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Norma Linguística do Português no Brasil Florianópolis - 2014 Izete Lehmkuhl Coelho Isabel de Oliveira e Silva Monguilhott Cristine Gorski Severo 12º Período

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Livro sobre a historia da norma do português brasileiro.

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  • Norma Lingusticado Portugus no Brasil

    Florianpolis - 2014

    Izete Lehmkuhl CoelhoIsabel de Oliveira e Silva MonguilhottCristine Gorski Severo12

    Perodo

  • Governo Federal

    Presidncia da Repblica

    Ministrio de Educao

    Secretaria de Ensino a Distncia

    Coordenao Nacional da Universidade Aberta do Brasil

    Universidade Federal de Santa Catarina

    Reitora: Roselane Neckel

    Vice-reitora: Lcia Helena Martins Pacheco

    Secretrio de Educao a Distncia: Ccero Barbosa

    Pr-reitora de Ensino de Graduao: Roselane Ftima Campos

    Pr-reitora de Ps-Graduao: Joana Maria Pedro

    Pr-reitor de Pesquisa: Jamil Assreuy

    Pr-reitor de Extenso: Edison da Rosa

    Pr-reitora de Planejamento e Oramento: Beatriz Augusto de Paiva

    Pr-reitor de Administrao: Antnio Carlos Montezuma Brito

    Pr-reitor de Assuntos Estudantis: Lauro Francisco Mattei

    Diretor do Centro de Comunicao e Expresso: Felcio Wessling Margotti

    Diretor do Centro de Cincias da Educao: Wilson Schmidt

    Curso de Licenciatura Letras-Portugus na Modalidade a Distncia

    Diretor da Unidade de Ensino: Felcio Wessling Margotti

    Chefe do Departamento: Jos Ernesto de Vargas

    Coordenadora de Curso: Roberta Pires de Oliveira

    Coordenador de Tutoria: Cristiane Lazzarotto-Volco

    Coordenao Pedaggica: Celdon Fritzen

    Comisso Editorial

    Tnia Regina de Oliveira Ramos

    Silvia Ins Coneglian Carrilho de Vasconcelos

    Cristiane Lazzarotto-Volco

  • Equipe de Desenvolvimento de Materiais

    Coordenao: Ane Girondi

    Design Instrucional: Daiana Acordi

    Diagramao: Tamira Silva Spanhol

    Capa: Tamira Silva Spanhol

    Tratamento de Imagem: Tamira Silva Spanhol

    Copyright 2011, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSC

    Nenhuma parte deste material poder ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer

    meio eletrnico, por fotocpia e outros, sem a prvia autorizao, por escrito, da Coordena-

    o Acadmica do Curso de Licenciatura em Letras-Portugus na Modalidade a Distncia.

    Ficha Catalogrfica

    C672n Coelho, Izete Lehmkuhl Norma lingustica do portugus no Brasil : 12 perodo / Izete Lehmkuhl Coelho, Isabel de Oliveira e Silva Monguilhott, Cristine Grski Severo. Florianpolis : LLV/CCE/UFSC, 2014. 152 p.; il., grfs., tabs.

    Inclui bibliografia. ISBN 978-85-61482-67-1

    1. Lingustica. 2. Lngua Portuguesa Brasil Normalizao. I. Mon-guilhott, Isabel de Oliveira e Silva. II. Severo, Cristine Grski. III. Ttulo.

    CDU: 806.90

    Catalogao na fonte pela Biblioteca Universitria da

    Universidade Federal de Santa Catarina

  • Sumrio

    Unidade A - A constituio da norma do portugus brasi-leiro .......................................................................................................11

    1 Lngua portuguesa e diversidade lingustica no Brasil colonial ........15

    2 Lngua portuguesa no Brasil: a norma em formao ......................27

    2.1 A chegada da famlia real e a criao de instituies brasileiras .....27

    2.2 Os brasileirismos literrios .............................................................................30

    2.3 Os puristas e os defensores da norma lusitana ......................................34

    2.4 As instncias divulgadoras da norma: primeiros jornais, revistas literrias e livros didticos .............................................................................39

    2.5 A legislao educacional e o surgimento da disciplina de Lngua Portuguesa ..........................................................................................................41

    Fechando a unidade ...............................................................................................45

    Unidade B - Gramatizao e normatizao ............................473 Destrinchando algumas noes sobre norma ..................................51

    3.1 O conceito de norma de Eugenio Coseriu (1952) .................................52

    3.2 Os diferentes conceitos de norma lingustica no Brasil ......................57

    4 Normas do portugus brasileiro em diferentes nveis gramaticais .....................................................................................................65

    4.1 A sncope em proparoxtonas ......................................................................65

    4.2 O paradigma pronominal ..............................................................................69

    4.3 A posio do cltico ou do pronome oblquo em relao ao verbo ...... 79

    4.4 A construo verbo + se + SN ......................................................................82

    5 Normas em conflito: a padronizao e o linguista ...........................91

    Fechando a unidade ...............................................................................................97

    Unidade C - Prtica pedaggica: a escola, as normas e a variao lingustica .........................................................................99

    6 Concepes sobre norma nos documentos oficiais do Ensino de Lngua Portuguesa ...............................................................103

    7 Norma culta no Brasil e o ensino de lngua nas escolas ..............115

    8 Modalidades oral e escrita e as normas ............................................125

  • 9 Por uma pedagogia para o ensino de norma .................................135

    Fechando a unidade .............................................................................................142

    Referncias ...................................................................................... 145

    Lista de Gramticas ...................................................................... 152

  • Apresentao

    Este livro tem como objetivo geral apresentar, discutir e problematizar o conceito de norma lingustica constitudo e estabilizado no Brasil. Para tanto, o livro se divide em trs unidades: a primeira unidade retrata um panorama scio-histrico de constituio da norma do portugus no Brasil, a

    partir do perodo colonial at o sculo XIX. A segunda unidade discute e proble-

    matiza o conceito de norma, contextualizando-o em relao a estudos empricos

    sobre o portugus culto brasileiro. A terceira unidade, por fim, apresenta uma

    perspectiva pedaggica para o ensino da norma culta do portugus brasileiro.

    Pretendemos neste material manter um dilogo com temas j abordados em

    outras disciplinas, como Histria da Lngua, Sociolingustica e Metodologia

    do Ensino de Lngua Portuguesa e Literatura, buscando um aprofundamento

    terico e analtico sobre a formao, consolidao e ensino da norma do por-

    tugus escrito e falado no Brasil.

    Cabe ressaltar que no podemos falar de norma lingustica sem antes conceber

    que as lnguas mudam com o tempo e que, em cada poca, normas vernaculares

    e normas cultas competem com normas do passado, como se existissem diferen-

    tes normas ou gramticas em competio em um mesmo perodo de tempo. O

    estudo da historicidade das lnguas e dos diferentes grupos sociais que as usam

    crucial para que possamos compreender a dinmica lingustica e a constituio de

    uma dada norma. Como veremos, o conceito de norma bastante polissmico e

    polmico, envolvendo diferentes variveis e motivaes. Uma dessas variveis de

    natureza poltica, pois, se elege uma dada forma de escrever e falar como repre-

    sentativa de uma determinada identidade nacional. Contudo, esse gesto produz

    efeitos ideolgicos, instaurando, por exemplo, avaliaes pejorativas e preconcei-

    tuosas sobre os usos lingusticos, como as ideias de certo e errado ou belo e feio.

    A concepo de que as lnguas mudam no novidade nos bancos escolares

    e nas aulas de Lngua Portuguesa. Desde o final da dcada de 1990, os Par-

    metros Curriculares Nacionais (PCN) de Lngua Portuguesa j registram que

    existem diferentes variedades lingusticas no Brasil e que existe preconceito

    com relao a algumas dessas variedades. Sabemos que as pessoas so identifi-

    Conjunto de documentos que tm como objetivo subsidiar a elaborao do currculo dos 1 e 2 ciclos do Ensino Fundamental e do Ensino Mdio. A discusso desses documentos ocupar grande parte das reflexes tra-zidas na Unidade C deste livro.

  • cadas pela forma como falam. No entanto, comum que seja atribudo estigma

    a determinadas formas variantes da lngua, especialmente quelas usadas por

    falantes que no gozam de prestgio social na comunidade em que vivem.

    A lngua portuguesa, no Brasil, possui muitas variedades dialetais. Iden-

    tificam-se geogrfica e socialmente as pessoas pela forma como falam.

    Mas h muitos preconceitos decorrentes do valor social relativo que

    atribudo aos diferentes modos de falar: muito comum se considera-

    rem as variedades lingusticas de menor prestgio como inferiores ou

    erradas. (BRASIL, 1997, p. 26)

    Diante desse cenrio, o problema do preconceito deve ser enfrentado, na escola,

    como parte do objetivo mais amplo de educao para o respeito diferena. O pro-

    fessor deve ter conhecimento lingustico para explicitar a seus alunos que certos usos

    variveis so censurados em certas situaes socioculturais. Como percebemos va-

    loraes sociais diferentes a respeito da cor da pele, da cor dos olhos, do tipo de estilo

    relacionado a vestimenta e do credo religioso, tambm percebemos diferentes valo-

    res sobre as formas lingusticas utilizadas pelos falantes. No vamos, por exemplo, fa-

    zer uma entrevista de emprego com a mesma roupa que usamos na praia, bem como

    no empregamos as mesmas formas lingusticas nas diferentes ocasies sociais.

    O uso da lngua deve ser adequado, portanto, aos diferentes domnios sociais.

    Para Stella Maris Bortoni-Ricardo, no livro Educao em lngua materna: a

    sociolingustica na sala de aula,

    um domnio social um espao fsico onde as pessoas interagem assu-

    mindo certos papis sociais. Os papis sociais so um conjunto de obri-

    gaes e de direitos definidos por normas socioculturais. Os papis sociais

    so construdos no prprio processo da interao humana. Quando usa-

    mos a linguagem para nos comunicar, tambm estamos construindo e

    reforando os papis sociais prprios de cada domnio. Vejamos alguns

    exemplos. No domnio do lar, as pessoas exercem os papis sociais de pai,

    me, filho, filha, av, tio, av, marido, mulher etc. (2004, p. 23).

    Em qualquer domnio social encontramos uma gama de variedades no uso da

    lngua. Essa variao , em geral, mais ampla nos domnios sociais da famlia

  • e das atividades de lazer e mais estrita no domnio da escola, da poltica ou da

    igreja. No primeiro caso usamos geralmente normas vernaculares da lngua e

    no segundo caso normas cultas. Para que o aluno possa adequar a sua fala aos

    diferentes domnios sociais, a norma culta deve ter lugar garantido na escola,

    mas no deve ser a nica (norma) privilegiada no processo de conhecimento

    lingustico proporcionado pelos professores. Normas vernaculares merecem

    ser debatidas em sala de aula tambm. Elas refletem, em geral, a heterogenei-

    dade lingustica adquirida espontaneamente por todos ns, a partir da ln-

    gua a que estamos expostos. Para alm das normas vernaculares e cultas que

    ocorrem na sincronia, a escola deve mostrar normas usadas em outras pocas

    para que atravs de um conhecimento passivo os alunos possam ler textos

    antigos, produzidos em sincronias passadas.

