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Capítulo 3 Sérgio R. Muniz (2014) Estrutura da Matéria, curso de Licenciatura em Ciências, USP. 1 Constituintes do átomo – O elétron 1. Introdução No capítulo anterior nós vimos que a hipótese atomística e a teoria cinética dos gases permitem explicar completamente a Lei dos Gases Ideais a partir de princípios mecânicos. Também vimos que a teoria cinética leva a uma importante interpretação molecular (microscópica) dos conceitos de pressão e temperatura absoluta. Esse foi um grande passo na consolidação da teoria atômica da matéria, mas ainda não nos permite dizer nada a respeito da estrutura interna do átomo. A próxima questão passa a ser: como é o átomo a nível microscópico? Ou seja, do que ele é feito e com o que ele se parece? Será que ele é mesmo uma pequena esfera rígida e indivisível, como imaginava Dalton, ou será que teria uma estrutura interna (partes menores)? Questões como essas motivaram uma série de experimentos importantes, que culminaram com a determinação dos constituintes do átomo e suas propriedades. De fato, como sabemos hoje, os átomos são compostos por partículas menores: os elétrons, prótons e nêutrons. Neste e nos próximos dois capítulos, veremos como se chegou a essas conclusões. Começaremos pela descoberta do elétron. 2. A descoberta do elétron: os raios catódicos Uma das mais importantes descobertas do final do século XIX está ligada ao estudo dos chamados raios catódicos. Esses raios são observados nas descargas elétricas em gases rarefeitos, produzindo um efeito luminoso colorido. Neste tipo de descarga, utiliza-se uma ampola evacuada (com um gás em baixa pressão), onde se aplica uma grande diferença de potencial elétrico (alta voltagem) entre dois eletrodos: o catodo (negativo) e o anodo (positivo). Quando a tensão elétrica é suficientemente alta, há condução de corrente elétrica entre os eletrodos e pode-se observar uma luminosidade esverdeada no vidro da ampola. Essa luminosidade sugeria a presença de raios provenientes do eletrodo negativo (catodo), que deu origem à denominação de raios catódicos. Esses raios podem ser bloqueados se um obstáculo for colocado no seu caminho. Além disso, também pode-se observar a projeção de uma imagem com o formato do contorno do obstáculo, ao final do tubo (após o anodo), conforme ilustra a figura 3.1. LNLS: Laboratório Nacional de Luz Sincrotron (feixe de elétrons).

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  • Capítulo 3

    Sérgio R. Muniz (2014) Estrutura da Matéria, curso de Licenciatura em Ciências, USP.

    1

    Constituintes do átomo – O elétron

    1.  Introdução     No capítulo anterior nós vimos que a hipótese atomística e a teoria cinética dos gases permitem

    explicar completamente a Lei dos Gases Ideais a partir de princípios mecânicos. Também vimos que a

    teoria cinética leva a uma importante interpretação molecular (microscópica) dos conceitos de pressão e

    temperatura absoluta. Esse foi um grande passo na consolidação da teoria atômica da matéria, mas ainda

    não nos permite dizer nada a respeito da estrutura interna do átomo.

    A próxima questão passa a ser: como é o átomo a nível microscópico? Ou seja, do que ele é feito e

    com o que ele se parece? Será que ele é mesmo uma pequena esfera rígida e indivisível, como imaginava

    Dalton, ou será que teria uma estrutura interna (partes menores)?

    Questões como essas motivaram uma série de experimentos importantes, que culminaram com a

    determinação dos constituintes do átomo e suas propriedades. De fato, como sabemos hoje, os átomos são

    compostos por partículas menores: os elétrons, prótons e nêutrons. Neste e nos próximos dois capítulos,

    veremos como se chegou a essas conclusões. Começaremos pela descoberta do elétron.

    2.  A  descoberta  do  elétron:  os  raios  catódicos     Uma das mais importantes descobertas do final do século XIX está ligada ao estudo dos chamados

    raios catódicos. Esses raios são observados nas descargas elétricas em gases rarefeitos, produzindo um

    efeito luminoso colorido.

    Neste tipo de descarga, utiliza-se uma ampola evacuada (com um gás em baixa pressão), onde se

    aplica uma grande diferença de potencial elétrico (alta voltagem) entre dois eletrodos: o catodo

    (negativo) e o anodo (positivo). Quando a tensão elétrica é suficientemente alta, há condução de corrente

    elétrica entre os eletrodos e pode-se observar uma luminosidade esverdeada no vidro da ampola.

