livro praticas religiosas no mediterraneo antigo - volume_ii

122
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE Práticas Religiosas no Mediterrâneo Antigo Religião, Rito e Mito Rio de Janeiro NEA/UERJ 2012

Upload: marco-lima

Post on 08-Aug-2015

92 views

Category:

Documents


21 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA NCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE Prticas Religiosasno Mediterrneo Antigo Religio, Rito e Mito Rio de Janeiro NEA/UERJ 2012 Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 2 Copyright2012: todos os direitos destaedio esto reservados ao Ncleo de Estudos da Antiguidade NEA, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2012. Capa: Junio Csar Rodrigues Imagem da Capa: Museum Collection: Museum of Fine Arts, Boston, Massachusetts,USACatalogue Number: Boston 99.518 Beazley Archive Number: 302569 Ware: Attic Black FigureShape: Kylix Painter: Name vase of the Painter of the Boston Polyphemos Date: ca 560 - 550 BC Period: Archaic Direo e organizao: Maria Regina Candido Coordenao da Publicao: Carlos Eduardo da Costa Campos Editorao eletrnica: Carlos Eduardo da Costa Campos & Luis Filipe Bantim de Assumpo Impresso:GrficaeEditoraRio-DGltda.RuaVazToledo,536-Engenho Novo - Rio de Janeiro RJ.A obra Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo: Religio, Rito e Mito integra a linha depublicaoPrticasReligiosasnoMediterrneoAntigo-quefoiiniciadaem 2011. CATALOGAO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CCS/A Ncleo de Estudos de Antiguidade Site: www.nea.uerj.br / e-mail: [email protected] Tel: (021) 2334-0227 P912CANDIDO, Maria Regina (org.). Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo: Religio, Rito e Mito. Rio de Janeiro: Grfica e Editora Rio-DG;UERJ/NEA, 2012. 122 p. ISBN: 978-85-60538-09-6 1. Mediterrneo, Mar, Regio - Religio. 2. Religio. I. Candido, Maria Regina. CDU 931(262) Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 3 Universidade do Estado do Rio de Janeiro Reitor: Ricardo Vieiralves de Castro Vice-reitor: Christina Maioli Extenso e cultura: Ndia Pimenta Lima Instituto de Filosofia e Cincias Humanas Dirce Eleonora Rodrigues Solis Departamento de Histria Maria Theresa Torbio Programa de Ps-Graduao em Histria (PPGH/UERJ) Tnia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira Conselho Editorial Alexandre Carneiro (Universidade Federal Fluminense) Carmen Isabel Leal Soares (Universidade de Coimbra) Claudia Beltro da Rosa (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) Daniel Ogden (University of Exeter) Maria do Carmo Parente Santos (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Maria Regina Candido (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Margaret M. Bakos (Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul) Vicente Dobroruka(Universidade de Braslia) Assessoria Executiva Alair Figueiredo Duarte Carlos Eduardo da Costa Campos Jos Roberto de Paiva Gomes Junio Cesar Rodrigues Lima Luis Filipe Bantim de Assumpo Tricia Magalhes Carnevale Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 4 Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 5 Sumrio 07PREFCIO Vicente Dobroruka 09OS RITOS E PRESSGIOS NA GUERRA: A PARTIDADOS SOLDADOS HELENOS AO COMBATE Alair Figueiredo Duarte 17ALCESTIS O MYTHOS DA MELISSA (RE) CONSTRUDOPOR EURPIDES?! Alessandra Serra Viegas 28MITO E HISTORIOGRAFIA NA HXADE TIBERIANADOS ANAIS DE TCITO Anderson de Araujo Martins Esteves37RITUAISFNEBRESDOSIBEROS:CREMAO,DANASE ARMAS, ENTRE OS SC. V E III A.C. Carlos Eduardo da Costa Campos 49TITUSFLAVIUSJOSEPHUSEODISCURSODEEUSBIODE CESARIA EM SUA HISTRIA ECLESISTICA Junio Cesar Rodrigues Lima 66O RITO DE ARTEMIS ORTHIA E O PROCESSO DE FORMAO DO JOVEM ESPARTANO, NO PERODO CLSSICO Luis Filipe Bantim de Assumpo 83MINOS E O IMAGINRIO SOCIAL DO SACRIFCIODE SANGUE Maria Regina Candido91SER CRISTO: NOVAS PRTICAS, NOVOS RITOS Renata Lopes Biazotto Venturini Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 6 104PHRMAKA E KATDESMOI: ENCONTROS E ENFRENTAMENTOS ATRAVS DAS PRTICAS MGICAS DA DEUSA HEKATE E DA MEDICINA DE HIPCRATES NO PERODO CLSSICO DOS ATENIENSES Tricia Magalhes Carnevale Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 7 PREFCIO Vicente Dobroruka1 Foicomrenovadoprazerquerecebiaincumbnciadeprefaciar um novo livro que trata de prticas religiosas no Mediterrneo antigo, organizadopeloNcleodeEstudosdaAntigidade-NEA,da UniversidadeEstadualdoRiodeJaneiro(UERJ),lideradopelaProfa. Dra. Maria Regina Candido. Estevolume,emquepeseocontnuointeressepelostemas ligadosreligioqueconstituemoprprioeixodoNEA,vemosuma novidadequesemanifestaempraticamentetodosostextosdesta coletnea: a anlise das vinculaes entre a guerra e a esfera do sagrado. Istoseestendetambmaotratamentodasrelaesentre historiografiaemito(temapresenteemdoisdosartigosdestelivro),j que a historiografia antiga, lugar-comum diz-lo mas no se deve deixar de diz-lo por isso, quase sempre um registro do feito militar, j que esteoqueocasionaomaiornmerodemudanasnumintervalode tempomaiscurto;eohistoriadorantigovivendoconscientementeou no o dilema que nos persegue at hoje - somos cincia pelo mtodo ou arte pela forma? - buscou, via de regra, o estudo da guerra. Nemtodososartigosconstituintesdestacompilaotratamde assuntosmilitares,contudo:algunsvoltam-separaasrelaesentreo sagradonamedicinaenocotidianosocial,nanovainseroqueo cristianismo traz ao homem da Antigidade. De todo modo, so artigos quecontribuem,todos,paraenfatizarosvnculoshistricos, antropolgicos, sociolgicos e de quantas disciplinas mais entre a morte (emltimaanlise,derivaooumesmofunodaguerra-pensemos em Verdun) e o fenmeno religioso. Aqui,outrovnculopodeserestabelecido-quandono explicitadoporalgunsdosautoresdosartigosquecompesolivro-, 1Professor de Histria Antiga da UnB. Doutor em Teologia, Oxford e Professor VisitanteemClareHall,Cambridge.MembrodoAncientIndiaandIranTrust, Cambridge;daFacultyofHistory,CambridgeeMembrodoprojeto4Enoch, Universidade de Michigan.

Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 8 outrotipodeelo,estemaissofisticadotalvez:aqueleentreritos iniciatrios ou preparatrios e o sagrado. Tambm eles so abordados no livro organizado pelo NEA. Por fim, gostaria de convidar o leitor a ler este livro na ordem que melhor lhe convier mas com uma pequena sugesto, se me for permitido - que o faa tendo em mente que nem tudo o que sagrado se expressa de modo sublime, inefvel; muitas vezes o faz de modo cruel e violento s nossas sensibilidades. Dito isso, aproveitem mais este grande trabalho do NEA, que expe muitos nomes novos que, um dia, sero conhecidos de todas as pessoas cultas, espera-se. Prof. Dr. Vicente Dobroruka (UnB /PEJ-H) Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 9 OS RITOS E PRESSGIOS NA GUERRA: A PARTIDA DOS SOLDADOS HELENOS AO COMBATE Alair Figueiredo Duarte 2

Iniciamosnossaanlise comumquestionamento:Para queserveorito?MarcAug (1997:95),nosapontaquea atividaderitualdeterminapara cadaindivduoseulugar,sua identidadesocialeatasua alteridade.Esedefatoo homemforumanimalpoltico comonosinferiuAristteles (Poltica:1253a),nopodemos deixar dereconhecer que a vida Poltica,ouseja,avidaem comunidadeestrepletaderitos. Osritosmarcamaposiodo indivduo no seu corpo social e os ritosdepassagem,demonstram queelefoiaceitooupassoua ocuparumlugarproeminente entre seus pares. Quando abordamos os ritos em relao guerra, vemos que no hatividadesocial,polticaeantropolgicaemqueosritoseas alteridades fiquem mais evidentes. Segundo Michel H. Jameson, os ritos deguerrasparaosantigoshelenosrepresentavamumagarantiade 2AlairFigueiredoDuarteProfessorMestreemHistriaComparada, pesquisador do Ncleo de Estudos da Antiguidade na linha de pesquisa: Guerra, PodereEconomianoMundoAntigo.SuapesquisatemnfaseemGuerrana Sociedade Helnica, atuando com Soldados Mercenrios e Fronteiras. e-mail: [email protected] Um fgado sendo observado na partida de um soldado. Detalhe de uma nfora tica de Figuras Negras. Final do sculo VI a.C. Londres, British Museum,Departament of Greek and Roman Antiquities B 171. Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 10 aprovao dos deuses protetores. Afinal, a Guerra um lugar onde a vida humanatocadapeloorgulhoepelorisco,lugarondeosauspcios muitas vezes tornam -se os paradigmas. (Apud. HANSON, Victor Davis, 1998:197.)NoperodoClssicodosgregos,antesdesepartirparao combate era habitual se consultar orculos e tambm certificar-se de que os auspcios estavam favorveis. O soldado Hoplita, atravs do combate de infantaria pesada que surgiu na Hlade em meados do sculo VII a.C., participava da atividade ritualquenoocorriasemosdevidospreparativos.(KEEGAN,J. 1995:264). Em seguida se dirigia para o combate nas fronteiras da tica queeradefensvel,poiseramconstrudosressaltosqueserviamcomo muros nos limites das propriedades rurais e estes ressaltos impediam que acavalariacirculasselivremente.Nopodemosesquecerqueas fronteiraseramlimitesdecamposcultivados.Comoaagriculturaeraa principalbasedaeconomiapolade,atticautilizadaparacausarmaior danoaosinimigosseriadestruirseucampodecultivoesemeadura-a esse processo era dado o nome de Cortar.Destruir o cultivo do inimigo consistiadanificarocampo deoliveiraouvindimaeistono setratava de tarefa fcil. Para se destruir uma oliveira, devido espessura de seu tronco seria impossvel a uma cavalaria, portanto, o mais eficaz seria por fogonestetipodecultura.Enquantoqueasvindimasdevidoasuas razesprofundas,aindaquefossemqueimadaspoderiamsobrevivere pisote-las exigiram muitos homens por hora de trabalho, sem levarmos emconsideraoqueumatropaemcampanhalongedoseucentro logsticodeabastecimento,precisariadevveresparamantera sobrevivncia.Portanto,atarefadohoplitanasfronteirasexigiauma eternavigilnciaeocombatecampal,quandoatingidonoseusolo sagradoexigiaareparaocomoformadevingarosolodosancestrais violado (HANSON, 1989: Passim). No combate ritualstico dos hoplitas, as falanges se encontravam emumaplanciefrente-a-frentecomosinimigosformadosemblocos compactos, ordenados por fileiras (no mnimo oito; nmero adequado a nodeixarespaosvazios).Oespaoentreoscombatenteseramem mdiadeummetro,demaneira,queumexrcitocomtamanhomdio (formadopordezmilhomens)chegavaaseestenderpordois quilmetros e meio (GARLAN, In: VERNANT, 1993:59). Atravessando Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 11 umamploespao-achamadaterradeningum(Territrioindefinidoe desabitadoqueseestendiaatondesejulgavaserolimitedesuas longnquasfronteiras)eapsaproximadamenteuns150memuma corridaorganizada-pormdesajeitadadevidoaopesodaarmadura- havia o choque com a falange inimiga. medida que a segunda fileira e assubseqentesreduziamoespaoentreoshomens,afalangese comprimiaeopesoprovindodaretaguarda,empurravaasfileirasda vanguarda.Nestemomento,algunscombatentestombavammortosou feridoseerampisoteadospelasfileirasquevinhamimediatamentede trs. Os combatentes da segunda e terceira fileira tentavam abrir brechas nasfileirasinimigascomsuaslanas.Seobtivessemsucesso,haviao othismos (empurro com o escudo). Este era o mtodo mais eficaz para levar o rompimento das linhas inimigas e espalhar pnico e confuso em meio aluta.Abrindoumflancojuntoafalangeinimiga,estavaconfiguradaa possibilidade de vitria (KEEGAN, 1995:264-265). O combate face a face exige que nos momentos iminentes a luta