    Tendo feita essa breve apresentao da proposta do livro, esperamos que as

    leituras e reflexes que vo ser colocadas em debate possam contribuir para

    Para refletir

    Vocs j perceberam que milhes de falantes brasileiros erram todos

    de uma mesma maneira nos mesmos contextos lingusticos, em dife-

    rentes lugares e em diferentes estratos sociais? J se perguntaram por

    que isso acontece? Uma resposta simples e rpida seria dizer que as

    formas que esto em variao so corretas do ponto de vista lingusti-

    co. Os chamados erros que cometemos so explicados pelo prprio

    sistema e pelo processo evolutivo da lngua, uma vez que a lngua

    um objeto heterogneo e ordenado passvel de estudo cientfico. O

    estatuto de erro dado a algumas formas uma valorao social: mui-

    tas pessoas acham que correto tudo o que diz respeito s formas

    prescritas pelas gramticas normativas e errado o que novo e no

    est prescrito, principalmente quando esse novo est atrelado a valor

    social negativo. O professor precisa levar para a sala de aula reflexes

    sobre esses valores sociais e sobre a heterogeneidade da lngua para

    poder garantir o domnio da norma culta ao aluno. Mas esse aprendi-

    zado deve ter base cientfica!

  • a formao terica e crtica do professor de portugus. Espera-se que o livro

    possa contribuir tambm para aes pedaggicas mais inclusivas e socialmen-

    te coerentes com a realidade lingustica brasileira.

    As autoras

  • Unidade AA constituio da normado portugus brasileiro

    Um visitante observa o trptico Navio Negreiro, por Di Cavalcanti, no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, Brasil. Foto: Mechika/Alamy

  • Introduo

    Esta unidade apresentar uma viso scio-histrica da constituio da norma no Brasil. Para tanto, traar um percurso que se inicia com o documento que oficializa a lngua portuguesa no Brasil colonial, em 1755. Nessa trajetria histrica, sero considerados alguns marcos importantes para contextualizar o pano de fundo poltico e cultural que teria contri-budo para a formao da norma do portugus brasileiro, em oposio norma do portugus europeu. Assim, sero apresentadas, por exemplo, algumas polmicas a respeito da questo da norma no Brasil no sculo XIX, seja em torno da defesa de uma brasilidade da lngua, seja em torno da defesa do modelo portugus como padro. Essas opinies polarizadas sobre a lngua portuguesa tiveram motivaes polticas e culturais, tendo produzido efeitos sobre a constituio e consolidao de uma lngua por-tuguesa brasileira cujas nomeao e descrio tornaram-se alvo de dispu-tas e debates, fato que se evidencia at os dias de hoje.

    Um exemplo contemporneo de polmica em torno da lngua o caso envolvendo a publicao do livro didtico Por uma Vida Melhor (2011), que visibilizou, com fins pedaggicos, a variedade popular do portugus brasileiro. Tal ato motivou um debate que foi amplamente publicizado, girando em torno de dois blocos de argumentos: um que acusava o livro de ensinar o portugus errado e outro que defendia a importncia de descrever a realidade sociolingustica do portugus falado no Brasil. Um dossi com as principais entrevistas a respeito do debate foi publicado pelo Ministrio da Educao e est disponvel para consulta. Veremos, nesta unidade, que essas valoraes depreciativas, preconceituosas e puristas j foram semeadas em polmicas semelhan-tes no sculo XIX. O conhecimento histrico do processo de formao do portugus brasileiro e da sua norma nos ajuda a compreender o nas-cimento e a perpetuao do preconceito lingustico no Brasil.

    O primeiro captulo desta unidade apresentar um panorama s-cio-histrico do Brasil colonial, com fins de explicar a formao e di-fuso da lngua portuguesa no Brasil luz de acontecimentos variados vinculados poltica colonial. O segundo captulo focar os vrios fato-

    Disponvel no s-tio .

  • res envolvidos na formao da norma do portugus brasileiro, especial-mente na sua modalidade escrita, delimitando-se, para tanto, o sculo XIX e o incio do sculo XX.

    Tais temas vinculam-se, portanto, aos seguintes objetivos:

    1) Conhecer a trajetria de formao e constituio da lngua portuguesa no Brasil colonial.

    2) Reconhecer os principais acontecimentos histricos e culturais que afetaram a formao da norma do portugus do Brasil no sculo XIX.

    3) Identificar os discursos antagnicos envolvendo a constituio da norma do Portugus do Brasil (PB).

  • Captulo 01A constituio da norma do portugus brasileiro

    15

    Lngua portuguesa e diversidade lingustica no Brasil colonial

    A lngua portuguesa foi oficializada no Brasil pelo Diretrio dos ndios, documento composto por 95 artigos e publicado em 1755 por Mendona Furtado irmo do ento primeiro ministro de Portugal Marqus de Pombal, entre 1750 e 1777, responsvel pela gesto dos es-tados do Gro-Par e Maranho. O Diretrio tornou-se lei em 1758, tendo vigido por 40 anos. Esse documento se enquadrou em uma srie de iniciativas de reforma que tiveram o iluminismo, o racionalismo e o mercantilismo como pano de fundo para as polticas de implantao da lngua da coroa portuguesa na colnia. Alm do Diretrio que visava fornecer as primeiras diretrizes educacionais oficiais no Brasil, em 28 de julho de 1759 foi emitido por D. Jos I, ento rei de Portugal, um alvar que estabeleceu o cargo de diretor de ensino, o ensino de Gramtica Latina e a conduo de aulas rgias de Grego, Filosofia e de Retrica, indicando como referncia para o ensino de Lngua Portuguesa a Gra-mtica Portuguesa, inspirada no modelo latino de Antnio Jos dos Reis Lobato (BUNZEN, 2011). Outra referncia bibliogrfica da poca que visava normatizar o ensino da lngua portuguesa foi a obra O Verdadeiro Mtodo de Estudar (1746), escrita pelo reformista Lus Antnio Vernei, que contemplava dezesseis cartas, dentre as quais, Lngua Portuguesa, Latim e Lnguas Modernas (MACIEL; SHIGUNOV NETO, 2006).

    O modelo educacional laico postulado pelo Diretrio se contraps tradio pedaggica da Companhia de Jesus, que funcionava no Brasil colonial desde o sculo XVI. Com isso, a educao tornou-se um alvo de gesto do Estado, e no mais dos religiosos, o que foi ratificado pela expulso dos jesutas da Colnia. Contudo, sobre a gesto educacional no Brasil e na metrpole portuguesa, h que se considerar que a poltica educacional pombalina no funcionou igualmente nos dois pases: Em Portugal se trata de uma poltica da nacionalizao da educao e no Brasil, especificamente, se pretendia reprimir a expanso do esprito nacionalista que comeava a aflorar entre a populao (MACIEL; SHI-

    O iluminismo diz respeito a um movimento filosfico europeu que surgiu no scu-lo XVI e tinha como objetivo definir a razo como a fonte do conhecimento, em opo-sio a uma viso medieval e religiosa. J o racionalismo trata-se de uma corrente filosfica que busca princ-pios racionais e lgicos para a explicao dos fenmenos e fatos. O mercantilismo, por sua vez, se refere a prticas econmicas europeias mo-dernas que caracterizaram o perodo econmico colonial e antecederam o desenvol-vimento capitalista.

    A Companhia de Jesus foi criada em 1534 por Incio de Loyola, tendo como objetivo propagar as ideias catlicas em um perodo de emergncia do Protestan-tismo. Os primeiros jesutas que chegaram ao Brasil, em 1549, foram Manuel da Nbrega, Leonardo Nunes, Joo de Azpilcueta Navarro e Antnio Pires. A educao jesutica buscava uma for-mao humanstica e cat-lica centrada nos princpios do Ratio Studiorum.

    1

  • Norma Lingustica do Portugus do Brasil

    16

    GUNOV NETO, 2006, p. 472). Tal esprito nacionalista poderia instigar rebelies e movimentos de oposio ao imprio portugus. Assim, o ensino laico operou, sobretudo, a favor da manuteno da ordem e da subservincia da colnia brasileira ao controle portugus.

    Conforme mencionado, na poca do Diretrio havia no Brasil uma srie de misses jesuticas que vinham se dedicando tarefa de evangeli-zao e gesto dos povos indgenas. Essa tarefa exigia dos missionrios o conhecimento de lnguas indgenas locais com fins de traduo dos textos bblicos para tais lnguas. No embalo dessa tarefa evangelizadora, foram produzidas gramticas e dicionrios em lnguas indgenas com fins de seu ensino aos novos missionrios cristos que pregariam junto aos indge-nas. Dentre algumas gramticas produzidas, tm-se:

    1) Gramticas do Tupi: a Arte de grammatica da Lingoa mais usa-da na costa do Brasil (1595), pelo Padre Anchieta, e a Arte de grammatica da lingua brasilica (1621), por Luiz Figueira;

    2) Gramtica da lngua Quiriri: a Arte de grammatica da lingua brasilica da naam Kiriri (1699), pelo padre Lus Vincencio Mamiani;

    3) Gramtica da lngua africana Quimbundu: a Arte da Lngua de Angola (1697), por Pedro Dias;

    4) Sistematizao da lngua geral de Mina: A obra nova da lngua geral de Mina (1731-1741), por Antnio da Costa Peixoto.;

    Tais gramticas seguiam um modelo latino de descrio, com-partilhando estruturao e metalinguagem comuns, com sees de-dicadas dimenso sonora das lnguas e ortografia; morfologia das lnguas, com descries sobre classes e processos de formao de palavras; e morfossintaxe (BATISTA, 2011). O uso de categorias e modelos latinos para a descrio das lnguas indgenas foi questio-nado, por exemplo, por Mattoso Cmara Jnior (1965), para quem a prtica de descrio das lnguas indgenas pelo modelo latino teria

    Material disponvel na biblioteca digital Brasiliana

    USP, em < http://www.brasiliana.usp.br/bbd/

    handle/1918/00059200# page/6/mode/1up >

    Material disponvel na biblioteca digital Brasiliana USP, em < http://www.bra-

    siliana.usp.br/ bbd/hand-le/1918/ 01278800#page/5/

    mode/1up >

    Material disponvel em < https://archive.org/

    details/artedalinguade-an00dias>

    Material dispon-vel em < http://purl.

    pt/16608/3/#/0>

  • Captulo 01A constituio da norma do portugus brasileiro

    17

    produzido um tupi jesutico artificial, prescritivista e gramaticalmente disciplinarizado para fins missionrios.