    Essa luminosidade sugeria a presença de raios provenientes do eletrodo negativo (catodo), que

    deu origem à denominação de raios catódicos. Esses raios podem ser bloqueados se um obstáculo for

    colocado no seu caminho. Além disso, também pode-se observar a projeção de uma imagem com o

    formato do contorno do obstáculo, ao final do tubo (após o anodo), conforme ilustra a figura 3.1.

    LNLS: Laboratório Nacional de Luz Sincrotron (feixe de elétrons).

  • Capítulo 3

    Sérgio R. Muniz (2014) Estrutura da Matéria, curso de Licenciatura em Ciências, USP.

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    Figura 3.1: Sir William Crookes e seu tubo de raios catódicos.

    William Crookes, por volta de 1870, foi um dos principais responsáveis por desenvolver os tubos

    (ampolas) de vácuo onde os experimentos com raios catódicos eram realizados. Por conta disso, os tubos

    de Crookes são também frequentemente chamados de Tubos de Raios Catódicos (TRC).

    Crookes fez uma série de experimentos que, junto com as observações de outros cientistas da

    época, sugeriam que esses raios eram compostos por partículas massivas de carga elétrica negativa. A

    carga foi inferida a partir de experimentos de deflexão (desvio) dos raios por campos magnéticos.

    Porém, os primeiros experimentos tentando observar a deflexão desses raios na presença de

    campos elétricos foram mal sucedidos, e pareciam contestar a presença de carga elétrica. Afinal, se esses

    raios eram compostos por partículas eletricamente carregadas, essas deveriam também sofrer ação da

    força elétrica. Coube a Joseph J. Thomson resolver o dilema, graças ao desenvolvimento de técnicas de

    vácuo melhores, que lhe permitiram usar uma ampola com vácuo ainda melhor (pressão menor) do que

    aquelas usadas por Crookes. Isso, aliado a sua criatividade e conhecimentos de física, o permitiram fazer

    as principais determinações sobre a natureza dos raios catódicos, levando a descoberta do elétron.

    3.  Experimento  de  Thomson  Atribui-se ao inglês Joseph John Thomson a descoberta do elétron,

    em 1897, pelo que lhe foi concedido o prêmio Nobel de física de 1906.

    Thomson, assim como muitos outros cientistas daquela época estavam

    interessados em estudar a condução de eletricidade em gases. Esse

    interesse o levou a fazer vários experimentos com raios catódicos e,

    eventualmente, à confirmação de que o feixe de raios catódicos era mesmo

    composto por partículas que tinham massa e carga negativa.

    Ele demonstrou isso, de forma muito convincente e engenhosa,

    através da deflexão de um feixe de raios catódicos por campos elétricos e magnéticos. Essa deflexão do

    feixe era consistente com o esperado para um feixe de partículas com carga negativa.

    Na verdade, esse experimento já havia sido tentado originalmente pelo alemão H. Hertz, mas os

    primeiros resultados de Hertz haviam sido negativos. O próprio Thomson, nas primeiras versões do seu

    experimento também não observou a deflexão esperada, porém, outros experimentos feitos por Crookes e

    Figura 3.2: J. J. Thomson.

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    Perrin o haviam convencido de que os raios catódicos eram partículas de cargas negativas, e assim ele

    procurou uma maneira de demonstrar isso de forma definitiva. No final, a principal diferença entre os

    experimentos de Hertz e Thomson era mesmo o vácuo (baixa pressão) da ampola, que no caso de Thomson

    era bem melhor. Isso permitia evitar o efeito de blindagem provocado pelo gás ionizado, quando há uma

    concentração (densidade) muito grande de gás na ampola, que tende a minimizar o efeito de deflexão do

    campo elétrico. A figura 3.3 mostra uma representação artística de um tubo de raios catódicos, com um

    conjunto de placas de deflexão, similar ao usado por Thomson.

    Figura 3.3: Sistema para observação da deflexão de feixes eletrônicos. Essa é uma versão mais moderna, similar aos tubos de imagem dos televisores, monitores de computador e osciloscópios antigos.

    3.1. Deflexão elétrica

    A seguir vamos descrever o experimento mais importante de Thomson, que consiste em fazer o

    feixe de raios catódicos de uma ampola de Crookes passar através de regiões onde existem campos

    elétricos e magnéticos. A ideia é fazer com que a força elétrica e/ou magnética que atuam sobre

    partículas carregadas em movimento modifiquem a trajetória do feixe de uma forma observável (e

    mensurável) numa tela fosforescente, sensível às partículas presentes nos raios catódicos. Assim,

    dependendo do tipo de deflexão e forças observadas no feixe, é possível estabelecer uma relação entre os

    campos aplicados e as propriedades das partículas do feixe. O objetivo de Thomson era determinar uma

    relação entre a carga e a massa das partículas presentes no feixe de raios catódicos.

