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Page 3: Livro Texto Base de Linguistica 1

UAB – UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASILFUESPI – FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PIAUÍ

NEAD - NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIALICENCIATURA PLENA EM LETRAS PORTUGUÊS

FUESPI2011

INTRODUÇÃO À LINGUÍSTICA

Iveuta de Abreu LopesNize da Rocha Santos Paraguassu Martins

Raimundo Isídio de Sousa

Page 4: Livro Texto Base de Linguistica 1

Lopes, Iveuta de Abreu. Introdução à Linguística / Iveuta de Abreu Lopes, Nize daRocha Santos Paraguassu Martins, Raimundo Isídio de Sousa.– Teresina: UAB/FUESPI/NEAD, 2011.

129 p. (Licenciatura Plena em Letras Português modalidadea distância)

ISBN: 978-85-61946-26-5

1. Linguística – concepções e estudo da linguagem. 2.Linguística – escolas linguísticas no século XX. I. Iveuta deAbreu Lopes. II. Nize da Rocha Santos Paraguassu Martins.III. Raimundo Isídio de Sousa. IV. Título.

CDD: 410

L8641i

Page 5: Livro Texto Base de Linguistica 1

Presidente da RepúblicaDilma Vana Rousseff

Vice-presidente da RepúblicaMichel Miguel Elias Temer Lulia

Ministro da EducaçãoFernando Haddad

Secretário de Educação a DistânciaCarlos Eduardo Bielschowsky

Diretor de Educação a Distância CAPES/MECCelso José da Costa

Governador do PiauíWilson Nunes Martins

Secretário Estadual de Educação e Cultura do PiauíÁtila de Freitas Lira

Reitor da FUESPI – Fundação Universidade Estadual do PiauíCarlos Alberto Pereira da Silva

Vice-reitor da FUESPINouga Cardoso Batista

Pró-reitor de Ensino de Graduação – PREGMarcelo de Sousa Neto

Coordenadora da UAB-FUESPIMárcia Percília Moura Parente

Coordenador Adjunto da UAB-FUESPIRaimundo Isídio de Sousa

Pró-reitor de Pesquisa e Pós-graduação – PROPIsânio Vasconcelos de Mesquita

Pró-reitora de Extensão, Assuntos Estudantis e Comunitários – PREXFrancisca Lúcia de Lima

Pró-reitor de Administração e Recursos Humanos – PRADAcelino Vieira de Oliveira

Pró-reitor de Planejamento e Finanças – PROPLANRaimundo da Paz Sobrinho

Coordenadora do curso de Licenciatura Plena em Letras Espanhol – EADMargareth Torres de Alencar Costa

Page 6: Livro Texto Base de Linguistica 1

EdiçãoUAB - FNDE - CAPESFUESPI/NEAD

Diretora do NEADMárcia Percília Moura Parente

Diretor AdjuntoRaimundo Isídio de Sousa

Coordenadora do Curso de LicenciaturaPlena em Letras – PortuguêsAlima do Nascimento Silva

Coordenador de T utoriaOmar Mario Albornoz

Coordenadora de Produção de MaterialDidáticoCândida Helena de Alencar Andrade

Autores do LivroElias Maurício da Silva RodriguesSilvana da Silva Ribeiro

RevisãoTeresinha de Jesus Ferreira

DiagramaçãoLuiz Paulo de Araújo Freitas

CapaLuiz Paulo de Araújo FreitasFonte da imagem:

MATERIAL PARA FINS EDUCACIONAISDISTRIBUIÇÃO GRATUITA AOS CURSISTAS UAB/FUESPI

UAB/FUESPI/NEAD

Campus Poeta Torquato Neto (Pirajá),NEAD, Rua João Cabral, 2231, bairroPirajá, Teresina (PI). CEP: 64002-150,Telefones: (86) 3213-5471 / 3213-1182

Web: ead.uespi.brE-mail:[email protected]

Page 7: Livro Texto Base de Linguistica 1

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................ 11

UNIDADE 1

1 A LINGUAGEM: NA TUREZA, CARACTERÍSTICAS E FUNÇÕES ..... 15

1. 1 O QUE É LINGUAGEM? ................................................................... 15

1. 2 A COMUNICAÇÃO ............................................................................ 17

1. 3 FUNÇÕES DA LINGUAGEM ............................................................ 19

RESUMINDO ........................................................................................... 25

LEITURA COMPLEMENTAR ................................................................... 27

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM ........................................................ 30

UNIDADE 2

2 ESTUDOS DA LINGUAGEM: ESTÁGIOS DE DESENVOL VIMENTO E

PERSPECTIVAS .................................................................................... 35

2. 1 DA ANTIGUIDADE AO SÉCULO XIX ................................................ 36

2.2 A LINGUÍSTICA COMPARADA .......................................................... 42

2.3 AS CONTRIBUIÇÕES DE HUMBOLT E WHITNEY ............................ 47

RESUMINDO ........................................................................................... 49

LEITURA COMPLEMENTAR ................................................................... 52

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM ........................................................ 66

UNIDADE 3

3 A LINGUÍSTICA: CIÊNCIA DA LINGUAGEM ..................................... 71

3.1 REFLEXÕES SOBRE CIÊNCIA ........................................................ 71

3.2 A LINGUÍSTICA E SEU OBJETO DE ESTUDO .................................. 75

3.3 LINGUÍSTICA E GRAMÁTICA ............................................................ 79

RESUMINDO ........................................................................................... 82

LEITURA COMPLEMENTAR ................................................................... 84

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM ........................................................ 99

Page 8: Livro Texto Base de Linguistica 1

UNIDADE 4

4 AS ESCOLAS LINGUÍSTICAS NO SÉCULO XX: UMA VISÃO

INTRODUTÓRIA ................................................................................... 103

4.1OS ESTRUTURALISMOS LINGUÍSTICOS ........................................ 103

4.2 A LINGUÍSTICA FORMAL ................................................................. 110

4.3 AS ESCOLAS FUNCIONALISTAS................................................... 113

RESUMINDO ......................................................................................... 118

LEITURA COMPLEMENTAR ................................................................. 119

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM ...................................................... 124

REFERÊNCIAS .................................................................................... 125

Page 9: Livro Texto Base de Linguistica 1

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FUESPI/NEAD Letras Português

INTRODUÇÃO

No contexto dos estudos linguísticos, contamos hoje, no Brasil, com

uma produção bastante vasta e diversificada, tanto no que diz respeito à

dimensão teórica quanto aos resultados de pesquisas realizadas na área.

Por que, então, estaríamos trazendo mais um texto sobre Linguística, mais

especificamente, sobre introdução à Linguística?

A justificativa para tanto é muito clara e plausível. Trata-se de atender

a um modelo de Programa de Educação muito específico - a modalidade a

distância - e a uma clientela de estudantes que, por isso, necessita de uma

atenção também particular.

Para atender a esse aspecto, elaboramos este livro com o objetivo

de, numa linguagem científica, mas bastante acessível e didática, trazer aos

estudantes de Letras-Português, na modalidade a distância, uma introdução

aos estudos linguísticos. O nosso propósito, na elaboração deste material, é

fazer com que os estudantes aos quais se destina tenham um primeiro contato

com esse campo de estudo e, assim, preparem-se para leituras futuras, mais

ousadas e aprofundadas.

Tentamos fazer um breve percurso dos estudos da linguagem, desde

os seus primeiros momentos, que remontam à Antiguidade Clássica, época

em que as abordagens filosóficas eram preponderantes até os nossos dias,

quando vislumbramos um terreno fértil em pesquisas, reflexões e conjunção

de esforços acerca dos estudos sobre a linguagem humana, vista como uma

ação, como interação, atualizada em práticas sociais.

O livro encontra-se organizado em quatro Unidades, cada uma delas

se inicia com os objetivos que desejamos alcançar; após, seguem-se os

conteúdos e se encerra com algumas atividades que, certamente, auxiliarão

na consolidação da aprendizagem.

Na primeira Unidade, discutimos especificamente sobre linguagem,

apontamos sua definição, suas características e suas funções na comunicação

humana.

Page 10: Livro Texto Base de Linguistica 1

Na segunda Unidade, apresentamos um panorama dos estágios de

desenvolvimento dos estudos da linguagem: da Antiguidade, com suas

abordagens de cunho filosófico, às perspectivas que favoreceram e prepararam

o terreno para que a Linguística se constituísse como uma ciência autônoma.

Na terceira Unidade, dividida em três seções, tratamos do estatuto

da Linguística, enquanto ciência da linguagem. Inicialmente, discutimos como

as próprias noções de ciência e de método científico evoluíram, especialmente,

a partir do início do século XX; em seguida, mostramos a constituição do

objeto de estudo da Linguística – a língua –, considerando-o em todas as

suas manifestações; além disso, apresentamos a caracterização da Linguística

confrontada aos estudos normativos da língua, constituídos na gramática

normativa.

Finalmente, na quarta Unidade, apresentamos a consolidação da

Linguística como um vasto campo de investigação e conhecimento científico,

iniciado com Ferdinand de Saussure, no início do século XX. Enfocamos as

três escolas que orientam os estudos linguísticos: começando pelo

estruturalismo, passando pelas escolas formais, como a proposta por Noam

Chomsky, e finalizando com as escolas funcionalistas, que estão centradas

exclusivamente no uso.

Desejamos que este livro seja, para cada um daqueles que dele se

utilizar, uma fonte de valiosos conhecimentos e que, também, seja uma ponte

e uma abertura para tantos outras leituras.

Iveuta de Abreu Lopes

Nize da Rocha Santos Paraguassu Martins

Raimundo Isídio de Sousa

Page 11: Livro Texto Base de Linguistica 1

UNIDADE 1

OBJETIVOS

1. Caracterizar a linguagem.

2. Definir comunicação e apontar seus elementos.

3. Identificar as funções da linguagem.

A LINGUAGEM: NA TUREZA, CARACTERÍSTICASE FUNÇÕES

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FUESPI/NEAD Letras Português

1 A LINGUAGEM: NA TUREZA, CARACTERÍSTICAS E FUNÇÕES

“Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”

Ludwig Wittgenstein

1.1 O QUE É LINGUAGEM?

O termo linguagem é empregado em vários sentidos. Entretanto, o

mais conhecido é o de que a linguagem é todo e qualquer meio utilizado para

estabelecer comunicação. A linguagem pode ser classificada em dois tipos:

linguagem verbal e linguagem não verbal . A linguagem verbal é o meio

de comunicação, próprio da espécie humana, que utiliza línguas naturais para

transmitir uma mensagem. A linguagem não-verbal é o meio de comunicação

que utiliza outros meios que não línguas naturais para transmitir uma mensagem,

como por exemplo, imagens, movimentos, odores etc.

Como este livro é uma introdução à Linguística, ciência que estuda a

linguagem verbal humana, iremos, de agora em diante, nos restringir ao estudo

desse tipo de linguagem.

Com o desenvolvimento dos estudos lingüísticos, foram surgindo várias

definições de linguagem verbal, próximas em alguns pontos e diversas no

que diz respeito à ênfase dada aos vários recortes feitos por diferentes autores.

Em uma tentativa de apresentar uma visão geral e imparcial em relação a

essas definições, ater-nos-emos, por hora, apenas à caracterização da

linguagem verbal como uma capacidade eminentemente humana.

André Martinet (1978) defende que a linguagem é duplamente

articulada, Isso significa que suas unidades podem ser segmentadas. Para o

autor, a linguagem articula-se em dois planos: o dos morfemas e o dos fonemas.

O plano dos morfemas representa a primeira articulação, é dotado de sentido

e de matéria fônica. O verbo “amava” pode ser segmentado nos seguintes

morfemas: {am-} radical; {-a} morfema que indica que o verbo é de 1ª

Page 14: Livro Texto Base de Linguistica 1

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Introdução à Linguística

conjugação e {-va} desinência modo temporal. O plano dos fonemas representa

a segunda articulação, é dotado apenas de matéria fônica. O radical do verbo

“amava”, {am-}, pode articular-se nos fonemas /a/ e /m/.

A esse respeito, Câmara Júnior (1981, p. 16) afirma:

Petter (2005, p.16), comparando o sistema de comunicação das

abelhas com o sistema de comunicação humano, contrapõe as características

da linguagem não-verbal utilizada pelas abelhas com as da linguagem verbal

humana, como segue:

A articulação da linguagem decorre da divisibilidade: a enunciaçãovocal humana é articulada, porque se presta a uma divisãosistemática, por meio da qual chegamos a elementos sônicossignificativos. E por outro lado, esses elementos existem, porquejuntos a sua significação permanente assegura a suaindividualizada nítida e nos faz reconhecê-los, sempre idênticos asi mesmos nas mais variadas circunstâncias.

a) a mensagem (da abelha) se traduz pela dança exclusivamente, sem intervenção deum aparelho vocal, condição essencial para a linguagem;b) a mensagem da abelha não provoca uma resposta, mas apenas uma conduta, oque significa que não há diálogo;c) a comunicação se refere a um dado objetivo, fruto da experiência. A abelha nãoconstrói uma mensagem a partir de outra mensagem. A linguagem humana caracteriza-se por oferecer um substituto à experiência, apto a ser transmitido infinitamente notempo e no espaço;d) o conteúdo da mensagem é único – o alimento, a única variação possível refere-seà distância e à direção; o conteúdo da linguagem humana é ilimitado; ee) a mensagem das abelhas não se deixa analisar, decompor em elementos menores.

Desse modo, podemos afirmar, sinteticamente, que a linguagem verbal

se caracteriza como eminentemente humana por ser:

a) Transmitida por meio de um aparelho vocal;b) Empregada como meio de interação entre os sujeitos;c) Transmitida infinitamente no tempo e no espaço;d) Apresenta conteúdo ilimitado;e) É perfeitamente analisável;

f) É duplamente articulada.

Page 15: Livro Texto Base de Linguistica 1

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FUESPI/NEAD Letras Português

1.2 A COMUNICAÇÃO

A comunicação é o ato de se transmitir uma mensagem. A atividade

comunicativa está presente na vida de todos os animais. Como aponta Borba

(2005), os animais se comunicam seja por necessidades de sobrevivência

seja por imperativos biológicos, como, por exemplo, a preservação da espécie.

Entretanto, é na espécie humana que a comunicação atinge o seu mais alto

grau de desenvolvimento, dado que o homem é um ser social e, como tal,

necessita exprimir emoções, trocar idéias e experiências.

O ato comunicativo é dinâmico e, nessa dinâmica, estão envolvidos

vários elementos. Entre os linguistas, são várias as propostas que especificam

os elementos envolvidos na comunicação, mas a mais difundida é, sem dúvida,

a do linguista Roman Jakobson (2007).

Segundo o autor, a comunicação é um processo em que um remetente

envia uma mensagem a um destinatário que compartilha de um mesmo

contexto , por meio de um canal , utilizando um código comum a ambos. O

esquema que segue nos permite visualizar, sem muitos detalhes, os elementos

da comunicação propostos por Jakobson (2007):

Observando o esquema, não é difícil perceber que cada um desses

elementos exerce um papel essencial no processo de comunicação. O

remetente é quem envia a mensagem, e o destinatário é a quem se destina

a mensagem. A mensagem é a informação que o remetente deseja transmitir

Page 16: Livro Texto Base de Linguistica 1

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Introdução à Linguística

ao destinatário. O contexto é o assunto a que se refere a mensagem. O

contato é o canal, meio físico utilizado para transmitir a mensagem e o código

é o sistema de sinais ou signos convencionais utilizado pelo remetente na

transmissão da mensagem.

Imaginemos, agora, a seguinte situação comunicativa em que a

mensagem é transmitida e entendida pelo destinatário: “Um estudante ao

telefone convidando um colega de faculdade para ir ao cinema assistir ao

filme “Crepúsculo”, no próximo domingo. Nessa situação, o estudante

configura-se como o remetente, o colega de faculdade como o destinatário, o

convite para ir ao cinema como a mensagem, o filme “Crepúsculo” como o

contexto, o telefone como o canal e a língua portuguesa como o código.

Entretanto, se houver qualquer problema com um dos elementos da

comunicação, podendo prejudicar ou invalidar a percepção ideal da

mensagem, chamaremos esse problema de ruído . Assim, se a situação

comunicativa acima sofrer interferência devido à ocorrência de “linha cruzada”,

caracterizaremos esse problema como um ruído. Nesse caso, houve

interferência no canal da comunicação. No entanto, vale ressaltar que há

diversas situações, envolvendo outros elementos da comunicação, em que

pode ocorrer ruído.

Até aqui as informações apresentadas versam sobre um modelo de

teoria da comunicação que trata apenas da transmissão da mensagem do

remetente para o destinatário, sem se preocupar com a reciprocidade

característica da comunicação humana, isto é, com a possibilidade de o

destinatário tornar-se remetente e de realimentar a comunicação.

A partir dos anos de 1950, nos Estados Unidos, surgiu um modelo de

teoria da comunicação que tratava a linguagem não só como meio de

comunicação, mas também como meio de interação social. Barros (2005)

explica que, para esse novo modelo, a comunicação passou a ser pensada

não mais como um fenômeno linear em que importam apenas os efeitos da

comunicação sobre o destinatário, mas como um fenômeno circular, em que

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FUESPI/NEAD Letras Português

também importam os efeitos que a reação do destinatário produz sobre o

remetente.

Entre os linguistas, o russo Mikhail Bakhtin destacou-se como o

pioneiro nos estudos do diálogo entre os interlocutores. Segundo esse autor,

a interação entre os sujeitos é o princípio fundamental da linguagem. O esquema

que segue nos permite visualizar a interação entre os sujeitos segundo esse

novo modelo de teoria da comunicação.

Nesse esquema, diferentemente do outro, o remetente seleciona um

código apropriado para formular uma mensagem compreensível para os seus

destinatários e o destinatário interpreta e responde a mensagem por meio do

seu pensamento ou por meio de um novo enunciado. É, portanto, a interação

do destinatário com o remetente que torna esse modelo diferente e mais

completo.

1.3 FUNÇÕES DA LINGUAGEM

Entendida como meio de comunicação, a linguagem verbal humana

presta-se a várias funções. Jakobson estipulou seis funções cada uma centrada

em um dos elementos acima citados. Observemos então:

a) Função referencial . É quando a linguagem é utilizada com a

finalidade de transmitir uma informação. Nesse caso, é carregada de

objetividade e realidade. Está centrada no contexto já que reflete uma

Page 18: Livro Texto Base de Linguistica 1

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Introdução à Linguística

preocupação em transmitir objetivamente uma informação. Elaborada em 3ª

pessoa, utiliza, principalmente, frases declarativas e estratégias

argumentativas. Um exemplo de linguagem utilizada com essa função é a

empregada nos jornais e revistas. O texto abaixo, por apresentar uma linguagem

em 3ª pessoa, carregada de frases declarativas e objetivas, veiculando

informações sobre O 2º Festival Nacional de Teatro – Pontos de Cultura –

Troféu Ací Campelo, é predominantemente caracterizado como referencial.

“O 2º Festival Nacional de Teatro – Pontos de Cultura – Troféu Ací Campelo, será

realizado pelo Pontão de Cultura “Cultura Viva ao Alcance de Todos” juntamente

com Grupo Escândalo Legalizado de Teatro. O evento atrai Pontos de Culturas de

todo o país, o mesmo acontecerá no período de 25 a 29 de outubro de 2011.”

(Disponível em http://www.180graus.com/cultura/2o-festival-nacional-de-teatro-

atrai-pontos-de-cultura-de-todo-brasil-433182.html)

b) Função emotiva . É quando a linguagem é usada com a finalidade

de exprimir sentimentos e opiniões. Nesse caso, é carregada de subjetividade

e emoção. Está centrada no emissor já que é a sua emoção que está sendo

considerada na mensagem. Elaborada em 1ª pessoa, emprega frases

exclamativas e recursos como pausas, hesitações e interjeições. Um exemplo

desse tipo de função está em uma situação em que um indivíduo, ao falar,

morde, sem querer, a língua e diz: “Ai!”. O texto que segue ilustra um outro

exemplo de linguagem com função emotiva:

“Luís Fernando V eríssimo : Eu não escrevo exatamente “para” jovens. Sei que

adolescentes leem o que eu escrevo, mas não são o meu “público alvo”. Na verdade

meu público alvo sou eu mesmo. Procuro me satisfazer e espero que o leitor, de

qualquer idade, compartilhe do meu gosto. Mas temos bons autores para o público

jovem.” (COELHO, 2009).

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FUESPI/NEAD Letras Português

O texto acima é um trecho de uma entrevista concedida por Fernando

Veríssimo ao jornalista André Coelho. Emprega a 1ª pessoa (Eu não escrevo...;

Procuro me satisfazer...) e apresenta a opinião de Fernando Veríssimo sobre

o público que lê a sua obra, o que produz efeitos de subjetividade, próprios da

função emotiva.

c) Função conativa ou apelativa . É quando a linguagem é utilizada

com a finalidade de persuadir o receptor. A linguagem é elaborada em 2ª

pessoa, com o uso de frases imperativas, modalizadores deônticos (dever) e

estruturas de pergunta e resposta. Está centrada no receptor, visto que visa

convencê-lo a algo. Um exemplo de linguagem utilizada com essa função é a

empregada nas propagandas. A frase abaixo ilustra essa função:

“Dê ao seu bebê algo que você não teve na infância. Um bumbum seco.” (fraldas

Johnson’s)

‘Não beba só uma, bebavárias.” (Cerveja Bavária)

Nos textos acima, empregam-se a 2ª pessoa e o imperativo (dê e

não beba, respectivamente) para produzir os efeitos de persuasão próprios

da linguagem com função apelativa.

d) Função Fática . É quando a linguagem tem a finalidade de manter

a comunicação. Empregam-se frases curtas, interrogativas e de fácil

compreensão. Está centrada no canal visto que visa testar a todo instante o

contato comunicativo entre os interlocutores. Um exemplo de linguagem

utilizada com essa função é a linguagem empregada nas ligações telefônicas.

A música transcrita abaixo ilustra bem função:

Sinal Fechado

Paulinho da Viola

Composição: Paulinho da Viola

Olá, como vai ?

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Introdução à Linguística

Eu vou indo e você, tudo bem ?

Tudo bem eu vou indo correndo

Pegar meu lugar no futuro, e você ?

Tudo bem, eu vou indo em busca

De um sono tranquilo, quem sabe ...

Quanto tempo... pois é...

Quanto tempo...

Me perdoe a pressa

É a alma dos nossos negócios

Oh! Não tem de quê

Eu também só ando a cem

Quando é que você telefona ?

Precisamos nos ver por aí

Pra semana, prometo talvez nos vejamos

Quem sabe ?

Quanto tempo... pois é... (pois é... quanto tempo...)

Tanta coisa que eu tinha a dizer

Mas eu sumi na poeira das ruas

Eu também tenho algo a dizer

Mas me foge a lembrança

Por favor, telefone, eu preciso

Beber alguma coisa, rapidamente

Pra semana

O sinal ...

Eu espero você

Vai abrir...

Por favor, não esqueça,

Adeus...

(http://letras.terra.com.br/paulinho-da-viola/48064/)

Page 21: Livro Texto Base de Linguistica 1

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FUESPI/NEAD Letras Português

O texto acima, poema musicado de Paulinho da Viola, constitui-se

em um diálogo em que os interlocutores, a todo instante, testam o canal da

comunicação por meio de frases interrogativas curtas, tornando o texto

predominantemente fático.

e) Função metalinguística . É a função da linguagem que tem a

finalidade de explicar o código linguístico. Está centrada no código, visto que

emprega a linguagem para falar da própria linguagem. A linguagem empregada

é carregada de definições, explicações e conceituações. Os verbetes do dicionário

são exemplos dessa função da linguagem. Observemos, como ilustração, o

significado da palavra “texto”, conforme expresso no dicionário Michaelis on-line:

f) Função poética . É a função da linguagem que tem a finalidade de

valorizar a mensagem, sua forma e seu conteúdo. Está centrada na mensagem,

visto que é predominantemente conotativa. Nesse caso, a linguagem é

carregada de valor artístico e musicalidade, havendo muita recorrência de

figuras de linguagem. Podemos pensar, como exemplo desse tipo de função,

as poesias e textos literários. Entretanto, como aponta Petter, (2005), a função

emotiva também pode ser encontrada em textos publicitários e na fala do dia

a dia, embora nesses casos esteja muitas vezes subordinada a outras funções

da linguagem. Observemos o soneto “Único bem”, de Da Costa e Silva:

tex.to(ês) sm (lat textu) 1 As próprias palavras de um autor, de queconsta algum livro ou escrito. 2 Palavras que se citam para provarqualquer doutrina. 3 Passagem da Escritura que forma o assuntode um sermão. 4 Art Gráf A parte principal de um periódico ou livro,que contém a exposição da matéria. 5 Em propaganda, parteescrita de um anúncio, exceto o título. sm pl Coleções do direitoromano ou canônico. T. de abertura: anúncio a ser lido no início deum programa de rádio. T. de chamada: texto de poucas palavras(5 a 20) com que se anuncia um programa de rádio. T. deencerramento: anúncio destinado ao final do programa radiofônico.T. de fluxo, Inform: texto que, ao ser inserido no formato de umapágina num sistema de editoração eletrônica, preenche todos osespaços ao redor das figuras, e entre as margens.( h t t p : / / m i c h a e l i s . u o l . c o m . b r / m o d e r n o / p o r t u g u e s /index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=texto).

