifizao da instrumentalizao dos meios, o mapa da reproduo material da vida, dos modos de acu-mulao e reproduo ampliada do capital e dos estilos de vida. A de-manda por novos centros produtores de matrias-primas e por mercados consumidores, a fim de suprir e consumir o aumento vertiginoso do vo-lume de mercadorias produzidos, implicou numa rearticulao do mer-cado mundial, sob a gide das formas de dominao imperialista e neo-colonial.

    Na interface da ampliao das trocas mercantis, diplomticas, ideo-lgicas e mesmo simblicas ganha nitidez e concretude uma civilizao transnacional, a civilizao moderna, para a qual a tcnica exerce a fun-o de solda, ao forjar toda uma cultura material, ao lado de hbitos e costumes, em sintonia com um mundo dominado pelas artificialidades e habitado por objetos vivos de luz, cor, som e movimentos. Os arranha-cus, os automveis, as massas urbanas, os painis publicitrios, o cine-ma, o gramofone, a iluminao ferica, o paisagismo urbano, as multi-des, os grandes magazines e assim por diante multiplicam os signos das novidades modernas, em suas feiras e grandes exposies louvando as mquinas, verdadeiros cones do progresso econmico, bandeira ideol-gica de um Ocidente pleno da prpria identidade e, julgando-se apto a civilizar o mundo.

    O concerto planetrio teceu-se base da superioridade do com-plexo blico mas, sobretudo sedutoramente, conquistando almas vidas

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    de coparticipar deste admirvel mundo novo do progresso. No Brasil, a combinao entre os emergentes endinheirados com o caf, grupos inte-lectuais e elites polticas impregnadas pelo gosto de civilizao e devota-das ao projeto de integrar o Brasil no seio das naes modernas, toma-ram para si a tarefa de erguer nos trpicos uma Europa possvel. A con-trapartida do projeto era extirpar tudo quanto dissesse respeito ao acervo herdado dos tempos coloniais, agora envolto numa espcie de diaboliza-o; seria desde j a poca colonial o tempo do arcaico, a nossa Idade Mdia. Jornais, revistas, mdias publicitrias, novas tcnicas de disciplinas corporais e modalidades esportivas e educacionais so importados com a finalidade de alavancar os nativos condio de civilizados, e com eles toda esta periferia da civilizao. Alis, o verbo modernizar torna-se uma norma, uma regra, um imperativo. Mediante este desejo, potencializa-se a confeco do novo smbolo da Repblica que se queria moderna e cos-mopolita, ou seja, sob a administrao do engenheiro militar Pereira Pas-sos, inicia-se, nos primeiros anos deste sculo, um conjunto de obras, melhorias urbanas inspiradas naquelas realizadas por Haussman em Pa-ris, visando reformar a capital do pas, conferir-lhe o ar de uma metrpo-le aos moldes daquelas existentes na Europa.

    A construo de uma avenida rasgando a rea central da cidade tornou-se o marco do empreendimento, cujos objetivos redundavam de metas de higienizao, ampliao do controle e disciplinamento das con-dutas nos espaos pblicos, alm de viabilizar a interligao mais gil en-tre os diferentes pontos da trama urbana. Igualmente, a construo da Avenida Central assinala o deslocamento do eixo de interesse do poder no pas na direo das foras empenhadas com o internacionalismo, j que esteve aliada construo e expanso do porto carioca, com o intui-to de ancorar grandes embarcaes para o transporte de mercadorias e passageiros. O fato de a reforma urbana implementada por Pereira Pas-sos ter como smbolo a construo de uma grande via de circulao de mercadorias e pessoas a Avenida Central o emblema de um proces-so social mais geral, no qual detonada a ordenao da cidade do Rio de Janeiro como ncleo urbano metropolitano. Processo com incidncia

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    sobre dimenses vrias do convvio societrio, inclusive na fixao da mesma nobre Avenida Central como palco para o carnaval da cidade, cada vez mais o maior evento comemorativo na cidade (ver FARIAS, p. 1995). Deste modo, a festa coparticipa do mesmo movimento. Enfim, ressignificada em suas linhas mestras, porque a maior incluso de partici-pantes estava condicionada aos novos critrios de civilidade e civilizao. Nesse sentido, o gnero Desfile-Espetculo, cujo centro , de incio, o-cupado por Ranchos e Grandes Sociedades, detm o lugar de ponta no ranking da legitimidade.

    H, no entanto, no bojo da mesma grande obra um outro aspecto do processo de metropolizao da cidade cujos desdobramentos ajuda-ram a ampliar o processo de circulao do modelo Desfile-Espetculo, participando da sua consolidao enquanto fato central da folia. Trata-se este da constituio das zonas perifricas e suburbanas do Rio de Janeiro, posteriormente nicho histrico e simblico das Escolas de Samba. Ve-jamos mais detalhadamente a situao scio-histrica na qual referendo o argumento, tomando como ponto de partida a mesma Avenida Cen-tral. Pois a sua construo fora a parte mais visvel de uma malha rodovi-ria, projetada pela equipe dos engenheiros Pereira Passos e Lauro Ml-ler, articulando as zonas geopolticas que desde ento mapeiam a cidade. Melhor seria dizer que tal sistematizao inventa uma outra cidade. As-sim, a Zona Norte, atravs da construo da Avenida Rodrigues Alves, margeando a rea do cais do porto reformada, foi interligada ao centro com a abertura da Avenida Francisco Bicalho, graas ao ncleo do sis-tema, a mesma Avenida Central; que, por sua vez, possibilitou a ligao com outro setor da Zona Norte e com a Orla Sul, via Avenida Beira-Mar (NEEDELL, 1993, p. 56-57). A construo posterior das Avenidas Brasil e Presidente Vargas completa o alinhamento, cujo princpio geomtrico define um trao de grandes retas montando eixos perpendiculares, que vazam o espao da cidade conferido-lhe maior visibilidade e agilidade de acesso. O sistema de transporte ferrovirio visto adiante complemen-ta a malha de comunicaes.

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    Deste modo, a expanso dos equipamentos urbanos modernos va-za os fulcros comunitrios ambientados na cidade ou institui novas soci-abilidades cuja cotidianidade traz em si o processo scio-econmico e civilizador que a engendrou, pelo menos quanto ao binmio circula-o/comunicao social. A premissa a ser aqui verificada define-se pela hiptese de que a cultura popular urbana carioca, materializada na Escola de Samba, realiza-se medida que o ambiente social modernizado pro-porciona as bases de circulao do modelo do Carnaval-Espetculo.8 O qual, por sua vez, informa (no sentido de formatar, mediante aos cno-nes do gnero Desfile de Carnaval) algumas das prticas ldico-recreativas de amplos segmentos da sociedade local, que ento fixavam-se nas recm-fundadas regies suburbanas. Isto facultou os instrumentos de insero dessas manifestaes no plo central da folia carioca.

