livro de religiao no mediterraneo - vol i

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  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA NCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE

    Prticas Religiosas No

    Mediterrneo Antigo

    Rio de Janeiro NEA/PPGH/UERJ

    2011

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    2

    Copyright2011: todos os direitos desta edio esto reservados ao Ncleo de Estudos da Antiguidade NEA, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2011. Capa: Junio Csar Rodrigues Diagramao: Carlos Eduardo da Costa Campos & Luis Filipe Bantim de Assumpo Imagem da Capa: Museum Collection: Museum of Fine Arts, Boston, Massachusetts,USA Catalogue Number: Boston 99.518 Beazley Archive Number: 302569 Ware: Attic Black Figure Shape: Kylix Painter: Name vase of the Painter of the Boston Polyphemos Date: ca 560 - 550 BC Period: Archaic

    Editorao eletrnica: Equipe NEA www.nea.uerj.br

    CATALOGAO NA FONTE

    UERJ/REDE SIRIUS/CCSA

    Ficha eletrnica P912 CANDIDO, Maria Regina; CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa (Orgs.). Prticas Religiosas no Mediterrneo Antigo. Rio de Janeiro: NEA/UERJ, 2011. 252 p. ISBN: 1. Mediterrneo, Mar, Regio - Religio. 2. Religio. I. Cndido, Maria Regina. II. Campos, Carlos Eduardo da Costa.

    CDU 931(262)

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

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    Universidade do Estado do Rio de Janeiro Reitor: Ricardo Vieiralves de Castro Vice-reitor: Christina Maioli Extenso e cultura: Ndia Pimenta Lima Instituto de Filosofia e Cincias Humanas Jos Augusto Souza Rodrigues Departamento de Histria Andr Luiz Vieira de Campos Programa de Ps-Graduao em Histria (PPGH/UERJ) Tnia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira Conselho Editorial Claudia Beltro da Rosa Deivid Valrio Gaia Jos Roberto de Paiva Gomes Maria do Carmo Parente Santos Maria Regina Candido Assessoria Executiva Alair Figueiredo Duarte Ana Carolina Caldeira Alonso Carlos Eduardo da Costa Campos Junio Csar Rodrigues Lima Luis Filipe Bantim de Assumpo Tricia Magalhes Carnevale Pedro Vieira da Silva Peixoto

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    4

    Sumrio

    7 Apresentao

    Maria Regina Candido

    10 Prefcio

    Vicente Dobroruka

    13 A Situao Scio-Poltica de Josefo: entre a Histria e a Traio

    Alex Degan

    31 O cuidado para com os pobres no Cristianismo Primitivo

    Reflexes a partir de Joo Crisstomo

    Carlos Caldas

    48 Elementos da religio domstica romana na Aulularia de Plauto

    Claudia Beltro da Rosa

    58 Homero: magia e encantamento da palavra potica

    Flvia Maria Schelee Eyler

    69 A cristianizao do Imprio Romano: Algumas consideraes de

    carter historiogrfico

    Gilvan Ventura da Silva

    87 Identidade e Memria no Cristianismo Srio-Palestino: oamen

    nos ditos de Jesus de Nazar

    Joo Batista Ribeiro dos Santos

    101 A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristos

    Joo Oliveira Ramos Neto

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    5

    117 Bs em Deir el Medina e no Mediterrneo(1540-400 a.C.) Margaret M. Bakos 135 Mito y sentido en Hesodo: Las formas de habitar el mundo Maria Cecilia Colombani