fosse habitual o sacrifcio de animais em ritos de sangue, sphagia.Para o ritual,umanimalsaudveleraselecionadoeofertadoaosdeuses, comumenteumcaprinoquetinhaasuagargantaperfuradapelo processodeesgorjamentoeseusangueaocairaosologarantiriaa aprovaodaspotenciassubterrneas,impedindoassimahostilidades dasforassobrenaturais.Eracomum,emmeioaoritual,realizarum desjejumcerimonialnamanhdocombate,comumaingesto,bem maior, de vinho neste dia. Em seguida, ouvia-se a exortao ao combate porpartedoscomandantese,apsosrituaisdesphagia,avanavam contra o inimigo proferindo o pean, cntico ou grito de guerra em honra aDionisoouApolo(KEEGAN,1995:263).Apsoscombates,o vencedorerigiriaumtrofuemhonraaosdeusescarcaademadeira adornadacomasarmasdovencidoeapsosacordosnecessrios haveria um perodo de trguas para que derrotados pudessem enterrar os seus mortos (GARLAN In: VERNANT, 1994:59). AsexposiesdocombatehoplitanaAntiguidadehelnicaso exemplosdequeOhomemumanimalritual.Eles(osritos)permeiama interaosocial,criandoumarealidadequenoserianadasemeles(Douglas, Mary . Pureza e Perigo. In:LANGDON,2007: 06). Os rituais se davam emduasmaneiras,Hiraesphagia.QuantoaHiranonos Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 12 aprofundaremos, pois no ser nosso objetivo no presente artigo. A esse respeitonoslimitaremosamencionarque,apspronunciaraspalavras adequadaspelosacerdote,avtimaquebempoderiaserumboi,bode, carneiro,porcoougalo,sacrificadaemumaltareaspartesno comestveis so queimadas em honra aos deuses e as partes comestveis distribudas segundo a hierarquia social. Noprocedimentodasphagiavoltadaparaocombate,ofogo irrelevanteeoaltarumacovanocho.Aspalavrasproferidasso voltadasparaoatodederramarosanguedoanimal.Nosmomentos iminentesaoscombates,sacrificarumcaprinosaudvel eracomum. O sanguedavtimaaotocar o solodaria obom pressgio de quemataro inimigo no campo de batalha, no se tratava uma desmedida, uma Hybris.Asvtimasdosacrifico sooferecidasaosdeusesesoanimais desanguequente,normalmentemamferosdegrandeporte:bois, ovelhas,cabras,porcos.Oanimalconsideradomaisnobreoboipor representararealeza,particularmenteotouro;ovelhassomais habituais,depoisascabraseosporcos;sendoosleitesfceisde transportar em guerra. Galinhas e outras aves, como o ganso e o pombo emborafossemhabituaistmmenorvalordependendoda especificidade.Jospeixessoexcees.(BURKET,1993:127-132). Emsetratandodagrandiosidadedofeitooudaimportnciasocialdo cidado homenageado, quais vtimas seriam dignas de honrar o ritual de sacrifcio? Documentaesdemonstramquevtimashumanaseram sacrificadaspelos helnicos emocasies especiais e adequadas. Ouseja, vtimashumanaspoderiamsersacrificadasquandoofeitoera extremamente grandiosoou, quandoohomenageadoera uma figura de proeminnciaimpar.NaIlada(HOMERO:23,166-76),Aquiles sacrificavitimashumanasemhomenagemaPtrocloeTemstocles (PLUTARCO. Vida de Temstocles: 14 ) teria executado nobres persas em agradecimentoasuavitriaemSalamina.Vejamosoquenosrelata Plutarco: O adivinho Eufrantides percebeu que a fogueira se altearasobreacabeadasvtimas,aomesmo tempoemqueumespirrosefaziaouviradireita, Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 13 fornecendoumpressgio,tomouamode Temstocleseordenouqueoimolasseosjovens depoisdeconsagr-losaDionisoOmestes (PLUTARCO. Vida de Temstocles: 14). Alguns cultos se utilizam do sangue humano. rtemis Turica, a qualpresidiasacrifcioshumanos, foilevadaHladecomoIfignia. O ritofoiconservadonaticaduranteosacrifcioartemisTaurpolos. Norito,opescoodeumhomem raspadocomumafaca(BURKET. 1993:127-132)Euripedes(Ifignia emAulis:Passim)apresentauma jovemdestemidaevoluntriaao sacrifcio.Emboraamenoao sacrifciodevtimashumanasseja evitadaporalgunsautorescomo Herdoto, podemos perceber que em momentosdetensooritopoderia acontecer.WalterBurket(1993:127-132),nosapontaquertemis senhoradossacrifcioscruise sangrentos,sobretudo,sacrifcios humanos.Naticaduranteafestade rtemisarranhadoopescoodeum homem at que sangre. rtemis tambm deusadacaaedeiniciaodasjovens parthenoi. O sacrifcio de cabras a rtemis Agrotera precede as batalhas etornaacaaeaguerraequivalentes(Ibidem).Xenofonte,estratego ateniense,entreseusdiversostratadosereflexesquantoapreparao para a guerra, na Ciropedia, atribui caa um autentico treinamento para a guerra. Assim diz Xenofonte: Acaahabituaoshomensaselevantarde manhazinha,suportarofrioeocalor,preparar paraamarcaeacorrida,obrigaaarremessar dardosesetascontraosanimais,almdisso, Aquiles mata um prisioneiro diante de Caronte. Pinura vermelha etrusca do fim do sc. IV e incio do III a.C. Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 14 temperaonimoquandoumanimalcorajoso surgeanossafrente,eprecisoatingi-lose aproxima e saber evit-lo se este se precipita sobre ns.Portanto,difcilencontrarnaguerrauma situaoquenoocorraduranteacaa. (XENOFONTE. Ciropedia, I. 2) Duranteasetapasdoritualdesacrifciotudodeveriaser observado,afimdesaberseospressgioseramfastosounefastosaos gregos.Antesdepartirparalongasviagensecombates,osexrcitos helnicosnoseaventuravam,semantesconsultarosugures.A narrativapoticahomricadescrevendoosacrifcioda princesaIfignia porseupaiAgamemnon-comandantedashordasgregasquebuscava obter autorizao divina para avanar belicosamente sobre terras troianas - um caso especial a ser analisado. O evento marca a partida de gregos emumaregiodefronteiramartima.ComonosapontaVictorD. Hanson(1998:197),osritosiminentesaocombateemambientes aquticos se davam antes da travessia e depois de consolidada a posio almejada. Feitoo sacrifcio daprincesa, houve uma calmaria e as tropas gregas puderam partir do porto de Aulis. OfatodeEurpedesmostrarumajovemdestemidae determinada a cumprir sua Moira (o tempo que lhe cabe) uma evidncia de que os pressgios eram favorveis. De acordo com a poesia homrica, osgregosforamvitoriososapsdezanosdecombate.Taisevidncias nos permitem apreender a importncia que detinham os rituais religiosos queantecediamguerrasebatalhashelnicasdaAntiguidade.Nesta perspectivaseriaequvococoncebercomoatocrueloubrbaroa execuo de Ifignia por seu pai Agamemmnon como descreve a poesia homrica.Tantoquanto,atribuircrueldadeaoholocaustodostrs nobrespersaspor TemstoclesnosculoVa.C.porocasiodaBatalha de Salamina. Enquanto comandantes de hordas guerreiras, estes homens deveriaprestarcontaaseuscomandadoserealizarosrituais. EntendemosqueTemstocles,aoexecutarosnobrespersas,teria oferecido aos deuses o que se tinha de melhor naquele momento.O fato de um comandante de soldados guerreiros cumprir com as suas obrigaes militares, segundo Norberto Bobbio, denomina-se de Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 15 Razo de Estado que pode ser entendido como um conjunto de princpios com base nos quais, aes que no seriam justificadas se cumpridas por umindivduoprivado,sojustificadaseatmesmoexaltadas,se cumpridaspelodetentordopoderpoltico.(BOBBIO,2000:176). Portanto,emumasociedadequeprezavaexclusivamentepelocoletivo, comoeraasociedadehelnicaeemespecialaateniense,osritos tomavamumvaloraindamaisacentuado.Da,antesdepartirparaos combates,executartaisritosdeformaadequadaedemaneiradevida tornava-seumaobrigaodocomandante,poiscomprometeriatoda uma comunidade.Nestesentido,osritosdesacrifciosaosdeusessedavamem diferentes regies, inclusivejunto as fronteiras marinhas. Esses exigiam aindamaiscuidadospelofatodeseterqueenfrentarumobstculoa mais;nestaespecificidade:omartenebrosoedesconhecido.Operigo diantedomartornatantoasatitudesdeAgamemmnon,descritosnos picoscomoIladacomojustasedevitalvalor;quantoaoritualde sacrifciohumanocomandadoporTemstoclesemSalamina,atoritual necessrioemconformidadecomasexignciasdasleisereligioda polis. DICONRIOS GRIMAL,Pierre.DicionriodeMitologiaGregaeRomana.Traduode Victor Jaboulille. RJ: Bertrand Brasil, 2000. DOCUMENTAO ESCRITA ARISTTELES.APoltica.TraduoenotasdeAntnioCampelo Amaral e Carlos carvalho Gomes. Lisboa: Editora Veja, 1998.EURPEDES.IfigniaemAulis;AsFencias;AsBacantes. 4.ed.Riode Janeiro: J. Zahar, 2002. PLURTARCO. Vidas Paralelas: vida de Temstocles. Traduo de Gilson Csar Cardoso. So Paulo: Editora Paumap, 1991. HOMERO. A Ilada. Traduo de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 2001.HERODOTO. Histria. Traduo e Introduo de Mrio da Gama Cury. 2 edio. Braslia: Editora UNB, 1988.Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 16 XENOFONTE.AsHelnicas.TraduoparaoEspanholenotasde Orlando Guntinas Tunon. Madrid: Gredos S.A, 1985._____. Ciropedia. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1948. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS AUG,Marc.Porumaantropologiadosmundoscontemporneos.Riode Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Poltica: a filosofia Poltica e as Lies dos Clssicos.Traduo:DanielaBeccacciaVersiani.RiodeJaneiro:Editora Campus, 2000. BURKET,Walter.ReligioGreganapocaClssicaeArcaica.Porto: Afrontamento, 1993. GARLAN,Yvon.GuerraeEconomianaGrciaAntiga.Campinas:Ed. Papirus, 1989. HANSON,VictorDavis.TheClassicalGreekBattleExperience.London andNew York:Routledge Press, 1998. _____.TheWesternWayofWar:infantarybattleinclassicalGreece.Berkely and Los Angeles: University of Califrnia Press, 1989. KEEGAN,John.UmaHistriadaGuerra.SP:CompanhiadasLetras, 1995. LANGDON,EstherJean.RitocomoConceitoChaveparaaCompreensode ProcessosSociais.AntropologiaemPrimeiraMo.Florianpolis:UFSC, 2007. VERNANT,J.Pierre.OHomemGrego.Trad.MariaJorgeVilarde Figueiredo, Lisboa: Editorial Presena, 1993. Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 17 ALCESTIS O MYTHOS DA MELISSA (RE)CONSTRUDO POR EURPIDES?! Alessandra Serra Viegas3

O mythos e sua funo paidtica no o mythos um logos?Comopodemosobservaratualmente,oqueseacostumoua chamardeapassagemdomythosparaologos,nomnimo,questionvel. Ou,sequisermosusaropleonasmo,ummito,seentendemoso vocbulo consoante o senso comum. A impresso que se tem ao estudar oassuntomaisprofundamenteadequeovocbulomythoscomo sentidodelogosfoiutilizadoporinmerasvezesantesdesofrer alteraessemnticasdevidoaocaldoculturalconstitudoporvrios elementosoquesetornouaAntiguidadegrega.Talfatoousode mythos como logos se percebe no contexto de algumas obras anteriores a Plato,comonosfragmentosdeParmnidesemoposioaologos heraclitiano4,masprincipalmenteemHomero,aquemPlatofaz questo de citar e de se opor em suas obras.Estudandoasuaetimologia,podemosnotarqueovocbulo mythos, na lngua grega, passou por uma srie de alteraes semnticas at setornaroqueosensocomumadotoucomosentidoprprioevigora at hoje, isto , o mito umafbula, uma histria no verdica, um conto da Carochinha.Estasignificao,noentanto,comoveremosabaixo,s passouaserutilizadaapartirdedadomomentonasobrasdePlato, sempre de acordo com o contexto em que o vocbulo mythos se encontra em seus diversos dilogos.Seobservarmos,emprimeirolugar,asocorrnciasnasobras homricas, tanto na Ilada quanto na Odisseia, veremos que mythos abarca 3 Doutoranda em Teologia pela PUC-Rio. Mestre em Histria Comparada pelo PPGHC/UFRJ.PesquisadoradoNEA/UERJsobaorientaodaProfa.Dra. Maria Regina Candido. Professora do Curso de Grego Instrumental promovido pelo NEA/UERJ. Para contato, acesse o e-mail [email protected],ologos,almdeoutrasconcepesecaractersticas,tema propriedade de ser um koinon, isto , de ser comum e poder permear todas as coisas e acolher em si todas as coisas. Esse esprito est em tudo (SNELL, 2005: 19). Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 18 ocamposemnticodaquiloquepensadoepronunciado5.Assim, fazendo uma leitura cuidadosa de Homero, temos os seguintes sentidos: palavra,fala(Od.11,561;Il.9,443;19,242),falapblica(Od.1,358;7,157; 21,71), coisadita,fato(Il. 1,388; 25,16.83),conselho(Il. 7,358),coisapensada, palavra no falada, propsito, desgnio (Il. 1,545; Od. 4,676; 11,442; 19,502).EmParmnidesdeEleia(cerca de 530-460 a.C.), oqual deixou apenasumaobra,isto,umpoemaemversopico,encontramos fragmentosqueapontamousodovocbulomythoscomosentidoque maistardefoiatribudoalogos,inclusiveporHerclitodefeso.Vejamos dois dos fragmentos de Parmnides. II,1-2 Ei oytyov tpt o, |oiooi t ou uov o|ouoo,oitp o oi ouvoi iqoio tioi voqooi Vamosl!euinterrogarei,tuporm,auscultandoa palavra uov,cuidaquecaminhosnicosdoprocurarsodignosde serem pensados; VIII, 1-2 Movo t i uo o oioititoi o toiv Uma nica fala uo) do caminho permanece como ; EmPlato,contudo,mythosfoiadquirindodiversossentidos. Para uma melhor visualizao, elencam-se abaixo, cada um dos dilogos nosquaisocorre a utilizaodemythosaolongo da obra platnica, com diferentes nuances semnticos. . [um] dito Banquete, 177a;. conto, estria, narrativa Timeu, 29d; . uma estria que nunca chega ao fim ou que dita queles que no a ouvem Teeteto 164d; Repblica, 621b; Leis, 645b; Filebo, 14a; 5Parasabermaissobreosentidodomito,leiaocaptuloMitoeRealidadena Tragdia Grega (in SNELL, 2005: 97-115). Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 19 .fico,opostaalogoscomohistriaverdadeiraFdon,61b;Protgoras,320c; 324d;. lenda, mito Repblica, 330d; Leis 636c; . estria de criana, fbula Repblica, 377a. Somenteapsestaintroduoacercadovocbulomythosede suas utilizaes desde o incio da literatura grega, que podemos partir, demodosucinto,paraoestudo e algunscomentrios sobre omythosda melissa, a mulher ideal grega, representada pela abelha, cujo primeiro autor acitarSimnidesdeAmorgos,nosculoVIIa.C.Amelissaa representaoda mulher trabalhadeiraeque d a vida por seu esposoe porsuafamlia,sejanosentidofigurado,sempreocupadacomos afazeresdacasa,sejanosentidono-metafrico,masreal,vicrio, entregando-semorteemlugardoesposo,comoveremosaseguirno mythos de Alcestis, j citado na Ilada, mas que ganha verdadeira projeo a partir do drama de Eurpides. O mythos da melissa de Simnides a EurpidesOpoemadeSemnidesdeAmorgos(c.680a.C.)sobreas mulheres (Fr. 7 West) o mais extenso fragmento preservado da poesia imbicagregadapocaarcaica6.Nele,opoetaapresentaumastiraa partirdeumareflexopessimistadematizmisginosobreocarter feminino, numa narrativa original que cataloga dez tipos de mulher: oito baseadasemmodelosanimais(aporca,araposa,acadela,aburra,a doninha, a gua, a macaca e a abelha) e dois emelementos da natureza (aterraeomar).Essacaracterizaotipolgicaerainovadoraparaa pocaerespondiaaumaduplafinalidade:satricaehumorstica.Uma 6 A poesia imbica tambm bastante antiga e se caracterizava pelo tom pessoal, pela alegria de viver e pela stira, o que a distancia significativamenteda poesia pica.Oacompanhamentohabitualeratambmo aulos;essegnero,no entanto, nem sempre era apresentado com acompanhamento musical. O metro mais usado era o trmetro imbico, embora nas stiras em geral tambm se usasse o dsticoelegacocomcertafrequencia.Principaisrepresentantes:Arqulocode Paros, SemnidesdeAmorgos e Hipnax defeso.Omaisantigoeomais consideradopelosantigosfoi Arquloco.In: http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0225 Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 20 vezqueopoemasedestinariaaumcontextosimptico,umespao tipicamentemasculino,amulhereasuanaturezaconstituiriamuma temticaquelevaria ohomem a refletir, simultaneamente, de um modo srio e divertido, sobre a sua prpria condio7.EmseutextoStiracontraasmulheres(datadoemVIIa.C.), Simnidescomparaasmulheresdemaneiradepreciativacomvrias fmeas de animais, como citamos acima. Entretanto, e por ltimo, exalta a mulher que como uma abelha da o que seria o nascimento do mythos (=discurso acerca) da melissa (=abelha): Outra f-la da abelha: afortunado o que a tem; s a esta no assenta a censura; os bens crescem e aumentam por causa dela. 85 Amigadomaridoqueama,envelhecenasua companhia, depoisdetergeradoumabelaeilustre descendncia. Distingue-se entre todas as mulheres, uma graa divina envolve-a. No lhe agrada sentar-se entre as mulheres,90 quandofalamdeassuntosrelacionadoscom Afrodite. Estas so as melhores e as mais sbias mulheres,que Zeus, amavelmente, concedeu aos homens. Masestasoutrasestirpes,pormaquinaode Zeus, existem todas, e permanecem ao lado dos homens InteressantenotarabondadeeamaldadedeZeusparacomos homens ao distribuir os diferentes tipos de mulher entre eles. Aps tecer seus comentrios acerca dos vrios tipos de mulheres existentes, o verso 93afirmaqueZeusamavelmenteconcedeaumoprazerdacompanhia 7OcomentriodeMariaFernandaBRASETE,daUniversidadedeAveiro, Portugal(2003).Otextoestdisponvelem http://www2.dlc.ua.pt/classicos/mulheres.pdf.Brasetetraduziuesteeoutros fragmentos de Simnides de Amorgos. Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 21 damelissa.Entretanto,pormaquinaodeZeus,existemtodas[asoutras!]e permanecem ao lado dos homens. ComodoconhecimentodetodosqueestudamaAtenas clssica no sculo de Pricles, o mythos da melissa vigora na aristocracia da poliseseapresentadisseminadoprincipalmenteemduasfrentes:a pblica e a privada. No espao privado, ele se encontra nas pinturas dos diferentesutensliosparaointeriordacasa,comovermosaseguirpelo objetoqueficouconhecidocomoepnetrondeErtria;noespao pblico,amelissaestnastragdiasgregasapresentadas,mormente construdaecaracterizadadeumamaneiramuitoespecialnodrama euripidiano, drama que mais revela o corao humano em sua paixo ao seuespectador. Dentreasuaobradetantasheronas,destacamos neste trabalhoAlcestis,elogiadanapeaporseuprpriomaridocomoa melhor de todas as mulheres (Alcestis, 442). O mythos de Alcestis de Homero a Eurpides Homero, em sua obra, o primeiro a falar de Alcestis no canto quedlugaraochamadoCatlogodasnaus,noqualmuitosristoiso elencadosatravsdeeptetosoudeseusfeitosmaravilhosos.Nomeio dessegrandecatlogo,noqualpoucasmulheresso-nosapresentadas, estAlcestis.EaliHomeroapontasuagenealogiademulherbem-nascidaejacaracterizapelaforadoelogioatreladoaumaherona, digna de receb-lo: FilhadePlias,bela entreasbelas,divinaentreas mulheres.(Ilada, II, 714-715) ApartirdafaladeHomero,podemosperceberqueomythos (=discurso) acerca de Alcestis j bastante conhecido e divulgado. No qualquer personagem feminina em Homero, Hesodo ou qualquer outro autorcujaobrafoicompilada e reconhecida noperodoclssico, a qual recebeumduploepteto:belaentreasbelasedivinaentreasmulheres. Werner Jaeger, em sua Paideia, assevera que os mitos e as lendas hericas constituemumtesouroinesgotveldeexemplosemodelosdanao, quenelesbebeoseupensamento,ideaisenormasparaavida.Assim Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 22 acontece com a referncia a Alcestis. Homero a utiliza e assim tambm a outros exemplos mticos para todas as situaes imaginveis da vida em queumhomempodeestarnapresenadeoutroparaoaconselhar, advertir,admoestar,exortarelheproibirouordenarqualquercoisa.O mito,ento,servesempredeinstncianormativaparaaqualapelao orador. H no seu mago validade universal (JAEGER, 2001: 68). Emsuaformaoriginal,omythosdeAlcestisnoscontado, resumidamente:Opaiaprometeraquelequefosseatelenumcarro puxadoporleesejavalis.Admeto,reideFerasaquemApoloestava comprometido a servir durante um ano, executa a tarefa com a ajuda do deuseganha amode Alcestis. Porm, durante o sacrifcioda festa de casamento, Admeto se esquece de rtemis, e encontra seu quarto cheio decobras.Apolosugerequeeletenteapaziguaradeusa,econsegue fazercomqueasParcasopoupem,comacondiodeque,no momentodesuamorte,outrosesacrifiquevoluntariamenteporele. Talvez um servo, pensara. No momento de sua morte, porm, ningum sehabilita,nemseusvelhospais;apenasAlcestisoferece-secomo substituta e se entrega a Thanatos. Hracles, presente na casa de Admeto comohspede,ficasabendodasituao,lutacomThanatosedevolve Alcestis ao marido.Eurpides, no entanto, vai re-contar o mythos acrescentando-lhe dois detalhesqueredimensionamexponencialmenteogon(=momento crtico)daao,toimportanteaodramaaserapresentado:aAlcestis euripidianaestcasadahalgumtempoejpossuidoisfilhos,oque potencializaaaotrgica de sua mortevicria em favor de Admeto. importantenotarque,segundoJunitoBrando,Eurpidesconcebea tragdia como uma prxis do homem, operando, por isso, uma profunda dicotomia entre o mundo dos deuses e o mundo dos homens. Para ele, o kosmostrgiconomaisomito,masocoraohumano8,deondeele arrancasuatragdia(BRANDO,2007:57).Eporterconscinciade queosuniversospsicolgicoeantropolgicofemininossobemmais complexosqueomasculino,Eurpideselegeacabeadasmulheres 8 O corao tem razes que a prpria razo desconhece diz Medeia (v.1008), segundo a traduo de Junito Brando. Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 23 comoobjetodeestudoeinvestigaoparacomporsuaspeas9,sem esquecer seu tema principal os mitos e sua releitura, numa re-configurao prpria que somente ele seria capaz de elaborar.Estare-configuraodomythosdeAlcestisemEurpidestratade um trao cultural de sua poca trazendo o mito de uma esposa que, de todedicadaaoseumarido,chegaaosacrifciovicrioporele,no obstanteeleEurpidestranscendeomito(ousubverte-o!)quando Alcestis toma em suas mos as rdeas de seu oikos, controlando ainda em vidaoqueviriaaacontecerapssuamorte.Nosversos280-310, Alcestis impe a Admeto a promessa de que no se casar novamente, o queseriaridculonasociedadedePricles.EntretantoAdmetoaceita prontamenteaimposiodaesposaesurgenanarrativaaextravagante ideiadequeeledormircomumaesttuadeAlcestiseesperarser visitado por ela em sonhos (348-357). Eurpides inverte deliberadamente os papis de Admeto tornando-o um personagem de carter feminino, dentro dos padres de submisso e de Alcestis que apontada como uma espcie de mulher-macho da Grcia clssica. Podemosdizer queEurpidescriasuaAlcestis no sculoV a.C. um pouco alm do que se espera da virtude da esposa. A personagem de Eurpidespodeservista,decertaforma,comoquepoderamos denominar uma guerreira homrica, pois o seu papel no drama aponta-a conotativamentecomoumhomem.Oumaisespecificamentepodemos atribuiraelaumtermoquenatradiosseaplicaaouniverso masculinoparaohomemdevalorumkalskaagathsque,em Eurpides se denota em um corpo de mulher.EurpidesacabaportravestirAlcestisemumaesposa masculinaaomesmotempoemqueomarido,Admeto,compeo 9 Eurpides conhecido no teatro grego clssico como aquele que introduziu em suaspeasasprotagonistasfemininas,comoofezcomAlcestis.Dentreas dezessetetragdiasquetemoscompletasdesteautor,apenascincono receberamnomesfemininosouestoligadasaesteuniverso.Assim,suas tragdias so distribudas, ento, em quatro ciclos, segundo nos informa Junito Brando:nocicloTroiano,temosAsTroianas,Hcuba,AndrmacaeHelena;no ciclodosAtridas,Ifigniaemulis,IfigniaemTuris,ElectraeOrestes;nociclo tico, on, Medeia, Hiplito Porta-Coroa, As Suplicantes e Os Herclidas e, finalmente, no ciclo Tebano, As Bacantes, Hracles Furioso e As Fencias.Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 24 equilbriodanarrativacomoelementofeminino.Destemodo,opoeta dosarrebatamentosepaixesdaalmahumana(cf.BRANDO,2007: 58),rompecomatradio,tantodaepopeiaquantodastragdiasj conhecidasemseutempoeexpetodaasuarebeldiavanguardista pois suas ideias pertencem ao sculo seguinte ao V a.C. Segundo nos diz AristtelesemsuaPotica(1460b,32),Eurpidespintaoshomensno como deveriam ser (como Sfocles o faz), porm como realmente eram. Ensaiando uma concluso a partir do epnetron de Ertria: os dois lados do mythos de Alcestis OepnetrondeErtria(inLESSA,2001:33-34)umafigura emblemticaque representa ovalordeAlcestis para a aristocracia grega clssica,principalmentenoqueserefereaouniversofeminino.Esse objetohojepartedoacervodoMuseuArqueolgicoNacionalde Atenas e data de aproximadamente 425 a.C. (Figura 1). Sua temtica em umadasfaces(FaceB)acenadecasamentodeAlcestis(recostada sobrealmofadasnoseuleito),maisespecificamenteseubanhonupcial, emumacenadeinterior,comopodemosverabaixo,tendosuavolta suas convidadas mais prximas Hiplita (sentada), Asterope (de p, atrs deHiplita)eTheano(dep,arrumandoramosdemirto).Compem aindaacenaasdeusasCharis,agraciosidade,observandoosdoisvasos nupciaiseHera,adeusadocasamentoporexcelncia.Seusdons especficosagraciaroanoiva,afimdequeAlcestissejaumaesposa ideal10. 10 importante dizer que tambm na face A do epnetron, temos as divindades queabenoamocasamento:Hmeros(odesejoamoroso),Hebe(ajuventude), Peitho (a persuaso), Kore (a virgem), Harmonia, Eros e Afrodite. Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 25 F Fig. 1: Face B do epnetron de Ertria (ca. 425 a.C. Museu Arqueolgico Nacional de Atenas) Aformaecontextosocialdeusodoepnetronnosso detalhadamente explicados por Fbio Lessa (LESSA, 2001: 130): proteolongaesemicircularparaojoelhoe coxa.Eletemaformaaproximadadeumatelha arredondadaefechadoemumadas extremidades.Usadoparacardaral.usado pelasmulheresparaprepararofio.Eleera encaixadoentreojoelhoeacoxadafiandeira. Possuiumafacesuperiorspera,emformade conchas,paraeriar,amassaralefacilitar mulherpuxar,enrolarecorrerofioqueest fiando Por ser uma pea para oambiente interno da casa, acreditamos quetodaequalquerfiguradoepnetronpodeterumafuno pedaggica,emumensinovisualporrepetio,ouseja,todasasvezes em que a mulher fosse utiliz-lo, lembrar-se-ia do que est representado nessas mesmas figuras, e isto seria inculcado na mulher como verdade a seraprendidaeapreendidaemsuavidanasociedadeecomoelemento de reafirmao de seu papel na mesma.Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 26 Comisto,Alcestis,Maisdoquemaisqueamelhordasmulheres11 conformeafirmaAdmeto,omarido,nodramaeuripidiano,edomodo comorepresentadaemseucasamentopelopintordeErtria,ser consagradanoperodoclssicocomoummodelodeesposadedicadae trabalhadeiraamelissa.Modeloaoqualcadamulherqueumdiase tornar esposa deve seguir para que tenha um casamento abenoado pelos deuses. Promove-se, assim, a manuteno da ordem e dos papis sociais inerentesaohomem e mulher. Noentanto,comEurpides, a Alcestis submissa e que se doa em favor do marido apenas uma de suas faces, talvez a que o tragedigrafo menos queria des-velar ao pblico espectador desuapea.Sabedoradoseuvalor,eparamanteromythos(=discurso) ao seu respeito, a Alceste euripidiana encerra este trabalho com sua fala nos versos 324-325: [sou] a melhor das mulheres e a melhor das mes. REFERNCIAS BIBLIOGRFICASBRANDO,JunitodeSouza.Teatrogrego:tragdiaecomdia.Petrpolis: Vozes, 2007.LIMA, Luiz Costa (coord.). A literatura e o leitor: textos de esttica da recepo. So Paulo: Paz e Terra, 1979. _____. Histria. Fico. Literatura. So Paulo: Cia das Letras, 2006. DUBY,GeorgesePERROT,Michele.HistriadasmulheresnoOcidente. Vol.I A Antiguidade. Porto: Afrontamento, s/d.EURIPIDE.LeCyclopeAlcestisMdeLesHraclides.TomeI.Texte tabli e traduit: Louis Mridier. Paris: Les Belles Lettres, 1976.EURPIDES.Alceste.Traduo,introduoecomentriosdeJunito Brando.RiodeJaneiro:BrunoBuccini,1968.[ediobilngue: portugus-grego]JAEGER, Werner. Paidia a formao do homem grego. Traduo de Artur M. Parreira. So Paulo: Martins Fontes, 2001. LESKY,Albin.HistriadaLiteraturaGrega.Trad.:ManuelLosa.Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1995. LESSA, Fbio de Souza. Mulheres de Atenas: mlissa do Gineceu Agor. Rio de Janeiro: LHIA-UFRJ, 2001. 11 Alcestis, 442. Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 27 LVI-STRAUSS, Claude. La pense sauvage. Paris: Plon, 1962. ORLANDI,EniPucinelli.Discursoeleitura.SoPaulo: Cortez/Campinas/Edunicamp, 1988. PEREIRA,MariaHelenadaRocha.EstudosdeHistriadaculturaclssica: Cultura grega. Lisboa: Calouste Gulbekian, 2006. v.1. STAHL,HP.Onextra-dramaticcommunicationofcharactersin Euripides. In: GOULD, T. F.; HERINGTON,C.J.YaleClassical Studies Greektragedy(Vol.XXV).Cambridge:CambridgeUniversityPress, 1977. pp.159-176.VERNANT,JeanPierre;VIDAL-NAQUET,Pierre.Mitoetragdiana Grcia Antiga. Trad.: Anna Lia A. de Almeida Prado, Maria da Conceio M.CavalcanteeFilomenaYoshieHirataGarcia.SoPaulo:Duas Cidades, 1977. VIEGAS, Alessandra Serra.Discursoeformasnarrativassobre o belo corpo do heri em Homero: a bela morte e a preservao da vida numa perspectiva comparada. RiodeJaneiro:UniversidadeFederaldoRiodeJaneiroProgramade Ps-Graduao em Histria Comparada, 2009. Dissertao de Mestrado. Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 28 MITOEHISTORIOGRAFIANAHXADETIBERIANADOS ANAIS DE TCITO Anderson de Araujo Martins Esteves12 Pretendotratarnestacomunicaosobreoconhecidomitoda fnix,digressoinseridanosAnnales,obradohistoriadorCornlio Tcito, composta no incio do sculo II d.C. Para tanto, primeiro fao a leituradocaptulo,depoisumaanlisedoepisdioedaspossveis opiniesdeTcitosobreaavemitolgicaesuaepifanianoEgito,no tempodoprincipadodeTibrio.Aseguirdiscutoocaptulodafnix entendido como digresso, ou seja, em relao totalidade da obra e, por ltimo, discuto a possibilidade de se ler a fnix como uma aluso a uma realidade contempornea a Tcito. Estapesquisanasceudeumestranhamentoedeum inconformismo.Oestranhamentodeencontrarumrelatosobreum animalmitolgiconaminhaprimeiraleituradeTcito,emportugus mesmo,antesdesequersonharemmededicaraosEstudosClssicos. Depois eu viria a aprender que o conceito de histria depende do tempo emqueescritaequeoshistoriadoresantigosescreviamdeuma maneiradiferentedosatuais(emboraalgunshistoriadoresatuaisainda estejampresosacertosmitos...)equeamenoapressgios,augrios, mitos-fundadores,animaismitolgicoseramuitocomumna historiografia antiga. Depois, j mais recentemente, quando fazia minhas leiturasparaadissertaodemestrado,relioepisdiodafnixdo principado de Tibrio e sobre ela encontrei o seguinte comentrio de um especialista em historiografia antiga e em Tcito, Assuntos exticos, como os costumesdoEgitoeahistriadafnix,sointroduzidospelovalordramticodo suspense13 (MENDELL, 1957, p. 198), dando a entender que o valor da 12 Professor do Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas, Universidade FederaldoRiodeJaneiro.Entreseustemasdeinteresseestoaprosa historiogrficanaAntiguidadeClssicaeaspersonagenseprocessosde caracterizaonaliteraturalatina.E-mailfuncional: [email protected] 13A traduo destacitao minha, bem como a do texto latino e de todas as demais citaes . Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 29 digressoseesgotavaemsimesmo,semmaiorrelao,primeiramente, com o todo da obra e, em seguida, com o tempo em que foi escrita.Poisagora,paraestecongresso,retomeioepisdio,inspirado pelospensadoresdoNewHistoricism.ONewHistoricismtalvezseja desconhecidodoscolegashistoriadores,porquesetratadeum movimentotericomais ligadoteoria literria, que reage fortemente Desconstruo da dcada de 70, ligada a Derrida e que, baseado no ideal heideggerianodeAbbau,afirmaquenohnadaforadotexto.Bem, parece bvio que um mtodo que coloca as obras a serem analisadas em umvcuolingsticonoapropriadoparaaliteraturaclssica,e, sobretudo,aprosahistoriogrfica,masaopoporumalinhaterica definida,comoonovohistoricismo,pareceserpromissoraparaos EstudosClssicos,especificamenteparaoscolegasquelidamcom literatura,jquepermiteaexpressomaisclaraemaisatualdeopes quejeramrealizadasemnossasanlises,pelainflunciadomtodo filgico, ainda ligado ao historicismo do sculo XIX.Ora,aooptarpelonovohistoricismo,acredito,comVeeser (1989,p.xi)quealeituraatualdosAnaisdeTcitopeloscrticos literrios no pode abstrair da rede de prticas materiais em que cada ato expressivoestnecessariamenteincrustado.Damesmaforma,repito suaafirmaodequeostextosliterrioseno-literrioscirculam inseparadamente(VEESER,1989,p.xi).Demaneiraquealeiturada literaturalatinatemqueestaratentatambmaono-literrio,da epigrafia, da numismtica e da arqueologia.O episdio da fnix aparece livro 6, captulo 28: Sob o consulado de Paulo Fbio e Lcio Vitlio14, depois de muitos sculos, veio ao Egitoo pssaro fnix,eofereceuaossbiosdessepaseaosda Grciamatriaparaquediscutissemamplamente sobreoprodgio.Achoporbemexporospontos emqueestodeacordoeosmais,queso duvidosos,masnemtoabsurdosparaserem notados.Aquelesquedescreveramesteanimal 14 I.e. em 34 E.C. Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 30 sagradoaoSoldizemquediferentedetodosos outrosvolteispelacabeaepelacordaspenas. Osdadosdivergemsobreonmerodeanosde suaexistncia.Namaioria,julga-sequeviva500 anos; h quem diga que entre uma e outra apario transcorram 1461 anos e que as fnix foram vistas: aprimeirasoboreinodeSessides,depoisde Amsides,depoisdePtolomeu,oterceiroda dinastia macednia, tendo voado sobre a cidade de Helipolis,seguidadeumarevoadadeoutros pssaros,assustadoscomseuaspectosingular. Acontecimentos to antigos, de fato, so obscuros: masentrePtolomeueTibriosepassarammenos de250anos.Daalgunsteremconsideradose tratar de uma falsa fnix, que no vinha da terra da Arbia e nem tinha cumprido nada do que a antiga tradioafirmou.Pois,comefeito,quandochega aofimdaexistnciaeamorteseaproxima, constri um ninho em suas terras e derrama nele o smendequenasceronovofilho.Eoprimeiro cuidadodoadultoenterraropai;masnoofaz aoacaso,massecarregadeumpesodemirrae tentasustent-loporumlongovo.Quandose senteapto a sustentar um peso igual e a percorrer tal distncia, toma o corpo do pai, leva-o at o altar dosol,eloqueima.Osdetalhessoincertose aumentadospeloselementosfabulosos,mas ningum tem dvida de que no Egito esse pssaro foi visto um dia. (TCITO. Anais, VI, 28)15 Noincio Tcitofaz,comonarrador,umaafirmao,poucoao seuestilo,cheiodeambiguidadeseentrelinhas.Elediz:auisphoenixin Aegyptum uenit (a ave fnix veio ao Egito). No meio, j traz a opinio de alguns que no acreditavam que a fnix era verdadeira. Depois, no final diz que: Haec incerta et fabulosis aucta: ceterum aspici aliquando in Aegypto eam uolucremnonambigitur(Osdetalhessoincertoseaumentadospelos 15 Utilizamos o texto C.U.F., cuja referncia est na bibliografia. Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 31 elementosfabulosos,masningumtemdvidadequenoEgitoesse pssaro foi visto um dia). No incio ele, narrador, quem afirma, depois, j so os outros. A primeira pergunta que eu me fao : Tcito d crdito a essa apario da fnix? O pressuposto dessa questo saber se Tcito acreditava na fnix em si, ou seja, no mito da fnix, tal qual foi passado pelosantigos(uetus memoria firmauit).Para Grimal (1990: 44), esta ltima citaojbastaparaprovarqueTcitoacreditava.Schmal(2009:124) tambmpareceindicarqueoautoracreditassenoepisdio,fortena tradio romana da observao do voo das aves. Dois fatores colaboram para que ele acreditasse: primeiro e mais forte a referncia fnix feita por Plnio, o Velho (Naturalis Historia, X, 2).PlinioumafonterespeitadaemuitoutilizadaporTcito,eo episdiodosAnnalestemmuitassemelhanascomadescriona NaturalisHistoria.Segundofator,quenopossodeixardeconsiderar, emborareconheaquesejaumargumentomenor,oprpriorespeito queTcitotinhaaomosmaiorum,tradio.Tcitofoiumdos quindecimviri, isto , um dos sacerdotes encarregados da guarda dos livros sibilinos e de outros textos da tradio romana. Alm disso, cabia a eles ocontrolesobreoscultosestrangeiros,issofazlembraraindisposio queTcitoexpressanasuaobrahistricacontracristose,sobretudo, judeus. O motivo fraco, pois o sacerdcio, nesta altura do imprio, era sobretudo uma honraria, antes de importar em profisso de f.Assim,aindaque Tcitopudesseacreditarna fnix,eleacredita nessaapario,queestudamoshoje?Tcitotemummodomuito recorrenteemsuanarrativademostrarsuaopinioesquivando-sede fazerafirmaes.Esserecursofuncionaassim:depoisdeaduzirvrias posiescontrrias,onarradorseaprofundaemuma,dando argumentos,exemplosemseufavor.Assimfazaqui:depoisdedizer sobreoperododeapario: 500 anos, 1461 anos, ditoque da ultima apariopraestaatual,objetodanarrao,nosepassaramnem250 anos,deformaqueUndenonnullifalsumhuncphoenicemnequeArabume terris credidere, nihilque usurpauisse ex his quae uetus memoria firmauit. (Donde alguns terem acreditado que a essa fnix era falsa, no vinha do pas dos rabes, e nem tinha cumprido nada daquilo que a tradio nos passou). Assim,euconcluoque:1.Tcitonarraoepisdioporque,deacordo com suas fontes, est certo de que uma ave, tida por uma fnix, apareceu Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 32 noano34emHelipolisnoEgito;2.Tcito,embora,provavelmente, acredite na fnix, no acredita que essa apario da fnix seja verdadeira.Ento,resta-nosapergunta:porqueTcitoapresentaumepisdio,de pouca ou nenhuma relevncia para a narrativa dos Anais, se no acredita nele? Pararesponderaisso,precisocompreenderarelaodo captulo da fnix com o todo da obra, de tal forma a entender o episdio como uma digresso e, em seguida, a entender a funo dessa digresso especificamente.OepisdioseinserenaobraAnnales,quepertenceaognero historiogrfico,ou,parasermaispreciso,formahistoriogrficado gnero narrativo, conforme Martin e Gaillard (1990: 12). E no s estes, mastambmaprpriateorialiterriaantiga,comooexemplode Quintiliano,entendiaahistriacomogneroliterrio,aoinclu-lano esquemadosgnerosliterriosapresentadonoinciodolivroXdas InstitutionesOratoriae(X,1,73).Issoquerdizerque,naAntiguidade,a histrianoera,comohoje,ligadaaumadisciplinaautnomaemuito menoscientfica,nospadresmodernos.Ahistriaeraparteda literatura, o que explica muitas de suas caractersticas, como os discursos, a composio das personagens e, inclusive as digresses.Pelo seu carter literrio, a histria tinha uma ligao muito forte comaretrica.IssoseacentuouemRoma,sobretudo,apartirdo perododeAugusto,quandoaretricasofreuumatotalizao, fenmeno que se caracterizou por um transbordamento da techne rhetorik paraoutrossistemas,comoofilosficoeoliterrio(BARTHES,1985: 26). Para Cicero o produto final da retrica, ou seja, o discurso, tem trs objetivos: aclebre trade do: docere, monereedelectare. A histria, quese expressaapartirdocdigoretrico,cumpreessastrsfunes:ensina aos leitores os exemplos do passado, adverte-os com esses exemplo e d prazer,oupelabelezadaexpressoornatus,oupelosprpriosfatos pitorescos que conta a respeito de pessoas ou de pases distantes.A digressio serve, sobretudo, ao delectare. A digressio uma auersio a materia, de acordo com Lausberg (1972: 256), ou seja, um afastamento doobjetododiscurso.Nodiscursojudicirioumtrechomvel destinadoaorelaxamentodoauditrio,demaneiraatorn-lomais atentoparaapartemaisimportante,deexposiodeargumentos.Na Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 33 historiografia,emgeral,temvriasfunes:serveparadaruma explicao que o autor julga necessrio para o conhecimento do assunto. EessadigressiodaFnixserveparaqu?NosAnnales,Tcito escrevebasicamentesobreavidapolticadeRoma,desdeofimdo principadodeAugusto,atNeroecomumaatenoespecialsobreos imperadores, montando um retrato em ao de cada um.O episdio da fnixestnoltimolivrodachamadahxadetiberiana,querdizer,os seislivrosdosAnnalesemqueTcitotrata doprincipadode Tibrio. A fnix surge no captulo 28, quando se aproxima o fim do principado de Tibrioeanarrativasevoltaparaoclimadeterrorqueseinstalouem Roma,comaperseguiopolticaemortepelalexmaiestatis.Paradar umanoodaatmosfera de terror, o livroinicia com umrelato sobre a crueldade de Tibrio quando de seu retiro em Capri, passa perseguio e da condenao de vrias pessoas, da morte de algumas figuras da corte, comoAgripinaeosfilhosdeGermnico,depoisdosuicdiodeum amigodeTibrio,CoceioNerva,quesematoupordesgostopelo destinopolticodeRoma,mortedemaisalguns,e,derepente,no captulo28,queinicia,umnovoano,deacordocomomtodo analstico, aparece a fnix. E, no captulo seguinte, Tcito continua com acarnificina:AtRomae,caedecontinua...(Noentanto,emRoma,emum massacrecontnuo...)(VI,29).Aviolnciadanarrativaculminacoma morte, ou assassinato, de Tibrio.Qualosentidodessadigressodafnix?Que,alis,causa estranheza pela extrema raridade de episdios mitolgicos ou pitorescos emTcito,diferentedoqueocorrecomHerdoto,porexemplo.Por queTcito,quequase nunca conferehistoricidade a tais histrias, usa a fnixcomoobjetodeumadigressonessepontodanarrativa?O sentido mais provvel o da distenso, como em um discurso judicirio. Nomeiodetantasmortes,corria-seoriscodeumaneutralizao,de uma analgesia, com relao ao leitor. Assim, a digressio da fnix teria sido um momento para delectare o leitor, para relaxar sua tenso, de modo que elenoficasseblas,diantedetantohorror.Eistoexplicaporqueest colocado no meio do livro, e justo do ltimo livro da hxade. Ela como que permite ao leitor respirar um pouco antes de se apresentar um novo percursonarrativoqueconduzaoclmaxeaofinaldoimperador.No Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 34 foi logo antes da morte dele, pois era preciso se recriar uma tenso, at o episdio final. Parafinalizar,eugostariadedividircomoscolegaspresentes umaidiapessoalarespeitodafunodesseepisdio,quea possibilidade de na digressio se conter uma aluso. A aluso, de acordo com Lausberg, um tropo de pensamento, e,comotalasubstituiodeumpensamentoporoutro.Pertenceao tiponfase,ouseja,impedeumacompreensodiretaporpartedo ouvinte, em virtude do perigo que essa compreenso direta traria para o orador(1972:247).Oquecaracterizaaaluso,aindasegundo Lausberg,aintenoldicadoorador,queexigedoouvinteum raciocnio prprio, um esforo de compreenso. Muito frequentemente associada a temas, que chamaramos hoje de mitolgicos.Ora, o que eu proponho que a fnix pode ser uma aluso, ou seja,queelasubstituiumpensamentoprprio,qualseja,afigurade Tibrio ou mesmo a figura de Trajano, ou os dois em associao.ComecemosporTibrio.AsumadateoriapolticadeTcito, queeraumsenadoremembroativodestaclasse,aseguinte:aceitao principadocomoummalnecessrio,masnoaceitaasucesso hereditria. Para a classe senatorial da poca de Tcito, o imperador tinha queescolherseusucessorforadesuafamlia,dandootronoaalgum que julgasse capacitado entre os senadores. Tcitocriticaessasucessohereditria,queocritriode sucesso na dinastia jlio-claudiana: e na flaviana.Afnix,comsuacaratersticadeseperpetuarsemmudarde princpiovital,representaria,assim,aperpetuao,aeternizaodo poder nas mos de uma famlia. Assim, a morte da fnix no Egito, faria umaalusomortedoimperadorTibrio,quenarradapoucos captulos depois. Uma aluso interna, pois aponta para outra idia dentro da narrativa. Outrapossibilidadeadeumaalusoexterna.Pormeioda fnix, Tcito pode ter aludido a uma realidade da sua prpria poca. Ele escreveuosAnnales,ajulgarporSyme(1958:471-473),nosprimeiros anosdoprincipadodeAdriano,osucessordeTrajano.Nerva,depois Trajanoe, em seguida, Adriano, foram todos imperadores de uma nova dinastia,chamadaAntonina.ComamortedeDomiciano,opoder Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 35 dadoaNerva,senadorerepresentantedopensamentopolticodo Senado, dando incio a uma nova era, de mais liberdade poltica. Com a mortedeNerva,assumeopoderTrajano,quealargaasfronteirasdo imprio, anexando mais territrios na Arbia o pas da fnix, na Partia enaDcia,atualRomnia.TrajanomanteveorespeitodeNervanas relaescomosenado,mascomotempofoiseimpondo autoritariamente, de forma que o poder dos senadores foi diminuindo e o Senado se tornando uma fachada, um teatro, uma representao, para dissimular o poder cada vez mais absoluto de Trajano. Ento Tcito, que eraumentusiastapelosAntoninosnoinciodestadinastia,vaificando cadavezmaispessimista.Enesseestadodeespritoqueescreveos Annales,que,emboratratedadinastiajlio-claudiana,trazreferncias claras a comportamentos polticos e personagens conhecidos do pblico leitorcontemporneodeTcito.Porexemplo:oSenado,nasrelaes comTibrio,naprimeirahxadedosAnnales,umexemplode subservincia,de um corpo que se acovarda diante do tirano. Isso pode ser entendido como um exemplo contrario sensu: um exemplo do que os senadoresdapocadeTcitonopoderiamfazerdiantedeTrajano. Ademais,oTibriodeTcito,pelamaneiraambguacomose comportavadiantedoSenado,querdizer,aparentandorespeitarseu poder, mas concentrando cada vez mais o poder no trono, parece muito com Trajano.DeacordocomGrant(2009:11),soboprincipadode Trajano foramcunhadasmoedascomarepresentaodafnix,associadaaum conceitodivinizado,aaeternitas.Talvezumarefernciasconquistasde Trajano na Arbia, terra da fnix, ou uma meno eternidade do poder imperialdeRoma,quesepersonificavaagoraemAdriano(BIRLEY, 2009:83).Dequalquerforma,paraosleitorescontemporneosde Tcito, a fnix era um smbolo, era, sem trocadilho, o reverso da moeda, de Trajano. Dessaforma,bastanterazovelseacreditarqueo aparecimento da fnix no livro 6, que, no fim das contas, falsa,soasse paraosleitoresdapoca,comoumarefernciaaoimperadorTrajano, comquemTcitosedecepcionara.E,comisso,Tcito,teriamontado, demaneiraengenhosa,umeloaindamaisforteentreTrajano,o Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 36 imperadordaFnix,comopersonagemtacitianoTibrio,emcujo principado a fnix falsa aparece. DOCUMENTAO ESCRITA PLINELANCIEN.Histoirenaturelle.LivreX.Paris:LesBellesLettres, 1961.QUINTILIEN.Institutionoratoire.TomeVI:livresXetXI.Paris:Les Belles Lettres, 1979. TACITE. Annales. Tome I. Livres I-III. Paris: Les Belles Lettres, 2003.TACITE. Annales. Tome II. Livres IV-VI. Paris: Les Belles Lettres, 2003. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS BARTHES,Roland.Lanciennerhtorique:aide-mmoireIn: Laventure smiologique.Paris: Seuil, 1985.BIRLEY,AnthonyR.Hadrian:theRestlessEmperor.London:Routledge, 2009.FORNARA,C.W.TheNatureofHistoryinAncientGreeceandRome. Berkeley: University of California Press, 1988.FUHRMANN, Manfred. Die antike Rhetorik. Dsseldorf: Patmos, 2008.GRANT, Michael. The Antonines: the Roman Empire in Transition. London: Routledge, 2009.GRIMAL, Pierre. Tacite. Paris: Fayard, 1990.LAUSBERG,Heinrich.Elementosderetricaliterria.Lisboa:Fundao Calouste Gulbenkian, 1972.MARTIN, Ren; GAILLARD, Jacques.Les genres littraires Rome. Paris: Nathan, 1990. MELLOR, Ronald. Tacitus. London: Routledge, 1994.MENDELL,ClarenceW.Tacitus:theManandhisWork.NewHaven: Yale University Press, 1957.PARATORE, Ettore. Tacito. Milano: Istituto Editoriale Cisalpino, [1951]. PLETT,HeinrichF.EinfhrungindierhetorischeTextanalyse.Hamburg: Buske, 2001.SCHMAL, Stephan. Tacitus. Zrich: G. Olms, 2009. SYME, Ronald. Tacitus. 2 vv. Oxford: Oxford University Press, 1958.VEESER, ARAM H. (ed.) The New Historicism. London: Routledge, 1989. Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 37 RITUAIS FNEBRES DOS IBEROS: CREMAO, DANAS E OFERENDA DE ARMAS, ENTRE OS SC. V E III A.C. Carlos Eduardo da Costa Campos16