    A metade final do sculo XIX at as primeiras dcadas do atual, compreende o perodo de vertiginoso aumento da populao na cidade. E isto se pode observar tambm constatando o quanto se amplia a ocu-pao do espao urbano. Entre 1870 e 1933, o nmero de logradouros pblicos na cidade do Rio de Janeiro salta de 503 para 5.171, no que a-tinge aquelas regies na poca ainda classificadas de rurais (RIBEIRO, 1985, p. 19). Tais reas, desde 1870, conhecem intensivo estado de es-tagnao, motivado pelo desaparecimento de suas fazendas, em um momento que a propriedade fundiria e o capital imobilirio se diferen-ciam. E o no surgimento de um cinturo agrcola voltado para o merca-do urbano, devido, em parte, aos custos com transportes, abre espaos para que as empresas de construo civil, surgidas com o Encilhamento, possam agir na regio, hoje conhecida como Zona Norte.

    Primeiramente, so avenidas e vilas de casas que aparecem. Porm a entrada macia do capital imobilirio com empresas possuidoras de

    8 Estou denominando de Carnaval-Espetculo um especfico tipo de sentido presente nas condu-tas de folies, desde a segunda metade do sculo XIX, primeiro, de segmentos scio-economicamente identificados com o iderio cosmopolita da modernidade, depois engendrando atitudes semelhantes em outros segmentos sociais, mesmo os populares, cuja caracterstica fun-damental a adequao das prticas festivas ao modelo civilizatrio europeu das grandes passea-tas conformadas no aspecto dos grandes espetculos opersticos pblicos (ver FARIAS, 1995).

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    um capital em torno de 1.000 contos de ris comprando as terras rurais estagnadas, dispara o loteamento da futura zona suburbana. Assim, em 1933, 70% dos terrenos baldios estavam nas mos dessas empresas (RI-BEIRO, p. 29). Outra vez a reforma de Passos Pereira surge como ponta de comprometimentos mais complexos. Nesse caso, a consorciao de interesses e capitais dos bancos, do Estado e de empresas nacionais e estrangeiras do setor de imveis e da construo civil. Algumas das con-seqncias tiveram por face a escandalosa especulao imobiliria dos terrenos das reas mais centrais da cidade. Alavanca perversa, pois em-purra os pobres para as reas perifricas suburbanas, mais prximas das instalaes industriais em expanso. A rea margeando a Orla Sul vivia o inflacionamento no preo dos seus terrenos, o que esboava a viga-mestra do seu futuro como balnerio tropical e espao reservado, pela amenidade do clima e a melhor dotao de infra-estrutura urbana, que-les de melhor situao scio-econmica.

    Neste sentido, a derrubada dos cortios e das estalagens na regio central leva muitos trabalhadores a improvisar suas moradias nos mor-ros, locais mais prximos do Centro e dos ambientes de trabalho, dando origem s favelas (ROCHA, 1982, p. 125-126). Contudo, a maior parte desse contingente, somados aos novos migrantes em sua maioria ex-escravos oriundos das decadentes lavouras cafeeiras no Vale do Paraba Fluminense se vai aventurar pelas zonas mais interioranas da cidade. Em um primeiro momento, o transporte coletivo impedia a fixao des-sas pessoas na periferia, uma vez que o bonde circulava apenas em reas j urbanizadas, entre Botafogo, Tijuca e So Cristvo. A Estrada de Ferro Dom Pedro II, hoje Central do Brasil, ligando o Campo de Santa-na a Queimados (na Baixada Fluminense), desde 1858, restringia-se aos transportes de cargas rurais (caf e ctricos). Mesmo a inaugurao das estaes de Cascadura, Engenho Novo, So Francisco Xavier, So Cris-tvo, Sapopemba (hoje Deodoro) e Maxambomba (atual Nova Iguau) no implicou na implantao do transporte suburbano de passageiros. O preo alto das passagens afugentava os usurios.

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    Ainda assim, desde 1860, as antigas olarias, curtumes, ncleos ru-rais e sedes de fazendas so retalhadas e postas em leilo, loteamentos e ruas so abertos. Um pouco mais tarde, por volta de 1870, ocorre o in-cio do decrscimo no preo das passagens ferrovirias e a construo de mais estaes (em nmero de cinco). Tambm por esse perodo, outra linha frrea aberta, a Rio DOuro, com a finalidade de levar a gua da Serra de Tingu para o centro do Rio, possibilitando a incorporao de faixas da regies Norte e Oeste ao territrio habitvel da cidade. Uma outra imensa rea se reparte em bairros em torno da Orla Norte da Baa de Guanabara, com a interligao de duas outras ferrovias. E acompa-nhando a mudana da linha frrea que a cortava, passa a ser conhecida como regio da Leopoldina j que a concesso transferida para a em-presa inglesa Leopoldina Railway. O sistema encerrado em 1903, quan-do a Estrada de Ferro Melhoramentos, dirigida por Andr Gustavo Pau-lo de Frontin (um dos engenheiros responsveis pela reforma carioca, no tocante ao setor de trfego), incorporada Central do Brasil. Sua linha, que ligava a estao de Mangueira Sapopemba, cortava uma grande rea, onde floresciam muitos estabelecimentos industriais (ABREU, 1984). A produo de energia hidreltrica possibilita a eletrificao e o baratea-mento do transporte ferrovirio de passageiros. Em 1929, 1 milho de libras gasto no financiamento da eletrificao da Rede Ferroviria Cen-tral do Brasil. Quase o mesmo montante aplicado modernizao da Estrada de Ferro Leopoldina (LOBO, 1978, p. 851). Os trens eltricos para passageiros comeam a circular em 1936. O que se incorpora ao conjunto de transformaes scio-econmicas iniciadas com a reforma de Pereira Passos, assim sintetizadas pelo urbanista MAURCIO ABREU (1984): disseminao do trabalho assalariado, a interveno sempre mai-or do Estado na execuo de grandes obras pblicas, a generalizao da relao patro-empregado, a expanso do industrialismo com o advento da Primeira Guerra e a abertura dos subrbios massa operria. A expanso urbana, medida pela taxa de crescimento dos prdios e domiclios, nessa fase de 38,6%, segundo o Censo Municipal de 1920 (LOBO, 1978, p. 432-433), superando o aumento da populao, calculado em torno de 27,5%.