    147 A Rainha de Sab e o Cristianismo da Etipia

    Maria da Conceio Silveira

    160 Muulmanos e Cristos: uma construo da alteridade dos fiis

    das duas crenas

    Maria do Carmo Parente Santos

    174 Santidade Feminina na Glia Merovngia: Radegunda de Poitiers

    Miriam Lourdes Impellizieri Silva

    190 O Culto Imperial como Transcrito Pblico

    Norma Musco Mendes

    210 Pondo o Lixo Pra Fora da relao entre excluso de grupos

    scio-religiosos e interdio literaria na tradio judaico-crist Joo,

    Judas e Lutero

    Osvaldo Luiz Ribeiro

    222 Consideraes Sobre a Religiosidade Grega

    Pedro Paulo Abreu Funari

    235 Um manuscrito pseudo-Zorostrico e o papel do Salvador no

    Cristianismo Primitivo Oriental

    Vicente Carlos Dobroruka

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

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  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    7

    Apresentao

    Maria Regina Candido

    Ao apresentar uma publicao com um tema amplo como a

    Religio no Mediterrneo Antigo, estamos trazendo ao debate as vrias

    faces do sagrado na qual podemos construir uma relao interpretativa

    entre a natureza transcendente do ser humano diante da religio e

    como ele traduz a sua materialidade. A manifestao do sagrado

    contribui para uma nova semntica de relaes no qual o homem

    religioso imprime ao mundo sensvel uma descontinuidade, que

    reclassifica qualitativamente os objetos, sacraliza o mundo e atribui um

    significado ao espao sagrado em oposio ao cotidiano do mundo

    profano.

    Por outro lado, no podemos esquecer da dinmica do sculo

    XIX para os estudos da religio. Tal perodo perpassou pela

    revitalizao dos textos clssicos, assim como vivenciou

    acentuadamente as novas descobertas arqueolgicos. No meio

    acadmico, o resultado emergiu com a institucionalizao da disciplina

    da Cincias da Religio que fomentou a criao da ctedra

    universitria Histria das Religies promovendo a realizao de teses,

    congressos e publicaes.

    A identificao da temtica da religio como objeto de estudo

    torna-se interessante para ns pesquisadores das prticas mgico-

    religiosas na Antiguidade ao redor do Mediterrneo. O fato se deve a

    ampliao da complexidade do ambiente religioso no Mundo Antigo

    assim como na Modernidade que pode ser lida de modos diferentes,

    antagnicos e complementares. Alex Degan investiga o judasmo

    tardio e o cristianismo primitivo e os mtodos de governana romana

    na Palestina. Carlos Caldas atualiza o tema ao trazer o personagem de

    Joo Crisstomos e a relao da igreja crist com os pobres

    considerados explorados e oprimidos. A pesquisadora Cludia Beltro

    analisa o teatro romano como reflexo da centralidade da vida religiosa

    dos romanos. A abordagem religiosa nos remete as prticas mgicas

    cuja fronteira nem sempre visvel para separar o sagrado do profano

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    8

    como aponta Flavia Maria Schlee Eyler. Gilvan Ventura da Silva

    analisa a expanso e fortalecimento das comunidades crists no

    decorrer do sculo IV no epicentro dos ncleos urbanos do orbis

    romanorum.

    Junto a os aspectos da vida religiosa no cotidiano, Joo Batista

    Ribeiro Santos analisa a tradio talmudica e Joo Oliveira Ramos

    Neto traz a reflexo sobrea vida dos primeiros cristos no cotidiano

    dos habitantes da Palestina nos dois primeiro sculos da era comum.

    Retrocedendo no tempo, Margaret M. Bakos busca indcios da escrita

    antiga impressa no basto mgico usado no culto no Egito Antigo,

    enquanto que Maria Cecilia Colombani busca identificar certa

    funcionalidade dos deuses e heris visando tornar inteligvel a lgica

    da narrativa mtica. O tema sobre a narrativa mtica perpassa tambm

    pela abordagem de Maria da Conceio Silveira ao analisar o mito da

    Rainha de sab e o Cristianismo na regio da Etiopia. A religiosidade

    do islamismo em embate com o cristianismo, to ativa no tempo

    presente, transita pelo tema da pesquisadora Maria do Carmo Parente.