Page 22: Livro Texto Base de Linguistica 1

22

Introdução à Linguística

Lutei, sonhei, sofri, desde criança,

Nesta inquietude, nesta vã tortura

De quem jamais consegue o que procura

E, se consegue, perde quando alcança.

Já nem me resta ao menos a esperança,

Para a ilusão da glória e da ventura;

Nem a fé, ante a dúvida, perdura,

Desde que o amor, num túmulo descansa.

Tanto alcancei, quanto perdi, de sorte

Que, em suprema renúncia, a alma vencida

Não devera aspirar senão à morte.

Mas, como a sorte me foi tão funesta,

Aprendi muito mais a amar a vida,

Porque é o único bem que ainda me resta.

(http://www.revista.agulha.nom.br/dcosta16p.html)

No poema acima, podemos notar que há uma preocupação formal na

transmissão da mensagem. O poema é um soneto, os versos apresentam

rimas e a linguagem é conotativa. A presença desses recursos demonstra

preocupação com o efeito estético da mensagem, o que caracteriza esse

poema como um bom exemplo de linguagem utilizada com função poética.

Ao estipular as funções da linguagem, Jakobson chamou a atenção

para o fato de que, embora para efeito de análise possamos distinguir essas

seis funções, na prática elas não são exclusivas. Ou seja, uma mesma

mensagem pode apresentar mais de uma função. Desse modo, segundo o

autor, o que vai definir a função que caracteriza a mensagem é a predominância

de uma sobre a outra. Vejamos, agora, o poema de Fernando Pessoa:

Page 23: Livro Texto Base de Linguistica 1

23

FUESPI/NEAD Letras Português

Hoje de Manhã

Hoje de manhã saí muito cedo,

Por ter acordado ainda mais cedo

E não ter nada que quisesse fazer...

Não sabia por caminho tomar

Mas o vento soprava forte, varria para um lado,

E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas.

Assim tem sido sempre a minha vida, e

assim quero que possa ser sempre —

Vou onde o vento me leva e não me

Sinto pensar.

(Fernando Pessoa)

(http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/pe000003.pdf)

Nesse poema, podemos identificar duas funções da linguagem: a

função emotiva e a função poética. No entanto, a função emotiva é a que

predomina. No poema, o uso da primeira pessoa e a exposição de sentimentos

e emoções causando efeito de subjetividade justificam essa predominância,

na medida em que esses fatos sobressaem em relação ao cuidado com a

forma de elaboração da mensagem, próprio da linguagem poética.

RESUMINDO

1.1 LINGUAGEM

• É todo e qualquer meio utilizado de comunicação. Pode ser

classificada em:

Page 24: Livro Texto Base de Linguistica 1

24

Introdução à Linguística

a) Linguagem verbal : meio de comunicação próprio da espécie

humana que utiliza as línguas naturais para transmitir uma mensagem.

b) Linguagem não-verbal : meio de comunicação que utiliza outros

que não as línguas naturais para transmitir uma mensagem, como símbolos,

gestos, movimentos etc.

1.2 COMUNICAÇÃO

• É o ato de se transmitir uma mensagem por meio de uma linguagem.

Segundo Roman Jakobson (2007) são seis os elementos da comunicação:

remetente , destinatário , contexto , mensagem, canal e código .

• Com o desenvolvimento dos estudos sobre a linguagem como meio

de interação, proposto por Mikhail Bakhtin, o destinatário passou a ser não só

receptor da mensagem, mas passou a interpretar e a responde a mensagem

por meio do seu pensamento ou por meio de um novo enunciado.

1.3 FUNÇÕES DA LINGUAGEM

• A linguagem verbal humana pode apresentar várias funções.

Jakobson, com base nos elementos da comunicação, estipulou seis funções

cada uma centrada em um desses elementos.

a) Contexto – função referencial;

b) Remetente – função emotiva;

c) Contato – função fática;

d) Mensagem – função poética;

e) Destinatário – função conativa ou apelativa;

f) Código – função metalinguística.

Page 25: Livro Texto Base de Linguistica 1

25

FUESPI/NEAD Letras Português

LEITURA COMPLEMENTAR

Com o objetivo de oferecer ao leitor mais informações acerca da

sociedade e do sistema de comunicação das abelhas, indicamos a leitura do

artigo abaixo:.

Na sociedade da colmeia há rainha, operárias e zangões

Cynthia Santos*

As abelhas são insetos sociais. Os indivíduos que vivem nas colmeias

se dividem em três castas: rainha, operárias e zangões.

Quando pensamos em rainhas, pensamos em alguém com muito

poder, que diz a todo mundo o tempo todo o que fazer, certo? Bem, isso não

acontece com as abelhas. Na sociedade das abelhas não há um posto central de

comando. O poder é disseminado através da colmeia e as decisões diárias são

tomadas consensualmente através de estímulos químicos, visuais, auditivos e táteis.

A incrível cooperação observada entre as abelhas de uma colmeia é

explicada pelo compartilhamento de 75% de seus genes. Para você ter uma

ideia, na espécie humana, irmãos de uma mesma família compartilham 50%

de seus genes.

Nas colmeias, as abelhas se dividem em castas: rainha, operárias e zangões

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26

Introdução à Linguística

A maioria das abelhas de uma colmeia é formada por fêmeas: 1 rainha

e cerca de 5.000 a 100.000 operárias. Os machos - os zangões - são

encontrados em um numero máximo de 400 indivíduos.

A rainha

As funções exercidas pela rainha são a postura de ovos e a

manutenção da ordem social na colmeia. Segundo o especialista da

Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, Gene E. Robinson, "apesar

de a rainha não dizer a todos o que fazer, ela faz as coisas funcionarem, apenas

por estar presente".

Na verdade, a rainha atinge seu objetivo de manter a ordem social

através da liberação de substâncias químicas chamadas feromônios. Essas

substâncias informam os outros membros da colmeia de que existe uma rainha

presente e em atividade, além de inibirem a produção de outras rainhas.

A rainha é quase duas vezes maior do que as operárias e é a única

fêmea fértil da colmeia, com um sistema reprodutivo bastante desenvolvido.

Ela coloca cerca de 2.500 ovos por dia! Os ovos fertilizados produzem

operárias e rainhas. O que determina se o ovo formará uma rainha ou uma

operária é o alimento oferecido à larva originada do próprio ovo.

As larvas que se alimentam exclusivamente de geléia real se

desenvolvem em rainhas. As que se alimentam de geléia de operária, contendo

menos açúcar do que a geléia real, mais mel e pólen, transformam-se em

operárias. Além da alimentação, o local onde é criada influencia o

desenvolvimento da larva. Um alvéolo maior, chamado de realeira, é usado

para o desenvolvimento da rainha. Ovos não fertilizados se desenvolvem em

zangões.

Operárias e zangões

As operárias realizam todo o trabalho para a manutenção da colmeia,

desde a faxina até a defesa da colmeia. Elas limpam os alvéolos da colmeia

e as abelhas recém-nascidas, coletam néctar e pólen das flores, cuidam da

alimentação das larvas, produzem cera para produção dos favos, elaboram o

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FUESPI/NEAD Letras Português

mel através da desidratação do néctar, produzem a geléia real, defendem a

colmeia dos inimigos.

Os machos da colmeia têm como única função fecundar a rainha

durante o vôo nupcial. Eles são maiores e mais fortes do que as operárias e

não possuem ferrão. Seus olhos, mais desenvolvidos do que os olhos das

operárias, e suas antenas, com maior capacidade olfativa, os tornam mais

eficientes na localização das rainhas durante o vôo nupcial.

Se você está pensando que vida boa têm esses zangões, pois não

precisam trabalhar mesmo sendo mais fortes e maiores, não fazem nada na

colmeia a não ser fecundar a rainha, espere até ler isso: durante o

acasalamento, o órgão genital do zangão fica preso no corpo da rainha e ele

acaba morrendo!!

Companheiras de colmeia sobre uma fonte rica em néctar ou pólen

encontrada nas proximidades da colmeia, ela inicia uma dança circular.

Esse tipo de dança indica que a fonte de alimento encontra-se

próxima, a menos de 100 metros da colmeia, mas não indica qual direção a

tomar. No entanto, o cheiro específico do pólen grudado no corpo da abelha

que dançou para suas companheiras as informa sobre a planta visitada. Assim,

elas podem procurar pela planta perto da colmeia.

Já quando a fonte de alimento encontra-se a mais de 100 metros de

distância da colmeia, as abelhas utilizam-se de outro tipo de dança, a "dança

do requebrado". Isso mesmo, a abelha requebra para informar a direção e a

distância entre a colmeia e a fonte de alimento. A distância é ensinada pela

abelha dançarina através do número de vibrações (requebrados) realizadas

e pela intensidade do som emitido durante a dança. Quanto menor a distância

entre a colmeia e a fonte, maior o numero de vibrações. A direção é informada

pela relação da posição da dançarina com a posição do sol.

Disponível em: http://educacao.uol.com.br/ciencias/abelhas-2-na-

sociedade-da-colmeia-ha-rainha-operarias-e-zangoes.jhtm

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28

Introdução à Linguística

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

1. Estabeleça a distinção entre linguagem verbal e não-verbal e cite alguns

exemplos.

2. Simule uma situação comunicativa identificando todos os elementos

envolvidos nesse processo.

3. Qual a contribuição das ideias de Bakhtin para a teoria da comunicação?

4. Identifique a função da linguagem predominante nos textos abaixo e aponte

as pistas que conduziram a sua resposta.

a)

b) “Morreu na noite de domingo (19), no Rio de Janeiro, aos 90 anos, o químico

naturalizado brasileiro Otto Richard Gottlieb, conhecido internacionalmente por

seus trabalhos sobre produtos naturais e metabolismo de plantas. Ele foi um

dos primeiros grandes cientistas a chamar atenção para a sustentabilidade e

a preservação de florestas, ainda na década de 1960.”

(Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/932761-quimico-que-chegou-mais-

perto-do-nobel-no-pais-morre-aos-90.shtml)

c) O mundo é grande

O mundo é grande e cabe

nesta janela sobre o mar.

O mar é grande e cabe

na cama e no colchão de amar.

O amor é grande e cabe

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FUESPI/NEAD Letras Português

no breve espaço de beijar.

(Carlos Drummond de Andrade)

(http://www.revista.agulha.nom.br/drumm3.html#omundo)

5. Comente a partir da frase abaixo a importância do contexto, segundo a

teoria das funções da linguagem, para a compreensão da mensagem.

“Não ponha a mão na massa, use o telefone”

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UNIDADE 2

OBJETIVOS

1. Resgatar o percurso histórico e os vários estágios de desenvolvimento da

linguagem, ressaltando-se as concepções sobre ela.

2. Identificar as contribuições dos filósofos gregos, dos gramáticos greco-latinos

e dos neogramáticos para o estudo da linguagem.

3. Descrever as categorias gramaticais sistematizadas pelos estoicos.

ESTÁGIOS DE DESENVOLVIMENTO EPERSPECTIVAS

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FUESPI/NEAD Letras Português

2 ESTUDOS DA LINGUAGEM: ESTÁGIOS DE DESENVOL VIMENTO E

PERSPECTIVAS

Hermógenes - Sócrates, o nosso Crátilo sustenta que cada coisatem por natureza um nome apropriado que não se trata dadenominação que alguns homens convencionaram dar-lhes, comdesigná-las por determinadas vozes de sua língua, mas que, pornatureza, têm sentido certo, sempre o mesmo, tanto entre osHelenos como entre os bárbaros em geral.

Platão. Diálogos – Teeteto e Crátilo, 1988, p.102

Hermógenes - Por minha parte, Sócrates, já conversei várias vezesa esse respeito tanto com ele como com outras pessoas, semque chegasse a convencer-me de que a justeza dos nomes sebaseia em outra coisa que não seja convenção e acordo. Paramim, seja qual for o nome que se dê a uma determinada coisa,esse é o seu nome certo; e mais: se substituirmos esse nome poroutro, vindo a cair em desuso o primitivo, o novo nome não é menoscerto que o primeiro. (...) Nenhum nome é dado por natureza aqualquer coisa, mas pela lei e o costume dos que se habituarama chamá-la dessa maneira.

Platão. Diálogos – Teeteto e Crátilo, 1988, p.103

A linguagem, como já enfocamos na Unidade I, é um meio de

comunicação próprio do homem em sociedade. É inconcebível o homem sem

linguagem e vice-versa. Ela representa um conjunto de signos (verbais e não-

verbais) de um código, um sistema extremamente complexo. Segundo Kristeva

(2007, p. 16),

Em primeiro lugar, e vista do exterior, a linguagem reveste-se deum carácter material diversificado cujos aspectos e relações temosde conhecer: a linguagem é uma cadeia de sons articulados, mastambém uma rede de marcas escritas (uma escrita), ou um jogode gestos (uma gestualidade).

Os estudos da linguagem passaram, ao longo dos tempos, por

diferentes estágios, desenvolvendo-se de acordo com o pensamento

dominante da época. Neste capítulo, iremos refletir sobre eles, numa

perspectiva de evolução, considerando as diferentes bases epistemológicas

que particularizam o campo da ciência da linguagem como objeto de estudo.

Page 34: Livro Texto Base de Linguistica 1

34

Introdução à Linguística

A tradição dos estudos da linguagem teve como foco a lógica, a

retórica, a poética e o bom uso da linguagem. Pela primeira vez, foi a Linguística

comparativa e histórica que tratou a linguagem como objeto sistematizado de

estudo, tendo-a em si mesma e por si mesma, conforme veremos mais adiante.

Neste capítulo, abordaremos a linguagem na Antiguidade, passando pela

Idade Média e pela Renascença, até a Modernidade (século XIX), enfocando-se

a Linguística comparada e as contribuições de Humboldt e Whitney.

2.1 DA ANTIGUIDADE AO SÉCULO XIX

Na antiguidade, destacaram-se duas tradições acerca dos estudos

da linguagem: a orient al e a ocident al. A primeira foi representada pelos

trabalhos desenvolvidos pelos hindus, povos que estudaram a língua por

motivos religiosos. O hinduísmo visava à preservação dos escritos, dos textos

sagrados (os hinos, por exemplo) ao longo dos tempos, como forma de não

sofrer modificação ao serem proferidos, cantados durante os ritos. Os textos

foram reunidos no Veda, o primeiro dos quatro livros do Hinduísmo.

A concepção de linguagem dos hindus estava diretamente relacionada

à prática religiosa. O homem era visto como “processo infinito de diferenciação

cósmica”, e a linguagem ocupava ponto de honra. A sua ciência, a gramática,

chamava-se ciência suprema-purificante de todas as ciências, a via real

isenta de desvios, e que visava realizar o supremo objeto do homem

(KRISTEVA, 2007, p. 94). Para os hindus, a reflexão linguística dependia

diretamente da concepção religiosa de que eram testemunhos os textos

sagrados, que tratavam grande parte da linguagem e da significação. Os

elementos da língua obtinham um valor simbólico, e a gramática era um

instrumento que “purificava” o homem.

Os estudos mais antigos remontam o século IV aC. Entre os

gramáticos, destacou-se Pãnini (há quatro séculos antes da nossa era), que

estudou a gramática do sânscrito, “língua dita perfeita” e língua sagrada dos

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FUESPI/NEAD Letras Português

hindus. Foi esse gramático que introduziu a

noção de gramática como norma e regra de

pronúncia e escrita do Sânscrito Védico para

impedir o falar vulgar dos procráticos. A

gramática de Pãnini era um livro composto

de 4000 sutras ou máximas . Segunda

Kristeva, as formulações desse gramático

mostram a organização da língua sânscrita do

ponto de vista fonológico e morfológico.

Os gramáticos hindus dedicaram-se

ao estudo do valor e do emprego das palavras

e fizeram excelentes transcrições fonéticas, que foram descobertas pelos

sábios ocidentais nos fins do século XVII, o que serviu como ponto de partida

para a criação da gramática comparada, que será discutida na seção 2.2.

Quanto à contribuição dos hindus para a teoria da significação,

Kristeva (2007, p. 100) acentua que:

E, referindo-se a Bhartrhari, acrescenta: “O sentido das falas distingue-

se segundo o contexto verbal, o contexto de situação, o fim visado, a

conveniência, segundo o espaço e o tempo, e não a forma das falas” (p. 100).

Percebemos que a linguagem para os hindus não tem uma concepção

fechada no objeto na língua, mas esboça a significação como princípio da

relação entre o sujeito e o seu exterior.

A segunda, a tradição ocidental , por outro lado, teve como referência

a cultura grega, que, mais tarde, influenciou os romanos. Os gregos trilharam

caminhos no sentido de descobrir a natureza da linguagem humana. Eram um

GLOSSÁRIOSutras

É um conjunto de ensinamentos. “Naliteratura hindu, os Sutras – diferentementedos Vedas, os textos sagrados propriamenteditos – são algo como “tratadoseducacionais”. Existem deles sobre guerra,arquitetura e gramática. Não se filosofavaindependentemente da religião, mas nem porisso a função do filósofo se confundia coma do sacerdote.(http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/historia/kama-sutra-concavo-convexo-435808.shtml)

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

A linguística indiana aproxima-se daquilo a que chamamosactualmente uma teoria da enunciação. Admite cmo elementosindispensáveis para a produção do sentido a função do sujeitofalante, do destinatário, da situação locutória, a posição espácio-temporal do sujeito, etc.

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36

Introdução à Linguística

povo que se preocupava em estudar a própria língua nas perspectivas estética

(estilo) e filosófica.

Os gregos não nos legaram informações importantes sobre os falares

das populações com as quais tiveram contato. Aprenderam línguas

estrangeiras, mas os conhecimentos transmitidos pelos intérpretes se

perderam. Os helenos consideravam com desprezo as línguas que não o

grego. Para eles, apenas o grego era importante, e as demais línguas eram

tidas como bárbaras (tal denominação era pejorativa).

A perspectiva filosófica foi ponto de partida para o pensamento

linguístico moderno. Para os gregos, o problema essencial era definir as

relações entre a noção e a palavra que a designa. Platão problematiza o caráter

da origem da linguagem: convencional ou natural? Em outras palavras, os

nomes dados às coisas nascem de um contrato social ou resultam da natureza

das coisas? A partir dessa questão, surgiram duas escolas opostas: os

analogistas e os anomalistas . Os primeiros defendiam o caráter

convencional; já os segundos, a expressão natural da linguagem. Em relação

a essa abordagem, dizemos que não se trata da capacidade de o homem

criar a linguagem, mas da relação natural entre a língua e os seus objetos.

Os primeiros pensadores gregos defendiam que a palavra era a

encarnação das coisas (BORBA, 2005). Platão é um dos filósofos que

estudaram a relação entre a origem do nome das coisas e o conceito que ele

designa: os nomes eram naturais (escolhidos por algum deus ou por força da

natureza) ou convencionais ou puramente remetidos à história? “O

Primeiríssimo texto ocidental sobre a linguagem, o Crátilo de Platão, trata

especificamente desta questão.” (WEEDWOOD, 2002, p. 24).

Segundo Weedwood (2002, p. 25),

Platão (c. 429-347 a.C.) consagrou um de seus diálogos, o Crátilo,a este problema. Dos três interlocutores que ela retrata, Crátilosustenta que a língua espelha exatamente o mundo; Hermógenesdefende a posição contrária, a de que a língua é arbitrária,ressaltando tanto os pontos fortes quanto as fraquezas dos

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FUESPI/NEAD Letras Português

Aristóteles (382-322 a.C.), discípulo de Platão, analisou a linguagem

numa outra abordagem: a da constituição da gramática numa perspectiva

descritiva. Por exemplo, separou as categorias gramaticais: substância,

relação, lugar, tempo, estado etc. Também defendeu a oposição entre língua

(enérgeia) e discurso (érgon). A primeira ou é uma expressão ou é uma obra

sem intencionalidade; já a segunda representa os procedimentos utilizados

para obtermos a argumentação, a persuasão, tendo como referentes o

raciocínio e/ou a razão – podemos dizer que se trata da lógica aristotélica.

Os estoicos nos legaram sistematizações da língua, conforme

vejamos:

a) Nome – significava qualidade, estado, relação, substância.

Classificação: nomes próprios e comuns;

b) Verbo – é incompleto quando não há sujeito. É a categoria que

exprime quatro tempos: presente contínuo, presente realizado, passado

contínuo e passado realizado;

c) Conjunções;

d) Pronomes relativos e artigo;

e) Número, gênero, voz, modo e caso (que compreendiam as

derivações e as flexões verbais). (KRISTEVA, 2007, 122)

Para os estoicos, a linguagem se origina naturalmente na alma dos

homens e a palavra expressa a coisa conforme a natureza dela, suscitando,

do mesmo modo, no ouvinte, uma impressão conforme a dita natureza

(BORBA, 2005).

Após o período clássico da filosofia grega, os estudos acerca do

desenvolvimento da linguagem tiveram mais impulso nos trabalhos dos filósofos

argumentos dos outros dois e levando-os, por fim, a uma soluçãoconciliatória. A afirmação de inicial de Hermógenes de que os nomessão inteiramente arbitrários e podem ser impostos à vontade érefutada por Sócrates, que assinala que as palavras sãoferramentas: assim como uma lançadeira defeituosa não pode serusada para tecer, também as palavras precisam ter propriedadesque as tornem apropriadas ao uso.

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38

Introdução à Linguística

e dos gramáticos. Entre os gramáticos, destacaram-se os gregos Dionísio de

Trácia e Apolónio Díscolo e os latinos Donato, Prisciano e Varrão.

a) Dionísio de T rácia (170-90 a.C) - era o mais conhecido professor

de gramática tradicional grega, escreveu a primeira gramática do Ocidente

(Téchné Grammatiké) e a concebia como uma arte, um “saber empírico da

linguagem dos poetas e dos prosadores”. (KRISTEVA, 2007, 123).

Desenvolveu estudos mais voltados à fonética e à fonologia. Na fonética, ele

apresentou uma teoria das letras e das sílabas; já na morfologia, estudou oito

partes do discurso: o verbo, o nome, o particípio, o artigo, o pronome, a

preposição, o advérbio e a conjunção. Desenvolveu a primeira gramática

grega, que tinha dois propósitos: explicar a língua dos clássicos e proteger o

grego contra possível “corrupção”, “erros” por parte dos “ignorantes”.

b) Apolónio Díscolo (século II d.C) - elaborou a primeira sintaxe, tendo

como referência a língua grega.

c) Donato (350 d.C) – Uma obra típica, a Ars maior, era dividida em

três livros: o primeiro trata de vox (voz, som, substância fônica); litterae (o som

da letra, letra); sílaba, pé métrico; acentos e pontuação; o segundo, das partes

do discurso (nome, pronome, advérbio, interjeição, particípio, conjunção,

preposição e verbo) e o terceiro, dos barbarismos (erros na forma das

palavras), solecismos (erro de colocação dos pronomes oblíquos) e várias

figuras da retórica (WEEDWOOD, 2002, p. 38).

d) Prisciano - autor que procedeu a uma descrição quase completa

do latim (e ainda útil), reforçada com um amplo número de citações ilustrativas

de autores literários (WEEDWOOD, 2002, p. 42). Segundo Kristeva (2007, p.

133),

[...] se a morfologia é completada pela sintaxe e a sintaxe não fazmais do que acrescentar-se à morfologia, este conjunto só semantém na medida em que está submetido à lógica [...] A gramáticade Prisciano tornou-se o modelo de todos os gramáticos da IdadeMédia.

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FUESPI/NEAD Letras Português

e) Varrão (século I a.C) - sistematizou a gramática como estudo da

linguagem. Para o autor, a gramática era "a base de qualquer ciência", como

se fosse "clamar a verdade". Desenvolveu estudos no campo semântico

(relação das palavras com as coisas), morfológico (palavras variáveis e

invariáveis, as flexões) e sintático (relação entre as palavras). Organizou a

primeira gramática latina, e estabeleceu as diferenças entre flexão e derivação.

Os estudos da linguagem pelos latinos foram desenvolvidos

principalmente em Roma e tinham a preocupação em estabelecer certa

universalidade dos aspectos lógicos da língua grega, considerando que a

confluência das línguas estrangeiras era abundante, motivada pelas "tomadas"

territoriais dos romanos.

A Idade Média (476 - 1473 d.C) foi marcada por estudos que

estabeleciam que as línguas possuíam estruturas idênticas e universais, mas,

no final desse período, novos idiomas surgiram, motivados pela transação

dos navegadores mercantis e pelo trabalho de tradução dos livros sagrados,

mesmo que o latim se mantivesse ainda firme no Ocidente. Esse período

também foi marcado pelos estudos sobre o discurso, na perspectiva da filosofia

da linguagem. A língua dominante na Idade Média foi o Latim, que estava

presente nas liturgias religiosas e nas escrituras sagradas. Ele era considerado

como língua universal da erudição, uma vez que os autores clássicos eram a

referência para a gramática.

Em 1660, os franceses Antoine Arnauld e Claude Lancelot, lançam a

Grammaire Générale et raisonnée de Port Royal (Gramática Geral e Racional

de Port Royal). Essa gramática tem sido conhecida como uma gramática

filosófica, geral, universal e especulativa, cujos estudos estavam fundamentados

na lógica, na razão. Pela primeira vez, observou-se a distinção entre língua

(com as características: lógica, racional, perfeita) e discurso (nos quais são

observados defeitos, do ponto de vista da lógica. O discurso é considerado

como prática). Os pensadores de Port Royal eram ligados ao ideário da

Revolução Francesa e defendiam que a gramática tradicional “servia aos

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40

Introdução à Linguística

interesses do Estado e à manutenção da dominação, na medida em que era

um dos instrumentos, para controlar a linguagem dos dominados e impor a

visão do dominante” (PAIS, 2011, p. 4).