    O Diretrio dos ndios era, sobretudo, uma lei que visava inte-grao da regio do Vale Amaznico ao imprio portugus (COELHO, 2006), mediante uma poltica colonial de gesto dos povos indgenas em funo da proteo das fronteiras territoriais portuguesas, face presen-a espanhola. Essa demarcao territorial seguia o princpio uti possi-detis, conforme o Tratado de Madrid (1750), que postulava que aqueles que ocupassem o territrio seriam os que, de fato, teriam o direito sobre ele. Trata-se, com isso, de transformar o indgena em vassalo portugus, com fins estratgicos de proteo do territrio. Para tanto, o processo de converso do indgena cultura portuguesa foi perpassado, entre outros aspectos, pela imposio da lngua da metrpole, conforme se l no pa-rgrafo 6 do Diretrio, citado a seguir:

    Sempre foi mxima inalteravelmente praticada em todas as Naes, que

    conquistaram novos Domnios, introduzir logo nos povos conquistados

    o seu prprio idioma, por ser indisputvel, que este um dos meios

    mais eficazes para desterrar dos Povos rsticos a barbaridade dos seus

    antigos costumes; e ter mostrado a experincia, que ao mesmo passo,

    que se introduz neles o uso da Lngua do Prncipe, que os conquistou, se

    lhes radica tambm o afeto, a venerao, e a obedincia ao mesmo Prn-

    cipe. Observando pois todas as Naes polidas do Mundo, este pruden-

    te, e slido sistema, nesta Conquista se praticou tanto pelo contrrio,

    que s cuidaram os primeiros Conquistadores estabelecer nela o uso da

    Lngua, que chamaram geral; inveno verdadeiramente abominvel,

    e diablica, para que privados os ndios de todos aqueles meios, que

    os podiam civilizar, permanecessem na rstica, e brbara sujeio, em

    que at agora se conservavam. Para desterrar esse perniciosssimo abu-

    so, ser um dos principais cuidados dos Diretores, estabelecer nas suas

    respectivas Povoaes o uso da Lngua Portuguesa, no consentindo

    por modo algum, que os Meninos, e as Meninas, que pertencerem s

    Escolas, e todos aqueles ndios, que forem capazes de instruo nesta

    matria, usem da lngua prpria das suas Naes, ou da chamada geral;

    mas unicamente da Portuguesa, na forma, que Sua Majestade tem reco-

    Disponvel em

  • Norma Lingustica do Portugus do Brasil

    18

    mendado em repetidas ordens, que at agora se no observaram com

    total runa Espiritual, e Temporal do Estado.

    Essa longa citao bastante ilustrativa da maneira como a impo-sio da lngua portuguesa aos povos indgenas no Brasil servia a uma finalidade poltica de converso desses sujeitos e de apagamento de sua cultura e costumes locais. Trata-se de uma poltica lingustica autoritria e impositiva, que se materializa, principalmente, pela via de uma poltica educacional que vai se delineando como interesse da metrpole, conforme se l no documento. Tal poltica prope uma diferenciao entre a edu-cao de meninos e meninas: os primeiros deveriam aprender a doutrina Crist, a leitura e a escrita do portugus; as meninas, alm dessas habili-dades, deveriam aprender a fiar, fazer renda e costurar. Nota-se, com isso, que o ensino de lngua portuguesa serviu, entre outros aspectos, a uma finalidade poltica e cultural de lusitanizao e construo de uma identi-dade civilizada aos moldes das escolas das naes civilizadas. Logo, os letramentos, nesse momento, estavam a servio tanto de interesses mis-sionrios, como de interesses lusitanos, estando ambos interligados.

    Importante ainda salientar o papel poltico do Diretrio na produ-o de diferenciaes sociais, uma vez que o documento estipulava uma distino entre os povos indgenas e os povos africanos, conferindo ape-nas aos primeiros o estatuto de vassalos. Os africanos, diferentemente, tiveram sua condio de escravizados oficializada pelo documento, que utilizou a raa como critrio de diferenciao e hierarquizao, confor-me se l no pargrafo 10:

    Entre os lastimosos princpios, e perniciosos abusos, de que tem resul-

    tado nos ndios o abatimento ponderado, sem dvida um deles a in-

    justa, e escandalosa introduo de lhes chamarem Negros; querendo

    talvez com a infmia, e vileza deste nome, persuadir-lhes, que a natureza

    os tinha destinado para escravos dos Brancos, como regularmente se

    imagina a respeito dos Pretos da Costa da frica [...]

    Instaurou-se, assim, uma diferenciao oficializada entre os indge-nas e os africanos negros, renegando a estes o papel de escravizados, su-

  • Captulo 01A constituio da norma do portugus brasileiro

    19

    jeitos marginalizados na sociedade. Contudo, h que se considerar que tais grupos tnicos eram, tambm, internamente heterogneos. Exem-plificando, entre os escravizados africanos, aqueles que haviam chega-do recentemente da frica e que desconheciam as lnguas e costumes locais eram chamados de boais; j os escravizados que entendiam o portugus e conheciam os costumes locais eram chamados de ladinos; e aqueles que haviam nascido no Brasil eram chamados de crioulos (FAUSTO, 2011). Tais categorizaes utilizavam o maior ou menor do-mnio da lngua portuguesa como critrio diferenciador e como alvo de avaliaes e esteretipos, prtica que se atualiza em avaliaes percebi-das ainda hoje sobre os usos variados da lngua portuguesa.

    Apesar de uma poltica lingustica educacional que visava o ensino de leitura e escrita aos indgenas, as escolas pblicas foram fundamen-talmente ocupadas por filhos de portugueses. Isso se deu por conta da forte imigrao de portugueses para o Brasil, impulsionada pelo ciclo do ouro totalizando cerca de 600 mil imigrantes portugueses nos primei-ros 60 anos do sculo XVIII. Esse fato teria contribudo para a forma-o de uma classe de elite e, ao redor dela, de elementos marginalizados, que no tinham acesso escola e que tinham conhecimento rudimentar da lngua portuguesa (OLIVEIRA, 2009, p. 202).

    A febre do ouro tambm alimentou o comrcio de africanos escravi-zados trazidos para o Brasil, que teria somado mais de um milho de pes-soas. Sobre o trfico negreiro, a estimativa de que entre 1550 e 1855 te-nham sido trazidos para o Brasil cerca de quatro milhes de escravizados africanos, oriundos de diferentes regies, como Guin e Costa de Mina (no sculo XVI) e Congo e Angola (sculos XVII e XVIII). Os africanos trazidos para o Brasil compunham dois grandes grupos tnico-lingusti-cos os sudaneses, da frica ocidental, e os bantos, da frica equatorial e tropical (FAUSTO, 2011). Tal aspecto gerou uma grande diversidade de lnguas africanas em contato entre si, em contato com a lngua portuguesa e com as lnguas indgenas no Brasil.

    importante ressaltar que a Coroa portuguesa ocupou-se de uma poltica de contato intertnico que atravessou trs fases: no incio da

  • Norma Lingustica do Portugus do Brasil

    20

    colonizao, promoveu o casamento entre portugueses e ndias (per-tencentes a uma hierarquia elevada) como estratgia colonizatria; em um segundo momento, por influncia de preceitos religiosos que eram refratrios prtica da poligamia comum entre os indgenas, mulheres portuguesas rfs e erradas foram enviadas para o Brasil para incenti-var o casamento entre os portugueses; em um terceiro momento, com o Diretrio dos ndios, tem-se, novamente, uma poltica que favoreceu o casamento intertnico e a mestiagem (OLIVEIRA, 2009). Tal poltica, evidentemente, produziu efeitos sobre a dinmica do contato entre as lnguas e a formao da lngua portuguesa, especialmente na modalida-de oral, fazendo com que a lngua portuguesa absorvesse traos lingus-ticos indgenas e vice-versa.

    Conforme notamos, a configurao demogrfica do Brasil colnia foi diversificada e complexa. Um dos efeitos dessa diversidade foi o sur-gimento e expanso de uma variedade do portugus brasileiro para o interior do pas, especialmente levada adiante pelos africanos e indge-nas que aprenderam o portugus de forma irregular, como sua segunda lngua. Essa explicao sobre a difuso do portugus reforada por Lucchesi, Baxter e Ribeiro na obra O Portugus Afro-Brasileiro (2009) e por Gilberto Freyre na obra Casa Grande e Senzala (1995), conforme as respectivas citaes a seguir:

    O avano da lngua portuguesa no territrio brasileiro seja em sua

    variedade nativa, veiculada pelos colonos brasileiros, seja na variedade

    defectiva, falada pelos escravos africanos e seus descendentes crioulos

    d-se primacialmente sobre uma base socioeconmica, com a ex-

    panso das lavouras de acar no sculo XVII e, sobretudo, no sculo

    XVIII, com o grande ciclo das minas, cujo manancial extraordinrio de

    riqueza teve um impacto sobre toda a economia mundial (LUCCHESI,

    BAXTER E RIBEIRO, 2009, p. 48-49).

    [...] Escravos fugidos que propagariam entre os indgenas, antes de

    qualquer missionrio branco, a lngua portuguesa e a religio catlica.

    (FREYRE, 1995, p. 451)

  • Captulo 01A constituio da norma do portugus brasileiro

    21

    Lucchesi, Baxter e Ribeiro, na obra O Portugus Afro-Brasileiro (2009), defendem uma hiptese explicativa para a formao do portu-gus no Brasil que, basicamente, se fundamenta na ideia de que o por-tugus brasileiro, especialmente a sua variedade popular, resultou de um processo fraco de crioulizao, entendido como efeito do contato entre o portugus europeu e as lnguas africanas a partir da aprendizagem ir-regular da lngua portuguesa pelos africanos. A aprendizagem irregular, por essa hiptese, teria sido fruto da aquisio da lngua portuguesa como segunda lngua por pessoas que tinham como lngua materna as lnguas africanas de matriz bantu ou iorub, cuja estrutura lingustica difere da estrutura das lnguas. Tal processo teria afetado a gramtica do portugus brasileiro, motivando, por exemplo, processos de variao em termos de concordncias verbal e nominal, uma vez que a marcao de nmero, g-nero, pessoa, caso, tempo, modo e aspecto nas lnguas africanas funciona de maneira diferente da marcao na lngua portuguesa.

    Mais especificamente sobre as concordncias verbal e nominal, no por acaso observamos que grande parte do preconceito lingustico evi-denciado nas mdias e discursos puristas centra-se nesses fenmenos: a falta de concordncia constitui a grande fronteira sociolingustica da sociedade brasileira (LUCCHESI, BAXTER E RIBEIRO, 2009, p.31). Diferentemente das concordncias, o sistema pronominal no alvo reiterado de valoraes negativas, muito embora, para alguns estudio-sos, a variao pronominal do portugus brasileiro tenha tambm sido motivada pelo contato das lnguas no Brasil, conforme prope Freyre (1995, p. 390):

    Temos no Brasil dois modos de colocar pronomes, enquanto o portu-

    gus s admite um o modo duro e imperativo: diga-me, faa-me,

    espere-me. Sem desprezarmos o modo portugus, criamos um novo,

    inteiramente nosso, caracteristicamente brasileiro: me diga, me faa, me

    espere. Modo bom, doce, de pedido [...] Faa-me o senhor falando; o

    pai; o patriarca; me d, o escravo, a mulher, o filho, a mucama. Parece-

    -nos justo atribuir em grande parte aos escravos, aliados aos meninos

    das casas-grandes, o modo brasileiro de colocar pronomes.

    Retomamos como exemplo as polmi-cas do livro Por uma Vida Melhor. A autora, Helosa Ramos, ilustrou o uso do portugus popular com as frases Ns pega o peixe, Os menino pega o peixe, Mas eu posso falar os livro. Esses exemplos foram fortemente criti-cados por puristas, com o argumento de que o livro estaria ensinando errado o portugus.

  • Norma Lingustica do Portugus do Brasil

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    A hiptese de crioulizao mencionada no compartilhada igual-mente por todos os linguistas, a exemplo de Scherre e Naro (2007). Em-bora reconheam a importncia do contato entre as lnguas africanas e portuguesa no Brasil, os autores defendem que as mudanas sofridas pelo portugus popular no Brasil especialmente quanto ao processo de variao das concordncias verbal e nominal no decorrem de um processo de crioulizao, mas da prpria dinmica histrica da lngua portuguesa, conforme evidenciado no excerto abaixo:

    Nossa concluso que o portugus moderno do Brasil resultado natural

    da deriva secular inerente na lngua trazida por Portugal, indubitavelmen-

    te exagerada no Brasil pela exuberncia do contato de adultos, falantes

    de lnguas das mais diversas origens, e pela nativizao desta lngua pelas

    comunidades formadas por estes falantes (SCHERRE E NARO, 2007, p. 69).