    Enquanto a Antiguidade Tardia e a emergencia de novos modelos de

    santidade e mrtires revelam as mudanas ocorridas na percepo

    religiosa dos cristos de acordo com a perspectiva de Miriam Lourdes

    Impellizieri Silva. O Culto Imperial como Transcrito Publico, segundo

    Norma Musco Mendes que analisa a institucionalizao do sistema

    imperial romano de acordo com a documentao textual, epigrafia e

    arqueolgica no final do periodo republicano expe a fragil infra

    estrutura demarcada pelos caticos expedientes administrativo.

    A tradio judaico-crist foi constituda por mltiplas

    representaes socio-religiosa, segundo Osvaldo Luiz Ribeiro, fossem

    todas as harmnicas e homogenias tenderiam a uma fuso pacifica,

    porem , no foi o que ocorreu, fato explicado pelo autor em seu texto.

    Ainda mantendo o interesse na esfera do religioso, Pedro Paulo de

    Abreu Funari analisa as consideraes sobre a religiosidade gregas ao

    constatar que os gregos nunca foram muito unidos, falavam e viviam

    em diferentes regimes politicos e sociais e variadas eram as suas

    origens tnicas, mesmo assim continual a inspirar as geraes

    posteriores causando espanto e admirao ao qual cabe ao autor

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

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    analisar. O pesquisador Vicente Dobroruka discute a formao do

    cristianismo primitiva em relao refeio sagrada e o culto de Mitra.

    Prof. Dr. Maria Regina Candido

    Prof. Associada de Histria Antiga da UERJ

    Coordenadora do Ncleo de Estudos da Antiguidade

    & do Lato Sensu de Histria Antiga e Medieval da UERJ

    Coordenadora de Mestrado do PPGH/UERJ

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    10

    Prefcio

    Vicente Carlos Dobroruka

    Prefaciar um livro que trata de prticas religiosas no Mediterrneo antigo seria algo fcil de fazer-se no Brasil de algumas dcadas atrs? O tema era por si mesmo bizarro, os estudiosos, poucos

    e o acesso informao inexistente. Ou se tinha dinheiro e acesso s

    bibliotecas estrangeiras (ou alternativamente, podia-se pagar o infame

    dlar livro e encomendar, por vezes com demora de anos, um livro numa das grandes livrarias de Rio ou So Paulo), ou o estudioso com

    freqncia mudava de rea. Ouvi de mais de um colega de graduao

    que ele iria estudar histria do Brasil (um rtulo to andino quanto Histria Antiga, diga-se de passagem por nada dizer acerca do tema estudado pelo fato de que h fontes vontade.

    Os menos cultos alegavam - falaciosamente - que no era necessrio saber outra lngua alm do portugus.

    Diante de tamanho fracasso, o quadro atual algo de que

    devemos nos orgulhar. Em aproximadamente duas dcadas saamos da

    virtual inoperncia na rea de estudos de religio no mundo antigo,

    como estamos aos poucos nos aventurando em terrenos pouco

    mapeados, mesmo por estudiosos de renome internacional.

    Obviamente, parte desse sucesso, espelhado nesta compilao que traz

    a marca da excelncia dos trabalhos realizados pelo Ncleo de

    Estudos da Antigidade - NEA da Universidade do Estado do Rio de

    Janeiro (UERJ), deve-se a fatores externos inimaginveis h duas

    dcadas: o fim da inflao, a inveno da Internet, a "verso 2.0" da

    mesma, que nos coloca em contato com os grandes nomes de qualquer

    campo de pesquisa "em tempo real", a moeda brasileira forte, os

    programas de incentivo pesquisa.

    Mas todos esses recursos, tcnicos por natureza, de nada

    serviriam se no existissem pesquisadores dispostos ao esforo

    intelectual num campo to escorregadio, to cinzento e to cheio de

    oportunidades quanto o do estudo das prticas religiosas no mundo

    mediterrnico da Antigidade. Nesse sentido, o esforo mental de um

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    11

    Reitzenstein ou de um Nldeke comparvel ao nosso - sua

    genialidade sobressai-se, em parte, pelas limitaes que

    acompanhavam os trabalhos de sua poca, contrapostos s

    supracitadas facilidades de que dispomos.