A Gramática Geral e Racional de Port Royal representa “o primeiro

estudo a demonstrar a linguagem fundamentada na razão e no pensamento

racional, influências do Iluminismo europeu” (www.ricardomoraleida.com).

Preocupa-se em mostrar que há diferenças estruturais entre os idiomas,

embora os princípios de análise das línguas fossem universais. Os signos

servem para exprimir o pensamento do homem, ou seja, a linguagem era

concebida como imagem do pensamento .

A gramática de língua portuguesa que mais evidenciou os princípios

da Gramática de Port Royal foi a Gramática filosófica da língua portuguesa,

escrita em 1803 por Jerônimo Soares Barbosa e publicada em 1822.

Pelo que apresentamos, verificamos que a relação pensamento/

linguagem foi ponto basilar nos estudos gramaticais de Port Royal, tendo

perdurado seus princípios por muito tempo até o século XIX, quando tivemos uma

mudança no interesse dos estudiosos: a referência para as línguas vivas e o estudo

comparativo dos modos de falar. Nesse sentido, construía-se a concepção de

que as línguas, como organismos vivos, modificam-se com e no tempo.

Segundo Orlandi (2007, p. 13), “a contribuição talvez mais interessante

dessas gramáticas gerais para a Linguística foi justamente a de estabelecer

princípios que não se prendiam à descrição de uma língua particular mas

pensar a linguagem em sua generalidade”.

Noutra perspectiva, no entanto, surgiram pensamentos diversos, tais

como o da gramática comparada sobre a qual discutiremos a seguir.

2.2 A LINGUÍSTICA COMPARADA

A Gramática ou a Linguística Histórico-Comparada, como preferem

alguns autores, trouxe um rompimento com a filosofia clássica, que priorizava

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FUESPI/NEAD Letras Português

“a boa linguagem e a boa literatura”, pois a

tônica dos estudos voltou-se para a diacronia

da língua e para o fato de as línguas

modificarem-se com o tempo. Mesmo a

gramática comparada tendo seu auge no

século XIX, ela se desenvolveu a partir do

século XVII.

No contexto da gramática comparada, o estudo da língua volta-se para

a comparação entre as línguas no intuito de “deduzir princípios gerais de

evolução histórica das suas unidades lexicais, gramaticais e sonoras” (SILVA,

2011, p. 6). As relações de parentesco do latim, das línguas germânicas,

eslavas e célticas eram estabelecidas com as línguas faladas na antiga Índia.

Os indoeuropeístas propuseram um método de estudo denominado histórico-

comparado, tendo como referência a língua-mãe e não a língua ideal

(ORLANDI, 2007).

No século XIX, Franz Bopp (1791-1867), Rasmus Rask (1787-1832),

August Schleicher (1821-1868) e Jacob Grimm (1785-1863) marcaram o

desenvolvimento dos estudos da linguagem, sendo o primeiro deles a figura

mais representativa, por ter legado, em 1816, o nascimento da Linguística

Histórica.

Franz Bopp – reuniu as provas indiscutíveis do parentesco entre as

línguas e fundou a gramática comparada das línguas indoeuropeias (sânscrito,

persa, grego, latim, lituano, gótico e alemão) considerando que elas

apresentavam semelhanças com o sânscrito; daí dizermos que elas pertencem

à mesma família.

Rasmus Rask – demonstrou, com mais rigor do que Bopp, a

identidade original das línguas germânicas, do grego, latim, báltico e eslavo;

Jacob Grimm – introduziu em Linguística a noção de perspectiva

histórica. Dedicou-se ao estudo dos dialetos germânicos e publicou pesquisas

pormenorizadas sobre a história fonética dos falares germânicos. Foi na Lei

GLOSSÁRIO

É o estudo descritivo da língua ao longo dahistória, tendo como base as mudançassofridas nos termos, nas significações e nasrelações entre os termos. SegundoSaussure, é tudo que diz respeito àsevoluções. (Veja Seção 4.1).

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Page 42: Livro Texto Base de Linguistica 1

42

Introdução à Linguística

de Grimm, primeiro modelo das leis fonéticas, que se apoiou a Linguística

Histórica.

August Schleicher – era botânico e amava as plantas, gostava de

opor o linguista ao filólogo, comparando o primeiro ao naturalista, que abarca,

no seu estudo, o conjunto dos organismos vegetais; enquanto o filólogo

assemelha-se ao jardineiro, que só se preocupa com as espécies estimáveis

pelo seu uso prático ou pelo valor estético. Ele considera as línguas como

organismos vivos , uma criação, uma existência fora dos indivíduos, porque,

independentemente da vontade humana, nascem, crescem e se desenvolvem

segundo as regras determinadas e depois envelhecem e morrem, o que

manifesta então uma série de fenômenos que englobamos na palavra VIDA.

Alguns teóricos chamam essa concepção de língua como Mito da

Independência.

Você pode pensar no porquê desse mito? Será que as línguas não

são intercambiáveis? Mesmo o latim não sendo uma língua falada atualmente,

mas utilizada em momentos específicos de liturgia, havendo muitos escritos,

podemos dizer que ela “morreu”? Será que essa língua não legou a gramática

para outras línguas?

Observemos a estrutura

mórfica da palavra lei em latim: Lex,

leg is = lei (radical latino = leg-)

Como podemos, então,

explicar o adjetivo derivado de lei

“legal”? Seria “LEI + AL”? Com

certeza, não. Temos aí uma

retomada ao radical latino, embora

alguns estudiosos da morfologia de

cunho sincronista chamem esse

processo de alomorfia .

GLOSSÁRIO

Sincronia – estudo de um determinadoestado de língua, em função da suaestrutura, sem a perspectiva histórica. Éoposto à diacronia. Podemos dizer que éum recorte temporal na língua paraestudarmos determinados processoslinguísticos. (veja seção 4.1)

Alomorfia – modificação de uma forma ouelemento linguístico sem a alteração dosignificado. Ex. Temos o prefixo de negaçãoIN em “infeliz”, e a forma variante I em “ilegal”,“ilícito”. Dessa forma, dizemos que ocorreuo processo da alomorfia no prefixo IN.

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

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43

FUESPI/NEAD Letras Português

Segundo Orlandi (2007, p. 14),

Já Kristeva (2007) resume:

Vemos, na concepção dessas duas autoras, que o estudo da

regularidade e sistematicidade dos fenômenos linguísticos foi a tônica da

Gramática de Port Royal, não com o intuito de tentar explicar cientificamente

as mudanças e variações dos falares, mas, como acrescenta Kristeva para

“adaptar as propriedades de uma língua moderna, o francês, à velha máquina

latina, baseada no par nome-verbo: é preciso inserir nela os artigos, as

preposições, os auxiliares, etc.” (p. 164). Nessa época, a arte de bem falar

torna-se moda na França. Percebemos que a roupagem da língua “moderna” é

fundada nas estruturas da língua de origem, não havendo significativas alterações.

Como exemplo, vejamos, a seguir, o estudo de palavras cognatas pelo

método histórico-comparativo, tendo como base a protolíngua (língua-mãe).

[...] a grande contribuição das gramáticas comparadas foi evidenciarque as mudanças são regulares, têm uma direção. Não sãocaóticas, como se pensava. Podemos observar essa direção, essaregularidade da mudança se tomamos, por exemplo, hoje, um tipode uso como o que se dá em ‘sordado’ por ‘soldado’. Nessa posição,vemos que há possibilidade de mudança, de ‘l’ em ‘r’, mas nuncatemos um ‘l’ se transformando em ‘p’, por exemplo.

Um traço positivo, apesar de tudo: como aumenta o número daslínguas aprendidas, as gramáticas tornam-se polilinguísticas;confronta-se o inglês, o francês, o alemão, o italiano, e os quadrosimpostos pelo latim ficam cada vez mais desacreditados [...]Regularização, sistematização, descoberta de lei de modo a que alíngua francesa possa atingir a perfeição dos falares clássicos, eiso tom dos debates do século.

Latim Francês Italiano Espanhol Português

Caballus cheval cavallo caballo cavalo

Oto huit Otto ocho oito

Vemos que o /b/ em “caballus” (latim) muda-se para /v/ no francês, no

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Introdução à Linguística

italiano e no português; /us/ em “caballus” (latim) transforma-se em /o/ no italiano,

no Espanhol e no Português. Já em “oto” (latim), observamos uma ditongação

no francês /ui/ e no português /oi/; o /t/ foi dobrado no italiano e modificado

para /ch/ no Espanhol. Nessa perspectiva de análise, notamos que há

semelhanças significativas entre as palavras da protolíngua e as palavras das

línguas dela derivadas.

Outro ponto de destaque na gramática comparada, são os seus princípios.

Os comparativistas postulavam que gramática é a arte de falar, e falar é explicar

os pensamentos através dos signos que os homens inventaram com esse objetivo.

Kristeva (2007, p. 169) destaca que, nessa gramática, há duas

espécies de palavras:

1ª – nomes, artigo, pronomes, particípios, preposições e advérbios e

2ª – verbos, conjuntos e interjeições.

As partes do discurso são os signos, que são os objetos do

pensamento e que pertencem à primeira espécie; já a matéria do nosso

pensamento está representada pelas palavras da segunda.

Quanto à sintaxe, a Gramática de Port Royal tem como base o par

nome/verbo, que representa a relação respectiva sujeito/predicado. Esses

dois termos, nessa relação, formam um juízo denominado proposição . Além

disso, houve também o estudo da sintaxe de concordância.

A partir dos anos 1870, a Gramática Comparada tomou um novo rumo.

Abandonaram-se as concepções românticas sobre a pureza da língua primitiva

e renunciou-se à análise genética das formas gramaticais, sendo reconhecido

que o objetivo não consistia em confrontar as línguas atestadas com um sistema

original ideal.

2.2.1 Os neogramáticos

Os neogramáticos opuseram-se à concepção schleicheriana da

linguagem, e passaram a considerar a língua como um produto coletivo dos

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FUESPI/NEAD Letras Português

grupos humanos. O método positivo, que aplicaram com rigor, pode ser

ilustrado pela proclamação das leis fonéticas. As obras dessa época revelam

talvez elaboração excessiva, mas nem por isso deixam de ser fecundas e

preciosas. Os pesquisadores estudaram os fatos com precisão e um rigor

até então desconhecidos e estabeleceram cuidadosamente o quadro das

evoluções, elaborando uma doutrina sólida e coerente.

Adotaram o ponto de vista segundo o qual a Linguística, na medida

em que é científica e explicativa, tem que ser necessariamente histórica.

Outros nomes, no entanto, surgiram nesse cenário: Wilhelm Von

Humboldt e William Dwight Whitney, cujas contribuições apresentamos a seguir.

2.3 AS CONTRIBUIÇÕES DE HUMBOLDT E WHITNEY

Segundo Wedwood (2002, p. 107), “um dos linguistas mais originais,

senão o de influência mais marcante, em todo o século XIX foi o erudito e

diplomata alemão Wilhelm V on Humbold t (1767-1835)”. (grifos nossos)

Como já dissemos, o interesse maior dos neogramáticos concentrou-

se nos estudos históricos, entretanto, os de Humboldt não eram exclusivamente

esses, pois ele deu ênfase ao vínculo entre línguas nacionais e caráter nacional.

Foi mais original ao identificar o caráter interno e externo da língua. Para o

autor, o primeiro aspecto seria “o padrão, ou estrutura, de gramática e

significado que é imposto sobre essa matéria bruta e que diferencia uma língua

da outra”; o segundo “seria a matéria bruta (os sons) com base na qual as

diferentes línguas são moldadas.” (WEEDWOOD, 2007, p. 108)

Esse linguista concebia a língua como algo dinâmico, não como um

conjunto de enunciados e frases prontos produzidos pelos falantes. Como todo

sistema, a língua seria regida por princípios ou regras subjacentes que

orientariam os falantes a produzir os enunciados, ou seja, os falantes não

produziriam enunciados de forma aleatória. Com efeito, não temos uma

quantidade finita de enunciados, mas um conjunto infinito.

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Introdução à Linguística

Ele influenciou Ferdinand de Saussure, criador da Linguística Moderna,

por ter diferenciado as formas interna e externa da língua, e Noam Chomsky, o

pai do gerativismo, por ter retomado essa distinção, ao elaborar as noções

básicas da gramática gerativa. Esses autores serão tratados na Unidade IV.

Os estudos de Humboldt contemplaram mudanças fonéticas, sintáticas

e semânticas. As primeiras, sob os preceitos da Linguística diacrônica,

identificaram elementos de transformação nos sistemas fonéticos das línguas.

Voltando ao quadro da página 45, temos huit e oito: /ui/ modificou-se para /oi/

. As mudanças sintáticas provocaram uma distinção gramatical de uso. Por

exemplo, no Português, substituímos às vezes o presente do subjuntivo pelo

presente do indicativo, quando dizemos: “aquelas pessoas querem que eu

faço o que eles querem”. Já as mudanças semânticas decorrem do uso pelos

falantes diante das transformações econômico-sociais, por exemplo. A palavra

“tratante” designava uma pessoa que firmava um compromisso e o cumpria,

mas sabemos atualmente que uma pessoa tratante é aquela que se

compromete e não honra a “palavra”.

William Dwight Whitney (1827-1894) foi estudioso do sânscrito

(antiga língua indiana), lexicógrafo, professor dessa língua e da Linguística

comparativa. Escreveu “Uma gramática Sânscrita” em 1879 e “O estudo da

linguagem” em 1867. Seus estudos consideravam a língua como uma

instituição social e os conceitos desenvolvidos buscavam “soluções práticas

para o aprendizado das línguas” (MILANI, 2011, p.1). Acreditamos nisso, pelo

fato de ele ser professor de imigrantes e indígenas e teria que alfabetizá-los

em língua inglesa. Dessa forma, podemos dizer que ele se preocupou com as

questões didáticas no sentido de melhorar o ato de ensinar língua.

Ele é considerado um neogramático, estudou as obras dos autores

comparativistas e, especialmente, as de Humboldt. Seus estudos tiveram

repercussão na segunda metade do século XIX.

Entre as suas perspectivas de estudo, defendia que a língua é mutável

e está em constante formação e transformação. Essas modificações ocorrem

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sem que os usuários percebam os processos conscientemente. Elas ocorrem

tendo em vista o princípio da regularidade, sobre o qual Whitney apud Milani

(2011, p.6) apresenta três grupos de possibilidades de mudança nas línguas:

1º Alteração dos velhos elementos da linguagem; mudançanas palavras, que se conservaram como substância daexpressão, e mudança de duas maneiras : primeiro, mudançado som articulado; em seguida, mudança de significação: as duas,como veremos, podem se produzir juntas ou separadamente.2º Destruição dos velhos elementos da linguagem;desaparecimento do que estava em uso e isso de duasmaneiras também : então, perda de palavras inteiras; em seguida,perda das formas gramaticais e das distinções.3º Produção de elementos novos; adição aos velhoselementos de uma língua ao lado de nomes novos ou novasformas; expansão externa de recursos da expressão (grifosnossos).

Pelo que percebemos, Whitney preocupou-se com a classificação

das mudanças nas línguas, sistematizando-as nos grupos que enquadrariam

todas as modificações. Também podemos observar, a partir da citação acima,

que Whitney concebia a língua como uma instituição social concreta, capaz

de ser transmitida de geração a geração; por outro lado, a Linguística

Contemporânea concebe que, embora a língua seja transmitida, ela está em

constante movimento, transformações.

Até aqui, vimos que a preocupação em se estudar a linguagem não é

recente. Remonta à antiguidade, passando por diferentes abordagens, como a

perspectiva filosófica, a histórico-comparada e a dos neogramáticos, ainda não

consideradas científicas. Na Unidade a seguir, veremos como a linguagem passou

a ser estudada numa perspectiva científica, surgindo, então, a Linguística.

RESUMINDO

A linguagem é um fenômeno intrínseco ao homem que o caracteriza

como ser social. Os estudos sobre a linguagem humana foram e são foco ao

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Introdução à Linguística

longo da história da humanidade: desde a antiguidade aos dias atuais.

Vejamos algumas características dela ao longo da história.

1) Na Antiguidade:

• Os hindus : desenvolveram estudos a partir dos textos religiosos

que foram reunidos no livro Veda;

• Os gregos : representantes maiores da tradição ocidental.

Discutiram a respeito da natureza da linguagem, tentando responder se ela é

convencional ou natural, o que representou o surgimento de duas escolas

opostas: os analogistas e os anomalistas.

Entre os filósofos , destacamos Aristóteles e Platão; entre os

gramáticos gregos – Dionísio de Trácia e Apolónio Díscolo e entre os

gramáticos latinos – Donato, Prisciano e Varrão.

2) Na Idade Média:

• Os estudos da linguagem foram marcados pela perspectiva de que

as línguas possuíam estruturas idênticas e universais.

• Língua dominante: o Latim

• Gramática Geral e Racional de Port Royal (1660) – primeiro estudo

que mostrou a linguagem fundamentada na razão e no pensamento. A ideia

maior era de que a linguagem é imagem e expressão do pensamento.

3) No Século XIX:

• Gramáticas comparadas : romperam com a tradição greco-

filosófica e voltaram-se para o estudo diacrônico das línguas. Objetivaram-se

deduzir princípios gerais de evolução histórica das unidades lexicais,

gramaticais e sonoras.

Os estudos sobre a linguagem foram marcados pelos autores: Franz

Bopp, Rasmus Rask, Schleicher e Jacob Grimm.

• Os neogramáticos (1870) : eram chamados os autores que

desenvolveram as gramáticas comparadas. O novo rumo do estudo da

linguagem é conceber a língua como um produto coletivo dos grupos humanos,

na perspectiva histórico-comparativa.

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3.1 As contribuições de Humbold t e Whitney

a) Humboldt

• Concebia a língua como algo dinâmico, um sistema regido por

princípios ou regras subjacentes que orientam os falantes a produzirem os

enunciados;

• A língua teria uma forma “interna” (estrutura de gramática e

significado) e “externa” (sons);

• Seus estudos contemplaram as mudanças fonéticas, sintáticas e

semânticas.

• Influenciou: Saussure – distinção entre forma interna e externa e

Chomsky – enfatiza essa distinção novamente, transformando-a em uma das

noções básicas da gramática gerativa

b) Whitney

• concebia a língua como uma instituição social, e os conceitos

desenvolvidos buscavam “soluções práticas para o aprendizado das línguas”,

uma vez que era professor de nativos de imigrantes e indígenas e teria que

alfabetizá-los em língua inglesa.

• Apresentou três grupos de mudança nas línguas:

1º - Alteração dos velhos elementos da linguagem; mudança nas

palavras, que se conservaram como substância da expressão, e mudança de

duas maneiras: : primeiro, mudança do som articulado; em seguida, mudança

de significação: as duas podem produzir-se juntas ou separadamente;

2º - Destruição dos velhos elementos da linguagem; desaparecimento

do que estava em uso e isso de duas maneiras também e

3º - Produção de elementos novos; adição aos velhos elementos de

uma língua ao lado de nomes novos ou novas formas; expansão externa de

recursos da expressão.

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Introdução à Linguística

LEITURA COMPLEMENTAR

Para aprofundar mais seus conhecimentos sobre os estudos da

linguagem, vamos ler o artigo a seguir, que aborda uma dimensão histórica,

social e filosófica da linguagem, reportando-se à concepção platônica “segundo

a qual a linguagem conduz a alguma coisa que não ela mesma e, portanto, o

discurso pode dizer ou não dizer a verdade.” Este artigo tem como referência

um diálogo de Platão, chamado Crátilo. Para compreender melhor, vamos à

leitura.

HISTÓRIA SOCIAL DA LINGUAGEM

José Gaspar de Oliveira Nascimento (Univ. de Sorocaba)

INTRODUÇÃO

Embora possa parecer simples, a expressão história social da linguagem

implica, na verdade, vários pressupostos que devem ser desenvolvidos. Assim, as

pesquisas que envolvem a história da linguagem exigem o concurso de trabalhos

sociológicos, históricos e, sem dúvida, linguísticos. Por essa razão há de se

distinguir, inicialmente, linguística histórica de história da língua.

Para Lyons (1972: 1), a Linguística se define como o estudo científico da

língua. Entenda-se por estudo científico da língua como sendo a investigação dela

por meio de observações controladas e verificáveis empiricamente e com referência

a uma teoria geral da sua estrutura. A Linguística, como qualquer outra ciência,

constrói sobre o passado; e assim o faz não somente desafiando e refutando

doutrinas tradicionais, mas também desenvolvendo-as e reformulando-as.

Para a compreensão dos princípios e hipóteses que regem a Linguística,

o conhecimento da História da Linguística, que não se confunde com linguística

histórica, pode oferecer sua contribuição. Uma coisa é estudar a história de uma

ciência, recuperando suas origens e seu desenvolvimento no tempo – é o que se

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faz na História da Linguística. Outra coisa é estudar as mudanças que ocorrem

nas línguas humanas à medida que o tempo passa, atividade específica da

linguística histórica.

O interesse de uma história social da linguagem está, entre outras coisas,

em constituir uma abordagem necessariamente interdisciplinar. Para tanto um dos

contributos relevantes é a sociolinguística. Assim, a entrada dos conceitos e métodos

da sociolinguística para o campo habitualmente ocupado pela linguística tem vantagens

mútuas: a sociolinguística procura, e encontra, nos estados passados de uma língua,

os dados que podem validar ou invalidar as hipóteses que formulou para explicar uma

mudança atualmente em curso; e a linguística histórica tem a possibilidade, que até

aqui lhe escapava, de ver processarem-se perante os seus olhos mudanças análogas

àquelas que se deram no passado, e que apenas podia conjecturar.

Por outro lado, a história da língua designa uma disciplina, ou um modo

de abordar os fenômenos evolutivos da língua, que tanto pode ser considerada

parte integrante da linguística histórica, como da história propriamente dita. O objeto

da história da língua é uma língua em particular, na sua existência definida temporal

e espacialmente, o que significa que os fatos linguísticos devem ser

permanentemente correlacionados com fatos históricos, que os condicionaram.

O objetivo deste trabalho é apresentar uma leitura da história social da

linguagem focalizando uma concepção platônica segundo a qual a linguagem

conduz a alguma coisa que não ela mesma e, portanto, o discurso pode dizer ou

não dizer a verdade.

O corpus é um dos diálogos de Platão: Crátilo.

Justifica-se a escolha de Crátilo, visto que aí está a linguagem posta em

questão. Platão examina a adequação do que se diz com a a coisa dita, o que, por

si, é um marco fundamental para as reflexões sobre a linguagem. Estabelecendo

as bases do raciocínio moderno, os gregos forneceram também os princípios

fundamentais segundo os quais a linguagem foi pensada até nossos dias. Afinal,

durante muitos séculos, os princípios aperfeiçoados pelos gregos conduziram as

teorias e as sistematizações linguísticas na Europa.

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Introdução à Linguística

Além dos aspectos especificamente linguísticos, é mister incluir, neste

estudo, outros, tais como sociolinguísticos, históricos e filosóficos. Caracteriza-se

aí a multi e a transdisciplinaridade tão comuns nos estudos atuais das ciências

sociais e, por que não dizer, das chamadas ciências duras (hard sciences).

É verdade que os sociólogos dos anos setenta entendiam que as ciências

duras não poderiam ser estudadas socialmente, já que a sociologia e a história

trabalhavam com aspectos institucionais da ciência, não com o núcleo do

conhecimento. Diziam eles que isso cabia aos filósofos. Shappin (1982), questionando

o caso do cientista que se deixa levar por razões não-científicas (ideológicas, por

exemplo), é um mau cientista. Já, para Kuhn (1962), as ciências duras não são críticas,

são dogmáticas. Questiona-se: a prática científica não é uma prática social? Hoje, os

sociólogos consideram que há interferência do social no trabalho científico.

Se na história social da ciência, a partir de 1930, na Inglaterra, identifica-

se uma história externalista, que contempla os fatores externos como influenciadores

do fazer cientítico – ideologia e ciência entrecruzam-se -, na história social da

linguagem essa dualidade entre externo e interno está presente.

CRÁTILO

A filosofia e a linguagem

O diálogo Crátilo é o texto básico da filosofia helênica sobre a linguagem.

Nele encontram-se grandes questões linguísticas e filosóficas. A filosofia grega

inicia-se precisamente com o conhecimento de que a palavra é apenas nome e,

por isso, não representa o verdadeiro ser. A questão é a seguinte: qual é a relação

entre a palavra e a coisa? Crátilo – o filósofo – procura resolver este problema,

mas o diálogo não chega a uma conclusão a respeito da aporia da diferença

entre a linguagem e a realidade. Mas esta falta de solução no diálogo Crátilo

não é uma deficiência. A ausência de uma resposta explícita decorre das

dificuldades naturais que o paradigma racional de Platão encontra ao investigar

a realidade empírica.

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Hoje, uma das questões básicas é a da linguagem. Ricoeur, em Da

Interpretação, assevera que a linguagem é um dos problemas fundamentais da

filosofia contemporânea. Habermas poderia dar igual testemunho. Aliás, nos últimos

cinquenta anos diversas vertentes das ciências têm versado sobre a linguagem: a

fonologia e as teorias linguísticas, os problemas da comunicação e a cibernética,

as matemáticas modernas e a informática, os computadores e suas linguagens,

os problemas de tradução das linguagens e a busca de compatibilidade entre

linguagens-máquina, os problemas de memorização e os bancos de dados...