Amorteeosseusritosforam/soumtemadevastareflexo pelos homens17. O temor desta condio que a natureza nos impe levou eaindamovediversas sociedadesaconstruremritose lugaresdeculto paralidarcomomorto.Notamosqueapesardetodooavanoda cincianosculoXXeXXIedasconcepesenunciadasporMax Weber, na segunda metade dosc. XIX e incio doXX sobre a tese da secularizao,oMundoOcidentalcontinuasendoumespaoentrelaado detradies,religiosidades,superstieseprticasdamagia,asquais constituemocotidianodosindivduosedesuascomunidades (CANDIDO,2007:05). ORobertoDaMattafoiumdosantroplogosquechamou ateno para as modificaes nos rituais funerrios. O autor ressalta que oprocessodeindividualizaodohomemmodernolevoua transformaesnosrituaisfnebres,queseparticularizarammuito,em relao ao passado, mas acrescentamos que eles no foram abandonados. De fato, questes como saber se a morte a nica experincia que no pode ser transmitida, discutir a imortalidade,otempo,aeternidadee,sobretudo, 16Prof.CarlosEduardodaCostaCamposmestrandopeloProgramadePs Graduao em Histria Poltica da UERJ e faz parte do Ncleo de Estudos da Antiguidade-UERJ.OmesmoorientadopelaProf.Dr.MariaRegina Candido(PPGH/UERJ-PPGHC/UFRJ)eco-orientadopeloProf.Dr.Pedro Paulo Abreu Funari (UNICAMP), alm de atuar na linha de pesquisa do CNPq: Religio, Mito e Magia no Mediterrneo Antigo. Email: [email protected] 17Podemos verificar tais reflexes sobre a morte no campo acadmico atravs dos congressos: VII Jornada de Histria Antiga NEA/UERJ/Brasil, de 2007; IV Congresso Latinoamericano de Cincias Sociais e Humanidades Imagens da morte-UNIVERSO/UADY:ParceriaentreBrasileMxico-2010;A AssociaoBrasileiradeEstudosCemiteriais(ABEC),comencontrosanuais- site: http://www.estudoscemiteriais.com.br/ Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 38 tomaramortecomoalgoisolado,umaquesto modernacertamenteligadaaoindividualismo, comoticadonossotempoedasnossas instituies sociais (DA MATTA,1991:142). Sendoassim,naatualidade,verificamosaexistnciadecerta banalizao - em certos segmentos sociais no mundo ocidental - sobre a morte,emjornais, na TV e na Internetespaos estescujas informaes circulamemaltavelocidade, oquepossibilitou a banalizaoda relao dohomem,comotrminodesuavida.Emmuitoscasospercebemos que a morte se tornou um espetculo 18, a ser vista em programas de TV etransformando-seemtemasdeseriados,ousendoexpostasvia Internet. Contudo, apesar das novas formas de lidar-se com a morte ela aindapossui emdiversas sociedadesum impactonoimaginrio socialdos indivduos,causandotemoreoempregoderituaisparaasseguraro momentodetransiodomundodosvivosparaodosmortos,do indivduo que veio a falecer. EdgarMorinrealizouemseusestudosumaabordagem antropolgicasobreofimdavidaedeumaiordestaquenasaesdo homem perante a morte. O homem seria o nico ser vivo consciente de suafinitude,naticadoautor.Ofuneralorganizadopelosindivduos configura-se como um meio de sacralizar e oficializar o estado do morto: assimoritofnebrerefleteasperturbaesprofundasqueumamorte provocanocrculodosvivos(MORIN,1988:26-27).Deacordocom Morin, o sujeito que morre singular na sua rede de contatos, assim: O 18Oconceitodemortecomoumespetculovemsendobemdebatidonos ltimosvinteanos.NareadeHistriaAntigavemosem1998,otrabalhode Donald G. Kyle: Spectacles of death in Ancient Rome; em 2006, ns detectamos que ahelenistaMariaReginaCandidoretomaodebatesobreotemanolivro: Media, Mito e Magia: A imagem atravs dos tempos; Na rea de comunicao notamosnoBrasilumestudosobreaquestofnebresendolevantadopor Michele Negrini. A morte como espetculo televisivo: um estudo do programa Linha Direta daRedeGlobo.In:XXVIIICongressoBrasileirodeCinciasdaComunicao. INTERCOM-UERJ, 2005,pp03-05. Acessado em: 26/05/2010Capturado do site:http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2005/resumos/R0336-1.pdf1 Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 39 horrordamorte,portanto,aemoo,osentimentoouaconscinciadaperdada individualidade. Sentimento que o de uma ruptura, de um mal, de uma catstrofe, isto,sentimentotraumtico(MORIN,1988:32).Talvisoperpassapelos estudos do antroplogo Jos Carlos Rodrigues, o qual nos aponta que os rituais fnebres assumem a funo de preencher a lacuna que foi deixada pelomorto(RODRIGUES,1992:11).Imersosemtalperspectiva, podemos compreender tais ritos como o momento da institucionalizao da perda de um ser e em muitos casos o local da tomada de conscincia da necessidade de uma reorganizao do conjunto social, para que estes possam preserva-se na sociedade. OpesquisadorRicardoVillaescusadestacaquedesdeadcada de1960tornou-seperceptvelaampliaodosestudossobreamorte (VILLAESCUSA,2001:29).Possivelmenteestecrescimentoest vinculadotransformaonoconceitodedocumentohistricoea adoodaperspectivamultidisciplinar(Arqueologia,Antropologia, Epigrafia ...), que cada vez mais exigida em decorrncia da diversidade danaturezadadocumentaoquepassaaserutilizadanaspesquisas histricas (SAMARA, 2006:11). Michel de Certeau argumenta que o historiador possui como seu atributodarvozaonodito(2008:79-81).Atravsdocampoterico-metodolgicooprofissionaldahistriaconstriedsentidoa determinado acontecimento ou artefato arqueolgico, o qual sendo visto foradoseucontextononosapresentariaumainformaohistrica compreensvel como, por exemplo, as sepulturas e os objetos funerrios. Opsiclogo Jos H. de OliveiraBarrosendossa o tema aoressaltar em seus escritos que: S o homem tem conscincia da morte, e desde os primrdios da suaexistncia,omesmocomeouaconstruirtmuloseprestarcultoaosmortos (BARROS,1998:08).Logonotamosqueosritosfnebressouma construo humana que atravessou o tempo, desde o Mundo Antigo at os nossos dias atuais. Antonio Arribas, afirma em Os Iberos, que o pensamento religioso dosibricoserasemelhanteaodospovosemcontatonoMediterrneo Antigo.Oscultossolares,astrais,lunares,assimbologiascomoasluas, comasestrelasemlpidesouemmoedasensadicionamosaestes elementos,osritosfunerrios,poistodosestesapontamentos demonstrariamparaoespecialistaemculturaibera,asimilitudeda Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 40 concepomtico-religiosadospovosiberoscomasoutrasregies mediterrneas(ARRIBAS,1967:130). Opesquisador argumenta que em terrasibricassedetectavanaAntiguidade,apresenaderituaisiberos de cremao em uma pira. Aps a incinerao do cadver se colocava as cinzasnumaurna,aqualseriaenterradanumacovanocho,comos esplioseasoferendasrealizadasemtornodocorpo (ARRIBAS,1967:137). Dentrodetaiscerimniasfnebres,Arribassalientaquehavia inscries,juntoaosrestosmortaisdosindivduos.Oautorlanaa possibilidadedestesfragmentos,inscritosseremfrmulasmgicas voltadasparaprotegeromortodosmalesultra-tumbaeamaldioar aquelesqueviessemaviolartalespao(ARRIBAS,1967:138).Ns iremos nos ater nas regies de rito do Sudeste e Levante Espanhol 19. Fig. 01 Ilustrao Etnogrfica dos grupos iberos20 19Neste artigo nos concentramos em anlises sobre os povos iberos de matriz edetana, contestana e batestana (MARTNEZ,1994:231;MONEO,2003:22-24). 20Assetasnailustraoindicamasregies,quevamosnosaternesteartigo. Imagemextradadosite:Acessadoem:29/05/2010.Disponvelem: http://arkeotavira.com/Mapas/Iberia/Populi.pdf Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 41 NaregiodeAlicantede matriztnicadacontestana,senotaa presena de vestgios arqueolgicos de cunho funerrio do V sc. a.C. A cremaodocadvererarealizadodeformasingular,peloquefora apontadoporAntonioArribas.Ocorpodoindivduoeraqueimadona posioerecta,dentrodeumpoo,cujofogoeraabastecidoportubos decermicaqueiamatofundodafenda(ARRIBAS,1967:141). ContudoMariaPazGarcaGelabertnosressaltaquenosotodosos povosdeiberos,quepraticavamoatodecremarcomoformaderitual fnebre(GELABERT,1994:268).Navisodapesquisadora,oritode cremaoseriadispendiosodevidoorganizaoquedeveriaser estabelecidananecrpolis,comoporexemplo,aelaboraodos receptoresdascinzaseosmatriaisgastosparaformularolocalda incinerao,assimseriaumaprticadosgruposcommaiorpoder aquisitivoentreosiberos.Quantoaosgruposdesprovidos,aautora pontua que possivelmente seriam enterrados em fossas, as quais ficariam distante dos ncleos habitacionais (GELABERT,1994:268). Ahistoriografianosrelataquehaviaapresenadaentregade armascomoformadeoferendaaosmortosdogrupoguerreiroibero (ARRIBAS,1967:141).Oarmamentorepresentavaparaestesetor,asua forafsicaeasuacaractersticalivre,segundoMariaPazGarca Gelabert.Aautorapontua,queeraprefervelparaumguerreiroibero morrer, ao ter que viver sem as suas armas (GELABERT,1994:301-302). TalassertivaseencontrafundamentadaemTitoLvio(Hist.deRoma, XXXIV,17). O autor clssico argumenta em sua obra, que o comandante romano Cato ao submeter e desarmar os povos iberos se deparou com umnmeroalarmantedesuicdiosdeles,devidoaosequestrodesuas armas,ouseja,possivelmenteviamesteprocessocomoaperdadesua liberdade e de sua honra como guerreiro21. 21 Segundo Jualian Pitt Rivers a honra seria um valor que legitimaria a funo e ahierarquiasocialdeumindivduoperanteasociedade.Emdiversosgrupos humanosnotamosquehrituaisesmbolos,osquaissovoltadospara consagrar os portadores de tal valor.Logo a perda de atributos, como as armas ealiberdadeparaumguerreiroibero,possivelmenteolevariaacondiode desonra em sua cultura. (PITT-RIVERS,1988:13-17)Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 42 Outro elemento interessante a ser ressaltado seria a presena das danasnosrituaisfnebresemAlicante(fig.2-3).Oatodedanar durante os ritos apresentava um contedo sagrado de vinculao com os deuses,paraaquelegrupo.Adanaseriautilizadanocerimonialibero desde o nascimento, at ao seu rito fnebre (RUANO, 1990:39).Notamos quenocerimonial desta regio (Alicante) as mulheres seencontravamparticipandodasatividadesrituaisqueenvolviamas danas.NaAntigaIbriapercebemosquetalprticaacimacitada,era comumemoutrasregies,comonaBastetaniaenaLusitania (MARTNEZ,2001:97-98).Nspodemosverificarmenesatais prticasatravsdosescritosdogegrafoclssicoEstrabo,naobra Geographika (III,3,7), na qual pontuou que: [...] na Batestania as mulheres danavam tambm misturadas com os homens, unidos uns com os outros pelas mos. Atravsdestarefernciapodemosfrisarqueamulherseriaumafigura relevante dentro da ritualstica ibrica. Fig. 2 Cermica com representao de um homemdanando com uma mulher de mos entrelaadas Alicante (RUANO,1990:36) Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 43 Ao cotejarmos as nossas reflexes sobre as danas fnebres dos iberos,comospensamentosdahelenistaDulcileideNascimento,ns percebemosqueosritossocerimnias,queenvolveriamaescomo gestosfsicos,palavras,objetos,pessoasedeterminadasemoes (2007:85).SegundoNascimento,aritualsticaassumiriaopoderde expressaravinculaoexistenteentreohumanoeosagrado,para agradecimentos e splicas. Fig. 3- Fragmento de cermica com representaes femininas - Alicante (FOLQUS,1975:666) NaprovnciadaMurciafoidetectadoumvasoibero(fig.04) dentrodeumatumba, assimtendo comoprovenincia a regio deEl Cigarralejo,datadocomopertencenteaosc.IVa.C.Emtalcermica notamosapresenadecincoguerreirosarmadoscomlanas,escudos, mscaras e organizados de forma