    DICA:  Você  pode  ler  as  notas  da  aula  (“Nobel  lecture”)  apresentada  por  J.J.  Thomson  clicando  aqui.  O  texto   original   está   em   inglês,  mas   se   você   tiver   dificuldades   para   ler   a   versão   original,   você  pode  usar   ferramentas  de   tradução  como  o   tradutor  Google  (que,  embora   imperfeito,  é  bem  prático).  Basta  copiar  e  colar  o  texto  a  ser  traduzido  na  caixa  indicada!  

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    Figura 3.4: Trajetória do elétron no experimento de Thomson.

    Para entender como isso funciona, considere o arranjo mostrado na figura 3.4, onde o feixe

    catódico passa pelo interior de um capacitor de placas paralelas (placas metálicas paralelas onde se

    acumulam cargas elétricas opostas). Nesta configuração, se um feixe de partículas com carga elétrica

    penetrar no interior do capacitor, de comprimento b e campo elétrico E, as partículas são defletidas pelo

    campo, devido à força elétrica sobre as cargas. O campo atuará sobre tais partículas enquanto elas

    permanecerem no interior do capacitor. Ao saírem da região do capacitor (𝑥 > 𝑏), isto é, da região de

    interação das partículas com o campo elétrico, seu movimento continua retilíneo e uniforme até atingir a

    tela, no final da ampola. Na tela existe uma camada de um material fosforescente que revela a posição de

    impacto do feixe, permitindo observar o efeito do campo aplicado sobre o mesmo (ver figura 3.4).

    Quanto ao movimento no interior do capacitor, se 𝒗𝒐 for a velocidade inicial das partículas, e (−𝒒)

    sua carga, a partícula estará sujeita a uma força elétrica de módulo (magnitude) |𝐹!| = 𝑞𝐸, como é mostrado na figura 3.5.

    Figura 3.5: Força elétrica atuando sobre a partícula no interior das placas do capacitor da figura 3.4.

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    É instrutivo mostrar como Thomson usou campos (elétricos e magnéticos) externos para controlar

    a trajetória do feixe de partículas carregadas, e determinar os parâmetros importantes das partículas do

    feixe. Esse é um ótimo exemplo de investigação científica, onde se utiliza efeitos conhecidos para

    descobrir coisas novas. A análise envolve alguns conceitos de mecânica e eletricidade/magnetismo,

    normalmente vistos no ensino médio. Mas, se você ainda não viu algum desses conceitos, não se preocupe

    com todos os detalhes, pois você os verá mais adiante no seu curso (Dinâmica e Eletromagnetismo). Depois

    você poderá usar esses cálculos para referência futura. Aqui, neste momento, nós estamos mais

    interessados nos resultados e conclusões finais, que levaram Thomson a propor a existência do elétron.

    Assim, usando a relação da segunda Lei de Newton, 𝐹 = 𝑚𝑎, e comparando com a expressão da força elétrica,  𝐹 = 𝑞𝐸, podemos determinar a aceleração, 𝑎, das partículas em termos da relação entre a

    carga e a massa, 𝑞/𝑚. Note que nas expressões acima, 𝑚 e 𝑞 são respectivamente a massa e a carga da

    partícula, e 𝐸 é o campo elétrico aplicado entre as placas do capacitor1.

    𝑎! =!!𝐸 (3.1).

    Desse modo, através de uma análise cinemática (mecânica) do movimento, conclui-se que o

    movimento vertical é uniformemente acelerado e que a posição vertical da partícula é dada por:

    𝑦 𝑡 = !!𝑎! ⋅ 𝑡! (3.2).

    Ao mesmo tempo, o movimento horizontal é uniforme (velocidade constante), e a posição nessa direção é

    expressa abaixo, onde 𝑣! é a velocidade inicial, na direção do eixo 𝑥.

    𝑥 𝑡 = 𝑣! ⋅ 𝑡 (3.3).

    Da combinação destas equações, e eliminando a dependência temporal (variável tempo), tiramos

    a trajetória parabólica do feixe. Isto é, a posição vertical (𝑦), em função apenas da coordenada de

    posição horizontal (𝑥), e dos parâmetros desconhecidos.