Como se pode observar, a pesquisa da linguagem é multi, inter e

transdisciplinar: linguística, semântica, pragmática, semiótica, histórica,

sociolinguística, psicológica, antropológica, etc. A própria filosofia, que se manifesta

nos estudos da linguagem em Crátilo, revela múltiplos enfoques: lógico, histórico,

linguístico, ontológico, epistemológico, ético. Na verdade, vivemos um momento

de valorização temática da linguagem.

Eis por que o objetivo deste trabalho procura examinar, desde o surgimento

da filosofia, este problema e suas consequências. Especialmente em Crátilo, na

relação nome-conhecimento-coisa.

Não são propriamente respostas que se deve buscar na leitura do diálogo

platônico. Quem procura uma resposta às questões de Sócrates e de seus

interlocutores não a encontra. O filósofo se põe em condições de igualdade com

seus interlocutores, Ele não se considera um mestre (Só sei que nada sei), apenas

alguém que ajuda descobrir a verdade que está dentro de cada um.

Crátilo possui uma certa força que o conserva sempre atual. O caráter

retórico, dialético e a oralidade fazem parte do debate, da investigação que leva o

diálogo à inconclusão e a Sócrates confessar sua ignorância, cujo ensinamento

não é doutrinal, mas uma lição de método, segundo Koyré(1984):

Ensina-nos o uso e o valor das definições precisas, de conceitosempregados na discussão e a impossibilidade de os chegarmos apossuir sem proceder, previamente, a uma revisão crítica das noçõestradicionais, das concepções ‘vulgares’, recebidas e incorporadasna linguagem.

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Introdução à Linguística

A leitura de Crátilo exige a participação do leitor à semelhança de uma

obra literária, pois o pensamento de Platão só se dá de modo fragmentário: tudo é

proposto em estado de pergunta e resposta. Afinal, para Platão, a filosofia não é

acessível a todos, embora o diálogo Crátilo, entre os demais, tenha sido escrito

para o público leigo.

Crátilo: estrutura

A obra Crátilo tem o nome do primeiro mestre de Platão. Segundo

Aristóteles, Platão foi provavelmente discípulo de Crátilo, um radical seguidor de

Heráclito, tão radical que exagerava e adulterava o heraclitismo. Se para Heráclito

era impossível entrar duas vezes num mesmo rio, para Crátilo isso não se podia

fazer sequer uma vez. Aliás, Crátilo acabou persuadindo-se de que não devia dizer

nada e, por isso, contentava-se em mover o dedo. Do silêncio de Crátilo e do seu

sentido filosófico encontram-se, como prova, no diálogo de Platão que tem o seu nome.

Até Crátilo pouco fala, apenas um quinto do diálogo; no restante, fazem-no falar. Contudo,

é este Crátilo o interlocutor de Sócrates, o que, por essa razão, dá nome ao diálogo,

que trata sobre a justeza dos nomes e não sobre essa figura histórica a respeito da

qual pouco se sabe.

Crátilo parece ter vindo a lume depois de Eutidemos e estar próximo a

Parmênides e Teeteto, outros diálogos de Platão. Assim, provavelmente, foi escrito

entre os anos 380 e 367 a. C.

Pode ser dividido em duas partes:

a) a primeira, a mais longa, é a conversação entre Sócrates e Hermógenes;

b) a segunda, entre Sócrates e Crátilo.

As conclusões da primeira parte são revistas na segunda, pois, o diálogo,

conduzido especialmente por Sócrates, gira em torno da correção ou da exatidão

dos nomes; nesse sentido, sem caráter conclusivo, são expostas duas teses:

a) a convencionalista, defendida por Hermógenes, que apresenta a justeza

ou correção dos nomes como sendo uma mera convenção e acordo;

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FUESPI/NEAD Letras Português

b) a naturalista, defendida por Crátilo, que admite haver uma correção

dos nomes por natureza atribuídos a cada um dos seres.

A obra começa de imediato com Hermógenes expondo a Sócrates, com a

permissão de Crátilo, as duas posições sobre a natureza do nome – nomoV / fusiV – e,

ainda na primeira parte, apresenta uma longa exposição etimológica ligada a alguns

problemas da filosofia de Platão. Exposição interessante, pois pode ser de interesse

histórico em relação ao desenvolvimento da fonética, da semântica e da sociolinguística.

Hermógenes conclui pelo convencionalismo na existência dos nomes.

A dificuldade, porém, continua na segunda parte, em que Crátilo defende

seu ponto de vista naturalista. Os nomes parecem possuir, contrariamente à opinião

de Hermógenes, uma certa justeza natural, e também, contra Crátilo, parece que

nem todos os nomes são exatos por natureza. Eles podem ser inexatos, e o uso e

a convenção podem ter uma parte importante na sua formação.

Se Crátilo nada conclui, qual o objetivo de Platão?

Se a obra for levada em conta dentro do conjunto das obras de Platão,

poder-se-á obter uma resposta. As questões sobre o convencionalismo ou

naturalismo do nome – nomoV / fusiV – têm , sem dúvida, importância didática e

servem para apontar a existência de diversos adversários de Platão. Hermógenes

é um filósofo jovem e pouco conhecido, por isso, é pouco provável que Platão

deseje criticá-lo. Por outro lado, a tese de Crátilo não é aceita nas conclusões do

diálogo. Também não são aceitos os ensinamentos de Heráclito e de Demócrito.

E, finalmente, a tese do homem-medida de todas as coisas, de Protágoras, é

diversas vezes refutada.

Fica a questão: o diálogo trata de um problema de linguagem ou de

conhecimento? É possível que a exposição da teoria da justeza dos nomes seja

um elemento de apoio dialético à conhecida Teoria das Formas, observável no

estudo etimológico do diálogo ao mostrar que não é o nome que deve ser

interrogado, mas as próprias coisas. Ora, é a partir das coisas que nasce o

conhecimento, e não pode existir conhecimento quando tudo está em contínua

mudança. O conhecimento exige permanência.

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Introdução à Linguística

Conclui-se que Crátilo é um diálogo aberto (atinge diversos objetivos) e é

também um diálogo coerente com o sistema geral da filosofia de Platão: pode

procurar nele um esboço de uma filosofia da linguagem e uma parte de uma filosofia,

na qual a linguagem é um elemento filosófico ao lado de outros.

A verdade em crátilo

A dialética está sempre presente na filosofia de Platão. Sua argumentação

não segue os padrões da lógica formal criada por Aristóteles, que investiga a força

ou sentido de certas palavras, sempre a partir de modelos de proposições ou

enunciados. No diálogo de Platão percebe-se uma força argumentativa, uma

preocupação com a verdade que o distingue dos sofistas. A dialética do perguntar

e do responder defende-se de raciocínios falsos, dos sofismas, prestando atenção

não só às palavras, mas principalmente ao problema ou à realidade em debate.

Para Platão, o verdadeiro e o falso têm como critério a correspondência do

enunciados e dos nomes com as coisas.

Isso vale para a leitura de Crátilo. Após a colocação das teses de Crátilo e

Hermógenes sobre a justeza ou correção dos nomes, e tendo se iniciado o diálogo

entre Sócrates e Hermógenes, o que chama a atenção do leitor é o tipo de

argumentação de Sócrates, que mostra que há um discurso verdadeiro – logoV

alhqhV – que diz as coisas como são, e um falso – yeudhV – que diz como as

coisas não são. A questão é dupla: primeiro, a verdade ou a mentira é uma relação

entre a linguagem e a coisa; segundo, a proposição para ser verdadeira precisa

ser verdadeira no todo e nas partes. Isto significa que discurso verdadeiro é igual a

nome verdadeiro, e falso a nome falso. Assim, a verdade é o nome, e a falsidade é

o não-nome, isto é, o som sem significação.

Outro argumento de Sócrates refere-se à essência fixa que as coisas

possuem, independente do sujeito. Ela é por natureza – fusiV . Isso vale também para

os atos. Platão descobre que dizer é um ato, mas não vê no ato de fala as possibilidades

que Austin, Chomsky e outros filósofos e linguistas atuais chamam a atenção.

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FUESPI/NEAD Letras Português

O ato de dizer tem a finalidade intrínseca de dizer as coisas. A função do

dizer consiste em atribuir a cada coisa sua natureza. Nomear as coisas é possível

graças ao instrumento que é o nome e à ação de nomear, de usar este instrumento.

A finalidade do dizer (ou nomear) consiste no ensinar e no distinguir a essência

das coisas.

Em Crátilo, a argumentação de Sócrates parte do seguinte: há

proposições verdadeiras e falsas e as proposições são compostas de nomes.

Assim, as partes de uma proposição verdadeira devem ser verdadeiras.

A seguir, Sócrates desloca a questão da verdade e da mentira relacionada

à proposição para o exame da função da linguagem. O objetivo do nome é ser

instrumento do falante para um determinado fim. Ao formador de nomes –

nomoqethV , o nomoteta, o legislador – cabe configurá-los com sílabas e letras,

com sons, naturalmente adequados à coisa que nomeia. Ao dialético, porém,

compete distinguir e julgar se uma linguagem está bem ou não. Mas, qual a função

da linguagem? É a de simplesmente nomear esta ou aquela entidade ou uma

maneira de nomear coisas diferentes? Platão esclarece ao dizer que um nome é

correto quando quem o atribui expressa a relação entre a natureza da coisa e a

forma do nome em letras e sílabas. Não importam as sílabas e as letras usadas

desde que a propriedade do objeto seja reproduzida.

Assim sendo, a questão da verdade da exatidão do nome torna-se o problema

da verdade, do conhecimento e do significado da linguagem. É nesta última que Platão

procura o meio eficaz e verdadeiro para dizer a essência das coisas.

O sujeito da linguagem

Em relação ao problema da justeza, da correção dos nomes, a tese de

Crátilo parece predominar no diálogo, diálogo que surpreendentemente se ocupa

do início até o fim com a questão da linguagem. Na primeira parte Sócrates

defende a tese de Crátilo contra a tese convencionalista de Hermógenes. Na

segunda parte Sócrates solicita a Crátilo que a defenda.

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Introdução à Linguística

Crátilo é uma das peças da filosofia de Platão, um de seus momentos.

Os problemas nele colocados tendem a ser esclarecidos em outras obras de

Platão: Sofista, Parmênides, Teeteto, pois o fato de reduzir a linguagem à questão

do nome, e mais exatamente, o logo, o enunciado, o discurso, à simples frase, e

esta ao nome, e o nome à sílaba, e a sílaba à letra, prejudica a argumentação e a

análise do problema. É por isso que o estudo completo da questão da linguagem,

em Platão, exige a leitura de outros diálogos. Crátilo, porém, é um momento

privilegiado.

Crátilo e Hermógenes têm uma posição clara sobre a justeza natural e

sobre o acordo e convenção dos nomes. Mas qual é a posição de Platão? No início

do diálogo, Sócrates esclarece o objetivo da discussão, que consiste em saber a

verdade sobre a exatidão dos nomes. Para Platão, esta verdade, através de

Sócrates, não tem um objetivo meramente gramatical ou linguístico. A tese de Platão

visa à articulação entre a linguagem e o conhecimento: a linguagem é modalidade

de formação ou articulação do próprio conhecimento. A propósito, NEVES (1987:

54) completa:

Na primeira parte do diálogo, contra a afirmação de Hermógenes de que o

nome justo é aquele que se atribui a cada coisa, distinguem-se dois aspectos: a) a

relação entre a justeza do nome e a natureza da coisa; b) o sujeito que atribui o

nome.

Dê-se atenção ao segundo aspecto. Segundo Hermógenes, o nome que atribui

a cada coisa é o nome de cada coisa. E, conforme ele, tanto os indivíduos – eu e tu –

como os cidadãos podem atribuir nome. O aspecto fundamental do problema está na

O conhecimento é, assim, anterior e superior à imagem e ao logos,que é a expressão linguística dessa imagem. O denominar éposterior ao conhecer, pois há uma maneira de conhecer as coisassem os nomes, por meio das próprias coisas e da relação entreelas. A linguagem já supõe a existência das coisas, de umaessência inteligível e imutável, verdadeira e sempre idêntica a simesma. (...) As palavras são apenas sinais que representam asideias e as coisas.

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figura do nomoteta ou legislador. Tal figura simbólica vem associada à do dialético, do

gramático ou filósofo, aquele que sabe perguntar e responder e cumpre o papel de juiz

em relação à atividade do legislador. É necessário dizer se os nomes são exatos ou

não, se são verdadeiros ou falsos.

O dialético interpreta e dirige o legislador em relação ao uso dos nomes,

ao uso da linguagem. O nomear do legislador consiste em formar com sons e

letras o nome por natureza apropriado, desde que siga a exigência de uma mesma

forma.

Enfim, a descoberta de que a linguagem tem um sujeito, um legislador e

um dialético, permite deslocar a questão da convenção para o contexto da

linguagem. Embora Platão não tenha tido consciência de que a linguagem,

contextualmente, pode ter uma multiplicidade de usos, a leitura de Crátilo pode ser

feita nesta perspectiva.

Abordagem etimológica em crátilo

No estudo das etimologias, em Crátilo, observa-se uma certa ordem. Inicia-

se com nomes homéricos, depois os nomes divinos e, por último, os nomes

primitivos. Curioso: com as etimologias, tanto se defende a tese naturalista de

Crátilo, como também se mostra a impossibilidade de explicar a origem dos nomes

primitivos.

Platão descobre que os nomes sofrem mudanças com o passar do tempo.

Sob o ponto de vista linguístico-semântico, essas mudanças oferecem algumas

curiosidades. Aparecem, por exemplo, embrionariamente, preocupações fonéticas,

como a distinção entre a letra e o som. Os sons são, em Crátilo, o material com o

qual o nomoteta (= o legislador) institui os nomes. Os sons variam de cultura para

cultura, embora predomine sempre a ideia de que existe uma língua correta. No

diálogo, Sócrates procura estudar as letras, a começar pelas vogais, para depois

classificar por espécies as que carecem de som e ruído e as que, não sendo

vogais, mudas também não são. Essa confusão socrática (= platônica) entre som

Page 60: Livro Texto Base de Linguistica 1

60

Introdução à Linguística

e letra corresponde à distinção entre vogais e consoantes. Sem dúvida, esta

abordagem sobre fonética é surpreendentemente positiva.

Ainda, nesses exercícios etimológicos, Crátilo oferece algumas noções

de sociolinguística, quando o texto menciona as diferenças sociais e regionais

relativamente à variação linguística.

Outro aspecto interessante é a diferença de fala do homem e da mulher.

Para Platão, as mulheres conservam com maior justeza a antiga linguagem – são,

lingüisticamente, conservadoras. Tal registro não passou despercebido por aqueles

que estudam as origens dos estudos gramaticais e linguísticos. Cícero, por exemplo,

em De Oratore III, 12, dizia que melhor do que os homens, as mulheres guardam o

acento antigo, porque elas variam pouco de conversação e se mantêm fiéis ao

que aprenderam na infância:

E mais. Sever Pop, in Révue de Linguistique Romane, IX, 47a. 107,

assevera

... facilius enim mulieres incorruptam antiquitatem conservant, quodmultorum sermonis expertes ea tenent semper quae prima dixerunt.

E não faltam exemplos mais recentes. Meringer (1923: 83), referindo-se

às mulheres, diz:

... ellas más bien son las propias conservadoras del idioma, comotambién com la mayor fidelidad conservan la antigua tradición, lacostumbre, el traje, aun cuando el hombre haya abandonado yatodas estas realidades.

... le patois des femmes est presque toujours plus conservateurque celui des hommes de la même localité, ceux-ci étant plussouvent obligés de prendre contact avec des gens de la ville esurtout avec les autorités.

Outro aspecto interessante registrado por Sócrates, em Crátilo: o

empréstimo das palavras:

Page 61: Livro Texto Base de Linguistica 1

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FUESPI/NEAD Letras Português

Tenho para mim que os Helenos, principalmente os que moramentre os bárbaros receberam destes muitos nomes (409e).

Não é fácil pô-la em relação com a língua helênica, além de ser umfato que os Frígios empregavam esse mesmo termo, com ligeiramodificação (410 a).

Exemplifica-se com a palavra pyr – pur :

Observa-se, a partir do exemplo dado, que Platão tem uma certa

consciência etimológica. Aliás, a origem estrangeira das palavras é perfeitamente

explicada, hoje, pelo parentesco do grego com o sânscrito.

Finalmente, do exame da etimologia, além das contribuições linguístico-

semânticas – primitivas, é verdade -, fica a questão da imitação da própria natureza

da coisa, feita por meio da voz, de cada coisa que se imita e nomeia.

A escrita

Platão fala da escrita, mas não emprega o conceito de texto, menos ainda

de textualidade, conceitos, hoje, em voga, principalmente nos estudos semânticos

da linguagem, em particular pela Análise do Discurso e pela Linguística Textual.

Realmente, nem toda a escrita é texto. Um conjunto de frases ou uma simples

seqüência linguística não identifica o texto e não oferece uma textualidade. São

necessárias outras qualidades, como a coerência, a organização lógica e estética.

Para Guimarães (1995: 77) são necessários dois funcionamentos próprios da

textualidade: coesão e consistência:

A coesão diz respeito às relações que reenviam a interpretação deuma forma à outra, numa seqüência do texto. A consistência dizrespeito às relações que reenviam a interpretação de uma formaao acontecimento enunciativo.

É da essência do texto não se bastar a si mesmo, apesar de sua autonomia

linguística. Há uma produção e uma recepção do texto que perpassa a organização

Page 62: Livro Texto Base de Linguistica 1

62

Introdução à Linguística

de seus elementos, pois todo texto resulta de um processo dialético ou

simplesmente dialógico. Fávero (1993: 7), a propósito, afirma:

O texto consiste, então, em qualquer passagem falada ou escritaque forma um todo significativo independente de sua extensão.Trata-se, pois, de um contínuo contextual caracterizado pelos fatoresda textualidade: contextualização, coesão, coerência,intencionalidade, informatividade, aceitabilidade, situacionalidadee intertextualidade.

Hoje, ensina-se a tipologia textual, mas ainda não se reflete suficientemente

sobre a questão da verdade. Será que os textos escritos, em tão grande quantidade,

nos jornais e livros, não são simulacros, veículos da ideologia, e não da verdade?

Sem dúvida, a determinação ideológica revela-se, em toda a sua plenitude, no

componente semântico do discurso subjacente ao texto. A Análise do Discurso

procura desfazer a ilusão idealista de que o homem é senhor absoluto de seu

discurso. Ele é, antes, servo da palavra, uma vez que temas, figuras, valores,

juízos provêm das visões de mundo existentes nas formações social, ideológica e

discursiva do homem deste final de século.

Platão não pensava assim. Censura os discursos que não nascem do

próprio espírito do autor, que não verdadeiros escritos da alma, tendo como tema

o justo, o belo, o bom. Paradoxalmente, sabe-se que o próprio filósofo não escreveu

o mais importante de sua doutrina por considerar a escrita instrumento insuficiente

para realizar esta finalidade.

CONCLUSÃO

O diálogo Crátilo só pode ser entendido quando situado na obra de Platão

e no contexto da filosofia grega. Desta maneira, os objetivos do diálogo parecem

adquirir sentido. Assim, os argumentos de Sócrates contra Hermógenes e Crátilo

ganham certa coerência. Assim também a figura do nomoteta (= o legislador) e do

dialético, do conceito do nome como meio de conhecimento das coisas, a partir da

Teoria das Formas, pode ser compreendida.

Page 63: Livro Texto Base de Linguistica 1

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FUESPI/NEAD Letras Português

Por outro lado, a questão do nome, no Crátilo, traça o percurso de uma

concepção da linguagem em Platão. Se ele concebe a linguagem como um meio,

um instrumento sensível incapaz de traduzir o mundo inteligível das Formas e do

Bem, por outro lado, a insuficiência da linguagem e da escrita é atenuada através

da articulação da retórica com a dialética, e através do diálogo, pois, o diálogo,

como forma expressiva e comunicativa, possui uma forte dimensão metafórica,

ambígua, dramática, que exige da linguagem uma constante recriação linguística.

A circularidade do diálogo atenua a fixidez da linguagem.

Afirmou-se acima (p. 12) que o homem é servo da palavra, uma vez que

temas, figuras, valores, juízos provêm de sua visão de mundo condicionada à

formação social, ideológica, discursiva. Em outras palavras: na perspectiva da

história das ciências sociais não há linguagem neutra, não há discurso neutro.

E no que diz respeito às ciências duras, pode-se dizer que a ciência é

neutra?

Entre os estudiosos da história da ciência (década de 60/70), alguns

admitiam um discurso que assegurava que o cientista, dentro do laboratório, pode

ser neutro. Seu trabalho, que consiste em produzir conhecimento, por ser objetivo,

estaria isento de influências externas.

Mas será possível deixar de fora o social, quando se entra num laboratório?

Na verdade, assim como a linguagem das ciências sociais é perpassada pela

ideologia, assim também as ciências naturais, segundo os estudos mais recentes,

não estão dissociadas do contexto social, haja vista, por exemplo, a presença de

ideologias racistas em certas produções científicas.

Do exposto se conclui que a linguagem, como manifestação de ideias,

seja das ciências sociais, seja das ciências naturais, não é neutra. Conclui-se

também que o diálogo de Platão – Crátilo -, como escrito básico do pensamento

grego sobre a linguagem, revela questões linguísticas e filosóficas que desafiam a

investigação científica até os dias de hoje.

Page 64: Livro Texto Base de Linguistica 1

64

Introdução à Linguística

BIBLIOGRAFIA

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Knowledge – A Source Book, 1982, p. 103-150.

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Como forma de rever e consolidar seus conhecimentos acerca dos conteúdos

dessa Unidade, desenvolva os seguintes tópicos de atividades:

1) Construa um texto, apresentando e discutindo as diversas concepções de

linguagem que esta Unidade traz.

2) Pesquise, numa gramática normativa de língua portuguesa, alguns

conceitos e concepções que retratam o pensamento filosófico greco-romano

Page 65: Livro Texto Base de Linguistica 1

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FUESPI/NEAD Letras Português

acerca de categorias linguísticas, como por exemplo, a noção de sujeito,

predicado, substantivo, verbo, advérbio etc.

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Page 67: Livro Texto Base de Linguistica 1

UNIDADE 3

OBJETIVOS

1. Reconhecer os critérios que conferem à Linguística o status de ciência.

2. Identificar o conceito e o objeto da Linguística enquanto ciência da

linguagem.

3. Estabelecer a diferença entre Linguística e gramática.

A LINGUÍSTICA: CIÊNCIA DA LINGUAGEM

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FUESPI/NEAD Letras Português

3 A LINGUÍSTICA: CIÊNCIA DA LINGUAGEM

A citação acima traduz um dos conceitos mais atuais de língua, nos

nossos dias, e nos leva à reflexão do que hoje representa esse fenômeno no

contexto das discussões científicas. Embora a língua sempre tenha sido objeto

de discussão entre os estudiosos, em todos os tempos, nem sempre os

estudos envolvendo questões linguísticas foram considerados científicos.

Vamos, neste espaço, situar a Linguística enquanto ciência da linguagem mas,

em primeiro lugar, discutiremos a ideia de ciência, no contexto do pensamento

da filosofia moderna.

3.1 REFLEXÕES SOBRE CIÊNCIA

Vejamos, inicialmente, o que está posto nos manuais de Linguística e

nas discussões e reflexões em torno da definição de Linguística enquanto

ciência da linguagem.

O que é Linguística, afinal?

A resposta a essa pergunta é, invariavelmente: Linguística é o

estudo científico da linguagem.

Essa resposta sugere que nem todos os estudos da linguagem podem

ser considerados científicos, pois, para que esses estudos possam estar

incluídos entre aqueles ditos científicos, devem submeter-se a alguns critérios

de cientificidade, indispensáveis. Considerar a Linguística uma ciência sugere

reflexões acerca do próprio conceito de ciência e acerca dos critérios que

conferem a uma área de conhecimento o status de ciência. Nesse sentido,

temos que levar em conta o objeto de estudo da Linguística e a própria noção

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistemaabstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológicaisolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelofenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciaçãoou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidadefundamental da língua. (BAKHTIN, 2004, p. 123)

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70

Introdução à Linguística

de lingua(gem). Em outros termos, necessitamos refletir sobre o que é ciência,

o que é linguagem e qual o objeto de estudo da Linguística, para podermos

ter segurança quanto à compreensão do que vem a ser a ciência da linguagem.

Vejamos, então, alguns aspectos pontuais dessa discussão,

indispensáveis para que se compreenda como os estudos da língua passaram

a ser considerados científicos.

As noções de ciência e de método científico, embora tenham

suscitado discussões e posicionamentos até controversos, ao longo dos

tempos, evoluíram consideravelmente desde o início do século XX. Essa

evolução deve-se, em parte, à compreensão de que a ciência é um processo

sempre em construção, buscando, a todo instante, renovar-se e reavaliar-se

continuamente sem jamais ser vista como pronta, acabada e definitiva.

Uma forma de compreender a maneira como se pensa a ciência hoje

e as controvérsias envolvidas nesse pensamento, necessária se faz uma rápida

incursão em torno das três grandes correntes da filosofia moderna, espaço

principal do pensamento acerca da constituição da ciência: o racionalismo

cartesiano, o empirismo inglês e o idealismo alemão. Ressalte-se, ainda, o

positivismo, tributária do empirismo.