alinhada. Percebe-se na documentao imagticaaparticipaodedoisinstumentistasumtocandoaliraeo outroumaflauta.SegundoJosMaraBlzquezMartnezaimagem representa um rito realizado pelos guerreiros iberos em honra do morto, emformadeprocissooudesfile(MARTNEZ,2005:172).O pesquisadorressaltaqueasmascarasutilizadaspelosguerreirose Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 44 msicos denotariam o contexto fnebre e seria uma prtica comum a sua aplicaodentrodosrituaisfunerriosdosiberos,comoumaformade prestar culto ao morto (MARTNEZ,2005:173). Fig.04 - El vaso de los guerreros de El Cigarralejo - Mula, Murcia (MARTNEZ, 2005:172)) DeacordocomJosMaraBlzquezMartnez,oritualfnebre envolvendo os guerreiros poderia ser encontrado em diversas regies de matriz ibera como em Valncia, na necrpolis de Oliva e em So Miguel de Liria, ambas situadas em Valncia (MARTNEZ,2005:174). Uma jarra degrandetamanhoeprocedentedanecrpolisdelCastellardeOliva, nosdesperta ointeressede estudo (fig.5).No artefato arqueolgicodo perodo compreendido entre os sc. III e II a.C., ns notamos a imagem dejovensarmadoscomlanaseescudos,deformaalinhadabem semelhante, ao vaso de El Cigarralejo, na provncia da Murcia. Para elaborar uma melhor anlise sobre as informaes da jarra, nsinteragimosnossospensamentoscomosescritosdaarqueloga Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 45 espanhola,CarmenAraneguiGasc.Apesquisadoraressaltaquea imagemdabatalhaedosguerreirossemprearmadospoderiaseruma representaodeumconflitoancestral,quepermaneceunoimaginrio social22,comosimbolodevaloreforadosaristocratasiberos.A arquelogaconvergecomavisodeMartnez,aoargumentarqueas imagensrepresentadas tanto novasodeEl Cigarralejo, comona jarradel CastellardeOlivasimbolizamumritualfnebre.(GASC,2001-2002:236). Fig.5 - Jarra procedentes da necrpolis del Castellar de Oliva (MARTNEZ.2005:174) 22Bronislaw Baczko apresenta o imaginrio social como um mecanismo que seria eficazparaocontroledavida coletivaeseriauminstrumentoparaoexerccio do poder e de legitimao da autoridade. Seria assim que, atravs dosimaginrios sociais,umacoletividadeconstruiriaasuaidentidade;iriaelaborarcerta representao de si; estabelecer a distribuio dos papis e das posies sociais; exprimireimporascrenascomuns;construirumaformadecdigodeboa conduta(BACZKO,1985:309-10). Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 46 AantroplogaesocilogaMartineSegalen,noschamaateno sobre a relevncia do ritual e ela argumenta que tal fenmeno social faz parte do pensamento coletivo da sociedade: Oritocaracterizadoporumaconfigurao espaotemporalespecfica,pelorecursoa umasriedeobjetos,porsistemasde comportamentos e de linguagem especficos e porsinaisemblemticoscujosentido codificadoconstituiumdosbenscomunsde um grupo (SEGALEN,2000:23). Analisando a definio de rito de Segalen, podemos pensar que a ritualstica faz parte das sociedades humanas, seja no mbito poltico ou noreligioso.Assim,oritosomentepossuivalorquandolegitimadoe reconhecidopelosindivduosquecompemumadeterminada sociedade.Imersosemtalperspectiva,pontuamosqueosrituais funerriospodemassumirafunoderatificarostatussocialdos indivduos,nassociedadesantigasenasatuais.Logo,comovemosem Ensaio Sobre a Natureza e a Funo do Sacrifcio, do antroplogo e socilogo MarcelMauss,umritoseimpeparaalcanarumafinalidade (MAUSS;HURBERT,2001:141-227). Emsumagostaramosdesalientarqueosritosfnebresso elementosqueconstituemassociedades,desdeosprimrdiosde formaohumana.Osiberosparaconseguiremlidarcomamorte, possivelmente se utilizaram de mecanismos religiosos como a cremao, danas e oferendas de armas para honrar o indivduo da aristocracia que estavamorto.Almdisto,notamosqueosrituaisfunerrios,no apresentavamumauniformidadeentreossegmentossociais.Oscustos para a realizao do ritual da cremao e do enterramento nas necrpolis gerou,segundoahistoriografia,umadiferenciaoentreosgrupos sociais,porexemplo.Logoatravsdesteestudosobreosrituais fnebres,podemosfrisarqueomesmoeraumdosfatoresde legitimao do poder dos aristocratas de matriz ibera. Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 47 DOCUMENTAO ARQUEOLGICA FOLQUS, A. Ramos. En la poca ibrico-punica, o ibrico II, en La Alcudia de Elche (Alicante), XII CAN, Zaragoza,1975.GASC, Carmen Aranegui. A Propsito del vaso de los guerreros del Castellar de Oliva. In: Studia e Cuadrado,AnMurcia,16-17. 2001-2002. GELABERT,MariaPazGarca.Elmundofunerarioibrico.In: GELABERT,MariaPazGarca;MARTNEZ,JosMaraBlzquez.[et al.].HistoriadelasReligionesdelaEuropaAntigua.Madrid:Ed.Catedra, 1994. MARTNEZ, Jos Mara Blzquez. El vaso de los guerreros de El Cigarralejo (Mula, Murcia). Alicante : Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2005. RUANO, Raquel Castelo. Aproximacin a la danza en la antigedad hispana. Manosentrelazadas.Espacio, tiempoyforma, serie II,H Antigua, Tomo 3, 1990. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ARIS,Phillippe.OHomemperanteamorteII.Lisboa:Publicaes Europa - Amrica, 1988. _____. Sobre a Histria da Morte no Ocidente. Lisboa: Teorema, 1989. ARRIBAS, Antonio. Os Iberos. Lisboa: Ed. Verbo, 1967.BACZKO,Bronislaw.Imaginaosocial.In:ROMANO,Ruggiero[et al.].EnciclopdiaEinaudi.Lisboa:ImprensaNacional;CasadaMoeda, 1985, pp.296-331. BARROS, J. Viver a Morte Abordagem antropolgica e psicolgica. Coimbra: Almedina, 1998.CANDIDO,MariaRegina.Vida,MorteeMagiaOntemeHoje.In: CANDIDO,Maria Regina [etal.]. Vida,Morte eMagia no Mundo Antigo. Rio de Janeiro: Ed. NEA/UERJ,2007. CERTEAU,Michelde.AEscritadaHistria.RiodeJaneiro:Forense-Universitria, 2008. DAMATTA,Roberto."Amortenassociedadesrelacionais:reflexesa partir do caso brasileiro". In: A Casa e a Rua. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1991. MARTNEZ, Jos Mara Blzquez. La religin del Levante Ibrico. In: GELABERT,MariaPazGarca;MARTNEZ,JosMaraBlzquez[et Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 48 al.].HistoriadelasReligionesdelaEuropaAntigua.Madrid:Ed.Catedra, 1994. _____. Religiones, ritos y creencias funerrias de la Hispania Prerromana. Madrid: Ed. Biblioteca Nueva, 2001.MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Ensaio Sobre a Natureza e a Funo do Sacrifcio. In: Ensaio de Sociologia, 2 ed., So Paulo, Perspectiva, 2001, pp. 141-227. MONEO, Tereza. Religio Iberica: Santuarios, ritos y divinidades ( Siglos VII I a.C). Ed: Real Academia de la Historia. Madrid: 2003. MORIN,Edgar.Ohomemeamorte.Portugal:PublicaesEuropa-America, 1988. NASCIMENTO,DulcileideVirginiodo.ATchneMgicadeMediano Canto Terceiro de Os Argonautas de Apolnio de Rodes.2007. PITT-RIVERS,Julian.HonraePosioSocial.In:PERISTIANY,J.G. HonraeVergonha(ValoresdasSociedadesMediterrnicas).2Edio. Lisboa:Fundao Calouste Gulbekian, 1988,pp. 13-17. RODRIGUES,JosCarlos.EnsaiosemAntropologiadopoder.Riode Janeiro: Terra Nova Editora, 1992. SAMARA,EniMesquita.Ahistoriografiarecenteeapesquisa multidisciplinar.In:LHIA/UFRJ,Phonix11:9-28,2006.SEGALEN, Martine. Ritos e Rituais. Portugal. Ed: Publicaes Europa-Amrica, 2000. VILLAESCUSA,RicardoGonzles.ElmundofunerarioromanoenelPas Valenciano: monumentos funerarios y sepulturas entre los siglos I a. de C.- VII d. de C. Parte 3. Madrid: Editora - Casa de Velzquez, 2001. Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 49 TITUS FLAVIUS JOSEPHUS E O DISCURSO DE EUSBIO DE CESARIA EM SUA HISTRIA ECLESISTICA Junio Cesar Rodrigues Lima23 EstouadmiradodecomoJosefo,nesteeem outrospontos,confirmaaverdadedasdivinas escrituras. Eusbio de Cesaria OsescritosdeFlvioJosefo,juntamentecomosescritos neotestamentrios,constituemumadasprincipaisdocumentaes textuaissobreahistriajudaicadosculoId.C.esetratam praticamentedosnicosdocumentostextuaisno-cristos contemporneosaoinciodocristianismoqueseocupamcomorelato dahistriajudaica.Porisso,Josefosetratadeumdosautoresmais utilizadassobreacomunidadejudaicanaAntiguidadepelosdiversos segmentoshistoriogrficosgerandoamplaproduoeditorialsobreele, grandepartedela,reunidaporSchreckenberg(1968),apesardeainda despertar em seus leitores as mais controversas opinies. Nopresenteartigo,delimitaremosnossoobjetodeanliseao sentido24atribudoaFlvioJosefonaobraHistriaEclesisticade Eusbio de Cesaria, pois, nela Josefo apresentado como o mais ilustre 23OrientandodaProf.Dr.MariaReginaCandidodaUERJepesquisadordo NcleodeEstudosdaAntiguidadeUERJ.Omesmofazpartedalinhade pesquisa CNPq "Discurso, Narrativa e Representao". Integra tambm o grupo depesquisadoresdoNcleodeEstudosemHistriaMedieval,Antigae Arqueologia Transdisciplinar da UFF - NEHMAAT. O professor mestrando pelo Programa de Ps-graduao da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.24MarcAug(1999:09)conceituasentidocomooconjuntoderelaes simbolizadas,institudasevividasentreunseoutrosnoseiodeuma coletividadequeesseconjuntopermiteidentificarcomotal.Segundoele,no existem sociedades que no tenham, de maneira mais ou menos estrita, definido estasriederelaes.Augentendequeoindivduoseriaoentrecruzamento necessrio, mas varivel, deste conjunto de relaes. Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 50 doshistoriadoresjudeus,umsujeitoqueratificaotipodelinearidade histricapropostaporEusbioereconhecequeJesusomessias esperado pelos judeus.AnalisandoodiscursodeEusbiodeCesariasomos conduzidosaosseguintesquestionamentos:QuemfoiEusbiode Cesaria?QuaisascondiesdeproduodoseudiscursonaHistria Eclesistica?Odiscursode EusbiosobreJoseforepresenta as relaes simblicas e institudas com parte da sociedade judaica de seu tempo ou expressaumaposiosingular?Qualoobjetoeoelemento desencadeadordodiscursodeEusbio? Porqueseapropriardasobras deFlvioJosefo?QuorealapessoadeJosefoemsuaHistria Eclesistica?SerqueJoseforealmenteaderiusprticasreligiosas crists construindo nova identidade? Quem so os sujeitos interlocutores do seu discurso? Aosedebruar sobreuma documentao, ohistoriador precisa levaremcontaqueosdocumentosquedescrevemaessimblicasdo passadopossuemcarterintencionaleestratgico,porisso,os historiadoresdevemcriarsuasprpriasestratgiasparal-los(HUNT, 1992: 18). De forma mais indireta do que direta o dilogo interdisciplinar colocaohistoriadordiantedeobstculosdocumentaiscomo,por exemplo, o dos atos e pensamentos da vida cotidiana, das dvidas e incertezas, do carterfragmentrio edinmico daidentidadeedosmomentoscontraditriosdesua constituio(LEVI,2006:169).Comoasexignciasdehistoriadorese romancistasnosoasmesmas,odilogoentreHistriaeTeoria Literriaproporciona,segundoGiovanniLevi,umarenovaoda histria narrativa, um interessemaiordos historiadores por novos tipos de fontes que forneam indcios do cotidiano e um debate sobre a forma de se escrever histria. ApartirdacompreensodequeocontedodaHistria EclesisticadeEusbiodeveserconsideradodentrodouniverso discursivoequetododiscursosetratadeumobjetoscio-histricoe lingstico,comoprocedimentometodolgicooptamosporaplicara AnlisedoDiscursopropostaporEniOrlandi,comoobjetivode compreender a Histria Eclesistica em sua materialidade, considerando Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 51 o processo de identificao, condies de produo, processo discursivo, iluso referencial e objetividade25. EduardCarrpostulaque,aosedebruarsobreumtrabalhode histria,aprimeirapreocupaodohistoriadornodevesercomos fatos que ela contm, mas com o historiador que a produziu, objetivando desvendar seu lugar de fala, os saberes que circulam em seu discurso, sua autonomia,seusinterlocutores,instrumentosdeofcio,dentreoutras coisas.Paraele,otrabalhoprincipaldohistoriadornoseriaregistrar, masanalisar,pois,osfatos dahistrianuncachegamanspuros.Eles sosemprerefratadosatravsdamentedequemregistra.Comisso, iniciaremos nossa anlise do discurso pelo processo de identificao. Nosso sujeito locutor, Eusbio de Cesaria26, nasceu entre 260-264 d. C.27 e morreu por volta de 339-340 d. C. Foi bispo de Cesaria entre 313e315d.C.epassouamaiorpartedasuavidaemCesariada Palestina.EusbioparticipoudoConclio deNicia,em325d.C.,onde 25 Para este trabalho nos deteremos apenas nas trs primeiras consideraes. 