    Muito do avano no estudo cientfico no estudo da religiosidade

    desse perodo deve-se curiosidade despertada pela religiosidade do

    mundo helenstico em geral; com a admisso franca do judasmo de

    Jesus (algo relativamente recente), o pblico leitos viu-se s voltas

    com um dado novo e "surpreendente": no apenas Jesus era judeu,

    mas em seu tempo teve concorrentes, com propostas e prticas

    distintos tambm.

    O que uma coletnea como esta nos lembra a extrema

    variedade e, por vezes, superposio dessas prticas. E nos lembra

    tambm que, embora durante a vida de Jesus como hoje o essencial da

    vida espiritual de cada homem consistisse na orao (de petio, de

    promessa, de agradecimento ou mesmo de maldio), os textos nos

    quais essas tradies espirituais se apoiavam variavam enormemente.

    O uso de figuras sagradas parecia mesmo confundir-se entre diversos

    grupos, e o mesmo pode ser dito de seus textos: com freqncia nos

    deparamos diante de uma profecia, orao ou apocalipse que poderia

    igualmente ser judeu, cristo ou pago.

    Ou ainda poderia ser tudo isso simultaneamente - quando

    Momigliano lanou a idia de um "banco de dados" temtico

    espalhado pelo Mediterrneo aps o sc.V ou VI a.C., referia-se no

    apenas a temas que apareciam um pouco por todo o lado como

    tambm a personagens que, se no eram os mesmos, dividiam muitas

    caractersticas comuns e, portanto, eram facilmente assimilveis por

    seus adeptos. Pensemos em Jesus, Asclpio, Apolnio de Tyana e,

    mais tardiamente, Zoroastro, Ostanes e Apolo.

    O esforo representado pelos textos que compem esta

    coletnea tanto mais notvel pelo fato de servirem-se com

    freqncia de bibliografia e fontes primrias compartilhadas com os

    melhores estudiosos de pases com mais tradio. Sejamos justos: o

    resultado no ainda comparvel ao obtido por instituies com

    muitos sculos a mais de tradio acadmica. Todavia, de se

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    12

    enfatizar aqui o "ainda no" - a prosseguirmos nessa autntica

    sementeira de talentos, orientaes e publicaes, em breve teremos

    avanado no apenas em funo de nosso prprio atraso, mas em

    poucas geraes estaremos, como comunidade acadmica e no

    apenas como indivduos isolados, dialogando com estudiosos e

    instituies com muito mais tradio.

    Levamos uma vantagem inicial, verdade - e isso fica tambm

    exemplificado nesta coletnea: pela ausncia de quadros altamente

    especializados, temos de cobrir uma vastido de campos de interesse e

    investigao inconcebveis para um acadmico ingls, alemo ou

    norte-americano. Damos aulas que, numa manh, pulam de Flvio

    Josefo magia ateniense, e do mercenarismo grego confeco da

    Teogonia. Vejam bem leitores, estou falando desse tipo de proeza

    didtica realizada no pelo aluno, mas pelo professor: aqui, tivemos

    de fazer da necessidade, virtude.

    Um dos aspectos positivos dessa limitao que os autores dos

    textos desta coletnea foram forados, creio que sem excees, a

    travar contato com uma multiplicidade de tradies menos por

    interesse do que por urgncia. E dessa urgncia surgiu o gosto, e do

    gosto, o aprendizado dos modos de estudar e entender essas facetas do

    passado.

    Este livro parece-me, portanto, um balano de estado atual das

    pesquisas sobre religiosidade no mundo antigo no Brasil; no o

    nico, verdade, mas pela diversidade de temas, ele oferece ao leitor

    um dilogo no apenas entre temas distintos, mas tambm entre

    abordagens diferentes. E involuntariamente, presta homenagem ao

    grande melting-pot tnico-religioso-poltico que foi o mundo legado

    por Alexandre aos psteros.