A corrente de pensamento filosófico conhecida como racionalismo

cartesiano teve o seu início com René Descartes. Predominou no século XVII

e concentrou-se em provar a existência de Deus e em discutir as questões

relacionadas ao tema. Enfatizou a questão do conhecimento e indagou sobre

o papel da mente na aquisição do conhecimento, notadamente buscando

respostas sobre a origem, a essência e o alcance das ideias por meio das

quais o conhecimento se constitui. Para Descartes, as ideias seriam

caracterizadas como sendo adventícias, fictícias e inatas.

O empirismo inglês, que teve Bacon como precursor, Locke como

seu fundador e David Hume como um dos seus continuadores, floresceu no

século XVIII. Ainda no seu início, seguiu o pensamento racionalista e focalizou

a questão do conhecimento, mas se opôs àquele pensamento à medida que

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FUESPI/NEAD Letras Português

negou a existência das ideias inatas. Ao se desenvolver, foi-se distanciando

da influência cartesiana, negando a existência das ideias abstratas. Em relação

ao conhecimento, Hume estabeleceu a diferença entre ideias e impressões,

considerando que aquelas são representações mentais, independentes de

vivência sensorial e estas são percepções reais, vivências sensoriais. Chegou

a pôr em dúvida a própria substância espiritual. Nesse contexto filosófico, o

empirismo reduziu o conhecimento às percepções e vivências reais do

indivíduo. A experiência seria, pois, a única fonte válida de conhecimento.

No início do século XIX, surgiu um novo pensamento que orientaria as

ideias filosóficas modernas, o idealismo alemão. Iniciado por Kant, e seguido

por Hegel, teve como característica principal a ideia de que o conhecimento

estaria a serviço da lei moral, ou seja, defendia o pensamento de que o saber

levaria o homem a aperfeiçoar-se moralmente. Dentre os grandes temas

discutidos no contexto do idealismo alemão, temos: a razão e a liberdade; a

autonomia do indivíduo e a organização racional da sociedade e do Estado; e

o sentido da História.

Ainda na primeira metade do século XIX, surgiu uma reação às

preocupações metafísicas das ideias que sedimentavam o racionalismo

cartesiano e o idealismo alemão: seria o positivismo de August Comte. Essa

corrente deu ênfase à experimentação, opondo-se à especulação. Era um

período em que as ciências experimentais floresciam, mas prevalecia, ainda,

a especulação racionalista. Entretanto, pretendia-se uma filosofia que se

propusesse a formular um corpo ordenado de doutrinas gerais, comuns às

diversas ciências particulares, identificado a partir dos resultados alcançados

pelos diferentes ramos do conhecimento. Para Comte, todo estudo científico

deveria ser ao mesmo tempo racional e empírico já que o intelecto humano

escolhe os dados, reelabora-os e os analisa a partir de uma hipótese particular.

Pode-se considerar que o positivismo adota o ponto de vista do empirismo

radical, uma vez que considera que à ciência cabe observar e analisar os

dados da realidade sem, no entanto, fazer indagações do tipo transcendental

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72

Introdução à Linguística

ou metafísico e sem considerar entidades que não são físicas. Neste sentido,

o positivismo admite que o método científico é indutivo, é fortemente empirista

e utiliza-se da verificação para validar às suas análises.

Nos nossos dias, põe-se em dúvida o próprio conceito de método

científico, como sendo válido para todas as ciências. O grande questionamento

é se as disciplinas que estudam o comportamento humano, por exemplo,

poderiam ser tratadas a partir dos mesmos métodos e conceitos das ciências

físicas. Diante disso, atualmente, tende-se a aceitar a multiplicidade de métodos

de investigação científica, sendo tais métodos variáveis de ciência para

ciência. Rejeita-se, dessa forma, a unificação de um método científico. Assim

sendo, pergunta-se: Que características fundamentais atribuem cientificidade

ao estudo linguístico?

Embora não haja consenso a esse respeito, algumas exigências como

a comprovação empírica, a ausência de preconceitos e o caráter explicativo

e explícito constituem algumas das características exigidas aos estudos

científicos da linguagem. Chamamos a atenção para o fato de que, para a

Linguística, o caráter empírico diz respeito apenas ao fato de o linguista lidar

com dados suscetíveis de serem comprovados empiricamente, ou seja, pelos

dados da língua. Diante dessas reflexões, na próxima seção trataremos da

constituição desse campo de conhecimento, no que se refere a sua concepção,

definição e objeto de estudo.

Para concluir esta seção, apresentamos o ponto de vista do linguista

brasileiro, Prof. Dr. Francisco Gomes de Matos, sobre a seguinte indagação:

A Linguística é uma ciência?

Sim! Não há dúvida, No momento em que a linguística tem umobjeto de estudo próprio, uma metodologia, um método de estudosrigorosos que podem ser de natureza qualitativa e quantitativa, elareúne as condições ou pré-condições para poder ser consideradaciência. A linguística atende a critérios de cientificidade, tais como:sistematicidade (do conhecimento linguístico), objetividade,relevância (teórica e aplicativa), parcimônia (descritivo-explicativa).Como tal, possui uma terminologia própria, objeto de estudo

Page 73: Livro Texto Base de Linguistica 1

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FUESPI/NEAD Letras Português

3.2 A LINGUÍSTICA E SEU OBJETO DE ESTUDO

Assinalamos, acima, algumas características dos estudos da

linguagem que contribuíram para que esse campo de conhecimento viesse a

ser considerado uma ciência. Uma delas diz respeito ao caráter empírico das

investigações sobre a linguagem. Nesse ponto, chamamos a atenção para o

fato de que, para a Linguística, o caráter empírico diz respeito apenas à ideia

de o linguista lidar com dados suscetíveis de serem comprovados

empiricamente, ou seja, pelos dados da língua.

Outro ponto diz respeito à ausência de preconceito nas investigações

linguísticas, mostrando um posicionamento oposto àquele adotado pela

gramática normativa, segundo o qual existem variedades linguísticas melhores

que outras, o que revela julgamento de valor.

Já o caráter explicativo da Linguística, uma outra característica

apontada, diz respeito à exigência de verificação empírica. Nas investigações

sobre a linguagem, parte-se de dados sobre a língua, formulam-se hipóteses

teóricas a partir deles. As hipóteses devem ser empiricamente comprovadas,

especializado por terminólogos. Quer dizer: a linguística é umconjunto de saberes sistemáticos do qual têm resultado modelosdiversos, uma infinidade de modelos, alguns até testados, modelosemergentes que estão a serviço das mais diversas áreas dashumanidades em geral.(XAVIER e CORTEZ (Orgs.), 2003, p. 93-94).

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74

Introdução à Linguística

daí resultará a validade científica dessas hipóteses. Caso as hipóteses iniciais

não sejam confirmadas, haverá uma reformulação dessas hipóteses até que

se chegue a uma hipótese que alcance todos os fenômenos sob análise.

Finalmente, o caráter explícito da Linguística, por seu turno, refere-se

à exigência de definição clara, precisa e pormenorizada dos pressupostos

teóricos que orientam as análises. Também devem ser explícitos os termos e

conceitos utilizados na argumentação que se apresenta ao realizar um estudo

científico da linguagem.

Considerando o que apresentamos até aqui em termos de reflexão

do que vem a ser considerado ciência, vamos retomar o conceito inicial de

Linguística: estudo científico da linguagem. Vamos, agora, trazer alguns

esclarecimentos acerca do objeto de estudo da Linguística: a linguagem.

No seu Curso de Linguística Geral, Ferdinand de Saussure, o criador

da Linguística moderna, considera, nas páginas iniciais deste livro, que “A

matéria da Linguística é constituída inicialmente por todas as manifestações

da linguagem humana” (p. 13) e no fechamento deste mesmo livro assinala,

textualmente, que a “Linguística tem por único e verdadeiro objeto a língua

considerada em si mesma e por si mesma.” (p. 271).

Para refletir um pouco sobre as considerações saussurianas acerca do

objeto de estudo da Linguística, é interessante que olhemos, rapidamente, as

fases que antecederam a constituição e consolidação desse objeto, quais sejam:

a fase dos estudos gramaticais (relativos à gramática normativa), a fase dos

estudos filológicos e a fase dos estudos comparativistas (Veja Unidade III).

A gramática normativa diz respeito aos estudos da língua que

remontam ao século V a. C. Conforme Lyons (1979), esses estudos gramaticais

eram, para os gregos, uma parte da sua indagação sobre a natureza do mundo

que os cercava e, assim sendo, seria parte da Filosofia. Considera-se que

esses estudos são desprovidos de qualquer critério científico e estão

interessados apenas em formular regras que identificam as formas corretas e

as formas incorretas da língua (retomaremos esta discussão na seção 3.3).

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FUESPI/NEAD Letras Português

A segunda fase, dedicada aos estudos filológicos, ocupou-se em

comparar textos de diferentes épocas e de identificar as peculiaridades

linguísticas dos autores e de épocas específicas. Considera-se que esses

estudos filológicos foram importantes para a constituição da Linguística

histórica.

A terceira fase, reconhecida como a fase dos estudos comparativistas,

foi implementada quando se descobriu que as línguas podiam ser comparadas

entre si. Foram reconhecidas semelhanças entre as línguas, especialmente

no que se refere ao vocabulário e à estrutura gramatical. Nesse contexto de

pesquisas e estudos, argumentou-se em favor do que passou a ser

considerado de parentesco linguístico, equivalendo-se a dizer que duas línguas

são aparentadas se elas evoluíram de alguma língua precedente comum, o

chamado protótipo comum – por exemplo: muitas das línguas da Europa

pertencem à chamada família das línguas indoeuropeias. De acordo com esses

estudos, as línguas mudam no tempo e, assim, podem-se relacionar grupos

de línguas porque elas têm uma demonstrável origem comum, é possível

reconstruir, por comparações e inferências, vários aspectos desses estágios

anteriores.

A escola comparativa, apesar de abrir uma nova frente de estudos,

diferente daquelas anteriores, ainda não constituiu a verdadeira ciência da

linguagem porque não teve a preocupação de identificar o seu objeto de estudo

nem a natureza dele, condição indispensável para que um campo de estudo

constitua-se como ciência. Isso se deve ao fato de que as investigações

comparativistas limitavam-se às línguas indoeuropeias e não determinou a

que levavam as comparações estabelecidas entre as línguas, nem explicitou

o significado das analogias descobertas. Considerou-se, então, que a

comparação é importante para a reconstituição histórica mas, por si só, não

leva a grandes conclusões.

Neste ponto, retomemos o foco inicial da nossa discussão: o objeto

de estudo da Linguística, já apresentado acima, segundo o pensamento de

Page 76: Livro Texto Base de Linguistica 1

76

Introdução à Linguística

Ferdinand de Saussure (2008, p. 271) de que a “Linguística tem por único e

verdadeiro objeto a língua considerada em si mesma e por si mesma.” O objeto

de estudo da Linguística seria, então, a língua, considerada em todas as suas

manifestações. Saussure, neste sentido, partindo do ponto de vista da linguagem

como fenômeno unitário, estabelece a dicotomia língua e fala, assinalando que a

língua é um sistema de valores que se opõem uns aos outros e que o sistema

está depositado como produto social na mente dos falantes (CABRAL, 1988), é

o objeto de estudo da ciência que ora inaugura. A fala seria, então, um ato individual

sujeito à interferência de fatores extralinguísticos.

Tomemos, neste espaço, as palavras de Saussure, explicitadas no

Curso.

Qualquer que seja o lado por que se aborda a questão, em nenhumaparte se nos oferece integral o objeto da Linguística. Sempreencontramos o dilema: ou nos aplicamos a um lado apenas decada problema e nos arriscamos a não perceber as dualidadesassinaladas acima, ou, se estudarmos a linguagem sob váriosaspectos ao mesmo tempo, o objeto da Linguística nos parecerácomo um aglomerado confuso de coisas heteróclitas, sem liameentre si. (...)Há, segundo nos parece, uma solução para todas essasdificuldades: é necessário colocar-se primeiramente no terreno dalíngua e torná-la como uma norma de todas as outras manifestaçõesda linguagem. De fato, entre tantas dualidades, somente a línguaparece suscetível duma definição autônoma e fornece um ponto deapoio satisfatório par o espírito.Mas o que é língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem;é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente.É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguageme um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corposocial para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos.Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; acavaleiro de diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológicae psíquica, ela pertence além disso ao domínio individual e aodomínio social; (...).(...) a língua constitui algo adquirido e convencional, (...).

(SAUSSURE, p. 16-17)

Dessa forma, a língua constituiu-se como o objeto de estudo da

Linguística.

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FUESPI/NEAD Letras Português

Para que a nova maneira de estudar a língua se constituísse numa

ciência, seria necessário, ainda, estabelecer um método de estudo. O método

estabelecido para a proposta descritiva saussuriana foi aquele reconhecido

como método indutivo.

A Linguística, pois, constituiu-se como ciência, com o seu objeto e o

seu método de investigação. Significa que temos uma forma de estudar a

língua bastante diferenciada da tradição dita normativa, aquela que prescreve

as regras do bem falar e, principalmente, do bem escrever. Na próxima seção,

este será o foco da nossa discussão.

3.3 LINGUÍSTICA E GRAMÁTICA

Tomando-se o termo gramática , ocorre-nos, inicialmente, a ideia de

que esse termo refere-se, conforme assinala Possenti (1996, p. 64), a “um

conjunto de regras”, que “devem ser seguidas” ou que “são seguidas”.

Supostamente, esse conjunto de regras traçaria um retrato da estrutura e do

funcionamento da língua.

Em primeiro lugar, devemos esclarecer um pouco a noção de regras .

Quando falamos em regras, ou estamos nos referindo à prescrição,

àquilo que regula coercitivamente, ou estamos falando daquilo que é regular

ou que se faz regularmente. Nisso, repousa a diferença fundamental entre as

ideias de gramática, no seu sentido normativo, e linguística.

A gramática dita normativa, entendida como a “arte de falar e escrever

corretamente”, teve sua origem na Antiguidade e mantém-se até os nossos

dias, com muito vigor, de forma a tentar regular essa arte de falar e,

principalmente, de escrever bem. É uma das abordagens de estudo da língua,

dita não científica por sua própria natureza coercitiva.

De forma mais detalhada, Travaglia (1996) considera que, quando

nos referimos à gramática, estamos, necessariamente, nos reportando ao

termo em uma das seguintes concepções:

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78

Introdução à Linguística

1. “conjunto sistemático de normas para bem falar e escrever,

estabelecidas por especialistas, com base no uso da língua consagrado por

bons escritores” e “dizer que alguém sabe gramática significa dizer que esse

alguém conhece essas normas e as domina tanto nocionalmente quanto

operacionalmente” (FRANCHI, 1991:48).

2. “um sistema de noções mediante as quais se descrevem os fatos

de uma língua, permitindo associar a cada expressão dessa língua uma

descrição estrutural e estabelecer suas regras de uso, de modo a separar o

que é gramatical do que não é gramatical” (FRANCHI, 1991: 52-53).

3. “saber linguístico que o falante de uma língua desenvolve dentro de

certos limites impostos pela sua própria dotação genética humana, em

condições apropriadas de natureza social e antropológica” (FRANCHI, 1991,

p. 54).

As três concepções de gramática apresentadas detêm em si sentidos

específicos centrados em diferentes pontos de interesse.

A primeira delas, concebida como “gramática tradicional”, de tradição

secular, considera que a língua é apenas a variedade padrão (culta), sendo as

demais, formas de puros desvios e “erros”. A gramática, assim concebida,

trata somente da descrição da norma culta da língua que é baseada no uso

consagrado de bons escritores, não levando em conta as peculiaridades da

linguagem oral. Tem caráter eminentemente prescritivo.

A segunda concepção de gramática apresentada trata da descrição

da estrutura e funcionamento da língua, observando, assim, sua forma e função.

Essa gramática, por ser descritiva, vê as regras que os falantes seguem quando

elaboram seus enunciados e considera gramatical tudo o que preenche os critérios

de funcionamento da língua no âmbito de uma variedade linguística específica.

As abordagens que fundamentam essa concepção de estudo são as

teorias estruturalistas da linguagem, que privilegiam a descrição do oral, e a

teoria gerativo-transformacional, que lida com enunciados ideais. Essas

correntes, apesar de guardarem profundas diferenças nas suas essências,

Page 79: Livro Texto Base de Linguistica 1

79

FUESPI/NEAD Letras Português

em comum têm o fato de proporem uma homogeneidade no sistema linguístico.

Abstraem a língua do seu contexto e trabalham com um sistema formal abstrato

que regula o uso que se tem em cada variedade.

A terceira concepção de gramática apresentada considera a língua

não do ponto de vista normativo, nem do ponto de vista descritivo, mas como

um conjunto de variedades da qual a sociedade se utiliza, levando em conta o

que é adequado para cada situação específica de interação comunicativa. A

gramática seria, então, um conjunto de regras que o falante aprendeu e das

quais se utiliza em diferentes circunstâncias. Essa seria a gramática

internalizada (TRAVAGLIA, 1996), segundo a qual não há erro linguístico, mas

observação do que é adequado de acordo com as diferentes situações de

interação comunicativa, por não atender às normas sociais de uso da língua,

ou por não ser adequado o uso de um determinado recurso linguístico para se

atingir um objetivo específico.

Segundo a concepção de gramática como forma de interação, o que

regula e afeta o uso da linguagem é o contexto sócio-histórico-ideológico,

sendo essa a gramática que constitui a competência comunicativa (HYMES,

1980) do falante, o que lhe permite elaborar seus enunciados e decidir por

sua gramaticalidade no sentido da gramática descritiva.

Dessa forma, temos, acima, três concepções de gramática. A primeira

delas, conforme ressaltado, diz respeito a uma concepção de gramática no

sentido normativo, indubitavelmente. Seria aquela versão que não agrega os

critérios de cientificidade, mas tem um valor sociocultural inestimável, dada a

sua importância enquanto variedade padrão culta da língua. As duas últimas

concepções apresentadas, por sua vez, inscrevem-se entre os estudos

linguísticos considerados científicos. Esses estudos, se não têm a pretensão

de normatizar a forma de falar das pessoas, tal como se propõe a primeira,

qual é, então, a sua utilidade?

No contexto das discussões acerca da Linguística, especialmente

sobre a utilidade desse campo de conhecimento, muitos estudiosos brasileiros

Page 80: Livro Texto Base de Linguistica 1

80

Introdução à Linguística

têm marcado suas posições de forma bastante esclarecedora. Nesse sentido,

vejamos o que nos diz um dos maiores linguistas brasileiros de todos os

tempos, o Prof. Dr. Luiz Antonio Marcuschi, ao ser indagado da seguinte forma:

Para que serve a Linguística ?

Uma coisa eu sei: com a linguística você não fica rico, mas semela seu povo é mais pobre. A questão do “para que” serve a linguísticadepende sempre de que estudos linguísticos nós estamos falando.Mas eu tenho a impressão de que a linguística serve basicamentepara fazer com que se compreenda de que forma nós somos sereshumanos. Ou seja, como nós interagimos, como chegamos a nosentender, como conseguimos construir e dar a entender este mundoque nós construímos, como a realidade é sentida e reproduzidapara as pessoas. (...).

(XAVIER e CORTEZ (Orgs.), 2003, p. 137)

A Linguística como ciência, neste século de existência, numa tentativa

de verificar como conseguimos construir e dar a entender este mundo que

nós construímos, como a realidade é sentida e reproduzida para as pessoas,

tem atraído o interesse de muitos estudiosos e se diversificado nos seus pontos

de observação do fenômeno linguístico, traduzido em vertentes que o

contemplam desde o ponto de vista mais estrutural, mais formal possível, até

o ponto de vista do seu uso, mais funcional. O capítulo que segue tratará,

exatamente, dessa expansão e diversificação de interesses da Linguística,

evidenciados nas diferentes maneiras de abordar a língua, em correntes que

revelam interesses também muito diversificados acerca do seu objeto.

RESUMINDO

Neste capítulo, dividido em três seções, tratamos, basicamente, do

estatuto da Linguística enquanto ciência da linguagem. Inicialmente, vimos

que a noção do que vem a ser língua, nas palavras de Bakhtin, hoje está

bastante avançada já que é tida essencialmente como uma forma de interação

entre os homens.

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FUESPI/NEAD Letras Português

1. Reflexões sobre ciência

• As noções sobre ciência e método científico evoluíram,

especialmente, a partir do início do século XX, desde que se chegou à

compreensão de que a ciência é um processo sempre em construção.

• Uma forma de compreendermos a maneira de se pensar a ciência

hoje é fazendo-se uma rápida incursão em torno das três grandes correntes

da filosofia moderna: o racionalismo cartesiano, o empirismo inglês, o

idealismo alemão e o positivismo;

• A Linguística, enquanto ciência da linguagem, é traduzida nas palavras

do Prof. Dr. Francisco Gomes de Matos.

2. A Linguística e seu objeto de estudo

• Caracterização da Linguística como ciência.

• Segundo o pensamento de Ferdinand de Saussure, a “Linguística

tem por único e verdadeiro objeto a língua considerada em si mesma e por si

mesma.” (p.271).

• O objeto de estudo da Linguística seria, então, a língua, considerada

em todas as suas manifestações.

• Saussure, partindo do ponto de vista da linguagem como fenômeno

unitário, estabelece a dicotomia língua e fala, assinalando a língua, sistema

de valores que se opõem uns aos outros e que está depositado como produto

social na mente dos falantes (Cabral, 1988).

• O método estabelecido para a proposta descritiva saussureana foi

o método indutivo. A Linguística constituiu-se como ciência, com o seu objeto

e o seu método de investigação. Significa que temos uma forma de estudar a

língua bastante diferenciada da tradição dita normativa, aquela que prescreve

as regras do bem falar e, principalmente, do bem escrever.

3. Linguística e gramática

• As três concepções de gramática detêm em si sentidos específicos

centrados em diferentes pontos de interesse:

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82

Introdução à Linguística

• Noção de “gramática tradicional” - considera que a língua é apenas

a variedade padrão (culta). As demais manifestações linguísticas seriam

desvios e “erros”. A gramática, assim concebida, trata somente da descrição

da norma culta da língua que é baseada no uso consagrado de bons escritores.

• Noção de gramática descritiva - focaliza a descrição da estrutura e

funcionamento da língua, observando sua forma e função. Leva em conta as

regras que os falantes seguem quando elaboram seus enunciados e considera

gramatical tudo o que preenche os critérios de funcionamento da língua no

âmbito de uma variedade linguística específica.

• Noção de gramática como forma de interação - considera a língua

não do ponto de vista normativo, nem do ponto de vista descritivo, mas como

um conjunto de variedades da qual a sociedade se utiliza, levando em conta o

que é adequado para cada situação específica de interação comunicativa. A

gramática seria um conjunto de regras que o falante aprendeu e das quais se

utiliza em diferentes circunstâncias.

LEITURA COMPLEMENTAR

Uma compreensão mais aprofundada a respeito dos fenômenos sobre

os quais a linguística volta os seus interesses merece uma reflexão sobre a

própria maneira de se compreender essa ciência, de que maneira ela se

constituiu, a sua abrangência, aonde pretende chegar. Tomando essa trilha,

insistimos na leitura cuja referência é tomada várias vezes neste capítulo e

nos revela um norte bastante esclarecedor a respeito das questões aqui

tratadas. O livro do qual falamos é:

XAVIER, Antonio Carlos; CORTEZ, Suzana, Orgs. (2003). Conversas

com linguistas . São Paulo: Parábola Editorial. ISBN: 85-88456-07-9. 200p.

Além dessa leitura que, certamente, será muito proveitosa, sugerimos,

também, a leitura do texto abaixo, relativo a uma palestra proferida pela Profa.

Sônia Bastos Borba Costa, da Universidade Federal da Bahia, sobre as

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FUESPI/NEAD Letras Português

entrevistas de grandes linguistas brasileiros, apresentadas no livro referido.

O texto da Profa. Sônia é esclarecedor, também, quanto aos rumos da

linguística

A LINGUÍSTICA E OS ESTUDOS DE LINGUAGEM RUMO AO SÉCULO

XXI[1]

Sônia Bastos Borba Costa

PROHPOR / DLV / IL / UFBA

Inicialmente quero registrar o prazer de estar aqui, conhecendo o DELL

da UESB, oportunidade de que ainda não tinha desfrutado.Confesso que o tema

proposto pela coordenação desta Semana de Letras me surpreendeu, pelo menos

senti-me inibida diante da sua amplitude. Socorri-me, então, de um livro que nos

chegou em março de 2003, Conversas com Linguistas: virtudes e controvérsias

da Linguística (Xavier e Cortez (orgs.) São Paulo: Parábola), coletânea de

entrevistas, de perguntas idênticas, com dezoito linguistas brasileiros, e cuja última

questão é precisamente: Quais os desafios para a Linguística no século XXI?

Para começar a nossa reflexão, acho que primeiramente se coloca a

questão de definir o que são os estudos linguísticos. Afinal, embora estes tempos

chamados pós-modernos estimulem e clamem pela necessidade de

interdisciplinaridade, nossos cursos de Letras costumam distinguir estudos

linguísticos de estudos literários, o que, portanto, afasta dos estudos linguísticos a

literatura das várias línguas, tal como faz a CAPES, que denomina a nossa área

de Letras e Linguística. Mesmo que nos atenhamos a essa distinção (o que não

vejo como taxativo), fatalmente nos perguntamos e nos perguntam: O que é a

Linguística?

