lorenço pipoca

6
C ertas coisas nunca deveriam ter mudado na vida e no mundo da gente. O que é que tinha demais o Seu Lourenço entrar e vender pipoca num ônibus, por exemplo? Era a vida dele, pipocas e doces da melhor qualidade. Alguém lembra disso? Pois era normal antigamente. Alguns dos doces até eram feitos em sua casa e pela mulher dele. E os sorvetes, então? Doçura pura. As coisas de antigamente eram bem melhores. Sorvetinhos de palito, vários sabores, tudo artesanal. E água para quem tinha sede naquele calor que fazia. Quem é que não queria? E o que é que tinha demais nisso tudo? Vai uma pipoquinha ai?

Upload: gente-de-atibaia

Post on 07-Apr-2016

239 views

Category:

Documents


10 download

DESCRIPTION

Certas coisas nunca deveriam ter mudado na vida e no mundo da gente. O que é que tinha demais o Seu Lourenço entrar e vender pipoca num ônibus, por exemplo? Era a vida dele, pipocas e doces da melhor qualidade. Alguém lembra disso?

TRANSCRIPT

Page 1: Lorenço Pipoca

Certas coisas nunca deveriam ter mudado na vida e no mundo da gente. O que é que tinha demais o Seu Lourenço entrar e vender

pipoca num ônibus, por exemplo? Era a vida dele, pipocas e doces da melhor qualidade. Alguém lembra disso? Pois era normal antigamente. Alguns dos doces até eram feitos em sua casa e pela mulher dele. E os sorvetes, então? Doçura pura. As coisas de antigamente eram bem melhores. Sorvetinhos de palito, vários sabores, tudo artesanal. E água para quem tinha sede naquele calor que fazia. Quem é que não queria? E o que é que tinha demais nisso tudo?

Vai uma pipoquinha

ai?

Page 2: Lorenço Pipoca

Vai dizer que atrapalhava quem estava dentro do ônibus esperando a hora dele sair e levar tanta gente para tanto destino? Ou reclamar que a água estava sem gelo, que o doce não era tão doce quanto o doce de batata-doce? Nem pensar em falar mal da pipoca, pois a pipoca do Seu Lou-renço era coisa sagrada. Coisa que o Cido Franco, que foi prefeito da cidade nos idos das décadas de 60/70 do sécu-lo passado adorava comer. Ele e Dona Irene, sua esposa e seus netos. E até o Sérgio Mantovanini, que hoje substitui o Cido Franco no comando da Viação Atibaia. Como cres-ceu a Viação Atibaia, hein?

Mas, quem será que proibiu tudo aquilo? O Cido Franco é que não foi. Nem o Sérgio... Pois fez muito mal quem fez isso. Dizer que a pipoca atrapalhava? Ah, vá! Tem tanta coi-sa que atrapalha a vida da gente por aí e ninguém fala nada...

Pois é, mas aqui se fala mesmo é de Lourenço, que muitos chamam só de Enço. Lourenço Martines Garcia, 78 anos, pai de Vanderley, Vagner, Valterley, Vando e Vanderly, que há quase cinquenta anos vende pipoca e gostosuras nos ônibus e na tradicional rodoviária de Atibaia. Ele é tão co-nhecido e tão famoso quanto as pipocas que estourou nesse tempo todo. “Muita meninada que comia pipoca nos ôni-bus ou na rodoviária lá no passado já cresceu, já estudou, já se formou. Uns até ficaram prefeitos da cidade”, gaba-se.

E como não? Afinal Enço está naquele pedaço da Rodo-viária há pelo menos 45 anos. “A meninada daquele tempo ficou tudo grandão, tem uns que viraram figurões na cidade. Já vieram aqui me entrevistar, já fizeram jornalzinho sobre a Rodoviária e as minhas histórias. Já fizeram até filme co-migo e com as minhas pipocas”, conta Enço, rindo um riso gostoso como pipoca.

A história de Lourenço começa no chamado Triângulo Mineiro. “Meu sogro tinha uma propriedade por lá. E eu trabalhava com ele. Roçava, plantava, cuidava de bichos, de boi e vaca. Até que cansei e disse que ia pra cidade grande,

Page 3: Lorenço Pipoca

São Paulo. Tinha emprego e tudo marcado. Fui com a car-teira de trabalho na mão. Aí passei aqui em Atibaia e me enrosquei. Fiquei para trabalhar numa fábrica de vinagre ali no bairro da Usina. O dono fez e mobiliou uma casa pra mim. O que é que eu poderia querer mais?”

Ele foi ficando e ficando. Já tinha prática de roça e apren-deu mais da vida e das químicas de fazer um bom vinagre. “O dono era um francês, homem bom e amigo.” No meio das folgas, Enço decidiu fazer um reforço no orçamento. Até porque a filharada ia aumentando. Foi quando arrumou um carrinho e passou a frequentar a rodoviária para vender sua pipoca. Pegou bem na receita, no jeito e na forma de fazer pipoca. “Fui na veia, como dizem, né?”, e ele ri. Mas só fazia e vendia pipoca nos finais de semana. “Saía lá da Usina e vi-nha trabalhar aqui...”

Falando assim, sem fazer as contas, parece até engra-çado. Só que a Usina era e continua difícil de vir e voltar. “Naquele tempo Atibaia só tinha ruas de terra. E estradas de terra também. Um terrão danado em tudo quanto era lugar. Só este pedaço aqui, da Rodoviária é que tinha ruas calçadas com pedregulho. O resto, nem conto”, reforça. Outra coisa que hoje dá para rir é que os ônibus, caminhões e até automóveis mais antigos eram acionados mesmo na base da manivela. Como? O leitor não sabe o que é isso? Pois saiba que os motores dos carros em geral, ônibus, ca-minhões e tudo o mais só funcionavam na base “da mani-vela”, que era como se dizia.