    𝑦(𝑥) = !!

    !!

    !!𝐸 (3.4).

    Após algum cálculo, levando em conta a trajetória das partículas após deixarem o capacitor, é

    possível chegar a uma expressão para o deslocamento vertical total do feixe. Isto nos permite relacionar a

    posição do feixe na tela, com o campo aplicado e os parâmetros que se busca determinar.

    𝑦 𝑥 = !!

    !  ⋅!!!!

    𝑥 − !!    , para 𝑥 = 𝐿       →        𝑦 𝐿 = !

    !!  ⋅!!!!

    𝐿 − !!       (3.5)

    Note que esse resultado já quase determina a relação dos parâmetros 𝑞/𝑚, exceto pela

    velocidade 𝑣!, que também é desconhecida. Para determinar a velocidade inicial, Thomson utilizou outro

    recurso experimental interessante, como veremos a seguir.

    1  No  capacitor,  não  há  contato  elétrico  entre  as  placas,  e  a  presença  das  cargas  produz  uma  campo  elétrico  entre  elas.  

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    Regra  da  mão  esquerda  

    3.2. Deflexão magnética Na época de Thomson já se sabia que correntes elétricas produzem campos magnéticos, e também

    que essas correntes, na presença de um campo magnético externo, sofrem ação da força magnética. Como

    correntes elétricas são cargas em movimento, podemos dizer que as cargas elétricas do feixe irão sofrer

    uma força magnética, de módulo (magnitude) 𝐹! = |𝐹!|, na presença de um campo externo 𝐵.

    𝐹! = 𝑞  𝑣×𝐵 = 𝑞  𝑣  𝐵  𝑠𝑒𝑛(𝜃) (3.6).

    A equação (3.6) é uma expressão vetorial que relaciona a força

    magnética (no sistema de unidades SI2) com a velocidade e a carga da

    partícula. Trata-se de uma operação matemática chamada de produto

    vetorial (que será visto em detalhe no curso de Dinâmica), entre os vetores

    velocidade e campo magnético. O importante aqui é notar que a direção da

    força resultante é sempre perpendicular à direção de ambos os vetores, e o

    sentido é dado pela Regra da Mão Esquerda (ver figura ao lado).

    Isso é um pouco mais complicado do que no caso da força elétrica, onde a força é sempre na

    mesma direção do campo elétrico. Ainda assim, não é difícil, basta se acostumar com a linguagem vetorial

    e as convenções usadas para definir a direção da força.

    Portanto, o módulo, isto é, a intensidade da força magnética depende da carga, da velocidade, do

    valor do campo magnético e do seno do ângulo (𝜃), entre os vetores velocidade e campo magnético.

    Se esse ângulo for noventa graus 𝜃 = !!

    , isto é, se o campo magnético aplicado for perpendicular à

    velocidade inicial das partículas, o seno do ângulo será igual à unidade: 𝑠𝑒𝑛 !!= 1, e a expressão

    simplifica-se para:

    𝐹! = 𝑞  𝑣  𝐵 (força  magnética  para  𝜃 = 𝜋/2) (3.7).

    Note que a força magnética é diretamente proporcional à velocidade da partícula, e sempre

    perpendicular a ela (isto é, nunca altera o valor da velocidade naquela direção). Assim, se escolhermos

    apropriadamente a direção do campo magnético externo, é possível usá-lo para contra balancear a força

    elétrica produzida pelo campo elétrico externo, até cancelar o deslocamento do feixe na tela do tubo.

    Como veremos a seguir, Thomson usou esse fato para determinar o valor de 𝑞/𝑚.

    Figura 3.6: Feixe de raios catódicos sendo defletido (para baixo) por um campo magnético externo.

    2 No  sistema  de  unidades  CGS  (centímetro-‐grama-‐segundo),  a  expressão  da  força  magnética  é: 𝐹! = 𝑞/𝑐    𝑣×𝐵 .

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    3.3. Determinação de e/m

    Observe que as relações anteriores, envolvendo campos elétricos e magnéticos, todas dependiam

    da relação 𝑞/𝑚. Portanto, os parâmetros carga e massa não podem ser determinados individualmente

    desses experimentos. Mas como havíamos notado na Equação 3.5, o experimento de deflexão elétrica

    dependia também da velocidade inicial da partícula. Assim, para isolar apenas as grandezas intrínsecas

    das partículas que compunham os feixes catódicos, Thomson teve a ideia de combinar as forças elétricas e

    magnéticas para eliminar a variável indeterminada de velocidade inicial. Sua ideia foi aplicar um campo

    magnético externo, perpendicular ao feixe, que exatamente compensasse o efeito do campo elétrico das

    placas. A figura 3.7 mostra um diagrama com a representação das forças atuando sobre a partícula.