    No pretendemos, neste livro, assumir um posicionamento a favor da hiptese de crioulizao ou da deriva secular, mas, to somente, ex-plicitar que os estudos sobre as origens do portugus brasileiro revelam, pelo menos, dois percursos scio-histricos e polticos interligados, embora cada qual com suas especificidades e heterogeneidade: um vin-culado histria das populaes indgenas e africanas e outro vinculado presena dos portugueses e seus descendentes no Brasil.

    Tendo feita essa apresentao das hipteses que visam explicar a formao do portugus no Brasil, considera-se que duas grandes varie-dades lingusticas foram constitudas: o portugus popular (portugus vernacular ou norma popular) e o portugus culto. Indcios histricos da emergncia poltica de duas variedades lingusticas, ainda no Brasil colonial, foram mencionados por Freyre (1995, p. 149):

    Ficou-nos, entretanto, dessa primeira dualidade de lnguas, a dos se-

    nhores e a dos nativos, uma de luxo, oficial, outra popular, para o gasto

    dualidade que durou seguramente sculo e meio e que prolongou-

    -se depois, com outro carter, no antagonismo entre a fala dos brancos

    das casas-grandes e a dos negros das senzalas [...] Entre o portugus

    dos bacharis, dos padres e dos doutores, quase sempre propensos ao

  • Captulo 01A constituio da norma do portugus brasileiro

    23

    purismo, ao preciosismo e ao classicismo, e o portugus do povo, do

    ex-escravo, do menino, do analfabeto, do matuto, do sertanejo. O deste

    ainda muito cheio de expresses indgenas, como o do ex-escravo ain-

    da quente da influncia africana.

    Essa polarizao entre popular e culto, contudo, no implica uma viso dicotmica com dois polos antagnicos. Trata-se, contemporanea-mente, de considerar uma viso contnua em que numa extremidade tem--se o portugus quilombola e na outra, o portugus culto urbano. Entre elas estariam os dialetos rurais e os falares urbanos no padro (PETTER; OLIVEIRA, 2011). Esquematicamente, teramos o seguinte contnuo:

    Tais variedades retratariam as seguintes comunidades de falantes, respectivamente:

    Essa forma de representar a realidade lingustica e social brasileira tem implicaes na compreenso do processo scio-histrico de consti-tuio e legitimao da norma culta no Brasil, uma vez que os discursos sobre a norma so em grande medida elaborados, tomando-se o portu-gus popular como alvo de rejeio e preconceito, conforme ser visto no captulo seguinte.

    Portugus afro-brasileiro falares regionais falares urbanos no pa-dro falares urbanos cultos.

    Comunidades rurais afro-brasileiras comunidades rurais comuni-dades urbanas populares comunidades urbanas cultas.

    Para refletir

    Apoiando-se comparativamente em exemplos de uso e de avaliao da

    lngua portuguesa nos perodos colonial e contemporneo, reflita sobre

    a existncia de um percurso histrico do preconceito lingustico no Brasil.

  • Norma Lingustica do Portugus do Brasil

    24

    H que se considerar, ainda, que o Brasil colonial no constituiu uma realidade geogrfica, poltica, economicamente homognea e regular-mente distribuda, fato que afetou o processo de estratificao da lngua portuguesa no Brasil. A ttulo de ilustrao, os diferentes ciclos econmi-cos que atravessaram a histria brasileira produziram distintas realidades sciodemogrficas e geopolticas, estabelecendo diferentes relaes e per-cursos entre, por exemplo, o campo e a cidade ou entre o norte e o sul. Tal aspecto certamente produziu efeitos sobre a dinmica das lnguas, uma vez que colocou em contato diferentes lnguas (indgenas, africanas e por-tuguesa) e variedades. Sobre os ciclos econmicos da poca colonial que teriam motivado deslocamentos populacionais e estratificaes sciode-mogrficas diferenciadas, sucinta e esquematicamente, tem-se:

    1) o ciclo da cana-de-acar, motivado por interesses de ocupao das terras da colnia, concentrou-se, a partir da primeira meta-de do sculo XVI e por questes climticas, em Pernambuco, na Bahia, em So Paulo (So Vicente) e no Maranho. Esse ciclo in-centivou a primeira leva de comrcio de africanos escravizados e de escravizao de indgenas no Brasil. Nessa poca houve as di-vises de terras em grandes latifndios monocultores (sesmarias) cedidos aos cultivadores. O transporte de cana-de-acar era feito por rotas percorridas pelo gado, o que fomentava o surgimento de localidades e caminhos que ligavam o interior ao litoral.

    2) O ciclo do minrio (ou do ouro) que se estendeu pelo sculo XVIII, concentrou-se nas regies de Minas Gerais, So Paulo, Mato Grosso e Gois e motivou uma srie de migraes por-tuguesas e deslocamentos internos em busca do minrio. Foi o perodo das bandeiras e dos comrcios entre os tropeiros.

    3) O ciclo do caf fechou o perodo colonial e adentrou o Brasil republicano, atravessando todo o sculo XIX. Concentrou-se principalmente na regio do vale do Paraba (em So Paulo e Rio de Janeiro) e no Paran. Foi o perodo de urbanizao de So Paulo e de chegada de imigrantes europeus para substitu-rem os escravizados nas colheitas de caf.

  • Captulo 01A constituio da norma do portugus brasileiro

    25

    A tabela a seguir ilustra, de forma aproximada, a sciodemogra-fia do Brasil entre os sculos XVI e XIX:

    Tabela 1: Sociodemografia do Brasil entre os sculos XVI e XIX

    Por fim, ratificando a tese da polaridade lingustica, as prticas lin-gusticas consideradas letradas no Brasil colonial no foram compar-tilhadas por toda a populao, dada a heterogeneidade social, econ-mica, geogrfica e poltica j apresentada. Apenas uma pequena elite tinha acesso escolarizao e aprendizagem da leitura e da escrita do portugus. Com isso, o portugus culto estava reservado aos centros urbanos e a uma pequena parcela letrada da populao, que compar-tilhava prticas lingusticas que exigiam o uso da norma padro. Era o caso, at o final do sculo XVIII, dos centros urbanos como Salvador e Rio de Janeiro onde havia uma burocracia administrativa e a presena de profissionais liberais letrados, como advogados.

    Assim, a formao da norma do portugus brasileiro surge como uma questo a partir da estabilizao de prticas sociais letradas vincu-ladas a diferentes esferas sociais, como as esferas estatal-legislativa, lite-rria, pedaggica, jornalstica, acadmica, entre outras. Tais esferas se consolidam no Brasil a partir do sculo XIX embora tenham existido antes de forma mais dispersa e irregular. O sculo XIX torna-se, ento, central para se analisar o processo de formao da norma do portugus

    ETNIA 1583-1600 1601-1700 1701-1800 1801-1850 1851-1890

    Africanos 20% 30% 20% 12% 2%

    Negros brasileiros

    - 20% 21% 19% 13%

    Mulatos - 10% 19% 34% 42%

    Brancos brasileiros

    - 5% 10% 17% 24%

    Europeus 30% 25% 22% 14% 17%

    ndios inte-grados

    50% 10% 8% 4% 2%

    Fonte: Mussa (1991, apud MATTOS E SILVA, 2004, p. 35)

  • Norma Lingustica do Portugus do Brasil

    26

    no Brasil, pois se trata do perodo de consolidao de um Estado so-berano brasileiro, com suas instituies estatais (reguladas por prticas escritas) que do sustentao a um projeto unificado de Nao. Assim como a escrita, a norma surge como uma tecnologia de poder (FOU-CAULT, 1987), fato que justifica as polmicas que emergiram no sculo XIX sobre o problema da norma brasileira, conforme ser visto no ca-ptulo seguinte.

  • Captulo 02A lngua portuguesa no Brasil: a norma em formao

    27

    2 Lngua portuguesa no Brasil: a norma em formao

    Cronologicamente, o sculo XIX foi caracterizado por vrios acon-tecimentos que sero tomados como marcos histricos cruciais para a formao de uma norma do portugus no Brasil, conforme apresenta-dos e comentados de forma sistematizada a seguir. Sero mencionados e discutidos os seguintes temas: os efeitos da chegada da famlia real ao Brasil, os brasileirismos literrios, os puristas e defensores da norma lusitana, as instncias divulgadoras da norma, a legislao educacional e o surgimento da disciplina de Lngua Portuguesa.

    2.1 A chegada da famlia real e a criao de instituies brasileiras

    Em 1807, fugindo da invaso francesa, a corte portuguesa, sob lide-rana de D. Joo, deixou Lisboa. Aportou no Rio de Janeiro em 7 de maro de 1808, com uma comitiva de 15.000 pessoas, deslocando para a cidade fluminense a sede do Imprio, com sua devida estrutura e aparato burocr-tico. O Brasil foi alado, em 1815, ao status de Reino Unido ao de Portugal e Algarve, o que significou que em termos jurdicos o Brasil deixou de ser colnia. Tais fatos reconfiguraram as relaes sociais, hierarquias e tenses em territrio brasileiro (CARDOSO, 1990). O Rio de Janeiro passou, ento, por um intenso processo de urbanizao, com a criao da imprensa rgia e de outras instituies, como: Biblioteca Nacional, Banco do Brasil, Museu Real, Teatro Real, Escola Nacional de Belas Artes, Instituto Histrico e Ge-ogrfico Brasileiro e Impresso Rgia.

    Alm disso, misses artsticas, cientficas e culturais (francesa, alem, inglesa) foram trazidas ao Brasil com o intuito de registrar e produzir um acervo de conhecimentos sobre o pas. Um desses ex-ploradores foi o francs Auguste Saint-Hilaire (1779-1853), que per-correu e registrou dados de cidades das atuais regies Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Dentre as obras que escreveu esto: Viagem ao Esprito

  • Norma Lingustica do Portugus do Brasil

    28

    Santo e Rio Doce (1818), Viagem pelas provncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais (1822), Viagem s nascentes do Rio So Francisco e pela provncia de Gois (1937), Viagem a Curitiba e Santa Catarina (1820), Viagem pelo distrito dos diamantes e pelo litoral do Brasil (1941), Via-gem comarca de Curitiba (1820), Viagem provncia de Santa Cata-rina (1820) e Viagem ao Rio Grande do Sul (1820-1821). Esses escritos etnogrficos refletem as leituras feitas sobre o Brasil a partir de olhares estrangeiros. Saint-Hilaire, por exemplo, registrou tambm dados lin-gusticos, conforme o excerto abaixo sobre a lngua portuguesa falada pelos paulistas (1976, p. 138):

    Ao invs de vossemec, abreviao de vossa merc, com que se designa

    a segunda pessoa, os camponeses paulistas dizem geralmente mec.

    Sua pronncia surda e arrastada, e eles substituem o ch portugus

    por ts. Dizem, por exemplo, matso em lugar de macho e atso ao invs

    de acho.

    Ainda na primeira metade do sculo XIX, surgem os primeiros cursos superiores no Brasil: a Escola Mdico-Cirrgica, no Hospital Militar do Rio de Janeiro, e o curso de Engenharia na Academia Real Militar, ambos criados pela carta rgia de 1808. As faculdades de Direito de Olinda e de So Paulo surgiram em 1826. No embalo da fundao das Faculdades de Direito, foram tambm criadas a Revista da Sociedade Filomtica (1827) em So Paulo e O Progresso (1846) em Olinda, am-bas publicaes de inspirao nacionalista e conservadora. Ressalta-se que o atraso na criao de instituies superiores no Brasil fez com que grande parte da formao superior dos brasileiros fosse feita em Portu-gal, especialmente na Universidade de Coimbra, o que se reflete na defe-sa da norma lusitana por algumas elites intelectuais brasileiras da poca.