Para Eleonora Albano (Xavier e Cortez, op. cit: 30), a Linguística é

um discurso científico que nasceu na virada do século XX, a partirde outros discursos que já havia por aí, que falavam sobre linguageme que realmente eram muito heterogêneos. E Saussure teve o papel

Page 84: Livro Texto Base de Linguistica 1

84

Introdução à Linguística

Para Margarida Salomão (id., ibid: 188-9), a Linguística é

de peneirar e de saber puxar um fio lógico: vamos separar issoaqui de tal forma que a gente consiga mapear um certo recortecom métodos claros e possa fazer distinções.

esse campo discursivo que trata da linguagem de uma forma nãonormativa e que procura entendê-lo sob o aspecto social, sob oaspecto cognitivo e sob o aspecto gramatical.[...]. Eu diria paraum aluno da graduação que é o estudo da linguagem que procuraser científico, mas definitivamente não normativo.

Quanto à pergunta, que não consta da citada entrevista, O que são os

estudos linguísticos, fico com a resposta bem-humorada de Ataliba Castilho e a

sua sempre lembrada fábula do elefante (id.ibid.p.55):

Bom, quando eu dou aula na graduação, costumo dizer para osalunos: se você quer entender o que é linguística e o que é o seuobjeto, você precisa pensar um pouco na fábula dos três cegosapalpando o elefante. Cada um apalpava um pedaço do elefante edefinia o elefante por aquele pedaço. Então, o que pegava a pernado elefante, dizia: “o elefante é assim um cilindro muito duro, rígido,é um animal com formato de cilindro e que é estático, parece queesse animal não se mexe e é um animal que ocupa posição verticalno espaço”. O outro, que mexia lá na tromba, naturalmentediscordava, não só quanto à disposição no espaço, quanto à rigidezno tato, tanto quanto à falta de mobilidade. Imagino até que algumdesses cegos, tocando em outros lugares, concebeu a ideia dacategoria vazia.

As primeiras autoras citadas vêem a Linguística como ciência, mas esse

não é ponto pacificamente estabelecido. Uma das perguntas da referida entrevista,

A Linguística é ciência?, propiciou reflexões variadas.

Bernadete Abaurre (Xavier e Cortez, op. cit:16-17) afirma:

eu me sinto mais confortável com uma definição de linguística quea toma como um amplo campo de estudos sobre a linguagem.Esses estudos estão relacionados aos seus mais variadosaspectos: ao seu modo de estruturar-se, de evoluir, aos seus usos,à maneira como ela é aprendida, à maneira como se relacionacom o social, e assim por diante” [...] Assim, para determinadas

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FUESPI/NEAD Letras Português

Ataliba Castilho (id.,ibid.,p. 56) diz:

investigações linguísticas, você tem certos objetos claramenteconstituídos e a exigência de um rigor, de uma sistematicidade naelaboração de teorias, no teste de teorias, procedimentos quecostumam definir as investigações ditas “científicas”[...] Porém nãoacho que se possam reduzir todos os estudos que se fazem dalinguagem a uma perspectiva científica, no sentido estrito do termo[...]

se você está entendendo por ciência a capacidade de problematizaras coisas, fazer perguntas, identificar um objeto de preocupações,criar hipótesee prévias sobre esse objeto e verificar nos dados seessas suas hipóteses encontram guarida, e se depois vocêreformula suas hipóteses numa dialética constante entre teoria eempiria, até o momento em que você vê certa estabilidade nosseus achados, escrevendo ou falando sobre sua descoberta, bem,então você estará fazendo ciência e a ligüística é uma ciência.

Carlos Alberto Faraco (id.,ibid.,p.67) lembra que

alguns, ao fazerem linguística, se acreditam operando com umobjeto matemático, outros com um objeto biológico, outros aindacom um objeto sócio-histórico. Só isso mostra a complexidade donosso objeto e, ao mesmo tempo, certos embates epistemológicosque atravessam os estudos linguísticos.

Luiz Antonio Marcuschi (id.,ibid.,p.137) diz:

Acho que ciência é todo tipo de investigação em que se produzalgum tipo de conhecimento. Eu estou convencido de que o próprioda ciência é investigar e não explicar. A explicação é um dos seusfeitos e não sua essência.

Para João Wanderley Geraldi (id., ibid., p. 82),

Reconhecer os recortes, necessários no fazer científico, é nãofechar-se como uma disciplina orgulhosa dos própriosprocedimentos, pois os resíduos deixados pelo recorte devem alertarpara as parcialidades e inverdades das descobertas.

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Introdução à Linguística

Sírio Possenti (id.,ibid.,p.167) acha que “há aspectos, pedaços da

linguística que são científicos, são ciência”. Mas esclarece que, para ele, isso não

significa uma vantagem, já que prefere pensar como Michel Foucault que, quando

lhe perguntaram se o marxismo é uma ciência, ele disse, entre outras coisas: “o

marxismo e a psicanálise são muito importantas para ser ciência”.

Kanavillil Rajagopalan, ou simplesmente o colega Raja, afirma (id.,ibid.,

p.179): “Prefiro abdicar do título de cientista para poder pensar a linguagem

livremente”. Não custa lembrar que esse nosso mesmo Raja, segundo Borges

Neto (p. 44), definiu a linguística como “uma paixão pela linguagem”.

Como defendem Dascal e Borges Neto (1991: 45), cada área do

conhecimento pode ser “recortada” por vários objetos teóricos, não há um “objeto

natural”, “prontinho” para uso científico. Por isso é que, no meu entender, muitas

vezes a história de uma ciência não apresenta sucessão linear, progressiva, que

levaria pouco a pouco à completude. A imagem seria, preferencialmente, a de um

mosaico em formação, cujos componentes são, necessariamente,

complementares, mas sujeitos a superposições, lacunas e substituições parciais.

E Rodolfo Ilari (Xavier e Cortez, op. cit.:103-4) alerta para a provisoriedade

do conhecimento científico:

quando se começa a fazer uma ciência, os conceitos de base sãomuito obscuros. E a partir desses conceitos obscuros, que sãoum grande mistério, uma coisa bonita da humanidade é que vocêcria coisas surpreendentemente claras. Chega até um ponto emque você vai encontrar de novo obscuridade, porque a explicação éincapaz de dar conta dos detalhes. Então, a ciência é uma clarezaprensada entre duas obscuridades. Agora, se você pensar no quefoi a história da ciência no passado, é impressionante o tanto decrenças que a humanidade jogou fora, porque de repente pareceramapenas superstições. Tudo aquilo era científico até prova emcontrário, no sentido de que representava o conhecimento controladode uma certa época. Às vezes até funcionava, mas ficou provadoque não funcionava pelas razões alegadas. Então, nós temos queser humildes em relação às ciências que temos hoje, porquepossivelmente nos acostumamos a dizer um monte de besteiras,que por acaso funcionam.

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FUESPI/NEAD Letras Português

Ao meu ver, atribuindo-se ou não caráter científico aos estudos sobre a(s)

língua(s) desde a Antigüidade, certamente não se pode negar esse estatuto aos

estudos desenvolvidos durante o século XIX, pois detentores dos requisitos que se

costumam exigir para reconhecer a cientificidade de uma área do conhecimento:

objeto e metodologia definidos, formulação de hipóteses, procedimentos explícitos

de testagem, conclusões passíveis de fundamentar o avanço da pretendida ciência.

Como afirmam Dascal e Borges Neto (1991:33), no século XIX, “ao invés de se

estudar a linguagem para ‘fazer filosofia’ ou para ‘fazer crítica literária’, como nos

séculos anteriores, passa-se a estudar a linguagem pensando-se um ‘fazer ciência’.

Talvez pudéssemos adotar a postura de que as investigações, os novos

questionamentos produzem resultados, talvez provisórios, mas que, na sua

vigência, configuram saberes, dos quais o saber sobre a linguagem humana,

sobretudo sobre as línguas naturais, que, apenas por economia de referência

significativa, estamos chamando Linguística.

Durante toda a primeira metade do século XX, a aplicação às línguas do

conceito de estrutura, legado de Saussure, produziu muitos trabalhos, mas,

naturalmente, muitos recortes, e fatalmente a descoberta de pontos árduos ou

impossíveis de dar conta por esse modelo. Assim, o estruturalismo saussuriano

acumulou “excluídos” e entreabriu vertentes que não podia explorar. Essa

acumulação, provavelmente, levou o seu modelo à crise e a segunda metade do

século XX explodiu em “novas teorias” ou, ao menos, novas abordagens para o

estudo da língua.

As vertentes foram muitas, não hegemônicas, a maior parte motivada

pelo resgate de um ou alguns dos “excluídos”, o que produziu a atenção também

sobre trabalhos de cunho funcionalista, que já se desenvolviam. Preocupados com

a contextualização da língua na interação social, que, segundo esse ponto de vista,

gera as estruturas, privilegiam o discurso e a semântica, esta em abordagens

mais amplas que aquelas propostas pelo estruturalismo. Assim, o sujeito, a

historicidade, a interação na comunicação humana, a dinamicidade avultam em

muitas tendências, o que aponta, entre outras coisas, para uma mais possível

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Introdução à Linguística

interdisciplinaridade. Não só a langue, mas o discurso (mais que a parole); quando

não a subjetividade, a pessoalidade (o sujeito, mesmo que não como agente, mas

como operacionalizador); a questão do significado/sentido; as circunstâncias da

efetivação do falar; as seleções de formas linguísticas historicamente consolidadas;

o diálogo como elemento constituinte da língua. Além disso, a chamada revolução

chomskiana trouxe à tona a questão do aparato genético humano, contestando as

teorias de aquisição da linguagem de modelo behaviorista e apelando para uma

interface linguística/biologia, não mais nos moldes deterministas do século XIX,

mas voltada para o estudo do cérebro e da mente.

Enfim, os interessados no fenômeno das línguas começaram o século

XX com a utopia do recorte objetivo, da documentação empírica, do isolamento do

objeto para observações sistemáticas, etc.. O avançar do século evidenciou as

suas limitações. Estamos adentrando o século XXI com a utopia da multi/

interdisciplinaridade que, na verdade, começou na Linguística por volta da década

de 70 do século XX, quando os linguistas se deram conta dos excluídos que a sua

jornada como pretensa ciência “dura” havia colecionado, e começou a se tornar

evidente a necessidade de diálogo, por um lado, com as chamadas ciências da

natureza (a Neurobiologia, a Genética, a Lógica simbólica, por exemplo), e, por

outro lado, com as ciências do homem (a Antropologia, a Sociologia, a História, a

Filosofia da linguagem, as ciências da informação e da comunicação), além da

grande vertente das ciências da mente, sem dúvida propício lugar para o encontro

entre os dois “tipos” de saber. Pense-se na riqueza da interdisciplinaridade entre a

Linguística e a Psicanálise (por exemplo, o conceito de sujeito, as reflexões sobre

o processo de enunciação); a Filosofia da linguagem (por exemplo, as relações

com o conceito de verdade e de motivação); os estudos do cérebro (por exemplo,

a afasia, a aquisição de língua por deficientes auditivos e portadores da síndrome

de Down, as línguas de sinais); os estudos para o processamento das línguas

naturais nos computadores, ou, mais amplamente, os estudos sobre inteligência

artificial. Aliás, como diz Marcuschi (Xavier e Cortez,op. cit.,p.139),

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FUESPI/NEAD Letras Português

Assim, a interdisciplinaridade, apanágio da pós-modernidade, modo de

pensar o mundo que adentra o século XXI, não apresenta, a rigor, qualquer tipo de

dificuldade para o interessado no saber sobre as línguas naturais. A Linguística

está, em decorrência do seu próprio objeto de cogitação, perfeitamente disponível,

mais que para a interdisciplinaridade, para a transdisciplinaridade, entendida essa

como a possibilidade de se conseguirem resultados, não nos limites de cada área,

mas exatamente ali, na interseção – resultados conjuntos, a partir de reflexões

conjugadas.

A esse respeito, Sírio Possenti (Xavier e Cortez, op.cit., p.172) foi muito

feliz ao afirmar sobre a inserção da Linguística na Pós-modernidade:

a interdisciplinaridade, que em outras áreas é complicada e precisaser pensada, na linguística tem que ser até barrada, porque ela émuito natural, ela é muito espontânea. A interação com muitafacilidadde com todas as áreas é um ponto forte e fraco ao mesmotempo que a linguística oferece.

a questão da pós-modernidade [...] não tem afetado as pesquisaslinguísticas naquilo que se poderia chamar de núcleo duro [...] nãohá, eu acho, teorias sintáticas e fonológicas e morfológicas afetadaspor posições ditas pós-modernas. Agora questões como leitura,compreensão, interpretação, [...] aí a pós-modernidade, ou algumasideias da pós-modernidade, afetam determinados campos depesquisa cujo núcleo é de certa forma a linguagem. [...] apragmática, as várias teorias sobre o discurso, os vários modos deabordagem do texto literário, a questão do sentido, se é intrínsecoou se não é intrínseco, se é o leitor que leva o sentido ao texto, seo texto tem alguma relevância no sentido. Essas questões estãoprenhes desse modo de ver as coisas que é meio característico dapós-modernidade.

Talvez possamos tirar dessas reflexões uma conclusão: seja ciência,

rigorosamente falando, ou, modestamente, um saber, provisório como todos, há

muito o que se fazer no âmbito dos estudos linguísticos .

Quem sabe uma boa proposta para termos um rumo, um horizonte daqui

pra frente seja: tentar visualizar os verdadeiros e efetivos lugares que as várias

vertentes dos estudos linguísticos ocuparam no decorrer do século XX, tentando,

se possível, conciliar as propostas das várias teorias ou dos vários programas de

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Introdução à Linguística

pesquisa, como quer Kato (1997:276), quando vê as várias “teorias” linguísticas

do século XX como estágios de um único programa de investigação, mais do que

“diferentes –ismos”. Seria uma tentativa de visualizar uma espécie de teoria global,

já que, segundo Dillinger (1991: 405), falta à Linguística uma desejável “teoria global

do objeto de estudo – que serve simplesmente para ligar ou estruturar as teorias

‘regionais’[...] conferindo àquela ciência o que chamamos de coerência

metateórica”.

E, sobretudo, como propõe Bernadete Abaurre (XAVIER e CORTEZ. op.

cit., p.22):

seria interessante que conseguíssemos nos desarmar um poucocom relação a teorias que não são aquelas que nós abraçamos,ou com relação a questões sobre linguagem que não são aquelasque nós preferimos investigar. Assim, se nos colocarmos comoquestão maior uma compreensão mais ampla da linguagemenquanto atividade humana, vamos ver que pressupostos podemconviver.

Também Borges Neto (id.,ibid., p.50):

é preciso que os linguistas sejam mais tolerantes uns com osoutros. Acho que esse é um desafio sério. E é um desafio tão maissério na medida em que é preciso tolerar o que o outro diz,compreender o que o outro diz, aceitar o que o outro diz, mascriticar o que o outro diz, porque uma área de conhecimento qualquersó vai se desenvolver coletivamente na medida em que todos ospontos de vista forem debatidos, em que todos os pontos de vistaforem criticados [...] Enfim, acho que um dos desafios do séculoXXI para a linguística é esse desafio da tolerância e da tolerânciacrítica.

Esse tipo de abordagem do nosso objeto de estudo, que configura uma

complementaridade, para nós desejável e necessária, e que vem sendo praticada

pelos mais produtivos linguistas brasileiros, só pode enriquecer em muito o

conhecimento do nosso árduo mas fascinante objeto científico. Talvez essa posssa

ser uma das grandes contribuições desse país multicultural ao mundo científico,

nesse período inter-secular, ameaçado não só pela ótica reducionista da chamada

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FUESPI/NEAD Letras Português

“globalização”, como pelo incremento da mentalidade competitiva no pior sentido,

que só vê valor no hegemônico, necessariamente avesso à alteridade.

Trazendo o foco para mais perto, para aqueles que se dedicam aos

estudos linguísticos na Bahia, há muito de instigante e de necessário a fazer. Como

resultado das respostas contidas no livro em que me baseei e de outras, coletadas

em conversa com colegas lá no meu Instituto, listo algumas das tarefas já iniciadas

e por iniciar, que parecem importantes e promissoras para o futuro próximo da

Linguística, permitindo-me aplicar essas propostas ao português e ao panorama

brasileiros, seguindo, também de perto, a análise e as sugestões de Castilho (2001):

1 Aprofundamento no âmbito da descrição sincrônica – Já dispomos

no Brasil de muitos acervos, como o do PEUL (Programa de Estudos sobre o Uso

da Língua - RJ); o do NURC (SSA, RE, RJ, SP, POA); o do VARSUL (Região sul),

alguns já disponíveis ou em processo de disponibilização pela internet. Dispomos

também de vários atlas linguísticos, inclusive, em curso e a todo vapor, o ALIB,

que, informo a título de motivação, já realizou 124 dos 1100 inquéritos previstos; o

projeto Vestígios de falares crioulos; o projeto PEPP (Projeto de Estudo do Português

Popular de Salvador); o PEPLP (Projeto de Estudo e Pesquisa da Literatura Popular),

que dispõe de grande acervo de contos populares, romances tradicionais,

brincadeiras infantis, cantigas, parlendas e trava-línguas. Impossível seria listar os

trabalhos de análise que têm utilizado esses acervos;

2 Aprofundamento no âmbito da descrição diacrônica – Além de

trabalhos esparsos sobre o português europeu e sobre o português brasileiro, há

os projetos desenvolvidos pelo grupo de pesquisa a que pertenço, o PROHPOR e

pelo PHPB;

3 Abordagem da língua falada – Ataliba Castilho (Xavier e Cortez,

op.cit., p.60-1) lembra que as análises de língua falada tem demonstrado que

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92

Introdução à Linguística

Neste tópico é importante lembrar o Projeto “Gramática do Português

Falado”, que trabalhou sobre o acervo do NURC.

4 Abordagem e aplicação aos corpora e às descrições do PB dos

conceitos de discurso, texto, conversação – A proposta seria, seguindo o que

propõe Koch (id, ibid: 129):

a gramática do oral é muito mais complexa, muito mais rica doque a gramática da língua escrita [...] Ora, no começo dos anos1960, se achava que a língua falada não dispunha de uma sintaxe![...] Quando foram publicadas as primeiras transcrições dosmateriais do projeto NURC, muita gente vinha conversar comigopara dizer: “vocês não perceberam, mas vocês andaram pegandoinformantes que são afásicos, que têm evidentes problemas delinguagem, ficavam se repetindo, cortavam toda a sentença”. Tratava-se evidentemente de um desconhecimento da língua falada.

ver como é que esse sistema de cada língua se insere nas práticassociais e se modifica através de prática sociais, como é queaparecem esses novos gêneros, como é que a linguagem vai serusada nesses novos gêneros, que tipo de expressão linguística vaiser a mais adequada e inclusive que alterações, em termos dapópria interação, vão acontecer em função dessas alterações.

5 Contribuições para o ensino de língua portuguesa – Como lembra

José Luiz Fiorin (id.,ibid.: 75),

a linguística tem um papel de educar para a democracia, educarpara a cidadania. [...] A democracia é um sistema político em queexiste um respeito à diferença, um respeito à diversidade. Ora, alinguística, ao mostrar que a língua é heterogênea, que a língua édiversa, que a língua é plural, é, de certa forma, uma maneira deeducar para a tolerância e isso é educar para a democracia.

Rodolfo Ilari (id.,ibid.: 109), por sua vez, também afirma

No Brasil, a escola tem sido muito discriminatória. Caberia a elamostrar aos alunos que a língua portuguesa tem variedades, queessas variedades exprimem grupos diferentes, que discriminar alíngua das pessoas é, na realidade, discriminar as pessoas, eassim por diante

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FUESPI/NEAD Letras Português

Ataliba Castilho (2001:277) lembra o quanto a pesquisa acadêmica vem

produzindo bibliografia nesse sentido e cita muitos trabalhos, dos quais vou destacar

aquele desenvolvido pelo Centro de Alfabetização e Leitura da Universidade Federal

de Minas Gerais, fundado por Magda Soares. Uma das consequências do trabalho

de linguistas brasileiros é a incorporação da língua falada nas práticas de ensino,

preconizada pela MEC, através dos Parâmetros Curriculares Nacionais

6 Abordagem das comunidades bilíngües e das minorias linguísticas

– É importante o reconhecimento e a definição de políticas linguísticas para as

comunidades bilíngües existentes no território nacional, atentando-se para as

características decorrentes do contato linguístico e as estratégias de educação

em língua oficial nacional. Quanto às línguas indígenas, além dos trabalhos no

sentido da sua descrição e preservação, destaca-se a defesa e a implementação

da educação bilíngüe e um novo papel para o lingüista, que concorre para a

construção de uma consciência identitária alternativa à que se costuma chamar

nacional (CASTILHO, 2001:282).

7 Atitudes do Est ado brasileiro em relação às línguas estrangeiras –

O governo brasileiro se encarregou de propiciar o ensino de línguas estrangeiras

na escola pública até a década de 1970, mas de lá para cá o que tem ocorrido é a

progressiva transferência desse encargo à iniciativa privada, o que tem enfraquecido

a demanda por qualificação nessas línguas nos cursos de Letras, desestimulando

o desenvolvimento de métodos de ensino e da pesquisa, que não tem podido

beneficiar-se dos avanços da Linguística.

8 Elaboração de obras de referência – Dicionários e glossários, atuais

ou de outras sincronias, monolíngües ou bilíngües; gramáticas descritivas; uma

história mais abrangente da língua portuguesa e do português brasileiro: sem

esquecer as inestimáveis contribuições com que já contamos, esta é uma lacuna

da qual nós, pesquisadores e professores, muito nos ressentimos.

Page 94: Livro Texto Base de Linguistica 1

94

Introdução à Linguística

9 Incremento das abordagens cognitivist as – Ataliba Castilho (Xavier

e Cortez, op. cit.:61) entende que

a perspectiva realmente mais suculenta é a da exploração dascategorias cognitivas, do modo como elas se gramaticalizam nalíngua, e do modo como elas aparecem ali.[...] Puxar a linguísticado estudo dos produtos para o estudo dos processos de criaçãodos produtos me parece o grande lance que poderá atrair novospesquisadores. [...] A gramaticalização é apenas um deles, masclaro que a semantização é outro, a discursivização e a lexicalizaçãoserão igualmente outros tantos processos.

Mary Kato (id.,ibid.:115), a esse respeito, questiona:

[...] você pode se perguntar se o desenvolvimento linguístico dacriança acontece em paralelo a seu desenvolvimento cognitivo. Ouum depende do outro? Hoje existe toda uma controvérsia sobreisso. A cognição limita a língua ou a língua limita a cognição?

[...] como se dá conta das formas de pensar? Pensando os aspectoscognitivos ligados a processos de interação que são fundamentais.Eles precisam ser melhor entendidos. No meu entender, a agendacognitiva vai ser muito importante. [...] um cognitivismo social.

Luiz Antonio Marcuschi (id.,ibid.: 140) também questiona:

10 Interface da Linguística com a computação – Fiorin (id.,ibid.:76)

entende que, na agenda linguística do século XXI, um ponto importantíssimo é

essa interface que, para avançar, vai ter de investir na pesquisa do que é e do

como se constitui a faculdade da linguagem humana, inclusive para permitir a

produção de softwares para facilitar o próprio trabalho de pesquisa.

11 Constituição de bancos de dados sincrônicos e diacrônicos –

Hoje já dispomos, no mundo e também no Brasil, de alguns bancos de dados de

grande porte, que inclusive permitem comparações mais precisas, porque são

constituídos a partir dos mesmos princípios teóricos, como ocorre com o acervo

da linguística gerativista (Kato, in Xavier e Cortez, op. cit.:119-120). Kato lembra

Page 95: Livro Texto Base de Linguistica 1

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FUESPI/NEAD Letras Português

ainda o banco de dados da história do português a partir do século XVII, denominado

Tycho Brahe, organizado por Charlotte Galves, informatizado e etiquetado para

determinadas abordagens. Lembro também o banco de dados do português escrito

“Usos do Português” (UNESP-Araraquara). Uma equipe do PROHPOR vem também

se empenhando em constituir um banco de textos do português arcaico e moderno.

12 Assessoria ao Est ado no que se refere às questões de ordem

linguística – Castilho (2001:280) lembra que

o Estado vez ou outra decide gerir a língua oficial por meio de leis,e aqui temos desde as “leis que quase pegam”, como as dosacordos ortográficos, até as “leis que não pegam de jeito algum”,como aquelas que pretendem defender a pureza do idioma pátrio...

E acho que o outro grande ponto pragmático e político é fazer comque essa reflexão, sobre a qual eu estava falando, possa transbordarpara áreas interventivas na sociedade brasileira, que é umasociedade que aborda a vergonha insuportável do grau dedesigualdade que há dentro dela. E aquilo que sabemos sobre alinguagem, o fato de a linguagem ser uma condição universal detodo ser humano, pode levar para que nós consigamos conceberpolíticas diminuidoras dessa desigualdade.