    A historicidade da formao desse ambiente compromete, de certa forma, algo comum na bibliografia sobre a Escola de Samba de descre-

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    ver as origens dessas associaes em meio a paisagens pr-industriais, espcies de comunidades autnomas que circunscreviam as identidades nos limites do local, respondendo ao primado de tradies ancestrais a-fricanas.9 Viso que sustenta uma concepo baseada em dicotomias, tais como: autenticidade versus aculturao burguesa. Ao que parece, a cons-tituio das reas suburbanas aponta na direo contrria, isto , sugere a maior coligao entre as relaes e prticas fulcradas na cidade. E, deste modo, os fatores decisivos ao aparecimento das Escolas de Samba estari-am em menor escala nas aes orientadas pela memria de um passado mtico exemplar e sim, na interface seja com as descontinuidades impos-tas pelo presente, seja com os condicionantes da expanso urbana, cada vez mais consolidados como parmetros experincia individual e cole-tiva. Penso que o movimento de espetacularizao das prticas ldico-recreativas, intrnseco ao processo social e civilizatrio moderno, encon-tra na caracterstica centrpeta da sociedade metropolitana em expanso o seu motor de desenvolvimento, devido ao incremento da comunica-o/circulao levado adiante. Assim recebe novos contornos a prpria representao do popular, no compasso da reorientao das aes e rela-es sociais. em vista disto que tomo a representao da subalternida-de dessa cultura popular, conjuntamente aos seus agentes, no maneira de um fim em si, mas considerando as diversidades de elementos enca-deados e sujeitos a metamorfoses, ao estarem conectados em unidades complexas. A instituio da Escola de Samba assim reconhecida como heurstica da teia de reciprocidades e conflitos gerada no processo urba-no carioca daquele princpio de sculo.

    Neste sentido, a importncia do elemento tempo suscita algumas indicaes. Tomo de emprstimo a idia de Anthony Giddens a respeito do desencaixe entre tempo e espao promovido pela sociedade mo-derna. Mostra Giddens que nas formaes sociais tradicionais a relao tempo e espao est preenchida pela centralidade do lugar como ce-nrio fsico da atividade social (...) situado geograficamente, onde ocor-rem em presena as dimenses sociais da vida (1991, p. 26-27). O ad-vento das estruturas e modos de vida modernos, prossegue o autor, im-

    9 Ver por exemplo, LOPES (1981, p. 83) e SILVA & SANTOS (1989, p. 39).

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    plica no esvaziamento do tempo, o qual por sua vez esvazia o espao, tornando o lugar, algo assim, fantasmagrico, em razo da ampliao e distanciamento entre as relaes, que passam a ser feitas tambm, e prin-cipalmente, com ausentes. Moldam-se ingerncias estruturais outras s agncias humanas. No contexto scio-histrico vislumbrado, tal desen-caixe materializava-se na seguinte situao: os ncleos de habitao e so-ciabilidades tiveram origem em prticas de racionalizao do espao ur-bano, que, por sua vez, respondem a exigncias diversas e irredutveis a esses locais. Implicando, por exemplo, no fato de, em sua maioria, a po-pulao adulta da regio, notadamente a masculina, estar empregada nas fbricas ou outras atividades situadas em reas mais centrais da cidade.10 Deslocamento facilitado com a extenso da rede de bondes eltricos e o desenvolvimento do transporte ferrovirio, e mais timidamente o rodo-virio, representado pelos nibus diesel. Conjunto esse de condicionan-tes que inventa uma cotidianidade, segundo um ritmo impulsionado pela medio abstrata do tempo e em consrcio com o imperativo da produ-o e circulao de mercadorias. Ritmo de igualao que se infiltra em variados planos da vida societria; a inclusividade compreende a um princpio bsico, mesmo que organizado por hierarquias scio-econmicas. O apaziguamento dos atos torna-se um referencial de con-vivncia nos crculos de grupos interdependentes no espao da cidade. A tenso entre reciprocidade e diferenciao se coloca em grau elevado na nova geografia scio-cultural da cidade e uma outra grade conceitual e cognitiva interfere na dimenso perceptiva do morador citadino, embora com discrepncias oriundas da estrutura social desigual classista.

    O quadro cotidiano emoldurado rotiniza uma srie de prticas ex-pressivas dos novos limites conformadores da experincia na cidade. Neste sentido, as manifestaes ldicas e culturais ancoram-se em outras

    10 Vale acrescentar que muitas mulheres trabalhavam nas chamadas casas de madame, localiza-das nos lados da Zona Sul da cidade, no contexto de relaes de trabalho informais de presta-o de servios. E que muitos dos jovens masculinos e homens adultos viviam de servios temporrios, biscates, em residncias, obras de construo civil ou estabelecimentos comer-ciais ou industriais, localizados no Centro ou na mesma regio da Zona Sul, inflados pela posi-o do Rio de Capital Federal e principal centro econmico e financeiro do Pas. Fator respon-svel pela fixao na cidade de grupos engajados nos setores da burocracia estatal, sem paralelo em outras praas nacionais. Com efeito, o coeficiente da interdependncia estabelecida atingiu nveis significativos. Ver a respeito, BASTIDE, Roger (1983, p. 119-131).

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    bases, que as redefinem. A religiosidade popular oferece um paralelo su-gestivo. Em seu estudo sobre a umbanda, RENATO ORTIZ (1991) de-monstra que tanto o surgimento desta religio quanto as modificaes que ela introduz no culto afro-brasileiro devem ser entendidos luz das transformaes mais gerais em curso na sociedade brasileira, desde o in-cio do sculo XX. A seu ver, o comedimento caracterstico da umbanda, por exemplo, em relao ao candombl, responde s exigncias postas pela sociedade urbana-industrial em desenvolvimento nesse perodo. O que, sublinha o autor, abriu o culto a uma maior individualizao dos participantes (inclusive como meros espectadores) e apresenta dispositi-vos legitimao da religio no mbito do mercado religioso.

    possvel reconhecer a mesma metamorfose em outras dimenses da vida dos segmentos sociais populares no Rio de Janeiro, do incio do sculo. Para os objetivos deste estudo, importante considerar que a im-plantao da semana inglesa limitou aos finais de semana a realizao de muitas das brincadeiras e jogos, sobretudo entre a populao operria. As partidas em campo de vrzea, as peladas, consagram um tempo de sociabilidade masculina em torno da crescente popularizao do futebol nos subrbios, no que as modernas fbricas de tecido da poca tiveram decisivo papel (HERSCHMANN & LERNER, 1993, p. 39-49).11 O princpio de fazer coisas em equipe motivou a iniciativa de reunir esforos e coti-zar recursos para a organizao de times de futebol e insumos necess-rios aos jogos, estruturando campeonatos e assim articulando ruas de um mesmo bairro ou at bairros nos subrbios da cidade. Nessas competi-es a cor e o nome do time elegiam aquele grupo como smbolo da lo-calidade (ZALUAR, 1985). O imperativo de auto-superao, a fim de atin-

    11 Muitos desses estabelecimentos industriais disseminaram junto populao pobre, que ocupava suas vilas operrias nos subrbios da cidade, a prtica do futebol o caso da fbrica de teci-dos Bangu, a qual funda o bairro do mesmo nome, da Zona Oeste. Isto criou as condies pa-ra que mais tarde aparecessem muitos dos jovens celebrados como craques nos estdios brasi-leiros e, com a camisa da seleo nacional, no exterior. Lopes e Maresca talvez desenvolvam a pesquisa mais apurada sobre o tema. Ocupam-se daquele considerado o exemplo acabado des-se processo civilizador (os autores apropriam o conceito de Elias) levado adiante pelas fbricas txteis cariocas da poca: Garrincha. Algum criado e empregado desde a adolescncia na A-mrica Fabril, situada no Distrito de Pau-Grande, Municpio de Mag (LOPES & MARESCA, 1992, p. 114-134).