    Alm das faculdades, outra instituio que desempenhou papel importante nos debates sobre a norma da lngua portuguesa escrita no Brasil foi a Academia Brasileira de Letras (ABL), criada em 20 de julho de 1897, sendo Machado de Assis eleito como seu pri-meiro presidente. O formato dessa instituio foi influenciado pela Academia Francesa de Letras, com uma representao de 40 mem-

    Material disponvel em < http://www.brasilia-na.com.br/brasiliana/

    colecao/obras/34/Via-gem-a-Provincia-de-

    -Santa-Catarina-1820>

  • Captulo 02A lngua portuguesa no Brasil: a norma em formao

    29

    bros efetivos, dentre os quais estavam Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Jos Verssimo, Visconde de Taunay, Slvio Romero e Alusio Aze-vedo. Como ser visto mais adiante, muitos integrantes da ABL de-fendiam um conservadorismo lingustico, aos moldes da norma lu-sitana. Um dos papeis da ABL foi a institucionalizao da literatura considerada brasileira, funcionando como uma instncia reguladora e legitimadora da literatura e da lngua nacionais. A ABL atuou em conjunto com a imprensa, com a educao e em atividades culturais na divulgao de um padro lingustico.

    Dessa forma, a ABL e a Academia Imperial de Belas Artes (criada em 1816) atuaram na criao de um modelo esttico escrito e visual, conferindo legitimidade acadmica e reputao a certos escritores e artistas, e excluindo outros. A ABL, inicialmente de muito prestgio e influncia cultural, atribuiu a certos estilos literrios e variedades lin-gusticas valores estticos que os diferenciavam de outros. O estilo lite-rrio da ABL priorizava, em geral:

    uma escrita empolada, de natureza classicizante, via de regra encomi-

    stica e/ou edificante, quase sempre parnasiana; de um ponto de vista

    da construo literria e de sua recepo, privilegiava-se a literatura bur-

    guesa e elitista, em franca oposio a uma vertente popular, massifica-

    da, da expresso artstica (SILVA, 2007, p. 72).

    Tais valoraes atuaram como reguladoras das normas literria e lingustica, e os escritores bem conceituados pela ABL se tornaram refe-rncias para a norma da lngua portuguesa, sendo que muitos deles so, ainda hoje, mencionados pelas gramticas normativas como padro de correo e beleza. O prestgio, o poder e a interveno na cena cultural do pas duraram apenas os primeiros 20 anos da ABL, que se tornou alvo de crticas e perdeu sua fora de influenciar o cenrio cultural.

  • Norma Lingustica do Portugus do Brasil

    30

    2.2 Os brasileirismos literrios

    Em termos gerais, a literatura romntica brasileira reflete o mo-mento de construo de sentimentos nacionalistas que se apoiariam, inicialmente, na figura mtica do indgena. No embalo da construo de uma brasilidade, alguns autores de grande destaque da poca foram Gonalves Dias, Jos de Alencar e Joaquim Norberto Souza e Silva. Embora esses autores tenham defendido a brasilidade da lngua por-tuguesa, h que se considerar que as primeiras menes aos brasilei-rismos remetem a Gregrio de Matos e a Antonio de Moares Silva, em seu Diccionario da lingua portugueza (1789), e aos escritos de Viscon-de de Pedra Branca publicados no Atlas Etnogrfico do Globo (1824-1825) (LEITE, 1969).

    Gonalves Dias (1823-1864), representante da primeira corren-te do romantismo brasileiro, foi um dos defensores e propagadores de um imaginrio nacional calcado na figura mtica e heroica do indgena, tendo sido considerado um dos principais construtores de uma identi-dade literria do Brasil. Seu posicionamento era fortemente motivado por uma poltica imperial em busca da construo de uma identidade nacional fundamentada no ndio. Com esse intuito, publicou, por in-centivo de D. Pedro II, o Dicionrio da lngua tupi chamada lngua geral dos indgenas do Brasil (1858). Essa foi, conforme j mencionado, uma poca em que uma srie de misses europeias desembarcaram no Brasil com a inteno de retratar o pas. A ttulo de exemplo, o posicionamen-to de Gonalves Dias em defesa de uma lngua nacional foi revelado em carta endereada ao Dr. Pedro Nunes Leal: A minha opinio que ainda, sem o querer, havemos de modificar altamente o Portugus (...). E que enfim o que brasileiro brasileiro, e que a cuia vir a ser to clssico como porcelana, ainda que no a achem bonita. (DIAS, 1921, p. 131; grifo do autor).

    Outro autor, Jos de Alencar (1829-1877), foi considerado o pai do romantismo literrio brasileiro e o criador da lngua brasileira. Foi, inclusive, criticado por no conhecer a lngua portuguesa, em um momento histrico em que literatos de esprito lusitano no aceitavam

  • Captulo 02A lngua portuguesa no Brasil: a norma em formao

    31

    as brasilidades lingusticas reivindicadas por certos escritores naciona-listas, como mostra o posicionamento do escritor portugus Pinheiro Chagas a respeito do estilo brasileiro (1867 apud CHAVES DE MELO, 1972, p. 11):

    o defeito que vejo em todos os livros brasileiros, e contra o qual no

    cessarei de bradar intrpidamente, a falta de correo da linguagem

    portuguesa, ou antes a mania de tornar brasileiro uma lngua diferente

    do velho portugus, por meio de neologismos arrojados e injustific-

    veis, e de insubordinaes gramaticais [...]

    Jos de Alencar respondeu pontualmente a todas as crticas feitas lngua brasileira que usava para redigir seus textos literrios, se pau-tando no seguinte argumento poltico: Ns, os escritores nacionais, se quisermos ser entendidos de nosso povo, havemos de falar-lhes em sua lngua (ALENCAR, 1962, O Nosso Cancioneiro). Dentre os defensores de Alencar est Machado de Assis, que validava o seu conhecimento lingustico e a opo de Jos de Alencar pelo nacionalismo da lngua.

    Dentre os itens lingusticos usados pelo escritor romntico que foram tomados como alvos de crticas esto o uso de lxico especfico (tupinismos e brasileirismos), de expresses literrias, de regncias e de colocao pronominal, entre outros. Para ilustrar, toma-se o caso de co-locao pronominal utilizada por Alencar nas obras Iracema, Guarani e Ubirajara (CHAVES DE MELO, 1972), aspecto que ser discutido na Unidade B do presente livro:

    Uso considerado cannico: vinha alongando-se; no pode mais separar-se; quer erguer-se; no te quero ver triste; queres que te ela deixe morrer! (Iracema).

    Uso considerado no cannico: fez-se na cabana to grande si-lncio que ouvia-se pulsar o sangue (Iracema); Est me parecen-do (Guarani); ele viu a luz das janelas se refletir defronte (Guara-ni); vai te esperar na porta da cabana (Guarani); ia se tornando sria (Guarani); que roubou-lhe o companheiro (Ubirajara).

  • Norma Lingustica do Portugus do Brasil

    32

    Uso procltico ao particpio passado do pronome-objeto: Ti-nha-se iludido; [...] tinha de repente lhe parecido uma ferida (Guarani).

    Ausncia de pronome objeto em verbos reflexivos: os guerreiros precipitaram; recolheu em seu pudor; [a esposa] reclinou ao peito dele (Iracema).

    Alm do uso pronominal, algumas formas usadas por Alencar in-cluem tambm:

    Uso do artigo com o superlativo absoluto: O seu trajo era do gsto o mais mimoso (Guarani).

    Uso da expresso durante que: Durante que esta breve cena se passava no meio da esplanada [...] (Guarani).

    Uso da expresso preferir do que: Prefiro estar onde estou do que por a (Guarani).

    Embora Alencar tenha sido considerado o inventor da lngua brasileira, Chaves de Melo (1972) avalia as construes usadas pelo es-critor nacionalista como de natureza estilstica ao invs de estrutural. Pautando-se na distino saussuriana de langue (sistema) e parole (fala individual), Chaves de Melo considera que Alencar e os demais escri-tores nacionalistas utilizavam a lngua (sistema) portuguesa com estilo (manifestao) brasileiro. Contudo, importante frisar que esse posi-cionamento em relao lngua do Brasil no unnime entre outros estudiosos da lngua falada e escrita no Brasil, que defendem uma bra-silidade do sistema lingustico e no apenas da sua dimenso estilstica.

    Joaquim Norberto de Souza Silva (1820-1891) foi outro defensor do nacionalismo e brasileirismo literrios. Publicou na revista Guanabara o texto A Lngua Brasileira (1855, p. 99-), em que se posicionava a favor de uma lngua brasileira, conforme mostram alguns excertos a seguir.

    Texto disponvel em < http://www.coresmarca-sefalas.pro.br/adm/ane-

    xos/14032008171125.pdf>

  • Captulo 02A lngua portuguesa no Brasil: a norma em formao

    33

    Ora o que se tem dado com a literatura o que ainda se no deu com

    a lngua, porque ainda ningum se lembrou que no ela perfeitamen-

    te [peq. trecho ilegvel] lngua portuguesa, e que estando no mesmo

    caso que a nossa literatura, erro cham-la ainda portuguesa.

    [...] ao menos c de mim para mim tenho, que quando disser lngua por-

    tuguesa, entendero por tal o idioma de que se usa na velha metrpole,

    e quando disser lngua brasileira, tomaro por tal a que falamos, que

    quase aquela mesma, mas com muitas mudanas.

    [...]

    uma espcie de pato, dizem os portugueses. No importa! Todas as

    suas denguices lhe caem bem e do lngua brasileira um no-sei-qu

    que seduz mais o ouvido que a pura lngua de Cames.

    Alm dos textos sobre os escritores representantes do romantismo literrio brasileiro, um outro texto emblemtico da defesa da brasilidade da lngua A lngua portuguesa no Brasil (1907), escrito por Jos Vers-simo. O autor no to radical como Souza e Silva na defesa de uma lngua brasileira, preferindo nomear a nossa lngua como lngua portu-guesa no Brasil ao invs de lngua brasileira. Trata-se de distintas formas de nomeao que revelam posicionamentos tericos e polticos diferen-ciados. Verssimo (apud PINTO, 1978, p. 253-254) defende a natureza heterognea e varivel da lngua, sensvel a mudanas scio-histricas e geogrficas, conforme se l em: Pura irracionalidade seria, portanto, pretender que o brasileiro, o norte-americano ou o hispano-americano falassem e escrevessem a lngua clssica do seu pas de origem. Contu-do, mantm-se fiel a um certo padro de cultura da lngua da metrpole:

    [...] h nela [na lngua portuguesa] uma virtude ou propriedade chama-

    da ndole, que tem ao menos a fixidez aparente das estrelas que preten-

    demos fixas [...] a sua ndole que preciso respeitar, para lhe assegurar

    a compostura e a regularidade, indispensveis a uma lngua que se pre-

    sume respeitar.