    Figura 3.7: Composição de forças: elétrica e magnética.

    Dessa forma, ao aplicar um campo magnético na direção apropriada, Thomson podia gerar uma

    força magnética que se contrapunha exatamente a força elétrica, que originalmente provocava o desvio

    vertical do feixe de raios catódicos. Deste modo, ao aumentar o valor do campo magnético (através do

    aumento na corrente elétrica na bobina geradora), ele podia cancelar completamente o deslocamento

    vertical das partículas, causado pela força elétrica. Nestas condições não há nenhum deslocamento do

    feixe de raios catódico observável na tela do tubo. Portanto, neste ponto, 𝐹! = 𝐹!, de modo que:

    𝑞  𝐸 = 𝑞  𝑣!  𝐵         →          𝑣! = 𝐸/𝐵   (3.8)

    Assim, ao substituir o valor da velocidade inicial (determinada pelos valores dos campos externos

    aplicados), Thomson pôde, então, obter a relação 𝑞/𝑚 para as partículas do feixe de raios catódicos:

         !!= !

    !⋅!!  ! !

    !!!! (3.9).

    !!= 1,76×10!! coulomb/kg (3.10).

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    Para entender completamente a contribuição feita por J. J. Thomson, devemos lembrar que na

    sua época não se sabia ainda que o átomo era composto de partículas menores (na verdade, nem se sabia

    exatamente o que era o átomo). Também não se entendia completamente a natureza da eletricidade, isto

    é, o que de fato eram as cargas e correntes elétricas, por exemplo. Vários experimentos anteriores já

    haviam demonstrado as propriedades estáticas e dinâmicas das cargas elétricas, e sua capacidade de

    produzir forças (campos) elétricas e magnéticas, porém, não se sabia o que eram essas cargas.

    Além disso, os cientistas da época também conheciam alguns resultados da química (por exemplo:

    que existiam átomos de diferentes tipos, que se ligavam formando moléculas, obedecendo a certas regras

    de proporção bem definidas, conservando massa e etc.), e Michael Faraday já havia deduzido seus

    resultados mais fundamentais de eletroquímica (eletrólise). Tudo isso foi obtido através de experimentos,

    mas sem compreender exatamente os detalhes por traz daquilo, pelo menos não da mesma forma que

    entendemos hoje. Ainda assim, não se tinha a menor ideia do que se constituía exatamente o átomo.

    A grande contribuição de Thomson foi perceber que o valor tão alto da relação 𝑞/𝑚 desviasse à

    pequena massa dessas partículas, e não a um valor grande da carga! Com isso, ele concluiu

    (corretamente) que a massa dessas partículas era cerca de 2000 vezes menor do que a massa do átomo de

    hidrogênio (H), o menor átomo conhecido. Como Thomson sabia que isso não dependia do tipo de metal

    dos eletrodos, ou do gás usado na ampola, ele concluiu que deveria ser algo presente em todos os átomos.

    Foi isso que o fez propor que essas partículas, que na época ele chamou de “corpúsculos”, deveriam ser

    partículas internas do átomo. Mas tarde, esse "corpúsculo" passou a ser chamado de

    elétron: a primeira partícula subatômica descoberta!

    3.4.  Experimento  de  Millikan  

    Embora o elétron tenha sido descoberto em 1897, somente em 1911 foi possível

    saber, com precisão, o valor de sua carga elétrica (e consequentemente sua massa).

    Isso ocorreu graças a um meticuloso experimento realizado por Robert Andrews Millikan.

    O experimento de Millikan consistiu em observar cuidadosamente partículas carregadas

    (gotículas de óleo ionizadas) movendo-se em um campo elétrico. O resultado desse experimento levou à

    descoberta da carga elementar do elétron e lhe rendeu o prêmio Nobel de física em 1923.

    3.4.1. Descrição do Experimento

    Considere o esquema experimental a seguir, em que gotículas de óleo ionizadas (carregadas

    positivamente com radiação ionizante, que remove elétrons) são colocadas no interior de um capacitor.

    Figura 3.8: Experimento de Millikan simplificado.