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    gir melhores resultados, levou, muitas vezes, a fuso entre times, redun-dando na constituio de pequenos grmios. Neles, o esboo da organi-zao burocrtica da administrao desenvolvia-se de acordo com as exi-gncias de conferir maior estabilidade e autonomia entidade. Concen-tra-se crescentemente o poder de dirigir e decidir os rumos das associa-es em poucas mos, no que proporciona a diviso de tarefas com a ascendncia da elaborao intelectual, na contrapartida do predomnio de uma maior rotinizao sobre as atividades ldicas.

    Semelhante perfil organizativo marca o aparecimento dos Blocos carnavalescos, por volta dos anos vinte.12 Eles tambm traduzem o em-preendimento de racionalizao das prticas e comedimento dos impul-sos. Mantm-se a mesma iniciativa de cotizao para compra dos instru-mentos musicais e materiais necessrios confeco de estandartes e ou-tros distintivos do agrupamento, elementos capazes de, quando exibidos durante os dias de folguedo, efetivarem sua reivindicao como repre-sentantes do local de origem e os distinguir das outras entidades. Nomes hoje famosos, como Mocidade Independente de Padre Miguel, Unidos de Vila Isabel, Acadmicos do Salgueiro, Estao Primeira de Mangueira, do conta dessa identificao. Ou ainda a organizao de festas para ar-recadar fundos ou a formao de caixinhas reunindo a contribuio dos participantes associados e estando a administrao dos recursos a cargo de uma faco do grupo (SOARES, 1985, p. 101 e CANDEIA E ISNARD, 1978, p. 9). Alis, a organizao associativa oferece a flexibilidade parti-cipativa para membros submetidos ao ritmo produtivo da sociedade ur-bano-industrial, no dispondo de todo o tempo para dedicar ao incre-mento daquelas atividades ldico-recreativas. Igualmente, destaca o a-

    12 A ocasio das peladas, partidas de futebol informais disputadas em campos de vrzea, era (e ainda ) nos subrbios um momento para batucadas, manejos e cantos de sambas. Muitos Blo-cos, mais tarde transformados em Escolas de Samba, surgiram durante o festejo das torcidas e integrantes dos times de bairro. o caso da Mocidade Independente de Padre Miguel, ou do Bloco Irineu Perna-de-Pau, origem da atual Beija-Flor de Nilpolis. A ttulo de exemplo, acres-cento o depoimento do compositor Tiozinho da Mocidade ao autor, no contexto de uma en-trevista jornalstica. Nascido e criado na favela de Vila Vintm, lembrou: Para falar a verdade, de bola eu no gostava. Meu negcio era ficar na beirada do campo, batendo e cantando uns pagodes. (O Globo, 18-10-90).

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    gente, naquele instante, capaz de assumir os encargos da organizao, medida que ocorre a diferenciao entre os membros dos grupos carna-valescos. No caso, a figura do sambista exercera tal papel. Vejamos, en-to, sob quais condies se d a sua reinao. Os Blocos, que tinham no Rancho um ideal de organizao, marcam uma redefinio na participa-o popular no Carnaval do Rio de Janeiro. Ao contrrio dos Cordes, caracterizados pela improvisao (quando aglomerados de folies vesti-dos das mais variadas e diversas maneiras saam pelas ruas sem crono-grama ou itinerrio), os Blocos introduzem nas manifestaes populares nos festejos carnavalescos um sentido de homogeneidade, expresso na uniformidade das vestes e das cores definidas no pavilho da entidade, cuja honra de carreg-lo estava a cargo da porta-estandarte espcie de verso das balizas dos Ranchos (SOARES, 1985, p. 98).

    O surgimento dos Blocos, por volta dos anos vinte, acentua o lu-gar diferenciado da bateria em relao aos coristas, principalmente por-que se comea a produzir msicas especialmente para o dia de folia e toma vulto a exigncia de regularidade de uma marcao forte o suficien-te para manter o ritmo, em meio ao deslocamento entrosado das alas de componentes no decorrer da marcha. Algo prximo do modelo dos Ranchos, no qual existe clara distino entre os que tocam e aqueles que apenas cantam e, ainda, h a confeco de canes exclusivas para o des-file anual. Neste momento o lugar do compositor sambista ganha desta-que, ascendendo frente aos demais participantes. O cortejo obedece, portanto, a uma estrutura que orquestra o entrosamento entre as partes, conferindo-lhes lugares sistematicamente diferenciados porm comple-mentares no percurso, conformando-os numa ordem de interaes, logo no amontoados aleatoriamente, e, ao mesmo tempo, distintos do entor-no composto pela assistncia-platia.

    A mesma diviso de tarefas ocorre tambm na direo dos Blocos, porque a exigncia de unidade internaliza uma certa cotidianizao dos preparativos do cortejo, na qual o grupo dos que dirigem e organizam diferencia-se dos outros desfilantes. A elaborao de atas e estatutos tor-na-se o instrumento decisivo a essas compartimentaes. J em 1922,

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    por exemplo, o Bloco Baianinhas de Oswaldo Cruz (bairro da regio su-burbana da Central do Brasil) procurava se organizar segundo uma certa diferenciao entre as sees administrativas e as propriamente carnava-lescas. O esquema montado distingue hierarquicamente os presidentes e diretores dos mestres de canto e de bateria. Alis, os baluartes fundado-res, verdadeiros heris mticos na histria das Escolas de Samba, foram, antes de mais nada, partes da elite que dirigia inicialmente essas institui-es. A capacidade administrativa, ou, para utilizar a terminologia co-mum entre os que viveram o perodo, a capacidade em organiz-las aos moldes de entidades pacficas nas quais havia um clima propenso di-verso ordeira, os fazia diferentes dos demais componentes do crculo do samba.