O fato é que, por descaso dos governantes para com os linguistas ou por

incúria dos próprios linguistas, não se tem cuidado, no Brasil, de uma atuação

“interventiva”, como qualifica Margarida Salomão (Xavier e Cortez, op. cit., p.192),

frente à sociedade e ao Estado brasileiro. Salomão esclarece:

13 Atenção às possibilidades que se abrem com o Mercosul – Castilho

(2001:283) alerta para a oportunidade que representa para os profissionais de

Letras a criação do Mercosul, que fez crescer a demanda pelo ensino do português

e do espanhol na América Latina e no Brasil, respectivamente. Isso toca a questão

do ensino do português para estrangeiros, área de grande interesse, e que já conta

com centros operosos no Brasil, inclusive no nosso Instituto, com o o PROPEP

(Programa de Pesquisa, Ensino e Extensão de Português).

Page 96: Livro Texto Base de Linguistica 1

96

Introdução à Linguística

14 Interface com os estudos literários – Embora os cursos de Letras

abranjam as duas áreas, tem sido mais frequente a interface com áreas mais

distanciadas, como a Medicina, do que com a Literatura. Ora, sendo a literatura a

abordagem artística do material básico das línguas, objeto da Linguística, todas as

reflexões feitas nessa área só podem beneficiar a amplitude de compreensão da

abordagem literária.

Estou certa de que não consegui abordar todas as áreas em que a atuação

dos linguistas é possível e desejável. Mas é hora de finalizar e, como último ponto,

trago um tema difícil de ser abordado, que me parece necessário e urgente. Creio

que precisamos assumir nosso lugar de indivíduos que refletem sobre a linguagem,

sobre as línguas e, em particular, sobre a língua portuguesa, nos meios de

comunicação. Precisamos democratizar, “traduzir” nosso saber para os receptores

da sociedade em geral, simplificando sem banalizar, difundindo sem vulgarizar,

mas assumindo nosso papel social, que tem de se ampliar para além dos limites

das salas de aula, dos centros de pesquisa e estudo. Precisamos assumir nosso

espaço, que está sendo ocupado pelos representantes dos chamados consultórios

gramaticais, partidários do “casamento da gramatiquice com o purismo”, como

qualifica Castilho (2001:276), ocupado pelos sacerdotes da doutrina gramatical,

pelos gurus da auto-ajuda, em termos de uso linguístico. Precisamos desmistificar

a impressão de que somos contra o domínio, pelo povo brasileiro, da norma

prestigiada, convencendo nossos interlocutores de que a catequese nesse sentido

é falaciosa, porque não é possível adquirir-se a norma preconizada, não só pela

inadequação dos meios de “ensino’ ou “treinamento”, mas porque essa norma

preconizada é assistemática, desestruturada, uma colcha de retalhos, que costura

modelos do português europeu, atuais e anacrônicos, com modelos advindos de

usos literários pertencentes a outras sincronias, etc.

E não é só isso. Os que cultivam outras áreas do saber são, por

responsabilidade nossa, muito ignorantes do que fazemos. Precisamos acertar o

tom, falar também a língua da mídia para mostrar a nossa verdadeira cara, para

tornar a linguística atraente. Como afirma Salomão (Xavier e Cortez, op. cit.:191)

“a linguística tem o defeito de ser muito autocentrada”.

Page 97: Livro Texto Base de Linguistica 1

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FUESPI/NEAD Letras Português

Assim, acho que nos falta um tanto de arrojo, sem medo de “dizer

bobagem”. pois, como diz Ilari (id.,ibid.:109)

Nossa linguística é suficientemente rica para poder permitir-se oluxo de uma certa dose de bobagem. Tudo bem. Se você pegar asgrandes disciplinas que se desenvolveram no passado, a botânica,a zoologia, deve ter tido muita bobagem também... O tempo dirá.

Muito obrigada pela sua atenção.

(Disponível em: http://www.prohpor.ufba.br/alinguis.html)

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

1. Releia o item 3.1 e identifique os pontos em que as três correntes de

pensamento acerca de ciência são divergentes.

2. Considere a resposta do Prof. Dr. Francisco Gomes de Matos, sobre a

indagação: A Linguística é uma ciência?, apresentada na primeira seção. Em

seguida, elabore uma lista dos argumentos dos quais o Professor lança mão

para justificar a inclusão da Linguística no rol das disciplinas que desfrutam o

status de ciência.

3. Considere as três concepções de gramática apresentadas e elabore um

texto no qual você comente essas concepções à luz dos depoimentos de

Abaurre e de Borges Neto, conforme abaixo.

E, sobretudo, como propõe Bernadete Abaurre (XAVIER e CORTEZ.

op. cit., p.22):

[...] seria interessante que conseguíssemos nos desarmar um poucocom relação a teorias que não são aquelas que nós abraçamos,ou com relação a questões sobre linguagem que não são aquelasque nós preferimos investigar. Assim, se nos colocarmos comoquestão maior uma compreensão mais ampla da linguagem enquantoatividade humana, vamos ver que pressupostos podem conviver.

Page 98: Livro Texto Base de Linguistica 1

98

Introdução à Linguística

Também Borges Neto (id.,ibid., p.50):

[...] é preciso que os linguistas sejam mais tolerantes uns com osoutros. Acho que esse é um desafio sério. E é um desafio tão maissério na medida em que é preciso tolerar o que o outro diz,compreender o que o outro diz, aceitar o que o outro diz, mascriticar o que o outro diz, porque uma área de conhecimento qualquersó vai se desenvolver coletivamente na medida em que todos ospontos de vista forem debatidos, em que todos os pontos de vistaforem criticados [...] Enfim, acho que um dos desafios do séculoXXI para a linguística é esse desafio da tolerância e da tolerânciacrítica.

Page 99: Livro Texto Base de Linguistica 1

UNIDADE 4

OBJETIVO

1. Identificar o conjunto de abordagens teórico-metodológicas que constituem

o vasto campo da Linguística.

AS ESCOLAS LINGUÍSTICAS NO SÉCULO XX:UMA VISÃO INTRODUTÓRIA

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4 AS ESCOLAS LINGUÍSTICAS NO SÉCULO XX: UMA VISÃO

INTRODUTÓRIA

A língua é um sistema extremamente complexo. A teoria linguísticatenta reduzir esta imensa complexidade a proporções controláveispela construção de um sistema de níveis linguísticos, cada umdos quais possuindo um certo aparato descritivo para acaracterização da estrutura linguística. (CHOMSKY, 1955c, p. 63)

Com o desenvolvimento dos estudos linguísticos, foram surgindo várias

definições de linguagem humana, próximas em alguns pontos e diversas no

que diz respeito à ênfase dada aos recortes feitos à luz de diferentes

abordagens. Essas definições orientam três teorias gerais da linguagem e

de análise linguística que serão apresentadas a seguir.

4.1OS ESTRUTURALISMOS LINGUÍSTICOS

O estruturalismo linguístico surgiu em oposição à Linguística histórica

e comparativa do século XIX. Para a afirmação dessa teoria, foi fundamental

o pensamento de Ferdinand Saussure, linguista genebrino que teve suas ideias

publicadas três anos após sua morte no livro Curso de Linguística Geral, em

1916. Esse livro não foi escrito por Saussure, mas por dois de seus alunos,

Charles Bally e Albert Sechehaya, que se valeram de algumas anotações de

aulas feitas entre os anos letivos 1907 e 1911. Não se sabe ao certo se o

Curso de Linguística Geral expressa o verdadeiro pensamento de Saussure,

mas, mesmo assim, não há como negar a importância das ideias nele expostas

para o desenvolvimento dos estudos linguísticos.

A proposta de Saussure, de maneira resumida, pode ser representada

por quatro dicotomias básicas: língua versus fala, sincronia versus diacronia,

paradigma versus sintagma e significante versus significado. Segundo Cunha

et al. (2008, p. 16), “o termo dicotomia designa a divisão lógica de um conceito

em dois, de modo que se obtenha um par opositivo”. Para Carvalho (2003, p. 26),

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Introdução à Linguística

Assim, podemos afirmar que as dicotomias saussurianas representam

o pilar da Linguística estrutural ao mesmo tempo em que fundamentam a

Linguística moderna. A seguir, vamos comentar cada uma delas.

Língua versus fala

A dicotomia língua versus fala é a oposição proposta por Saussure

que determina o objeto de estudo da Linguística.

Para Saussure, a linguagem é um fenômeno que apresenta duas faces:

a língua e a fala. A língua é a parte social da linguagem, que não pode ser

modificada pelo sujeito falante, pois obedece às leis do contrato social

estabelecidas pelos membros de uma comunidade. A fala, por sua vez, é a

parte individual da linguagem, que resulta das combinações feitas entre o

sujeito falante e a língua. A língua e a fala, para o autor, são duas faces que se

correspondem, e uma não vale senão pela outra.

Saussure situou a língua como objeto de estudo da Linguística. Isso

porque é, na língua, conhecimento comum a todos, e não na fala, conhecimento

específico de cada um, que se encontra a verdadeira essência da atividade

comunicativa (CUNHA et al. 2008). Assim, nesse contexto, a língua define-se

como um sistema de signos que obedece a certos princípios de funcionamento e

a fala como a utilização prática e concreta da língua por um determinado falante.

Ao ser definido seu objeto de estudo, a Linguística firmou-se como

ciência, e a língua passou a ser analisada por si mesma e em si mesma,

desconsiderando qualquer relação com a sociedade, com a cultura, com a

O grande mérito de Saussure está em seu caráter metodológico,um prolongamento de sua personalidade perfeccionista. Era precisoem primeiro lugar por ordem nos estudos linguísticos. Para podercriar e postular suas teorias com perfeição científica, impunha-se-lhe, antes, um trabalho metodológico preliminar. Os linguistas atéentão tratavam de coisas diferentes com nomes iguais e vice-versa.A ausência de uma terminologia adequada, precisa e objetiva dealcance universal (e sabemos desde os gregos que só há ciênciado universal) instrumento de trabalho imprescindível a qualquerciência digna do nome, tolhia-lhe a expressão das ideias.

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literatura ou com qualquer outro fator não relacionado com a organização

estrutural do sistema linguístico.

Sincronia versus diacronia

Essa dicotomia relaciona-se com o método de investigação adotado

por Saussure em suas pesquisas.

Para Saussure, os fatos linguísticos podem ser investigados sob dois

pontos de vista: o sincrônico e o diacrônico. O ponto de visto sincrônico

descreve os fatos linguísticos em um dado momento e lugar. Sua característica

básica é a simultaneidade dos fatos, por isso diz-se que esse ponto de vista

prende-se a um estado de língua. O ponto de vista diacrônico descreve os

fatos linguísticos no decorrer do tempo. Não se trata aqui de descobrir como

a língua funciona através do tempo, mas de descrever estados sucessivos,

compará-los e verificar como a língua chegou a ser o que é e quais são os

traços básicos de sua evolução.

A análise da variação entre o uso de ‘a gente’ e ‘nós’ no português,

falado atualmente em Teresina, é um exemplo de estudo de caráter sincrônico,

já que o termo ‘variação’ implica a consistência de duas ou mais formas em

uma mesma época. Por outro lado, a análise da trajetória da mudança delere

> to delete > deletar do latim ao inglês ao português, caracteriza-se como

uma abordagem diacrônica.

Apesar de apontar essas duas diferenças, Saussure prioriza o ponto

de vista sincrônico. Para o autor, o linguista deve estudar o funcionamento da

língua observando como se configuram as relações internas entre seus

elementos em um determinado momento do tempo.

Segundo Borba (2005, p.69), uma descrição sincrônica é mais fácil

do que uma descrição diacrônica, pois “enquanto a análise de fatos atuais

pode ser testada por meio de falantes nativos, a de estágios mais distantes

no tempo depende do grau de confiança que se tem na documentação

disponível.” Entretanto, apesar disso e da especificidade de cada ponto de

Page 104: Livro Texto Base de Linguistica 1

104

Introdução à Linguística

vista, os dois não devem ser considerados independentes um do outro, visto

que o próprio Saussure adverte (2008, p. 16) "A cada instante a linguagem

implica ao mesmo tempo um sistema estabelecido e uma evolução: a cada

instante ela é uma instituição atual e um produto do passado".

Significante versus significado

Essa dicotomia fundamenta o conceito de signo linguístico.

Para Saussure, o signo é a união de um conceito e uma imagem acústica.

Ao conceito, Saussure denominou significado, à imagem acústica, significante.

O conceito não deve ser confundido com a realidade que ele designa

nem o significante deve ser confundido com o som material, pois, se assim

fosse, a língua seria entendida como uma nomenclatura, em que cada palavra

se refere a uma coisa e, como afirma Pietroforte (2005), essa concepção

está completamente errada.

Para Pietroforte (2005), a língua é um sistema de signos em que, de

essencial, só existe a união entre a impressão psíquica do som e a realidade

que ela designa, ou seja, entre o significante e o significado, podendo o

significante ser entendido como o veículo do significado.

Saussure caracteriza o signo linguístico como arbitrário e linear. É

arbitrário porque não é motivado, ou seja, não há nenhuma relação necessária

que motive a união do significante com o significado. No signo “amar”, por

exemplo, nada há na imagem acústica representada pela sequência de

vogais e consoantes /amah/ que leve a uma relação direta com o conceito

de amar.

A arbitrariedade do signo linguístico pode ser mais bem compreendida

quando observamos a diversidade das línguas. Costa (2008, p. 120) explica

que “cada língua apresenta um modo particular de expressar os conceitos:

ninguém discute, por exemplo, se “livro” ou “book” se aproximam mais ou menos

do conceito apresentado anteriormente. No entanto, vale ressaltar que, essa

arbitrariedade não significa dizer que o significado depende da livre escolha

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FUESPI/NEAD Letras Português

do falante, pois como já foi visto, anteriormente, a língua é social e, como tal,

obedece às leis estabelecidas pelos membros da comunidade.

O signo é linear porque uma vez produzido, dispõe-se um depois do

outro numa sucessão temporal e espacial, fato que se justifica pela

impossibilidade de dois signos não poderem ser emitidos ao mesmo tempo.

Relação paradigmática versus relação sintagmática

Essa dicotomia define a forma como os elementos se relacionam no

sistema linguístico.

Para Saussure, as relações entre os elementos linguísticos podem

ser de dois tipos: paradigmática e sintagmática. A relação sintagmática baseia-

se no caráter linear do significante que exclui a possibilidade de pronunciar

dois elementos ao mesmo tempo. Quando dizemos, por exemplo, “Eu gosto

de estudar” os signos linguísticos são apresentados em linha no tempo, um

após o outro. Essa combinação de signos que fazemos quando falamos é

chamada de sintagma. Na cadeia sintagmática, um termo passa a ser

compreendido em virtude do contraste que estabelece com outro. Nela, os

elementos não se combinam de maneira aleatória, mas obedecem a um

padrão definido pelo sistema. Por exemplo, no português, é possível a

combinação “o livro”, mas não é possível a combinação “livro o”.

Por outro lado, a relação paradigmática baseia-se em um conjunto

de unidades suscetíveis de aparecer em um mesmo contexto. Na sentença

“Eu gosto de estudar”, por exemplo, se optarmos por outro significado há vários

signos linguísticos que podem figurar no lugar do signo ‘eu’ no enunciado,

como ‘João’, ‘ele’, ‘tu’ etc. Como não é difícil de perceber, nessa cadeia,

diferentemente da cadeia sintagmática, os termos se opõem, pois um exclui

o outro, pois as relações caracterizam-se pela associação entre um termo

que está presente no enunciado com outros que estão ausentes.

As relações sintagmáticas e paradigmáticas apesar de apresentarem

características específicas, a presença de uma não exclui a presença da outra,

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106

Introdução à Linguística

muito pelo contrário, elas ocorrem concomitantemente. No enunciado “Eu gosto

de estudar” ao mesmo tempo em que o signo ‘eu’ encontra-se em relação

sintagmática com ‘gosto’, ‘de’ e ‘estudar’, também mantém relação

sintagmática com ‘ele’, ‘você’, ‘João’ etc.

São duas as vertentes estruturalistas que influenciam a Linguística

moderna: o Estruturalismo europeu e o Estruturalismo norte-

americano . A primeira privilegia diferentes aspectos das ideias de

Saussure e a segunda privilegia as ideias do norte-americano Leonard

Bloomfield desenvolvidas sob o rótulo de Distribucionalismo ou

Linguística Distribucional .

O Estruturalismo europeu desenvolveu-se na Europa durante a

primeira metade do século XX e dele derivaram três importantes grupos de

estudos linguísticos: a Escola de Genebra , a Escola de Praga e a Escola

de Copenhague .

A Escola de Genebra e a Escola de Praga focalizaram os estudos

sobre as língua em seu aspecto funcional, no sentido em que elas são utilizadas

como meio de comunicação. Por outro lado, a Escola de Copenhague focalizou

a língua em seu aspecto formal, reduzindo o aspecto funcional a um plano

secundário (COSTA 2008).

A Escola de Praga teve como seus principais representantes Roman

Jakobson, Nikolai Troubetzkoy e Wilhem Mathesius. Esses estudiosos

diferenciaram a Fonética da Fonologia, pois, até então, as duas nomenclaturas

se referiam a uma mesma ciência. Assim, a fonologia passou a ser entendida

como a ciência que estuda as funções linguísticas dos sons e a fonética passou

a ser entendida como a ciência que estuda a produção e as características

dos sons da fala. A Escola de Copenhague, por sua vez, teve como principais

representantes Luis Hjelmslev e Viggo Bröndal, que propuseram a

Glossemática, escola de linguística que, ao estudar a forma e a estrutura das

línguas, aplicou exaustivamente a tese de Saussure de que as línguas se

constituem como sistemas de oposições.

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FUESPI/NEAD Letras Português

O Distribucionalismo desenvolveu-se nos Estados Unidos entre as

décadas de 1920 e 1950. Essa vertente representa, de maneira independente,

uma proposta semelhante à de Saussure no que diz respeito à maneira com

que ele define a língua e divergente no que diz respeito ao seu caráter

mecanicista. Segundo a Linguística distribucional, para que se possa estudar

uma língua, faz-se necessária a constituição de um corpus para, a partir dele,

elaborar-se um inventário em que se possam determinar as unidades

elementares em cada nível de análise e as classes que agrupam tais unidades.

Leonard Bloomfield, uma das figuras mais representativas do estruturalismo

americano, desenvolveu uma linguística essencialmente formal. Priorizou as

análises fonológicas, morfológicas e sintáticas das línguas e deixou, em

segundo plano, a análise semântica.

No Brasil, o estruturalismo desenvolveu-se, durante os anos 1960.

Nesse período, destacaram-se os trabalhos de Mattoso Câmara Jr. Segundo

Ilari (2004), por volta de 1970, o

estruturalismo já era, no Brasil, a orientação

mais importante nos estudos da linguagem.

Essa teoria serviu, nesse momento, para

criar um novo tipo de pesquisador, o linguista,

em face do gramático e do filólogo .

No Brasil, o estruturalismo se

difundiu por meio de dois focos: um

localizado no Rio de Janeiro e outro, em São Paulo. No Rio de Janeiro, os

trabalhos que se destacaram foram os do linguista Joaquim Mattoso

Câmara Jr., que se declarou até o fim da vida um discípulo do estruturalismo

de Praga. Seu livro Princípios de Linguística Geral (1941), foi o primeiro

manual de Linguística publicado na América do sul e teve importância

decisiva para a afirmação da Linguística no Brasil como disciplina autônoma

(ILARI, 2008).

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

GLOSSÁRIO

Gramático : interessa-se pelasitematização da língua segundoa variedade padrão.Filólogo : interessa-se no estudodas fases antigas da língua.

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108

Introdução à Linguística

4.2 A LINGUÍSTICA FORMAL

Segundo Pires de Oliveira (2004), o termo formal implica, na Linguística

contemporânea, várias linhas de pensamento. Formal pode ser entendido

como equivalente a científico, formal pode ser sinônimo de autonomia e formal

pode remeter a cálculo.

A primeira tendência relaciona-se ao fato de que toda teoria linguística

tem a obrigação de ser formalizável. Esse pensamento é que situa a Linguística

como ciência. A Linguística, independentemente de sua opção teórica,

submete-se a uma série de procedimentos que garantem a possibilidade de

sua teoria ser corroborada ou refutada, como, por exemplo, a utilização de

uma linguagem técnica ou formal, para garantir a precisão das informações.

Essa posição determina a primeira acepção do termo formal.

A segunda tendência relaciona-se às crenças quanto à linguagem

humana: a sintaxe das línguas é um sistema autônomo ou a sintaxe é resultado

dos usos e funções da língua? A primeira concepção é defendida pelo

programa teórico gerativista e a segunda pelo programa funcionalista.

O gerativismo defende que a sintaxe é como se fosse uma máquina

que gera sentenças bem formadas, com modo de operar característico. O

funcionalismo, por outro lado, defende que a sintaxe resulta dos usos e funções

a que a língua serve. Os primeiros, portanto, por serem mais “mecanicistas”

são comumente considerados pela literatura de formalistas. O que determina

a segunda acepção do termo formal.

A diferença entre esses dois programas tem sido tratada como uma

questão antagônica que determina dois extremos de análise linguística: o

formalista e o funcionalista. No entanto, Pires de Oliveira (2004, p. 229) ressalta

que:

[...] a segunda acepção do termo formal – aquela que equiparaformal a tese de autonomia da sintaxe - não precisanecessariamente excluir os funcionalistas. Há, pois, um espaço

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FUESPI/NEAD Letras Português

A terceira tendência relaciona-se ao fato de que as línguas naturais

são cálculos. Nessa tendência, Aristóteles, ao criar o silogismo, talvez tenha

sido o primeiro formalista a mostrar que o raciocínio linguístico pode ser

interpretado como um cálculo de forma:

Vejamos o exemplo:

(A) Todos os homens são mortais

(B) Sócrates é homem

(C) Logo, Sócrates é mortal.

O silogismo de Aristóteles define-se como o conjunto de três termos,

no qual o último, a conclusão, contém uma verdade a que se chega através

dos outros dois, isto é, se (A) e (B) forem verdadeiras, então

a conclusão (C) se segue necessariamente.

Segundo Pires de Oliveira (2004), usamos o tempo

inteiro raciocínios inferenciais, por isso, podemos dizer que

calculamos quando falamos. A autora aponta duas

posições teóricas sobre cálculo nas línguas: a de que

cálculo é específico à linguagem humana e a de que cálculo

é o mesmo que linguagens formais e linguagens naturais.

A primeira é a posição adotada pelos gerativistas e a

segunda, pela gramática categorial . Essa última é que

determina a terceira acepção do termo formal.

A partir dessa discussão, podemos afirmar que não

é pertinente restringir o termo formalismo aos gerativistas,

pois como aponta Pires de Oliveira (2004, p. 229):

para um trabalho conjunto entre gerativistas e funcionalistas semque nenhum dos dois tenha que abandonar sua “metafísica.

GLOSSÁRIO

A Gramática Categorial é umconjunto de teorias deinvestigação linguística debase lexicalista, queseguindo essencialmente opensamento de RichardMontague, prever que aslínguas naturais podem serentendidas formalmente erepresentativamente tal qualas linguagens artificiais, deforma a possibilitar análisescombinatórias ecomposicionais sintático-semânticas das estruturassentenciais.

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Gerativistas são formalistas porque utilizam uma metalinguagemtécnica quase lógica (formal na primeira acepção), porque privilegiama forma gramatical como autônoma (formal na segunda acepção) e

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110

Introdução à Linguística

Entre as teorias formalistas, não há como negar a importância das

contribuições da teoria gerativa para a Linguística. A seguir, aprofundaremos

nossos estudos acerca dessa teoria.

A teoria Gerativa

Essa teoria linguística teve início nos Estados Unidos no final da década

de 1950, a partir dos trabalhos do linguista norte-americano Noam Chomsky,

professor do Instituto de Tecnologia de Massachussets, MIT. Chomsky publicou

seu primeiro livro “Estruturas Sintáticas”, em 1957.

Motivado pelo fato de que um indivíduo utiliza a linguagem de maneira

criativa, isto é, a todo o momento ele constrói frases novas e inéditas, Chomsky

defendeu a ideia de que a linguagem humana resulta de uma capacidade

genética específica da espécie humana localizada na mente/cérebro a qual

ele denomina de faculdade da linguagem .

Partindo dessa concepção, Chomsky definiu que o papel do gerativista

é construir um modelo teórico capaz de descrever e explicar a natureza e o

funcionamento dessa faculdade da linguagem. Mas, como acreditar na

existência da faculdade da linguagem diante da existência de tantas línguas

no mundo?

Para dar conta dessa aparente contradição, Chomsky precisou ainda

mais o objeto de estudo da teoria gerativa distinguindo competência de

desempenho . A competência linguística é a capacidade que o falante tem

de produzir as sentenças de sua língua. O desempenho linguístico corresponde

ao comportamento linguístico que resulta da competência linguística e de

fatores não linguísticos (PETTER, 2005). Por exemplo, se você, em vez de

dizer “O cachorro saiu”, você acaba dizendo “O cachorro taiu”, você cometeu

porque admitem que as línguas naturais são cálculos (terceiraacepção). Mas, há, como já dissemos, formalistas que não estãode acordo com o gerativismo com relação à forma como se dá arelação entre sintaxe e semântica , negando portanto, a segundaacepção de formal.

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um erro de execução, de desempenho, o que não significa dizer que você não

tem competência linguística. Chomsky elegeu a competência como objeto de

estudo do gerativismo, passando o gerativista a ter o papel de descrever e

explicar a competência linguística do falante.