  • Norma Lingustica do Portugus do Brasil

    34

    Outros autores tambm se pronunciaram sobre a natureza mu-tvel da lngua portuguesa, embora sem o mesmo vigor nacionalista, como: Machado de Assis, no texto Instituto de Nacionalidade a Lngua (1873), Couto de Magalhes, em Nomenclatura dos deuses tupis (1876), Pereira da Silva, em A nacionalidade da lngua (1880), Araripe, em Estilo tropical, A frmula do naturalismo brasileiro (1888) e Slvio Romero, em Transformaes da lngua portuguesa na Amrica (1888), entre outros.

    2.3 Os puristas e os defensores da norma lusitana

    A ciso que se percebe hoje entre as variedades lingusticas popu-lares, a norma padro e a norma culta surge no sculo XIX com a for-mao de uma elite letrada brasileira. As prticas lingusticas letradas passam a formalizar as relaes burocrticas do Estado brasileiro, que se encontra nesse mesmo sculo em processo de formao e consolidao. Assim, avaliaes pejorativas e esteretipos sobre os usos lingusticos surgem a partir de relaes sociais e polticas complexas. Tais relaes se manifestam nas polmicas envolvendo, por um lado, os defensores do vernculo e, por outro, os promotores da norma lusitana como padro de correo da lngua portuguesa no Brasil. Os discursos puristas cir-culavam por diferentes suportes, sendo que jornais e revistas da poca veiculavam discursos panfletrios em defesa de um padro de correo

    Para refletir

    Apoiando-se em alguns textos publicados em defesa da brasilidade

    da lngua portuguesa, de que forma o posicionamento apresentado

    nesses escritos reflete uma atitude poltica em relao ao surgimen-

    to do Brasil enquanto Estado Nacional? Em que medida tais avalia-

    es ainda ressoam em discursos e representaes contemporneas

    sobre o portugus falado e escrito no Brasil? Exemplifique com algu-

    mas situaes atuais.

  • Captulo 02A lngua portuguesa no Brasil: a norma em formao

    35

    lingustica, conforme se percebe no excerto a seguir, publicado no Di-rio de Notcias do Rio de Janeiro, em 1885.

    Outro exemplo de defesa do purismo lingustico pode ser visto em algumas polmicas, conforme j mencionado, em torno da norma escri-ta no Brasil. Basicamente, duas posies antagnicas estavam em jogo: de um lado estavam os defensores do vernculo brasileiro, ou da lngua brasileira, conforme visto na seo anterior; de outro lado estavam os puristas, defensores de uma norma portuguesa como padro a ser usa-do em prticas escritas brasileiras. Alguns defensores da norma lusitana

    Dirio de Notcias, RJ, 15 de julho de 1885.

    Os gallicismos

    Um brado contra a invaso

    Occorre-nos chamar a atteno dos que se interessam por essas

    cousas, para o errado modo por que muitos empregam no prprio

    idioma certos nomes de cidades da Europa, nomes que tm corres-

    pondentes, alias, preferiveis, quando mais no fosse seno pela sua

    euphonia, na lngua portugueza.

    [...]

    Fra para desejar que os que tem voto na matria fixassem as regras

    por que nos devssemos guiar no intricado dedalo das difficuldades

    de todo genero, que oferece o estudo de nossa formosissima lngua;

    a ns, os menos versados em taes conhecimentos, competia obede-

    cer s decises e julgados dos legisladores competentes.

    Quando, porm, raiar este dia?

    F. De M.

    Texto disponvel para pesquisa em < http://memoria.bn.br/hdb/

    periodico.aspx>

  • Norma Lingustica do Portugus do Brasil

    36

    incluam o jurista Rui Barbosa (1849-1923) principal redator da cons-tituio de 1891 , o jurista e jornalista Joaquim Nabuco (1849-1910) e o jornalista e poeta Olavo Bilac (1865-1918), sendo que os trs ajudaram a fundar a ABL. Os excertos a seguir revelam o tom conservador e pu-rista de suas opinies:

    Depois ento que se inventou, apadrinhado com o nome insigne

    de Alencar e outros menores, o dialeto brasileiro, todas as mazelas

    e corrupes do idioma que nossos pais nos herdaram cabem na

    indulgncia plenria dessa forma de relaxao e do desprezo da gra-

    mtica e do gosto. Aquela famosa maneira de escrever, que delei-

    tava os nossos maiores, passou a ser, para a orelha destes seus tristes

    descendentes, o tipo da inelegncia e obscuridade (BARBOSA, 1904

    apud PINTO, 1978, p. 385)

    Aproveitando esta feliz ocasio, peo especialmente o vosso amor e o

    vosso cuidado para um dos fins da nossa Liga de Defesa Nacional: pro-

    mover o ensino da lngua ptria nas escolas estrangeiras e a criao de

    escolas primrias nossas, nos ncleos coloniais [...] O povo, depositrio,

    conservador e reformador da lngua nacional, o verdadeiro exrcito da

    sua defesa: mas a organizao das foras protetoras depende de ns:

    artfices da palavra, devemos ser os primeiros defensores, a guarnio

    das fronteiras da nossa literatura, que toda a nossa civilizao (BILAC,

    1916, apud PINTO, 1978, p. 370).

    O primeiro excerto um recorte do texto A correo verncula (1904), assinado por Rui Barbosa. Nota-se, claramente, um posiciona-mento crtico em relao defesa da brasilidade lingustica de autores nacionais, como Jos de Alencar. Rui Barbosa foi, tambm, um dos ju-ristas responsveis pela reviso do Cdigo Civil em 1902. Ocorre que a reviso do texto ficou a cargo do professor de Rui Barbosa, Ernesto Carneiro Ribeiro, que defendeu, em oposio ao conservadorismo do aluno, a normatizao de aspectos lingusticos considerados brasilei-ros. Tal defesa tomou a proporo de uma grande polmica, que foi publicada em A Redaco do Projecto do Codigo Civil e a Replica do Dr. Ruy Barbosa pelo Dr. Ernesto Carneiro Ribeiro - lente jubilado do go-

  • Captulo 02A lngua portuguesa no Brasil: a norma em formao

    37

    vernador da Bahia (1905). Dentre os elementos lingusticos tomados como alvo do debate estavam: vcios de linguagem, cacofonia, arcas-mos, estrangeirismos, galicismos, neologismos e aspectos morfossin-tticos (colocao pronominal, estruturao sinttica e regncia).

    O segundo excerto, intitulado A Lngua Portuguesa, foi escrito pelo poeta e jornalista Olavo Bilac, que foi tambm autor da famosa poesia de elogio da lusitanidade e latinidade da lngua portuguesa:

    ltima flor do Lcio, inculta e bela,

    s, a um tempo, esplendor e sepultura:

    Ouro nativo, que na ganga impura

    A bruta mina entre os cascalhos vela...

    Amo-te assim, desconhecida e obscura.

    Tuba de alto clangor, lira singela,

    Que tens o trom e o silvo da procela,

    E o arrolo da saudade e da ternura!

    Amo o teu vio agreste e o teu aroma

    De virgens selvas e de oceano largo!

    Amo-te, rude e doloroso idioma,

    em que da voz materna ouvi: meu filho!,

    E em que Cames chorou, no exlio amargo,

    O gnio sem ventura e o amor sem brilho!

    Paralelamente aos discursos em defesa de um padro de correo, no mbito dos usos lingusticos, Pagotto (1998) revela que ocorreu uma alterao do uso da norma no Brasil em um perodo de 60 anos. O au-tor analisou comparativamente a norma utilizada nas Constituies do imprio (1824) e da repblica (1891) e identificou que a Constituio da repblica tendia a se aproximar mais de um padro lusitano do que a Constituio do imprio, conforme ilustrado pelos fenmenos lingus-ticos no quadro a seguir.

  • Norma Lingustica do Portugus do Brasil

    38

    Esses fenmenos revelam uma tendncia de mudana da norma escrita em direo a uma lusitanizao, ao invs de um abrasileiramen-to. Tal fato, contudo, curioso, uma vez que a repblica sinalizou para uma maior independncia e autonomia poltica do Brasil em relao ao imprio. Segundo Pagotto (1998), a tendncia ao uso da norma lusitana estaria vinculada aos interesses eurocntricos e racistas da eli-te brasileira. Essa poltica criticava fortemente os usos ditos vulgos do portugus por uma populao que se constitua miscigenada ou de origem africana (FARACO, 2001). Contudo, considerando que o sistema lingustico mutvel e resistente s amarras conservadoras, a norma do portugus brasileiro passou, e ainda passa, por processos de variao e mudana lingustica que, cada vez mais, a distanciaram da norma lusitana, conforme ser visto com mais detalhes na Unidade B.

    Desse modo, depreende-se dos discursos puristas e vernaculares do sculo XIX a meno a trs variedades lingusticas: uma apoiada na norma lusitana, outra na norma culta brasileira e uma terceira norma, a vernacular, que era vista de forma preconceituosa pelas elites letradas. Seguem exemplos que ilustram as valoraes depreciativas sobre a va-riedade lingustica vernacular falada pelos descendentes de africanos ou pelos grupos mestios ou iletrados:

    Sem identidade de lngua, de usos e de religio entre si, s a cor e o

    infortnio vinha a unir estes infelizes, comunicando-se na lngua do co-

    lono, estrangeira a todos, e por isso sempre por eles cada vez mais es-

    tropiada, em detrimento at da educao da mocidade, que, havendo

    comeado por aprender com eles a falar erradamente tinha depois mais

    trabalho para se desavezar de muitas locues viciosas (VARNHAGEN,

    1854-1857 apud LIMA, 2008, p. 235).

    Constituio do imprio (1824) Constituio da repblica (1891)

    Uso de prclise (incluindo incio de sentena) Uso predominantemente de nclise

    Uso de aonde Uso de onde

    Presena de duas sentenas relativas cortadoras Sem ocorrncias

    Uso de todo o para quantificao universal Uso de todo para quantificao universal

  • Captulo 02A lngua portuguesa no Brasil: a norma em formao

    39

    Por negao, incapacidade ou enfim por amor de sua lngua ou dialeto

    selvagem, mas ptrio, o rancoroso escravo, apesar de trazido ao Brasil h

    cerca de vinte anos, exprimia-se mal e deformemente em portugus, in-

    troduzindo muitas vezes na sua agreste conversao juras e frases africa-

    nas. O leitor deve ser poupado interpretao dessa algaravia brbara.

    (MACEDO, 1869 apud LIMA, 2005, p. 05).

    O primeiro excerto foi escrito pelo historiador Francisco Adolfo Varnhagen, ou Visconde de Porto Seguro, que redigiu o livro Histria Geral do Brasil, publicado em dois volumes (1854 e 1857). A obra re-tratava o Brasil a partir de um olhar lusitano, valorizando os efeitos da presena portuguesa no pas, incluindo a lngua portuguesa. Esse enfoque ufanista explica a valorao depreciativa da variedade ver-nacular. O segundo excerto da obra As vtimas algozes (1869), de Joaquim Manoel de Macedo, que tematizava a escravizao no Brasil, colocando-se em defesa da sua abolio.

    Resumindo, o sculo XIX nos revela o nascimento de atitudes e concepes lingusticas ainda em voga atualmente: observam-se dis-cursos extremamente conservadores e corretores, que prescrevem pa-dres rgidos e distantes da realidade de uso da lngua. Essa atitude produz, como consequncia, discursos intolerantes e preconceituosos em relao s variedades ditas populares. H, ainda, discursos que de-fendem o uso da norma a partir de estudos empricos que revelam as tendncias da lngua em gneros discursivos considerados cultos. Essas vises distintas, que se perpetuam at hoje, sero retomadas e discutidas nas Unidades B e C.