    De acordo com a exposio acima, vimos que o nascimento de Paulo da Portela ocorreu em um momento crucial da cidade, no qual um conjunto de obras foi executado visando remodelar o centro urbano, no incio do sculo. Tambm tivemos oportunidade de assinalar a virulncia contida no episdio dessa reforma, j que nela se deflagrou transforma-es tanto scio-econmicas quanto nos horizontes das sociabilidades de amplos segmentos da populao citadina. exemplar a respeito, o fato de Paulo ter experimentado a verdadeira expulso de famlias inteiras para os subrbios, onde negros, mestios e outras etnias tiveram de refa-zer seus modos de vida, engendrados pelo contexto de uma sociedade na qual a racionalidade dos meios e fins j predominava ascendentemente sobre as diferentes dimenses da vida coletiva. nesse cenrio tenso, igualmente ressaltamos, que emergiram as novas modalidades de media-o cultural, sobretudo nas ocasies festivas do carnaval, entre os confli-tantes planos scio-culturais e geopolticos do Rio de Janeiro. O projeto de vida de Paulo vai ganhando contornos, parece, na interpretao que o seu autor obrigado a fazer da prpria realidade vivida.

    Para assegurar a validade do meu ponto de vista, retomo a prpria mtica em torno deste sujeito. Fundador do Bloco de Oswaldo Cruz e da Escola de Samba Portela, Paulo est inserido na constelao dos baluar-tes do samba. E isto ocorre no s porque teria unido as culturas de

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    brancos e negros, mas tambm porque fazia parte do triunvirato ao qual atribuda a concentrao de criatividade que, pela organizao imple-mentada desde a origem, inscreveu o sucesso na histria dessa Escola de Samba detentora de 21 ttulos, o maior nmero entre todas as partici-pantes do concurso oficial (CANDEIA, ISNARD, 1978, p. 16). Os elemen-tos de memria a respeito dele definem sua habilidade como um dom quase mstico do ser sambista, espcie de arqutipo de gnero de agente artstico:

    Antigamente existia bloco e existia rancho. No rancho saam homens e mulheres na segunda-feira de carnaval. No bloco s saa homem, fosse qual fosse a figura, tinha que ser homem. O desfile dos blocos era na quinta-feira antes do carnaval. O Paulo, como eu tinha um pouquinho de voz, ele me levava para essas coisas. Tocou de cantar fosse ladainha ou o que fosse, era o Paulo. O Paulo no foi um sam-bista assim conforme hoje, um passista, um batuqueiro. Paulo no era isso, era mais de canto mesmo. Ele sabia muita coisa, aprendia muita coisa, ele estava sempre fora, andava pela cidade (...). Ento ele trazia muitas novidades pra Portela. O Paulo bolou muitas coisas, ele tinha muita cabea. Sabia entrar em qualquer lugar, ia se infiltrando. Com-punha marchas, introduziu samba com voz masculina e feminina. No incio, no 412, primeira sede da Portela, s se cuidava de futebol. Paulo que queria implantar o samba. Ia muito ao Estcio, na Man-gueira. Paulo chamava os outros, o Claudionor, turma toda que tinha l, pra ir com ele. Ningum ia no, tinha medo. Ele ia sozinho (Apud DA SILVA e SANTOS, 1989, p. 60-61).13

    Por ser um relato, a histria mitificada pelo presente de quem a recompe. Basta perceber a impreciso quanto ao tempo: o indefinido antigamente. Importa, no entanto, justamente o perfil mtico-herico atribudo a Paulo Benjamin. A caracterstica marcante no relato o quan-to os seus atos esto concatenados pelo princpio da formalizao das expresses culturais na direo de um iderio artstico. O discurso justa-pe uma srie de eventos que, pela ao do heri fundador, se torna par-te da epopia do samba. ele quem percebe o futuro de sucesso do samba e o impe ao futebol; ele o responsvel pela insero das mulhe-res nos Blocos, ao criar sambas para ambos os registros vocais. Coube-

    13 Depoimento de Ernani Rosrio, fundador e hoje membro da Ala da Velha Guarda da Escola de Samba Portela.

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    lhe tambm a tarefa de introduzir o samba no Carnaval da cidade, haja vista que os Blocos antes desfilavam na quinta-feira anterior ao calend-rio oficial da folia.

    Ao mesmo tempo, a fala atribui o poder de Paulo e expresso de sua sagacidade ousadia de circular para alm dos portais da chancela comunitria, por diversos mbitos externos ao seu fulcro original e assim intermediar idias e elementos de fora para dentro e vice-versa. Logo, sua primazia tem fonte distinta do poder de um babalorix no candom-bl, cuja autoridade baseia-se na tradio ancestral circunscrita ao local de solidariedade da memria comunitria. Por outro lado, a fala acima enfatiza a perspiccia de Paulo em saber distribuir o que estava disperso, impondo ordem, colocando cada pea em seu devido lugar. Tal sensibi-lidade surtia-lhe, ao que parece, o resultado da autoridade. Deste modo, Paulo presidia os rituais de iniciao dos sambistas, detinha a frmula de individualizar, pela especializao, o artista popular. E, sobretudo, estava em suas mos a tarefa de realizar a sntese entre a forma cultural samba e a modalidade de organizao secular de divertimento popular em gesta-o nos arrebaldes e favelas cariocas, daquela poca. Para isso, mobilizou os elementos que foram conformados no convvio da intimidade popu-lar, nos seus ritos de diverso, enquanto recursos simblicos e materiais a serem capitalizados no campo concorrencial da cultura que se ia deline-ando. Mas o faz em acordo com os limites que estruturavam a sua per-cepo-cognio e estes fundavam-se nos valores da civilidade urbana da modernidade. Paulo no apenas adapta os ingredientes tnicos e de clas-se social s convenes naturalizadas do concerto societrio dominante, funde-os, confunde-os e reinventa novos valores: o sambista-artista, a arte dos sambistas, enfim, o samba como arte, patrimnio da cultura brasilei-ra, carioca. Parece imprescindvel, ento, compreender o percurso que aproxima os sambistas do Carnaval legtimo, na cidade.

    Perseguindo ndices da trilha analtica deixada por Jos Miguel Wisnik, o autor inclui a percusso africana no interior da chamada msi-ca modal. Define esta pelo sentido aleatrio quanto ao movimento da escala das notas e, principalmente, a situa sociologicamente no universo

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    das comunidades onde a apropriao coletiva da produo coincide com a feitura tambm comunal da representao do tempo. A msica revela um tempo circular, ritualizado, que retorna ao princpio de origem o mito (WISNICK, 1989, p. 71-73). Diferentemente, a estilizao da batuca-da afro-brasileira para desfiles carnavalescos supe uma outra configura-o scio-cultural, assentada na histria. Paulatinamente ocorre a forma-lizao do ritmo sincopado e sucumbe a possibilidade de completar com o corpo (batendo e/ou cantando e/ou danando) os vazios suscitados pelo acaso, porque a irreversibilidade comanda a transformao da mani-festao simblica em um bem cultural (SODR, 1979) a ser assimilado por um pblico amplo. Isto vai demandar o desenvolvimento de uma frmula que torne essa expresso cultural facilmente reconhecvel e e-qualize a relao entre produo/emisso e a recepo, em termos da troca de equivalentes, na situao condicionada pelas determinaes es-pacio-temporais relativas ao crescente predomnio da mercantilizao capitalista. O incio do comrcio de partituras e o emprego de msicos nas casas de instrumentos, ainda no sculo XIX, possibilitam o limiar da comercializao da msica e oferecem subsdios profissionalizao dos seus especialistas simblicos. O gnero samba surge como um dos resul-tados dessa frmula, no contexto carioca do princpio deste sculo, no rastro da paulatina valorizao da rtmica percussiva aliada aos instru-mentos de cordas (cavaquinho, banjo e violo).