Com o desenvolvimento da teoria gerativista, no início dos anos 1980,

a ideia da competência linguística cede lugar à hipótese da Gramática

Universal (GU). Segundo Mioto et al. (2005), a GU é o estágio inicial de um

falante que está adquirindo uma língua. Assim, com a introdução dessa nova

noção, a tarefa do linguista passou a ser descrever e explicar o funcionamento

da GU.

De forma bem resumida, o gerativismo caracteriza-se pelo estudo das

propriedades internas à língua, tais como a natureza dos constituintes e a

relação que se estabelece entre eles, sem se voltar para as relações entre a

língua e o seu contexto de uso tal concebem as abordagens funcionalistas.

4.3 AS ESCOLAS FUNCIONALIST AS

Embora frequentemente contrastado ao estruturalismo, o funcionalismo

surgiu como um movimento particular dentro do estruturalismo. Os primeiros

trabalhos de análise funcionalista foram desenvolvidos pelos membros da

Escola de Praga, que se originou no Círculo Linguístico de Praga, fundado

em 1926 pelo linguista tcheco Vilém Mathesius.

Concebendo a linguagem como meio de comunicação e interação

social, o funcionalismo é uma teoria linguística que tem como objeto de estudo

o uso interativo da língua. Em outras palavras, a teoria funcionalista analisa a

língua, procurando explicar suas regularidades, nos diferentes contextos

comunicativos. Vejamos um exemplo que reflete um fenômeno comum no dia-

a-dia do teresinense:

(1) Tchau, tô chegando!

(2) Tchau, tô indo!

Page 112: Livro Texto Base de Linguistica 1

112

Introdução à Linguística

Que tipo de análise daria conta de explicar por que o teresinense utiliza

com mais frequência a sentença (1) do que (2)? Ambas as sentenças

relacionam-se a uma situação comunicativa de despedida. Ocorre que, em

Teresina, a sentença (1) é mais utilizada pelo simples fato de que o teresinense,

ao empregar “tô chegando”, prefere enfatizar o destino, o que não é comum

entre a maioria dos falantes que, ao empregar, na mesma situação, a sentença

(2), dá mais ênfase à origem. Esse exemplo mostra como se processa uma

análise de cunho funcionalista. Os enunciados e os textos são analisados

considerando a função que eles desempenham em situações efetivas de

comunicação.

Para os funcionalistas, como bem acentua Cunha (2008, p. 158), “a

língua não constitui um conhecimento autônomo, independente do

comportamento social, ao contrário, reflete uma adaptação, pelo falante, às

diferentes situações comunicativas.” Essa proposta, portanto, opõe o

funcionalismo às abordagens estruturalistas e gerativistas que não se

interessam pela atuação de fenômenos externos à estrutura das línguas.

Quanto ao processo de aquisição da linguagem, os funcionalistas defendem

que a linguagem faz parte do desenvolvimento cognitivo da criança, assim

como qualquer outro tipo de aprendizagem. A criança constrói a gramática de

sua língua, com base nos dados linguísticos aos quais ela é exposta em

situações de interação com os membros de sua comunidade de fala.

Os estudos funcionalistas classificam-se em dois grupos: o

funcionalismo europeu e o funcionalismo americano . O primeiro estuda

as funções que a linguagem pode desempenhar nas situações comunicativas,

focalizando a organização interna do sistema linguístico. Foi com os estudos

fonológicos, desenvolvidos na Escola de Praga, que esse modelo obteve maior

projeção. Entre seus principais representantes, destacam-se os russos Nikolaj

Trubetzkoy e Roman Jakobson.

O segundo estuda as funções que a linguagem pode desempenhar

nas situações comunicativas focalizando os aspectos cognitivos relacionados

Page 113: Livro Texto Base de Linguistica 1

113

FUESPI/NEAD Letras Português

à comunicação. Entre os representantes dessa tendência, destacaram-se os

linguistas: Franz Boas, Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf. Segundo Cunha

(2008), o texto pioneiro no desenvolvimento das ideias dessa tendência é

“The Origins of Syntax in Discourse” publicado em 1976 por Gillian Sankoff e

Penelope Brown. Nesse texto, as autoras

fornecem evidências das motivações discursivas

geradoras das estruturas sintáticas do tok pisin,

língua de origem pidgin de Papua- Nova Guiné,

ilha ao norte da Austrália.

No Brasil, os estudos funcionalistas ganharam impulso a partir da

década de 1980. Segundo Cunha (2008), o texto pioneiro foi “Perspectiva

funcional da frase portuguesa” publicado em 1987, pelo linguista brasileiro

Rodolfo Ilari, que trata do dinamismo comunicativo em termos de tema e rema,

na linha dos estudos da Escola de Praga. De lá para cá, foram surgindo vários

grupos de pesquisa nessa área. Entre eles destacam-se o Projeto de Estudo

do Uso (Peul) da Língua da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que

focaliza a variação linguística sob a perspectiva da função discursiva das

variantes selecionadas, e o Grupo de Estudos Discurso & Gramática sediado

em várias universidades, que focaliza o estudo dos processos de

gramaticalização.

A teoria funcionalista possui vários temas relevantes, dentre eles, os

mais representativos para essa fase introdutória dos estudos linguísticos são:

informatividade e gramaticalização.

Informatividade

Focaliza o conhecimento que os interlocutores compartilham ou supõem

que compartilham na interação verbal que se manifesta por meio do status

informacional dos referentes nominais na situação comunicativa. Um referente

pode ser novo , dado , disponível ou inferível . É novo quando é introduzido

pela primeira vez no discurso. É dado ou velho, se já tiver ocorrido no texto. É

GLOSSÁRIOPidgin é uma língua que surgepara suprir uma necessidadeextrema de barreira àcomunicação.○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Page 114: Livro Texto Base de Linguistica 1

114

Introdução à Linguística

disponível se em um dado contexto o referente é único e está na mente de

ouvinte. É inferível quando é identificado por meio de outras referências dadas.

Vejamos um exemplo de cada caso, respectivamente, nas situações

hipotéticas abaixo:

(3) Quando chegou na descida da ladeira do Uruguai o carro atropelou um

ciclista que atravessou a sua frente.

(4) O professor adiou a prova porque os alunos disseram que ainda (os alunos)

tinham muitas dúvidas sobre o conteúdo.

(5) Eu fui a Pedro II com uma amiga que nunca tinha ido ao Festival de Inverno.

(6) Quando ele viu o táxi passar, começou a gritar, gritar chamando o motorista,

mas ele não ouvia...

Em (3) ‘carro’ e ‘ciclista’ são referentes novos porque no texto não

encontramos nenhuma referência a essas expressões feitas anteriormente.

Em (4) ‘alunos’ não aparece porque se trata de uma referência dado,

mencionada anteriormente. Em (5) Pedro II é uma referência disponível que o

ouvinte já conhece. E, finalmente em (6), apesar de ‘motorista’ ser uma

referência que não foi mencionada antes e como táxi implica a existência de

um motorista, não é problema para o ouvinte recuperar a referência e entender

a mensagem. Nesse caso, há, pois de uma referência inferível.

Gramaticalização

É o processo pelo qual itens lexicais e construções sintáticas em

determinados contextos passam a assumir funções gramaticais diferentes das

que originalmente assumem. A esse processo, pode associar-se outro que

determina alterações fonéticas na expressão original. Uma vez

gramaticalizados, esses termos continuam sujeitos a desenvolver novas

funções gramaticais. Vejamos alguns exemplos de gramaticalização!

A conjunção alternativa “quer...quer”, em “Quer chova, quer faça sol,

estarei lá”, constitui um exemplo de gramaticalização do item lexical “querer”.

A conjunção e o advérbio “embora” empregados respectivamente em “Ria,

Page 115: Livro Texto Base de Linguistica 1

115

FUESPI/NEAD Letras Português

embora quisesse chorar” e “Eu vou embora à 22h”, constituem outro exemplo

de gramaticalização. Tal expressão originou-se da construção sintática “em

boa hora”.

A partir dos estudos funcionalistas, originaram-se vários outros estudos,

entre os quais vale destacar: a Sociolinguística, a Análise do Discurso e a

Linguística textual.

A Sociolinguística é o estudo da língua em seu uso real considerando

os aspetos resultantes da relação entre a língua e a sociedade. Seu principal

objetivo é investigar quais são os principais fatores que motivam a variação

linguística e qual o papel de cada um deles na configuração do quadro que se

apresenta variável. Desenvolveu-se na década de 60 nos Estados Unidos

sob a liderança do linguista William Labov.

A Análise do Discurso é uma abordagem linguística que tem como

objeto de estudo o discurso. Seu principal objetivo é estudar as condições de

produção de sentido de um anunciado, considerando o quadro das instituições

em que o discurso é produzido; os embates históricos e sociais e o espaço

próprio em que cada discurso configura para si. Desenvolveu-se, na década

de 60, na França, sob a liderança de Michel Pêcheux.

A linguística Textual é a abordagem linguística que tem como objeto de

estudo o texto. Seu principal objetivo é entender os aspectos relacionados à

produção, recepção e interpretação do texto, considerando suas condições

de uso. Desenvolveu-se, na década de 60, na Europa, mais especificamente,

na Alemanha.

Diante do exposto, vale ressaltar que tais teorias não analisam objetos

de estudo diferentes, apenas elegem fenômenos diferentes de um mesmo

objeto: a linguagem verbal humana. Portanto, é importante que fique claro que,

embora um tanto distintos os enfoques, a escolha de uma não implica a rejeição

da outra. Uma aborda a língua como sistema (estruturalismo); a outra, como

capacidade inata do falante (gerativismo) e, por fim, as outras abordagens

estudam a língua em seu contexto de uso (teorias funcionalistas).

Page 116: Livro Texto Base de Linguistica 1

116

Introdução à Linguística

RESUMINDO

Com o desenvolvimento dos estudos lingüísticos, foram surgindo várias

definições de linguagem humana que orientam três teorias gerais da linguagem

e de análise linguística, a saber:

1. ESTRUTURALISMO

• Teoria herdeira das ideias do linguista genebrino Ferdinando

Saussure;

• Tem como seu objeto de estudo a língua em oposição a fala;

• A língua é entendida como um sistema, um conjunto de unidades em

que cada unidade tem um valor funcional;

• Seu principal objetivo é descrever a língua em si mesma e por si

mesma.

2. GERATIVISMO

• Teoria herdeira das ideias do linguista norte-americano Noan

Chomsky;

• Tem como objeto de estudo a competência linguística em oposição

ao desempenho;

• A competência linguística do falante é entendida como uma

capacidade inata da espécie humana;

• Seu principal objetivo é a construção de um mecanismo

computacional capaz de reproduzir o conhecimento linguístico de um falante.

3. FUNCIONALISMO

• É herdeira das ideias de Roman Jakobson;

• Seu objeto de estudo é a língua em usos;

• A língua é entendida como meio de comunicação e interação social;

• Seu objetivo é descrever a língua como um requisito pragmático de

interação verbal.

Tais teorias não analisam objetos de estudo diferentes, apenas elegem

fenômenos diferentes de um mesmo objeto: a linguagem verbal humana.

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FUESPI/NEAD Letras Português

LEITURA COMPLEMENTAR

Para que possamos consolidar um pouco mais algumas das questões

relativas aos conteúdos apresentados neste capítulo, recomendamos a leitura

de uma resenha do livro Conversas com linguistas: virtudes e controvérsias

da linguística, elaborada pelo Prof. Adail Ubirajara Sobral, publicada na revista

D.E.L.T.A.

DELTA: Documentação de Estudos em Linguística Teórica Aplicada

Print version ISSN 0102-4450

DELTA vol.19 no.2 São Paulo 2003

Resenhado por/by: Adail Ubirajara Sobral

LAEL/PUC-SP – Doutorando [email protected]

Palavras-chave : Linguistas brasileiros; Abordagens.

Key-words : Brazilian linguista; Approaches.

XAVIER, Antonio Carlos; CORTEZ, Suzana, Orgs. (2003). Conversas com

linguistas . São Paulo: Parábola Editorial. ISBN: 85-88456-07-9. 200p.

As virtudes e controvérsias da linguística, subtítulo de Conversas com

linguistas, saíram finalmente dos muros acadêmicos. O livro apresenta entrevistas

feitas pelos organizadores com alguns dos principais estudiosos da linguagem do

país, todos com mais de 20 anos de experiência acadêmica. Essa primeira amostra

traz de estudiosos da semântica formal a analistas de discurso, de profissionais

que se ocupam dos aspectos cognitivos a teóricos do texto, de semioticistas

greimasianos a chomskyanos, de linguistas da paz a estudiosos bakhtinianos, de

estudiosos da fonética a pesquisadores da área da pragmática, de estudiosos dos

usos do português a praticantes da análise da conversação, entre outros. A primeira

contribuição do livro reside em mostrar, como o pretendiam os autores, a

diversidade e a maturidade da reflexão e da prática dos estudos da linguagem

Page 118: Livro Texto Base de Linguistica 1

118

Introdução à Linguística

no Brasil. Não faltam às respostas questionamentos acerca da própria adequação

das designações "linguista" e "linguística", bem como a ideia, louvável em todos os

aspectos, de que definir esse campo de estudos depende do ponto de vista que se

assume para fazê-lo. Devem-se mencionar ainda as excelentes discussões acerca

do que é "servir para alguma coisa" quando se trata de ciência, e as interessantes

reações sobre as relações da linguística com a pós-modernidade, essa expressão-

valise tão em voga em nossos dias. Precede cada depoimento um minicurrículo

de cada entrevistado.

Os 18 entrevistados, que trabalham em diversos estados brasileiros (com

grande concentração em São Paulo), são apresentados em ordem alfabética de

sobrenomes. São eles: Maria Bernadete M. Abaurre; Eleonora C. Albano; José

Borges Neto; Ataliba de Castilho; Carlos Alberto Faraco; José Luiz Fiorin; João

Wanderley Geraldi; Francisco C. Gomes de Matos; Rodolfo llari; Mary Kato; Ingedore

G. Villaça Koch; Luiz Antonio Marcuschi; Maria Cecília Mollica; Diana Luz P. de

Barros; Sírio Possenti; Kanavilill Rajagopalan; Margarida Salomão e Carlos Vogt,

este último igualmente autor do Prefácio. As perguntas feitas abarcam um largo

espectro de questões relevantes para a compreensão dos do estudos linguísticos.

São elas: "Que é língua? Qual a relação entre língua, linguagem e sociedade? Há

vínculos necessários entre língua, pensamento e cultura? Linguagem tem sujeito? Que

é linguística? Linguística é ciência? Para que serve a linguística? Linguística teria algum

compromisso necessário com a educação? Como a linguística se insere na pós-

modernidade? Quais os desafios para a linguística no século XXI?" As respostas

oferecem um quadro amplo e profundo que vai por certo servir para balizar os estudos

linguísticos e dar início a um amplo diálogo intradisciplinar e interdisciplinar que vários

entrevistados apontaram como desafio para a linguística no século XXI.

A pergunta sobre o que é língua fez grande parte dos entrevistados remeter

à distinção entre língua e linguagem, em alguns casos mantida e em outros

contestada, havendo ainda alusões à distinção saussuriana entre língua e fala, o

que traz relevantes informações acerca das concepções que circulam no meio

acadêmico especializado. A língua é definida das mais diversas maneiras. São

Page 119: Livro Texto Base de Linguistica 1

119

FUESPI/NEAD Letras Português

arroladas aqui, resumidamente, essas várias definições, que se acham detalhadas

no livro, porque a leitura do livro revela que elas nortearam a reflexão acerca dos

outros temas propostos: língua é atividade, trabalho; gesto que é parte integrante

de muitas outras atividades humanas; abreviação para designar os idioletos, que,

esses sim, seriam objetos empíricos; um fenômeno multissistêmico gerido por

um dispositivo sociocognitivo; complexidade estruturada, estruturante e estruturável;

condensação de um homem historicamente situado; instrumento e produto do

trabalho; sistema de comunicação intra/interpessoal e intra/intercultural; um tipo

de competência que nós temos; um fenômeno a um só tempo biológico e produzido

num contexto; simultaneamente um sistema e uma prática social; domínio público de

construção simbólica e interativa do mundo; sistema organizado de relações entre

processamento verbal e significado necessariamente presente em ações

sociointeracionais; um fenômeno desdobrado nos domínios língua e fala, entendidos

como integrados em vez de dicotômicos; ao mesmo tempo sistema formal e objeto de

inscrição social e subjetiva; algo que a gente cria e molda à medida que se vai falando,

um abstrato a posteriori; produção da capacidade da linguagem, uma produção histórica

socialmente demarcada que envolve herança histórica, herança biológica e história

pessoal, não só como condição, mas como demarcação da expressão; um fenômeno

social por excelência que envolve um aspecto estrutural e as condições político-sociais

e econômicas da constituição de um fenômeno de comunicação como língua.

O que une essas várias definições, em meio à aparente diversidade, é o

reconhecimento da complexidade do objeto da linguística. Nenhuma das definições

deixa de levar em conta, ainda que os desenvolvimentos variem, aspectos formais

e não formais, domínios da repetibilidade e da irrepetibilidade, elementos sociais e

pessoais, cognitivos e interacionais, biológicos e políticos, etc. Vê-se que a

linguística é, como disse um dos entrevistados, essencialmente pós-moderna, se

por isso se entender que o campo se desenvolve num ambiente de indefinição

e fluidez com relação ao seu próprio objeto. Ainda que alguns tenham defendido

a linguística como ciência de uma maneira que a aproxima da concepção clássica

e mesmo positivista de ciência, outros como ciência num sentido não clássico e

Page 120: Livro Texto Base de Linguistica 1

120

Introdução à Linguística

outros ainda como uma reflexão que não tem porque impor a si um estatuto de

cientificidade do tipo que por muito tempo foi dominante na epistemologia tradicional,

todos reconhecem ter ela hoje objetos delimitados, mesmo que não definidos no

sentido formal tradicional; metodologias reconhecíveis e reproduzíveis e outras

características que fazem dela uma espécie de estudo a um só tempo experimental

e hermenêutico, descritivo e interpretativo, sem pretensões de explicar os

fenômenos no sentido estrito de "explicar".

Se há questionamentos acerca do próprio estatuto de cientificidade das

ciências paradigmáticas, como a física, sente-se a falta de uma descrição que a

diferencie das ciências não-humanas naquilo que ela compartilha com as outras

ciências humanas: o fato de não envolver sujeitos que estudam e objetos de estudo,

mas sujeitos que estudam e sujeitos estudados. Falta também um questionamento

mais aprofundado dos pilares da epistemologia tradicional, o sujeito desprendido

cartesiano, o sujeito idealmente pronto, ser livre e racional, bem como a ideia,

decorrente dessa concepção de sujeito, da sociedade como agregado de sujeitos

atomizados em vez de constituída pelas interações entre esses sujeitos, que ao

mesmo tempo nela encontram as bases de sua subjetivação/socialização, sendo,

portanto mediadores de sua constituição simbólica. Não que esses aspectos não

tenham sido abordados direta ou indiretamente por vários entrevistados quando

de suas respostas, por exemplo, à questão da existência de um sujeito da

linguagem (ou da língua, como sugeriram alguns), nem que não tenha havido

reflexões que envolveram a questão da epistemologia; a falta em questão é da

aplicação mais sistemática desses elementos ao problema da cientificidade

dos estudos da linguagem, o que parece indicar que, embora os linguistas

comecem a questionar o modelo epistemológico vindo das ciências ditas exatas,

ainda não atingiram esse campo as intensas discussões travadas em outros

campos do conhecimento quanto à validade de uma concepção de cientificidade

positivista que concebe o pesquisador como alguém capaz de transcender sua

própria condição e vê-la a partir de um ciberespaço científico, de uma virtualidade

a-histórica e a-social.

Page 121: Livro Texto Base de Linguistica 1

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FUESPI/NEAD Letras Português

No tocante ao sujeito, verifica-se haver certa oscilação nas respostas entre

o sujeito da língua/da linguagem tomado em seu aspecto formal e o sujeito da

língua/da linguagem tomado em seu aspecto de atividade. Isso não se deve às

diferenças de pressupostos dos entrevistados, mas ao reconhecimento da própria

complexidade do objeto da linguística, um sistema ciberneticamente aberto, ou

seja, sujeito a influências de outros sistemas e que igualmente influencia esses

sistemas com que interage. É contudo, motivo de satisfação ver que as reflexões

desses profissionais caminham na direção de um monismo conceitual e prático

na linha de Espinoza e de Vygotsky, dado que reconhecem, tomadas em conjunto,

a imbricação entre os aspectos psico-fisiológicos e sócio-históricos do fenômeno

da linguagem verbal. Outro importante aspecto é a refutação do utilitarismo

mercadológico como critério de determinação da validade e da importância dos estudos

linguisticos; vê-se aí uma grande maturidade, pois essa recusa em momento algum

envolve uma separação entre estudos puros e estudos aplicados, mas a defesa do

empreendimento linguístico como valioso por contribuir para a compreensão dos seres

humanos, a par da plena aceitação de que estudos voltados para fins mais práticos

têm o mesmo valor que os estudos que não estão especificamente voltados para isso.

Por outro lado, há a defesa da ética da pesquisa como valor fundamental; os

entrevistados revelam plena consciência de sua responsabilidade social como antes

de tudo cidadãos, recusando a imagem do cientista alienado que nada conhece além

de experimentos, axiomas, postulados e coisas do gênero.

O tema dos desafios da linguística traz um espectro tão grande de

possibilidades e necessidades que constitui por si só uma proposta de mudança

de paradigma. Porque envolve desde o aprofundamento do conhecimento do

aspecto cognitivo da linguagem como a proposta de uma linguística voltada para a

promoção da paz, passando pelo desenvolvimento de propostas voltadas para as

mais diversas áreas, teóricas e práticas. Há a ênfase na necessidade de um estudo

mais aprofundado da "produção" da linguagem, sem desprezo do "produto"

linguístico, o apelo para que se levem em conta as descontinuidades ligadas à

linguagem verbal, para que se reconheça que o próprio ser da linguagem, é antes

da ordem do fluido do que do organizado.

Page 122: Livro Texto Base de Linguistica 1

122

Introdução à Linguística

Os autores e a editora prometem lançar dentro em breve um novo volume,

Conversas com (mais) linguistas, que trará as ideias de alguns outros estudiosos

brasileiros da linguagem. É de esperar que esse novo livro contemple estudiosos

das várias novas áreas da chamada linguística aplicada, como as que se dedicam

à questão da linguagem do trabalho, sobre o trabalho e no trabalho, às

especificidades do letramento, da relação entre linguagem e pensamento de linha

vygotskyana e aos estudos transdisciplinares baseados nas propostas do círculo

de Bakhtin, bem como alguns importantes praticantes da linguística sistêmico-

funcional. A reflexão a que nos levam e o conhecimento que nos trazem as

contribuições de Conversas com linguistas não somente revelam o

amadurecimento cada vez maior das concepções, dos estudos, das aplicações

da ciência da linguagem no Brasil, bem como de seus praticantes, como permitem

ao leitor, seja leigo ou especializado, ter uma excelente visão de conjunto da

linguística, da língua, da linguagem e de temas conexos. Um livro indispensável!

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

1. Comente a afirmativa saussuriana:

“... a linguística tem por único e verdadeiro objeto a língua considerada em si

mesma e por si mesma”.

2. Explique a dicotomia saussuriana língua/fala, comparando com a oposição

chomysquiana competência/performance.

3. Como explicar a capacidade linguística de um falante para formular frases

complexas como “Não sei quando vou poder tirar férias” se considerarmos

que ela não decorre de um aprendizado específico?

4. Defina signo linguístico e exemplifique. Fale da arbitrariedade que

caracteriza o signo.

5. A escola funcionalista da linguagem não corresponde a uma teoria particular,

mas a vários modelos teóricos. Qual o princípio que rege essa escola?

Page 123: Livro Texto Base de Linguistica 1

123

FUESPI/NEAD Letras Português

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Royal . Disponível em:http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/

p000006.htm. Acesso em 7.mai.2011.

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FUESPI/NEAD Letras Português

TRAVAGLIA, Luis Carlos. Gramática e interação: uma propost a para o

ensino de gramática no 1º e 2º graus . São Paulo: Cortez, 1996.

XAVIER, Antonio Carlos; CORTEZ, Suzana (orgs.). Conversas com

linguistas: virtudes e controvérsias da Linguística . São Paulo: Parábola,

2003.

WEEDWOOD, Barbara. História concisa da linguística . Tradução de Marcos

Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2002.

Page 128: Livro Texto Base de Linguistica 1
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AVALIAÇÃO DO LIVRO

Prezado(a) cursista:

Visando melhorar a qualidade do material didático, gostaríamos querespondesse aos questionamentos abaixo, com presteza e discernimento.Após, entregue a seu tutor esta avaliação. Não é necessário identificar-se.

Unidade:____________ Município: _________________

Disciplina:___________ Data: ____________________

1. No que se refere a este material, a qualidade gráfica está visualmente

clara e atraente

( ) ÓTIMO ( ) BOM ( ) RAZOÁVEL ( ) RUIM

2. Quanto ao conteúdo, está coerente, contextualizado à sua prática de

estudos

( ) ÓTIMO ( ) BOM ( ) RAZOÁVEL ( ) RUIM

3. Quanto às atividades do material, estão relacionadas aos conteúdos

estudados e compreensíveis para possíveis respostas.

( ) ÓTIMO ( ) BOM ( ) RAZOÁVEL ( ) RUIM

4. Coloque abaixo suas sugestões para melhorar a qualidade deste e de

outros materiais.

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