    2.4 As instncias divulgadoras da norma: primeiros jornais, revistas literrias e livros didticos

    A Imprensa Rgia foi fundada no Rio de Janeiro em 1808 e o pri-meiro jornal publicado no pas foi a Gazeta do Rio de Janeiro. Entre a sua fundao e a Independncia do Brasil foram publicados nessa imprensa cerca de 1.173 ttulos (LAJOLO; ZILBERMAN, 1996).

  • Norma Lingustica do Portugus do Brasil

    40

    O primeiro peridico brasileiro foi As variedades ou ensaios de Li-teratura, publicado na Bahia em 1812. O jornal literrio Patriota foi pu-blicado no ano seguinte no Rio de Janeiro. Outras publicaes literrias da poca incluram: O Espelho (1821), O Mosquito Brasileiro (1823), Jor-nal Scientifico, Economico e Litterario (1826), O Amigo das Letras (1830), O Diabo Coxo (1836), Niteri Revista Brasiliense de Cincias, Letras e Artes (1836), O Cronista (1836), Revista Nacional e Estrangeira (1839); O Ramalhete de Damas (1842), Minerva Brasiliense (1843), Marmota na Corte (1849), A Guanabara (1849), Revista Brasileira (1857), Cruzeiro do Brasil (1864), O Mosquito (1869), A Comdia Social (1870), O Mequetrefe (1875), O Fgaro (1876), O Besouro (1878), O Binculo (1881), A Vespa (1885) e A Cigarra (1895). Tais publicaes tinham um cunho pedaggi-co e visavam tanto divulgar conhecimentos cientficos e literrios, como constituir um acervo de discursos sobre a nacionalidade brasileira, inter-vindo na cena pblica, especialmente aps 1822. Algumas dessas revistas fundaram e consolidaram o romantismo literrio brasileiro, como Niteri, impressa na Frana, e Cronista, impressa no Brasil. Dentre as revistas mais conceituadas estava Guanabara, publicao carioca que circulou at 1856 e teve como um de seus apoiadores D. Pedro II. (SANTANNA, 2010; AN-TELLO, 2009).

    Dentre os primeiros jornais informativos brasileiros que surgiram esto: Gazeta do Rio de Janeiro (1808), Farol Paulistano (1827) e O Di-rio do Rio de Janeiro (1821). Grande parte deles, contudo, foi criada apenas aps 1880, num momento de formao de uma opinio pblica forte, tais como: A Repblica, Gazeta de Notcias, Jornal do Brasil, Cor-reio do Povo, O Correio Mercantil, O Estado de So Paulo, entre outros. A importncia lingustica das revistas e jornais reside no fato de que tais suportes veiculavam textos escritos na norma culta do portugus do Brasil. Contudo, h que se considerar que a tecnologia utilizada era muitas vezes falha, fato que levava alguns jornais a publicarem erratas justificando os ditos erros de portugus, conforme se verifica nesse tre-cho do jornal Novo Mundo, (1872):

    Saiba o leitor que uma pagina destas, neste typo no entrelinhado se

    compe de 19,000 pedacinhos de metal, que o compositor tem de ma-

    Disponvel em.

  • Captulo 02A lngua portuguesa no Brasil: a norma em formao

    41

    near um por um, e que portanto, no entendendo elle a nossa lngua,

    o que de admirar que no haja em cada pagina 190 erros. Em todo

    caso, as melhores impresses do Brazil, ainda as melhores, so inadas

    de erros typographicos.

    No mbito da escolarizao infantil, os primeiros livros utilizados, de forma esparsa e irregular, para fins didticos foram: O Tesouro dos Meni-nos (1808-1821) traduzido do francs, Leitura para meninos (1818) obra com lies morais publicada pela Imprensa Rgia, Alfabeto para instruo da mocidade, Coleo de cartas para meninos, Compndio de retrica, Ele-mentos de sintaxe, Gramtica latina, Gramtica portuguesa, Instruo lite-rria, entre outros. A datao dessas obras incerta, embora tenham sido divulgadas em 1811, em Notcia do Catlogo de Livros, obra destinada ao ensino de retrica e gramtica. No final do sculo XIX as obras didticas se tornaram mais comuns e regulares; entre elas esto: Livro de Leitura (1892), Gramtica e Exerccio de Estilo e Redao (1894) e Exerccios de Lngua Portuguesa (1896), por Felisberto de Carvalho, Aprendei a lngua verncula, por Jlio Silva (1893), Livro de leitura (1909/1911), por Arnal-do Barreto, entre outros. (ZILBERMAN, 1996).

    Apesar de todo esse empenho editorial e jornalstico, o censo geral re-alizado em 1872 apontava que 84% da populao era analfabeta; dentre o pblico feminino, cerca de 11% sabiam ler. Considerando as crianas em idade escolar, apenas 17% frequentavam a escola (LAJOLO; ZILBERMAN, 1996). Esses dados revelam o processo tardio de acesso aos gneros letrados no Brasil e, por conseguinte, norma culta da modalidade escrita.

    2.5 A legislao educacional e o surgimento da disciplina de Lngua Portuguesa

    Uma das obras fundantes que trata do ensino de Lngua Portuguesa O verdadeiro mtodo de estudar (1747), de Luiz Antonio Verney (1713-1792). O texto, escrito na forma de cartas, foi usado como incentivo para o ensino da leitura, escrita e gramtica da lngua portuguesa, em detri-mento do latim, nas escolas portuguesas. De forma geral, a obra critica

    Disponvel em < https://archive.org/details/verdadeiromto-dod01vern>.

  • Norma Lingustica do Portugus do Brasil

    42

    o mtodo jesutico de ensino, propondo uma pedagogia iluminista e de inspirao nacionalista. Tal obra motivou a reforma educacional instau-rada por Marqus de Pombal, com a Lei do Diretrio, conforme j visto no Captulo 1. Foi, ento, a partir do Alvar Rgio de 1759 que Pombal decretou o fim das escolas jesuticas e a criao das aulas rgias, aut-nomas e fragmentadas de Grego, Latim, Filosofia, Gramtica, Retrica e Potica. Foi nesse contexto que as preocupaes com o ensino da Lngua Portuguesa (escrita, leitura e gramtica) comearam a aparecer no Brasil.

    O ensino de Portugus, como lngua e gramtica nacionais, passa a se formalizar em 1838, a partir da criao do colgio D. Pedro II no Rio de Janeiro. Nesse momento, o ensino da lngua portuguesa enquanto dis-ciplina autnoma se tornou independente do ensino de latim. Em 1854 se deu a criao, no mesmo colgio, das disciplinas de Leitura e Recitao de Portugus e Exerccios Ortogrficos. A partir de 1862, novas reformas fei-tas no colgio agruparam as disciplinas voltadas para o ensino do idioma vernacular sob o nome de Portugus. Em 1871 ocorreu a criao do of-cio de professor de Portugus. (BUNZEN, 2011). J em Portugal, o Decre-to de 20 de setembro de 1844 previa uma reforma educacional, dividindo o ensino em primeiro e segundo graus e instaurando as seguintes discipli-nas como formao obrigatria: Caligrafia, Princpios de gramtica geral, Exerccios de leitura, Recitao, Anlise da lngua portuguesa e Redao.

    A educao no Brasil imperial ganhou cada vez mais importncia, o que culminou na promulgao do Decreto de 19 de abril de 1879, de Carlos Lencio de Carvalho, ltima reforma educacional do Imprio que props uma reformulao do ensino no Brasil. Tal reformulao defendia, levando em conta as baixas taxas de alfabetizao, a obrigato-riedade do ensino e a expanso da educao para todos os nveis, sendo que a sua gratuidade j havia sido estipulada na Constituio de 1824. Dentre as disciplinas propostas pelo Decreto estavam Leitura, Escrita e Noes essenciais de gramtica (MELO; MACHADO, 2009).

    O ensino secundrio no Brasil foi regulamentado pelo Decreto 19.890 de 1931. Segundo o documento, o ensino secundrio seria ofe-recido no Colgio D. Pedro II e compreenderia dois cursos seriados,

    Disponvel em < http://www2.camara.

    leg.br/legin/fed/de-cret/1930-1939/decreto-

    19890-18-abril-1931-504631-norma-pe.html>.

  • Captulo 02A lngua portuguesa no Brasil: a norma em formao

    43

    um fundamental e outro complementar. Dentre as disciplinas previs-tas pelo Decreto estavam: Portugus, Francs, Ingls, Alemo e Latim (curso fundamental); e Literatura, Latim, Ingls, Alemo e Ingls (curso secundrio). As disciplinas de lngua estrangeira seriam distribudas se-gundo a formao profissional almejada. O documento salientava, ain-da, que os professores do Colgio D. Pedro II deveriam ser formados pela Faculdade de Educao, Cincias e Letras. Notamos, com isso, uma preocupao formal com a regulamentao e controle pelo Ministrio de Educao e Sade Pblica da formao dos professores de Lngua Portuguesa. Alm disso, o documento decretou a categoria de inspetor de disciplina, sendo que a inspeo da seo A incluiria: Letras Ln-guas (portugus, francs, ingls, alemo e latim) e Literatura. O Decreto de 1931 tambm delimitou os programas das novas disciplinas criadas, entre elas o Portugus, que tinha como objetivo:

    proporcionar ao estudante a aquisio efetiva da lngua portuguesa,

    habilitando-o a exprimir-se corretamente, comunicando-lhe o gosto da

    leitura dos bons escritores e ministrando-lhes o cabedal indispensvel

    formao do seu esprito bem como sua educao literria (BRASIL,

    1931 apud ZILBERMAN, 1996, p. 21).

    Sobre o surgimento das primeiras universidades brasileiras, em-bora as Universidades do Paran e do Rio de Janeiro tenham sido cria-das em 1912 e 1920, respectivamente, a regulamentao do ensino uni-versitrio no Brasil foi feita apenas na dcada de 1930, pelo Decreto n.19.851, de 11 de abril de 1931. Foi por esse decreto que surgiu a pri-meira universidade do Brasil, a Universidade de So Paulo, segundo as regras estipuladas pelo documento que propunham, entre outras coisas:

    I - congregar em unidade universitaria pelo menos trs dos seguintes

    institutos do ensino superior: Faculdade de Direito, Faculdade de Medi-

    cina, Escola de Engenharia e Faculdade de Educao Sciencias e Letras.

    A Faculdade de Educao, Cincias e Letras foi, ento, criada na USP e tomada como base do sistema educacional no Brasil. Em 1935 foi criada a Universidade do Distrito Federal posteriormente incorpora-

    Documento dispon-vel em < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decre-to-19851-11-abril-1931--505837-publicacaoorigi-nal-1-pe.html>.

  • Norma Lingustica do Portugus do Brasil

    44

    da Universidade do Rio de Janeiro , por Ansio Teixeira, incluindo a instaurao da Faculdade de Educao. Antes, contudo, da instaurao da Faculdade de Educao, Cincias e Letras, os professores de Letras obtinham sua formao superior em Letras pelo Colgio D. Pedro II. Foi apenas em 1961, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, que houve a descentralizao do Ensino Superior e maior autonomia para a criao dos currculos e programas das disciplinas (FIALHO; FI-DELIS, 2008; BUNZEN, 2011).

    Para refletir

    A partir do que foi exposto no Captulo 2, reflita a respeito das se-

    guintes questes:

    De que forma alguns discursos normativistas do sculo XIX ainda

    ressoam contemporaneamente?