    As transformaes propriamente sociolgicas so agudas e esto dispostas sobre a mesma esteira sobre a qual ocorrem estes novos con-tornos scio-culturais e expresses estticas na cidade. O tempo a fixa-se como entidade abstrata astronmica, articuladora das particularidades dinmica produtiva (material e simblica), no espao da sociedade ur-bana-industrial, e essa produo apropriada de maneira privada e desi-gual pelos grupos. A tendncia individualizao emerge como um dos componentes integrao das massas humanas no macrocosmo sociol-gico em formao, atuando sobre o aprofundamento subjetivo e sua exteriorizao atravs de projetos e materializaes, tomadas como obras do gnio particular de cada mnada humana. Isto porque, ainda que se

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    mostre a princpio paradoxal, cada vez mais, recai sobre as pessoas enca-deadas no processo social urbano a necessidade de operar com cdigos que tornem possvel a identificao dos atores desta totalidade engloban-te mas contraditria e prenhe de fraturas scio-econmicas e simblicas. inclusive sob tal emolduramento que alguns grupos comeam a ser individualizados como sambistas, embora a assuno de tal identidade deprima o valor conferido elaborao coletiva. Esto desde j inseridos no escopo dos mercadores da alegria, no instante que em so reconheci-dos e seus membros se auto-reconhecem como detentores da competn-cia em produzir o samba. E de agora em diante, outros devero estar como platia, que responde aos sinais emitidos.

    O argumento acima evidencia-se nos ajustes por certo mais gerais na composio dos smbolos e manifestaes afro-brasileiros no contex-to da cidade. No ensaio Samba, O Dono do Corpo (1979), Muniz Sodr relata as transformaes ocorridas, entre o fim do sculo XIX e as pri-meiras dcadas do XX, no modo de elaborao e expresso cultural de negros e mestios ambientados no Rio de Janeiro. As exigncias de inte-grao sociedade vertical-competitiva e as presses morais exercidas pela polcia e as instituies de reproduo da cultura burguesa, a seu ver, acenderam a centelha de um longo processo de acomodao das populaes negras s restries da cidade, de acordo com complexo con-junto de tticas de sobrevivncia, informando o mestiamento dos cos-tumes (SODR, p. 18). Entre estas sobressaiu a moderao do uso do corpo, diminuindo a sensualidade dos gestos e maneios em acompanha-mento suavizao dos batuques, quando se tratasse da exibio em es-paos de convvio pblico, papel cada vez mais consolidado pelo folgue-do carnavalesco. Observa Sodr o descolamento da msica afro-brasileira de matriz mtica e religiosa medida da sua consolidao como pea de uso ldico ou esttico. Na esteira desse longo processo civilizador, ar-gumenta, o carter coletivo dos batuques e improvisos feitos nas chama-das rodas de samba (ou pagodes) cede lugar a composies individuali-zadas, desprovidas da reversibilidade anterior, porm de acordo com o formato adequado sua circulao nos ambientes consagrados diver-

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    so e reproduo em disco. Embora cercada de controvrsias, a primei-ra parece datada de 1917, com o samba maxixeado Pelo Telefone, grava-do por Donga.

    Apesar de considerar problemtica a nfase depositada por Sodr no aspecto de ao poltica, que o autor reconhece na mudana de pos-tura desses agentes, possvel visualizar nesta reorientao das aes o carter ambguo marcante da presena das manifestaes afro-brasileiras no Carnaval do Rio de Janeiro. Porque, ainda que as caractersticas des-tas entidades resultem de um esforo de diferenciao frente s demais e prestigiadas formas de participar da folia (postura recorrente nos dirigen-tes das Escolas de Samba, ainda hoje), a prpria disposio de participar da festa, principalmente na sua rea mais nobre, traz em seu bojo limites bastante ntidos a serem observados para diferenciao e os limites so entronizados pelos membros das associaes do samba como naturais s funes de agentes e entidades carnavalescas que desempenham. Assim, acredito, ao contrrio de Sodr, que a iconoclastia antecedeu a politiza-o no delinear da identidade dessas novas faces sociais. E as condi-es mesmas impostas pelo quadro scio-histrico da poca atuaram sobre as escolhas de tal conduta estetizante. Pois, olhando de um plano mais geral e historicamente alongado, diria que a civilizao dos batuques proporcional formao de personalidades identificadas com o ethos da artisticidade. Isto considerando que a secularizao experimentada pela sociedade carioca espraiou-se tambm sobre a simbologia afro-brasileira, na medida em que se insinua uma esfera monopolizadora da produo, guarda e divulgao da cultura, agora orientada para diverso das multi-des citadinas. A apario de profetas da civilizao nos crculos de soci-abilidade afro-brasileiros da cidade ocorre segundo tais condicionantes. Sua atuao teve por base a proposta de salvao contida na possibilida-de de incluso social, implcita na idia de artista popular. Os sambistas constituram espcie de sacerdotes, ocupados com a rotina da institucio-nalizao do gnero rtmico-musical samba. Enfim, a permanncia dessa atualizao do batuque africano implicou na sua reconfigurao, agora como objeto de consumo artstico e de entretenimento, concatenado s

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    exigncias da modernizao e dos efeitos da disciplinarizao em mar-cha. A individualizao do gnero samba e dos seus produtores e con-sumidores, portanto, um emblema contundente da profunda metamor-fose operada. Ainda que, a partir da, um conjunto de representaes passasse a definir estas prticas (agora culturais) pela convivncia mais prxima determinada idia de natureza idlica e da manifestao de sensualidade e espontaneidade.

    oportuno, penso, retomar a hiptese formulada por Roger Bas-tide, no seu estudo sobre As Religies Africanas no Brasil. Exatamente porque, no argumento desse autor, a poltica de acentuar os batuques, promovida, entre outros, por exemplo, pelo Conde dos Arcos, na Bahia do sculo XVIII, que procurou evidenciar as diferenas tnicas entre os negros (originariamente oriundos de comunidades familiares e tribais diversas), tambm constituiu um momento de individualizao de alguns dos smbolos africanos, apartando-os de seus contextos religiosos, preci-pitando sua mundanizao como forma de lazer, j num sistema scio-cultural devotado a distinguir o trabalho das demais dimenses da expe-rincia, como o ldico. Igualmente, a permisso da igreja catlica aos escravos de se reunirem em torno de confrarias, abriu a possibilidade aos sincretismos religiosos, nos quais a simbologia e outras representaes coletivas encontraram um solo sobre o qual puderam ancorar-se, aps a grande dispora (BASTIDE, 1971, p. 82).