26EusbiodeCesaria,conformedesignadopelagrandemaioriadeseus contemporneos,tambmerachamadodeEusbiodaPalestina.Aexpresso deCesariasetratadeumadistinoentreobispodeNicomdiae,segundo Velasco (1973:16), no indica mais que a sede episcopal. Entretanto, diz ele, se Eusbio no nasceu em Cesaria, passou grande partede sua vida nela. A terra nataleaascendnciadeEusbiodeCesareiacontinuamincertas.Velasco (1973:16) defende a hiptese de que a famlia de Eusbio era de origem grega ou helenizada.Nosesabeseseuspaiseramcristosouno.Entretanto,diz Velasco, ele parece ter crescido em um ambiente cristo, como indica seu nome. Talvez pelo menos sua me tenha sido adepta do cristianismo. 27 Apesar de algumas controvrsias entre os historiadores que fixam a faixa de nascimentodeEusbioentre260-270d.C.,ArgemiroVelasco(1973:14-15) prefere fixar a data entre os anos 260 e 264 d. C. Sua hiptese se fundamenta no fatodequeEusbioemsuaHistriaEclesisticaafirmarqueaperseguiode Valeriano (258-260) e as obras de Dionsio de Alexandria se tratavam de coisas passadasequeosfatosdesuaprpriageraoseriamposterioresaoseventos narrados. Velasco mostra que o primeiro episdio mencionado por Eusbio de CesariacomosendodesuaprpriageraoaintervenodeDionsiona polmicacontraPaulodeSamosata.Dionsio,quenopdeassistir pessoalmente o conclio de Antioquia devido a uma enfermidade, morreu entre 264 e 265 d. C.Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 52 defendeuumaposiomediadoraentreasidiasderioeAtansio. Escreveumaisde120volumesentrelivroshistricos,apologticos,de exegese e doutrinrios. Citou cerca de 250 obras em seus escritos. Eusbio de Cesaria geralmente escrevia um prlogo e fazia uma dedicatriaemsuasobrasquepermitemaohistoriadorteracessoa alguns fatos importantes de sua trajetria de vida, pontuando seus afetos eposiespessoais,principalmenteemmatriadedoutrina.Eusbio aindacostumavafazeralusoasuavidapregressa,mencionarttulose, emalgumasoportunidades,atfazercitaesdeobrasanteriores (VELASCO, 1973: 13-14). Velasco(1973:13)afirmaqueasinformaessobreavidade EusbiodeCesariageralmentepodemserapreendidasemJernimo, nascartasdeAlexandredeAlexandria,nasobrasdeAtansio,de EusbiodeEmesaeEusbiodeNicomdia,nascartasdosconcliose nasobrasdoscontinuadoresdahistoriografiaeclesistica,como: Scrates,Sozomeno,Teodoreto,Filostorgo,GelasiodeCcico,dentre outros. Conformeoprpriosujeitolocutorregistra,EusbiodeCesaria viveu em um perodo de muitos conflitos entre cristos, judeus e pagos. Segundoele,umaleifoipromulgadaporDioclecianoeMaximiano abolindoasprticasreligiosascrists.Emmarode303,publicaram-se editosparaquefossemarrasadasasigrejas,queimadasasescrituras, depostos oficiais e presos familiares que persistissem na prtica religiosa crist emtodasas partesdo imprio. Eusbiotambm relata prises de pastoreseimposiodasprticasreligiosasromanasatravsda reconstruodostemplos,restabelecimentodossacrifciosenomeao de sacerdotes. Eraesteoanodezenovedoimpriode Diocleciano e o ms de Distro - entre os romanos sediriaodemaro-quando,estandoprximaa festadaPaixodoSalvador,portodasaspartes estenderam-seeditosimperiaismandandoarrasar atosoloasigrejasefazerdesaparecerpelofogo as Escrituras, e proclamando privados de honras a aquelesquedelasdesfrutavamedeliberdadeaos particularessepermanecessemfiisemsua Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 53 profissodecristianismo.Assimfoioprimeiro editocontrans,masnomuitodepoisvieram outroseditosnosquaisseordenava:primeiro, lanarnasprisestodosospresidentesdasigrejas emtodolugar,edepois,for-losportodosos meiosasacrificar(EUSBIODECESARIA, HISTRIAECLESISTICA,LIVROVIII.II.4-5). Eusbio assumiu o bispado de Cesaria (313-315 d. C.) durante omomentodereconstruodocristianismonacidadeeinciodo processodeinstitucionalizaodaigreja,ouseja,umperodoposterior ao Edito de Tolerncia (311 d. C.) e ao Edito de Milo (313 d. C.) - que concedeuliberdadeparaprticasreligiosaslocaisemtodoimprio- Pareceu-nos [Constantino e Licnio] justo que todos, cristos inclusive, gozem de liberdade de seguir o culto e a religio de sua preferncia (); todos tero garantidos livreeirrestritaprticadesuasrespectivasreligies(LACTNCIO,DE MORT. PERSEC. XLVIII)28. Entreoutrasprovidnciasparapromoverobem duradouro da comunidade, temos nos empenhado em restaurar o funcionamento das instituies e da ordem social do Estado. Foi nosso especial desejo queretornemaocorretooscristosque abandonaramareligiodeseuspais.Apsa publicaodenossoeditoordenandooretorno doscristossinstituiestradicionais,muitos deles foram constrangidos a decidir-se medianteo medo,enquantooutrospassaramavivernuma atmosferadeperigoseintranqilidade. Considerando,porm,quemuitospersistemem suasopiniese,hoje,noreverenciamosdeuses nemveneramseuprpriodeus,ns,usandoda nossahabitualclemnciaemperdoaratodos, temosporbemindultaraesseshomens, outorgando-lhesodireitodeexistirnovamentee 28 Edito de Milo, 313 d. C. Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 54 de reconstruir seus templos, com a ressalva de que noofendamaordempblica.Seguiruma instruoexplicandoaosmagistradoscomose devemportarnestamatria.Emcontrapartidaa estanossaindulgncia,oscristosobrigar-se-oa oraraaseudeuspornossorestabelecimento,em benefciodobemgeraledoseubem-estar particular,demodoqueoEstadosejapreservado doperigoeelesmesmosvivamasalvonoseular (LACTNCIO,DEMORT.PERSEC. XXXIV)29. ArgemiroVelasco(1973:38)postulaqueparaEusbiode Cesariaapalavrahistriasereferiatantoaorelatodeum acontecimento,quantoaoacontecimentoemsi.Comohistoriador eclesisticoemnenhummomentoelepretendeutilizar otermo histria comoumconjuntodeacontecimentosrelatadoscomoumdesenrolarorgnico submetido ao jogo das causas e dos efeitos em mtua conexo e interdependncia com projeouniversal.ParaEusbio,dizVelasco(1973:38),histriano significaahistrianosentidouniversal.Elenoestpreocupadoem investigaraexperinciahumanaemsuaplenitudeetotalidade.Eusbio nodesejaescreverumahistriadaigreja,mas,sim,umahistria eclesistica,ouseja,elequerapresentarapenaspessoas,obrase acontecimentosque,segundoseujulgamento,merecemserpreservado paraaposteridade,tudooquepossainteressaraumcristo,bispo, clrigo ou laico. Eusbio de Cesaria se limita a reunir o material que se relaciona a vida da igreja. Ecomearei,comodisse,pelasdisposiesea teologiadeCristo,queemelevaoegrandeza excedem ao homem. J que, efetivamente, quem se disponhaaescreverasorigensdahistria eclesisticadevenecessariamentecomearpor remontar-seprimeiradisposiodeCristo mesmo-poisfoid'Elemesmoquetivemosa honradereceberonome-maisdivinadoque 29 Edito de Tolerncia, 311 d. C. Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 55 possaapareceraovulgo(EUSBIO,HISTRIA ECLESISTICADE CESARIA, LIVROI.VII-VIII). Com isso, ao analisar a obra de Eusbio, precisamos considerar, comodisseEduardCarr(1960:39),queostatusdeumfatocomofato histricodependedeinterpretaoequeestefalaapenasquandoo historiadoroaborda.EusbiodeCesariaquemdecidequaisfatos viro cena e em que ordem ou contexto. O lugar de fala do nosso sujeito locutorestdiretamenterelacionadosuaposioeclesistica,asua religiosidade,adiversidadeculturaldesuacidadeeaoconjuntode relaes simblicas vividas e institucionalizadas na sociedade na qual ele estavainserido.Eusbiopartedoprincpiodequeaigrejauma instituio criada por Deus e que o historiador deve relatar fatos, pessoas einstituiesaelarelacionadas.Porisso,extremamenteimportante identificar a textualidade do seu discurso. Para tanto ns, depois de reunir o que achamos de aproveitvelparanossotemadaquiloqueestes autoresmencionamaquieali,ecolhendo,como deumpradoespiritual,asfrasesoportunasdos velhos autores, tentaremos dar corpo a uma trama histricaeestaremossatisfeitosporpoder preservar do esquecimento as sucesses, se no de todososapstolosdenossoSalvador,aomenos dos mais importantesnasIgrejas mais ilustres que ainda hoje so lembradas (EUSBIO, HISTRIA ECLESISTICA, LIVRO I.IV). GiovanniLevi,comoPierreBourdieuemsuailusobiogrfica, postulaqueindispensvelreconstruirocontexto,achamadasuperfcie social30emqueoindivduoageequesecaracterizaporsuapluralidade. 30SegundoBourdieunosepodecompreenderumatrajetriadevidasem construir os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou (conceito de superfcie social) e, logo, o conjunto das relaes objetivas que uniram o agente consideradoaoconjuntodosoutrosagentesenvolvidosnomesmocampoe Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 56 EstaamesmaposiodeJacquesLeGoff(2002:23)aodizerqueo sujeito constri a si prprio e sua poca, tanto quanto construdo por ela. E, essa construofeitadeacasos,dehesitaes,deescolhas.Comisso,ohistoriador francs tambm valoriza o conhecimento do contexto social, econmico, polticoeculturalparasecompreenderumapersonagemindividuale afirma que: Oshomensenquantoindivduosouemgrupo, acumulamumaparteconsiderveldeseus conhecimentosedeseushbitosnainfnciaena juventude,quandosofreminflunciadosmais velhos,pais,mestres,anciosquecontavammais num mundo em que a memria era mais poderosa doquenassociedadesemquereinaescritaeem queavelhicerepresentavaautoridade.Seu compassocronolgicoseabre,ento,bemantes de seu nascimento (LE GOFF, 2002: 28). Eni P. Orlandi concorda com Giovanni Levi e Jacques Le Goff quantoimportnciadeseconhecerocontextosocial,econmico, poltico ecultural,denominadoporela decondiesdeproduo do discurso. OrlandinospermiteremeterodiscursodeEusbiodeCesaria,em Histria Eclesistica, por exemplo, a toda uma filiao de dizeres, a uma memria,asuahistoricidadeesignificncia,mostrandoseus compromissos polticos e ideolgicos (ORLANDI, 2003: 30). CesariaeraumportodaPalestinaquetinhasuasorigensna poca dos fencios. No perodo helnico chegou a ser reconhecida como Torre de Strato. Entre os anos 25 e 9 a. C., a cidade foi urbanizada31 por confrontados no mesmo espao dos possveis. Sem esta construo no se pode avaliar o conjunto das posies simultaneamente ocupadas num dado momento por uma individualidade biolgica socialmente construda. 31Urbs,acidade-Osromanosfreqentementeusavamessetermoparase referiraRoma,acidadeporexcelnciaepordefinio.Posteriormente,os romanos se utilizaram desse modelo para urbanizar novas cidades nos territrios conquistados e promover integrao entre os romanos e os povos conquistados. Assim,semprequeatopografiapermitisse,acidadeeraordenadasegundoplano perpendicular,emqueasruasseentrecruzavamemnguloreto.Adisposiointernados Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo-NEA/UERJ 57 Herodes Magno que, em homenagem a Augusto, a chamou de Cesaria. A cidade tambm era conhecida como Caesarea Stratonis e logo se tornou o principal porto da regio e um dos mais ativos do Mediterrneo. No tempo de Eusbio, Cesaria, desde 44 d. C., era a capital da provnciadaJudia,quemaistardefoichamadadePalestina.Assim,a CesariadeEusbioparecetersido,noperododeproduodesua