    Que aspectos lingusticos os discursos conservadores atuais elegem

    como alvo de discusso sobre o certo e o errado da lngua?

    Em que medida o preconceito lingustico atual revela tambm posi-

    cionamento social e poltico?

  • Fechando a unidade

    Esta unidade teve como objetivo apresentar uma viso panormi-ca da realidade histrica, social e poltica brasileira que influenciou a formao e consolidao da norma da lngua portuguesa no Brasil. O perodo colonial apresentava uma realidade lingustica diversificada e plural, resultante da presena de diferentes grupos tnicos e sociais no Brasil. Ainda nesse perodo, a Lei do Diretrio foi a primeira iniciativa oficial de formalizao e imposio da lngua portuguesa no pas, com fins de assegurar a lusitanidade das terras brasileiras. Alm disso, a alte-rao do sistema educacional do modelo jesutico para um modelo laico demonstrou o papel desempenhado pelas ideias iluministas e raciona-listas na gesto estatal da educao.

    J o sculo XIX, marcado pela Independncia e pela Repblica, re-trata um investimento ostensivo na criao de uma norma da lngua portuguesa falada e escrita no Brasil, fruto de uma ideologia naciona-lista, por um lado, ou elitizada e letrada, por outro. Tal investimento incluiu trs abordagens que se ocuparam:

    1) Das formas de nomeao da lngua, como: lngua brasileira, lngua do Brasil, portugus brasileiro, lngua portuguesa do/no Brasil, lngua nacional, dialeto brasileiro, dialeto luso-brasilei-ro, portugus falado no Brasil, portugus da Amrica etc.

    2) Dos discursos em torno da lngua, como os de defesa ou de re-jeio da brasilidade, ou de defesa ou rejeio da lusitanidade.

    3) Das categorizaes de traos lingusticos considerados brasi-leiros, como: prclise, colocao pronominal, regncia, lxico, ortografia, pronncia, entre outros.

    Alm disso, a brasilidade do portugus ora recaa sobre argumentos estilsticos, em que se tinha a mesma gramtica portuguesa com manifes-taes diferentes, ora sobre argumentos estruturais, tratando-se de siste-mas lingusticos diferenciados (a lngua portuguesa e a lngua brasileira).

  • Assim, a unidade nos revelou a natureza diversificada da lngua portuguesa, que inclui desde o portugus afro-brasileiro oral at a nor-ma culta escrita. Essa complexidade lingustica evidencia uma realidade social igualmente complexa e hierarquizada. Na unidade seguinte ser discutida a concepo de norma que emerge a partir do sculo XIX no Brasil, com a apresentao analtica de fenmenos do portugus brasi-leiro sensveis avaliao social.

  • Unidade BGramatizao e normatizao

    Mulher com pssaros, Di Cavalcanti.

  • Introduo

    Vimos na Unidade A algumas reflexes sobre a constituio pol-tico-cultural da norma. Trouxemos questes concernentes aos instru-mentos lingusticos coloniais (gramticas e dicionrios), fixao e manuteno dessa norma. Por outro lado, j apontamos a emergncia dos estudos sobre a diversidade do portugus brasileiro. Esse quadro o ponto de partida para as discusses que seguem.

    Nesta unidade, vamos tratar, especialmente, de tpicos que dizem respeito a questes sobre diferentes normas lingusticas, a problemas que esto presentes na cultura nacional derivados de certo conflito exis-tente entre a padronizao da lngua e as normas em uso e, por ltimo, a diferentes normas do portugus brasileiro em diversos nveis lingus-ticos. Todas essas questes perpassam alguns conceitos como certo e errado, adequado e inadequado com relao lngua portuguesa e, mais especificamente, ao que se concebe como norma padro e/ou norma culta da lngua.

    Esses tpicos esto relacionados aos seguintes objetivos:

    1) Reconhecer os diferentes conceitos de norma.

    2) Identificar normas do portugus brasileiro a partir de estudos nos diferentes nveis lingusticos.

    3) Identificar problemas que esto presentes na cultura nacional derivados de certo conflito existente entre a padronizao da lngua e as normas em uso.

  • Captulo 03Destrinchando algumas noes sobre norma

    51

    3 Destrinchando algumas noes sobre norma

    Como vimos na Unidade A, a presena da escola e de um desenvol-vimento cultural letrado da elite brasileira fez entrar em cena no sculo XIX uma norma lingustica atrelada a um certo policiamento grama-tical. Diferentemente do que se definiu como traos caractersticos do portugus brasileiro, essa norma estava vinculada prescrio de regras (obrigatrias) a serem seguidas.

    Conforme j estudamos na disciplina Sociolingustica, sabe-se que nenhuma lngua uma realidade unitria e homognea, mas uma re-alidade intrinsecamente heterognea. O conceito de norma surge exa-tamente da necessidade de captar a heterogeneidade constitutiva das lnguas. Designa o conjunto de fatos lingusticos que caracterizam o modo como normalmente falam as pessoas de uma certa comunidade (FARACO, 2008, p. 40). Entende-se, portanto, por norma lingustica o conjunto de usos e atitudes (valores socioculturais articulados s formas lingusticas) comuns a determinados grupos sociais, que funciona como um elemento de identificao de cada grupo. Caracteriza-se, em geral, por determinado conjunto de fenmenos lingusticos que so correntes, costumeiros, habituais numa comunidade de fala.

    Nesse sentido possvel dizer, segundo Faraco, que uma lngua formada por vrias normas: as normas de comunidades rurais, as de comunidades urbanas, as de grupos mais velhos, as que caracterizam a fala dos letrados, as dos analfabetos, aquelas que so usadas pelos jovens das periferias, as que so usadas pelos surfistas, pelos advogados etc. Como pertencemos a mais de uma dessas comunidades, podemos di-zer, ento, que dominamos mais de uma norma. importante lembrar que as normas so hibridizadas, isto , no podemos estabelecer uma separao precisa entre elas. Alm disso, o contato entre elas favorece o desencadeamento de mudanas lingusticas.

    Esse complexo conceito de norma, de alguma maneira, foi se mo-dificando ao longo dos tempos. Tomemos primeiramente algumas con-

  • Norma Lingustica do Portugus do Brasil

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    cepes introduzidas na dcada de 1950 por Eugenio Coseriu na obra Sistema, norma y habla, sobre o conceito de norma; em seguida, traze-mos reflexes de Aryon Rodrigues e de Ataliba Teixeira de Castilho, levantadas nas dcadas de 1960 e 1970 e reimpressas no livro Lingustica da Norma, organizado por Marcos Bagno, em 2002; e, por ltimo, apre-sentamos alguns conceitos de norma de Carlos Alberto Faraco, na obra Norma culta brasileira: desatando alguns ns (2008), escrita a partir de reflexes que o autor vinha fazendo h pelo menos uma dcada.

    3.1 O conceito de norma de Eugenio Coseriu (1952)

    Talvez seja legado de Coseriu a primeira e grande reflexo sobre o tema norma lingustica no mbito do estruturalismo. O autor, ao apresentar seu conceito de norma, pe em xeque a distino saussu-riana entre langue e parole, propondo que na lngua possvel distin-guirmos trs instncias: sistema, norma e fala. Essa concepo nasce de algumas insuficincias encontradas pelo autor nas definies de Saussure relacionadas a dois principais pontos: (i) a identificao entre langue e entidade geral, ideal, abstrata, extraindividual; (ii) a identifi-cao entre parole e entidade momentnea, ocasional, material, con-creta e individual.

    Coseriu (1952, p. 34) argumenta que deve existir na definio de langue de Saussure uma oposio entre dois conceitos de lngua: lngua como instituio social (que contm tambm elementos funcionais = norma) e lngua como sistema abstrato de oposies (= sistema). Alm disso, segundo o autor, ao retomar a analogia saussuriana entre o jogo da lngua e o jogo do xadrez, mais especificamente entre o cdigo do jogo de xadrez e sua realizao, podemos observar certos movimentos e aspectos constantes que no modificam as regras (ou o sistema), mas que caracterizam a maneira de julgar de um indivduo ou de um grupo de indivduos. Constituem nesse sentido caractersticas normais da im-plementao de um cdigo.

    Para Saussure, o objeto de es-tudo da Lingustica a langue tomada em si mesma, vista como um sistema de signos que estabelecem relaes entre si formando uma estrutura aut-noma, desvinculada de fatores externos (sociais e estilsticos) e histricos. Por sua vez, a pa-role (fala individual); a pro-duo concreta e heterognea da langue, o uso. Para o autor, enquanto a langue essencial, a parole acessria e acidental.

  • Captulo 03Destrinchando algumas noes sobre norma

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    Nessa analogia, podemos, segundo Coseriu, distinguir trs carac-tersticas da lngua:

    1) as caractersticas indispensveis funcionais (abstrao);

    2) as caractersticas normais, comuns ou mais ou menos constantes, independentemente da funo especfica dos objetos (abstrao);

    3) as caractersticas concretas, variadas e variveis dos objetos ob-servveis.

    Nesse sentido, parece que o conceito de lngua como sistema abstrato de oposies funcionais, o sistema propriamente dito, implica o desenvol-vimento de um conceito de norma, uma espcie de abstrao intermediria entre a fala e o sistema. Ao propor o conceito de norma, Coseriu vem dar consistncia ao fato de a lngua ser considerada um fato social. A norma tambm seria considerada uma abstrao, como o sistema, mas conteria elementos sociais que advm do falar concreto, que so regulados por ela. O autor afirma que, na proposta de Saussure, talvez fosse possvel encontrar as premissas para a estruturao desse conceito tripartite (sistema, norma e fala). Vejamos como essa concepo exposta por Coseriu (1952, p. 54-62):

    Sistema modelo abstrato, constitudo de oposies funcio-nais. Captado atravs de caractersticas indispensveis (cons-tantes) lngua.

    Norma modelo abstrato que se observa nas caractersticas nor-mais, comuns e mais ou menos constantes lngua. Constitui-se como uma realizao coletiva do sistema, uma tradio, ou ainda uma repetio de modelos anteriores, como se fossem modelos im-postos numa dada comunidade. Nesse sentido, conserva somente os aspectos comuns que se comprovam nos atos lingusticos mode-lares e no a variante individual, ocasional ou momentnea da fala.

    Fala manifestaes concretas de um ato de fala individual. Nessas manifestaes observam-se fatos lingusticos variveis,

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    concretamente registrados no momento de sua enunciao, isto , trata-se de realizaes concretas da lngua.

    Coseriu reitera o fato de a norma ser um sistema de realizaes obrigatrias, de imposies sociais e culturais, que variam segundo a comunidade. Nesse sentido, j antecipa uma discusso importante da sociolingustica ao falar que na verdade, a norma varivel, dependen-do da natureza e limites da comunidade proposta (COSERIU, 1952, p. 58). Para o autor, dentro de uma mesma comunidade lingustica e den-tro de um mesmo sistema funcional podem-se encontrar vrias normas. As normas da linguagem familiar, da linguagem popular, da linguagem literria, da linguagem de prestgio etc. Essas normas so distintas no s do ponto de vista do vocabulrio, mas tambm do ponto de vista da gramtica e da pronncia. Note-se que ele j aborda algumas das ques-tes importantes apontadas por Faraco (2002, 2008).

    Muitos conceitos de sistema e norma usados atualmente foram tra-zidos mesmo que de maneira ainda bem geral e indireta por Cose-riu. Vejamos algumas noes sobre sincronia e diacronia e sobre produ-tividade que so importantes par