    A meu ver, na considerao da relao mtua entre os desdobra-mentos de ambos os episdios ocorridos nas condies descritas do Rio de Janeiro em fase de metropolizao, talvez seja possvel propor que, emancipados dos seus nichos mticos, rituais e mesmo religiosos, muitos smbolos e prticas afro-brasileiras, j em parte secularizados, so enfim refundados (e ressignificados) como peas folclricas mas sobretudo da cultura mundana, popular urbana. A adequao deste acervo simblico lgica formalizante-reprodutiva da msica ocidental, posterior ao adven-to da partitura musical, por exemplo, atuou para a sua conformao ao estatuto de objeto de expresso-comunicao, depois articulado s tec-nologias mecnicas de reproduo da audibilidade e ao mercado amplia-

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    do do entretenimento. Aos dois aspectos ser acrescentada a ao dos poetas romnticos do sculo XIX, que investem de letra o extrato simb-lico-musical ento em formao no Pas, iniciando toda uma racionaliza-o da musicalidade local. Ressoa, tambm, as transformaes sobre os ritmos do corpo humano contidas na polca, numa mudana so substitu-dos os rodopios das danas da nobreza pelos saltos acelerados, numa coreografia consagrada nos sales das burguesias europias e trazida ao Brasil pelas companhias teatrais francesas, por volta da dcada de 1840. Incorporao essa ocorrida no movimento de deslocamento paulatino dos gostos e disposies de canto e dana na cidade, at redundar na po-pularizao do maxixe, cujo sucesso chegou s casas de dana parisien-ses, no princpio deste sculo, numa combinao entre a polca e o lundu afro-brasileiro. Por outro lado, o mesmo movimento aparece na marcha carnavalesca, aprimorada com a formalizao promovida pela maestrina Chiquinha Gonzaga, no rastro ondulante das negociaes entre diferen-tes segmentos sociais que teceram a msica popular urbana carioca (VI-ANNA, 1995), o que facultou o deslanche de uma unidade musical festi-va, bsica expresso ldica na situao de transformao da carnavali-dade urbana, agora embasada na alegria esttica-expressiva, ou seja, can-tada e danada. Algo assim abre insero de novos quadros de compo-sitores populares, cuja produo musical se funda numa rtmica poten-cializadora das manifestaes corpreas para fins de xtases contidos nos segmentos de diverso.

    Desta tica, faz-se mais compreensvel o fato de setores da popu-lao subalterna afro-brasileira, ambientada na urbanidade carioca, torna-rem-se agentes culturais, j que se definem e so classificados como por-tadores (individuais) da competncia de realizar atividades artsticas, tra-tados como peritos e detentores de uma autoridade social, medida que desenvolvem uma vocao artstica imanente s suas personalidades. En-tendo que, segundo semelhante perspectiva, a conformao desses agen-tes no formato modelar do Carnaval-Espetculo aponta para um rema-nejamento mais amplo, calcado no complexo dos relacionamentos soci-ais com incidncia sobre a formao das personalidades no Rio de Janei-

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    ro, daquele instante. A gradual disposio em se apresentarem para pla-tias, assumindo a forma de procisses profanas, introduzindo traos dramatrgico-opersticos, emblemtica. Sobressai a uma armao for-mal na qual o ritmo sincopado da percusso africana, casado tanto com uma base meldica, sobretudo assentada no uso de instrumentos de cor-das, quanto com os desenhos coreogrficos corporais cada vez mais sub-metidos aos padres de polimento das exposies afetivas, configuraram a espetacularizao das passeatas festivas profanas. Espetacularizao situada no momento/espao liminar do desinterdito carnavalesco. Por-tanto, em obedincia aos critrios dominantes na folia, realizada por parte dos integrantes das associaes do samba a mesma formalizao da conduta informal. O monoplio que exercer, posteriormente, o grupo dos sambistas vir no rastro da adoo deste esquema estetizante que preside a diferenciao institucional-funcional da Escola de Samba.

    Embora apenas o tangencie aqui, um conjunto de fatores engendra nesse momento a situao da produo musical popular, incidindo tam-bm nessa mesma disposio das prticas no Carnaval. O desenvolvi-mento de espaos mundanos na vida noturna da cidade, freqentados por pblicos variados, abre um flanco ao entrosamento entre intrpretes ligados s casas de reproduo fonogrfica e um contingente de compo-sitores e msicos oriundos de segmentos sociais mais pobres, que angari-am notoriedade medida que as festas de largo, da Igreja da Penha e do Oteiro da Glria, e a folia carnavalesca, notadamente na Praa XI, ga-nham popularidade, abrigando gente de diferentes posies sociais, as quais passaram a buscar na riqueza rtmica-musical desses locais uma re-serva de diverso, oposta ao cotidiano do trabalho. No demorou, por exemplo, para a festa da Penha abrigar, promovida por jornais e contan-do com o apoio das casas fonogrficas, o concurso com a finalidade de escolher os sambas e as marchinhas que dominariam a folia carnavalesca na cidade (AUGUSTO, 1989, p. 13).

    Para isto foi decisiva a introduo da gravao eltrica no Brasil e o esboo de um mercado do disco a partir dos anos vinte. Ambos po-tencializam os ajustes na formao de um extrato cultural resultante das

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    diversas mesclas ocorridas no mbito da msica popular urbana, do qual um dos produtos o aparecimento do gnero samba, no contexto de popularizao dos elementos simblicos afro-brasileiros (PEREIRA, 1967). E o gnero samba, no rastro da consolidao da msica carnavalesca como gnero sazonal, se vai popularizando em acordo com a polifonia crescente da sociedade urbana carioca. Enfim, no interior do ensaio de uma esfera da cultura do entretenimento no Brasil que vai ganhando ni-tidez a individualizao do sambista como grupo; sero eles doravante reconhecidos como os artistas populares, no mesmo andamento da am-pliao do anonimato urbano. A ttulo de comparao, com o objetivo de apontar a amplitude do processo em questo, volto ao citado estudo de Roger BASTIDE (1971). Observa o autor que a desagregao e mutila-o da memria e do concerto scio-cultural tribal africano sofrem no-vas e sucessivas metamorfoses, ao longo da dispora negra, notadamente com a efetivao da escravido na Colnia, no encadeamento geracional dos africanos e seus descendentes na Amrica. No Rio de Janeiro, por exemplo, desde o fim do sculo XIX, surgem instituies, como a da ma-cumba para turistas. Nesta ramificao, no curso da popularizao dos cultos religiosos afro-brasileiros, diz Bastide, a preocupao devotada em satisfazer a expectativa da clientela vida por exotismos. Portanto, o ritual transforma-se numa espcie de show mstico, com o predomnio da espetacularidade dos efeitos, do ilusionismo.