A pessoa colocava uma manivela num determinado pon-to do motor e ficava girando, girando, girando, até que ele “pegava”, ou começava a funcionar. Não tinha “partida elé-trica”, como agora, essa facilidade de colocar a chave, girar para o motor pegar... “Era dureza. Às vezes os motores dos ônibus demoravam para pegar... Haja muque”, lembra Lou-renço imitando alguém dando manivela para um ônibus que está na sua cabeça e precisa fazer pegar... “Para quem

Page 4: Lorenço Pipoca

nunca viu e nunca soube disso, parece brincadeira, “mas não era, não foi...”, lembra Lourenço. “Era pesado virar aquela manivela até o motor roncar. Às vezes precisava de duas ou mais pessoas fazendo força...”

Pior era quando chovia muito. “A chuva era um Deus nos acuda. O que tinha de carro, caminhão e ônibus encalhados nas ruas e nas estradas... Todo mundo já levava enxada, en-xadão, pá, para cavoucar e tirar os carros que atolavam por aí...” Lourenço ri, mas não deixa barato: “Hoje as pessoas se queixam quando o ônibus demora ou atrasa cinco ou dez minutos... Naquele tempo o ônibus saía e ninguém sabia que horas ia chegar e nem se iria chegar”, ironiza.

Mas o fato é que trabalhando feito um louco, aprovei-tando todas as oportunidades que surgiram para ganhar um dinheirinho e sustentar a família, Lourenço passou a tomar conta do “guarda-volumes” da Rodoviária. Ficou um tempão nisso. Os filhos ajudavam, a mulher ajudava, todo mundo trabalhava. Enço chegava à Rodoviária às seis da manhã e ficava até o último ônibus, dez, onze da noite. “Não era fácil”, lembra.

Já na época do prefeito Flávio Callegari a Rodoviária pas-sou por uma reforma completa, ele conta. “Antes era toda envidraçada. Muito bonita, mas também era perigosa. Os ladrões ficavam de olho em tudo o que acontecia lá dentro.” Ele deixou de ser o responsável pelo “guarda-volumes” e, em troca, foi autorizado a montar uma doceira na nova Ro-doviária. “Acho que foi melhor pra mim e para a cidade”, diz. De qualquer forma, sua situação ficou regularizada perante a lei. E, a partir dali, ele já tinha uma “empresa” que vendia doces, as pipocas, água, sorvetes e tudo o mais.

Trabalhando feito um maluco, continuou a chegar qua-se de madrugada no seu trabalho na Rodoviária, para sair quase de madrugada do dia seguinte. Mas todo o esforço compensou. “Deu para fazer um bom pé de meia. Eu tenho a minha casa e cada um dos meus filhos também têm a sua.

Page 5: Lorenço Pipoca
Page 6: Lorenço Pipoca

E todo mundo continua junto, trabalhando”, diz. Lourenço também abriu outra bomboniere no terminal de ônibus do Jardim Imperial.

Lourenço foi casado com Dona Alice Gerotto Garcia, “que me aju-dou demais. Fazia de tudo, doces, pastéis, pipoca, tudo. Foi a grande força da minha vida.” Dona Alice morreu e deixou uma grande tris-teza no coração de Enço. “Sofri demais”, lastima-se. E logo se recom-põe. E brinca: “Antigamente eu trabalhava para sustentar os três filhos, agora eles é que trabalham para me sustentar.” Nada disso, Lourenço continua na labuta. Neste exato momento está com uma caixa cheia de gelo e garrafas de água bem no pátio da Rodoviária. Ele vende cada garrafinha de água por dois reais. Só durante o tempo em que concedeu esta entrevista vendeu pelo menos umas dez ou quin-ze garrafas...

Enço voltou a se casar muito tempo depois. Foi com Maria de Lur-des Garcia. “Tive muita sorte de novo. Essa mulher me ajuda demais. Ela faz um pastel que vou lhe contar. Muita gente já conhece, pois nós vendemos esse pastel também lá na Rodoviária do Imperial. É sempre um sucesso”, garante. Empolgado, diz que anda feliz porque está vendo Atibaia crescer cada vez mais. “Eu fico orgulhoso. É uma cidade de progresso.”

Já viu muita coisa boa e ruim por ali. Coisa triste e coisa engraçada. “Quando a gente faz o que gosta, quando a gente se realiza no traba-lho, tudo fica engraçado. De coisa triste eu nem gosto de falar. Já vi muito, vejo muito, gente precisada, necessitada passando por aqui. Mas o que é que a gente pode fazer, né? Vamos ajudando no que po-demos.”

O velho carrinho da pipoca da Rodoviária já foi embora e Lourenço está num quiosque novinho em folha. As ofertas são as de sempre: “Pastel, sorvete, doces, água mineral, mas especialmente a pipoca de sempre, a pipoca que foi tão tradicional na minha vida”, conclui Lou-renço, que hoje mais se diverte do que trabalha. “A gente ganha o di-nheirinho e fica vendo o pessoal”, sorri, feliz. Enço curte a mulher, os filhos, os dois netos, uma neta, uma bisneta e um bisneto. Enquanto isso, cada vez mais gente passa pela Rodoviária famosa. Alguns vão direto a ele e Lourenço logo pergunta: “Vai uma pipoquinha aí?” ■