    Robert  Millikan  

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    Imagine uma gotícula esférica de massa 𝒎, carga +𝑸 e raio 𝒓 no interior de um capacitor. A gotícula sofre a ação de três forças: a força peso (gravitacional), 𝐹! = 𝑚𝑔; a força elétrica 𝐹! = 𝑄 ⋅𝐸, e uma força viscosa f (devido à resistência do ar, durante a queda). Veja a figura 3.9.

    Figura 3.9: Forças que agem sobre a gotícula de óleo.

    A seguir veremos como determinar a carga do elétron a partir desse arranjo experimental.

    (Como curiosidade, veja o experimento utilizado originalmente por Millikan).

    VÍDEOS SOBRE O EXPERIMENTO DE MILLIKAN: (opcional – links do You Tube)

    1. Clique aqui para ver um vídeo divertido, descrevendo o experimento de Millikan! 2. Aqui está outra descrição, um pouco mais formal. 3. Imagens de demonstrações do experimento real. 4. Finalmente, clique aqui, para ver imagens de outro experimento real, onde literalmente, os

    elétrons dançam ao som da música (inclui trilha sonora)!

    3.4.2. Determinação da carga elétrica

    Primeiro vamos analisar o que aconteceria com a gotícula de óleo na ausência de campo elétrico.

    A partir da segunda lei de Newton (𝐹 = 𝑚𝑎), a equação de movimento da partícula corresponde a:

    𝑚𝑎 = 𝑚𝑔 − 𝑘  𝑟  𝑣! (3.11).

    Resolvendo a equação para a velocidade vertical3, 𝑣!, é possível obter a velocidade em função do tempo:

    𝑣! 𝑡 =!  !!  !

     1− exp − !!  !𝑡   (3.12).

    3  Fica  como  sugestão,  usar  seus  conhecimentos  de  mecânica  e  cálculo  diferencial  para  demonstrar  esse  resultado.  

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    Figura 3.10: Velocidade da gotícula em função do tempo. Devido ao atrito com o ar, a velocidade atinge

    uma velocidade final constante 𝑣!. Isso é similar ao princípio de funcionamento do paraquedas.

    A figura 3.10 mostra como varia a velocidade vertical da gotícula em queda livre, isto é, sem

    forças externas aplicadas sobre ela (além da gravidade, que a faz cair). Observe que, neste caso, a

    partícula atinge uma velocidade final constante, 𝒗𝒕. Essa velocidade depende do tamanho (raio, r) da gotícula. Portanto, a partir de 𝒗𝒕, se pode determinar o raio r da gotícula. Em seguida, liga-se o campo elétrico (através da voltagem de uma fonte de alta tensão externa), até que o movimento da partícula

    cesse, por exemplo. Neste caso, a força peso (gravidade) é exatamente compensada pela força elétrica,

    cujo valor depende da carga elétrica da gotícula. Se igualarmos as força e isolarmos a variável 𝑸, obtém-se a expressão:

    𝑄 = !!𝜋 !

    !!  !!!

      (3.13),

    onde 𝝆 é a densidade do óleo, e 𝑬𝟎 é o campo elétrico externo, produzido entre as placas do capacitor. Escrevendo o raio da gotícula em função de sua velocidade terminal, obtém-se:

    𝑄 = !!!"  !

        !  !!!/!    

    !!   (3.14).

    As constantes 𝜌 e 𝑘 podem ser determinadas experimentalmente, de formas diversas, permitindo a obtenção da carga elétrica 𝑄 das gotículas. Millikan e seu assistente Harvey Fletcher fizeram inúmeras medidas, para diferentes valores de 𝑄, com um número muito grande de gotículas diferentes, e perceberam que todos esses valores eram sempre múltiplos de um valor comum: 𝒆 = 𝟏,𝟔×𝟏𝟎!𝟏𝟗 coulombs. Ou seja, 𝑸 = 𝒆  𝑵𝒆; onde 𝑵𝒆 é o número de elétrons. Isso significa que todas as cargas 𝑄 observadas eram múltiplos inteiros dessa quantidade 𝑒, denominada carga elementar do elétron. Conhecendo-se o valor de 𝑒, podemos usar o resultado de Thomson para determinar, finalmente, a massa do elétron:

    𝑒 = 1,6×10!!" C (3.15).

    𝑚! = 9,1×10!!" kg (3.16).

    Note que esse último valor confirma que a massa do elétron é, de fato, muito menor que a massa

    do átomo de hidrogênio, como supôs Thomson. Portanto, toda a massa do átomo está concentrada noutro

    lugar. Além disso, onde estão as cargas positivas? Veremos mais sobre isso no próximo capítulo... Até lá!