    No mesmo compasso, os Blocos, no intuito de uniformizar a hete-rogeneidade informal do seu agrupamento, introduzem a corda, diferen-ciando os sambistas da assistncia e limitando o espao de divertimento dos seus folies j limitado, pelo poder pblico, a determinados locais. A atuao dos sambistas com reconhecimento popular , porm, o dado diferenciador. Se, como vimos, eles agem mediando nveis e espaos s-cio-culturais diversos e passam a deter notoriedade no interior de uma so-ciedade que se impessoaliza, no mbito das suas sociabilidades mais pr-ximas das favelas e dos subrbios ao mesmo tempo, tais fatores intro-duzem uma assimetria nos relacionamentos. A posio ambgua de inter-medirios os dispe hierarquicamente desnivelados em relao aos demais

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    integrantes do recm-criado mundo do samba. Como o Exu na mitologia iorubana, orix mensageiro do princpio vital o ax intermediando as dimenses visvel (ai) e invisvel (orun), os bambas do samba se distinguem justamente por estarem situados na encruzilhada, acumulando um prest-gio que, quando concentrado, se transforma em poder, j que so classi-ficados como detentores de um mana, uma energia resultante do fato de seus corpos serem os centros das prestaes. o lugar de artistas, que os sambistas vo ocupando no interior do segmento do entretenimento da cultura urbana, notabilizado pela comunicao social devotada aos circui-tos ampliados, o ncleo deste poder assentado no prestgio pblico e no to-somente comunitrio. Passam, assim, a estar sujeitos aos critrios da instituio da arte popular urbana e da dinmica do seu mercado especfico.

    PROJETOS ARTSTICOS E CONTEXTO-AMBIENTE DA EXPERINCIA INDIVIDUAL

    Para desenvolver melhor o argumento acima, vou deter-me dora-vante na articulao entre a definio de uma msica popular urbana, dentro da qual o samba se fez carro-chefe, e o desenvolvimento dos mo-dos de expresso vinculados ao mercado de entretenimento, esboado nos anos vinte (WISNIK, 1983). A dcada de trinta significou um salto, tanto qualitativa como quantitativamente, na constituio de uma esfera da cultura espetacularizada, ou seja, voltada para audincias consumido-ras. O elemento novo, as emissoras de rdio comerciais, traz, apoiado nos esquemas publicitrios (ORTRIWANO, 1985, p. 15-16), um outro pa-tamar para veiculao da msica. A ausncia de gravadores magnticos impusera a necessidade de orquestras para os programas de auditrios

    Alis, o samba, como instituio, tem no orix Exu o chamado dono do corpo sua enti-dade smbolo (SODRE, 1979) e os sambistas e malandros so identificados com o mesmo orix, atravs da figura mstica na umbanda do malandro Z Pilintra, o rei do catimb. Personagem identificado vida bomia, tocador de instrumentos de percusso, capoeirista e, ao mesmo tempo, aquele que desfruta dos prazeres e da sensualidade. Marca, assim, a ambgua posio daquele detentor de parcelas da memria africana ressignificada e tambm sujeito comparti-mentao dessa ressignificao em uma esfera especfica da vida mundana da grande cidade, onde o samba comparece como bem cultural, disposto a tantas e diversas apropriaes seculares.

  • ARTIGOS

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    feitos ao vivo, contribuindo para a ativao de um mercado para compo-sitores, instrumentistas e cantores. Conjuntamente, a indstria fonogrfi-ca tem mais um canal, e poderoso, de exposio de suas mercadorias cul-turais. As duas instituies canalizam gradualmente para um pblico consumidor, ainda que restrito, a produo cultural popular j incorpo-rada aos shows de cassinos e de outras casas noturnas (impulsionadas pela moda das msicas danantes inspiradas nas jazz-band), alm do teatro rebolado. Cantores com respaldo no sucesso, Francisco Alves, Carmem Miranda, Araci de Almeida, entre outros, incluem em seus repertrios composies dos sambistas dos morros, notadamente Cartola e Carlos Cachaa. Por outro lado, um novo perfil de segmentos sociais possibilita que uma racionalizao tmida acontea nas empresas da cultura, visando garantir o domnio no incipiente mercado. A comercializao da msica popular vem reboque e com ela a perspectiva de profissionalizao dos seus agentes (TINHORO, 1969). A figura do jovem pequeno-burgus que se torna compositor, Noel Rosa, notabiliza esta virada da msica popular. Ela emblematiza o processo que traz os novos segmentos m-dios para o alinhamento de foras no qual desenhada uma cultura po-pular urbana e consubstanciando pblicos para os bens simblicos veicu-lados pelas agncias desta cultura popular urbana. A Rdio Nacional e a Cia. Cinematogrfica Atlntica so cones deste engate entre nacional e sociedade de consumo, no Pas.

    Nesse momento da anlise fica evidente o fato de que uma con-centrao de novas foras sociais alteraria os pilares de sustentao da sociedade brasileira de ento. Os ritmos internos buscam acompanhar os andamentos de uma civilizao moderna e do mercado mundial capitalis-ta, figurados no binmio industrialismo e urbanizao. A racionalizao crescente da produo econmica avolumada, acompanhada de toda uma paramentao tecnolgica, ao lado ainda do incremento na especia-lizao das atividades, ajuda a redefinir o lugar dos conglomerados urba-nos: o Brasil conhece a tendncia modernizante, tendo por epicentro o fenmeno das grandes concentraes metropolitanas. O desenraizamento a das populaes e culturas maximizado; a contrapartida passa a ser

  • PAULO DA PORTELA, UM HERI CIVILIZADOR

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    identificada na implantao dos grandes sistemas tecnolgicos de comu-nicao. Apropriada pelo Estado, a radiofonia toma a dianteira entre os novos instrumentos de conexo de uma memria nacional. O plano do simblico vivencia os deslocamentos suscitados pelas transformaes descritas, pois vem tona as problemticas da origem e do nativo na jus-ta medida de um complexo de relacionamentos cujo intrincamento tor-na-os abstratos, em meio ao alargamento do espao de convivncia soci-al na grande cidade e na sociedade nacional. O tema da integrao scio-cultural ganha importncia nas pautas de discusso, articulado questo do processamento e controle de informaes. Entre os fins dos anos dez e as duas dcadas posteriores, o debate em torno da questo do nacional e do ser brasileiro toma o caminho norteado pelo primado modernista do elo entre a tradio colonial popular (folclore) e a vanguarda moderna internacional. A literatura especializada no tema j debateu satisfatoria-mente a transformao do campo cultural brasile