    Prof. Dr.Vicente Dobroruka

    Professor de Histria Antiga da UnB

    Professor Visitante em Clare Hall, Cambridge

    Membro do Ancient India and Iran Trust, Cambridge

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    13

    A Situao Scio-Poltica de Josefo: entre a Histria e a

    Traio

    Alex Degan1

    Nascido no primeiro ano do reinado de Calgula2, filho de

    aristocratas de Jerusalm (Vita, 1-5) e sacerdote fariseu, Flvio Josefo

    situa-se em uma categoria de personagens polmicos, seja por sua

    atribulada vida, seja por seus impressionantes livros3, ou por sua

    existncia posterior dentro da tradio literria clssica. Ao investigar

    suas obras empreitada difcil deixar de se envolver com suas

    controvrsias. Fonte importante para estudos que investigam o

    Judasmo Tardio, o Cristianismo Primitivo e os mtodos de

    governana romanos na Palestina, este estudo objetiva refletir sobre

    seu papel scio-poltico dentro da sociedade judaica hierosolimitana,

    procurando responder a seguinte pergunta: quais eram suas relaes

    polticas e sociais na ecloso da revolta, na conduo dela e no trato

    desastroso com Roma, terminando com a capitulao judaica e a

    destruio de Jerusalm?

    1 Professor Assistente do Departamento de Histria da Universidade Federal

    do Tringulo Mineiro (UFTM), doutorando em Histria Social pela

    Universidade de So Paulo (USP) e pesquisador do Laboratrio de Estudos

    Sobre o Imprio Romano (LEIR). E-mail: [email protected] 2 Entre os anos 37 e 38, (Vita, 5).

    3 A obra de Josefo, preservada com cuidado desde o incio por intelectuais

    cristos, composta por quatro livros: Bellum Judaicum (dividido em sete

    livros que tratam desde a consolidao da dinastia asmonia, at a conquista

    de Massada, escrito entre os anos 75 e 79), Antiquitates Judaicae (narrativa

    da histria judaica, desde a criao do mundo at o incio da revolta de 66,

    composta de vinte livros e redigida entre os anos 94 e 99), Vita (nico livro,

    provavelmente um anexo incorporado a uma edio de Antiquitates, escrito

    entre 94 e 100) e Contra Apionem (tratado apologtico organizado em dois

    livros que se preocupa em demonstrar a nobreza e antiguidade da histria

    judaica, polemizando especialmente com escritos gregos, sendo redigido

    entre 94 e 100).

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    14

    Antes de analisarmos a aristocracia que Josefo pertencia,

    devemos dedicar ateno ao seu universo: a Judia. preciso ressaltar

    que a Palestina romana, regio atrelada provncia da Sria e lar

    nacional dos judeus, no se destacava comosendo uma grande

    reaeconmica no Imprio (SARTRE, 1994: 383). Em relao aos

    judeus, provavelmente eles eram tratados como mais uma das muitas

    etnias que compunham o arranjo imperial, sem merecer uma ateno

    especial na poltica romana. Se pudermos atribuir alguma

    especificidade a Judia, isto se justificava por sua posio fronteiria

    entre os partos e pela relao que Jerusalm mantinha com imensa

    comunidade judaica da dispora4. Estavam os judeus espalhados por

    grande parte dabacia mediterrnea, principalmente em grandes

    cidades como Roma5 e Alexandria

    6, como tambm formavam

    comunidades no Imprio Parta. Apesar das fontes registrarem

    problemas localizados e temporrios entre judeus e gentios na

    dispora at a ecloso da grande revolta de 66 - 707era evidente que a

    relao exclusiva do povo judeu com YHWH, a observncia doshabat,

    o cumprimento da dieta judaica e a prtica da

    circuncisodemonstravam que o particularismo no poderia ser

    ignorado(GOODMAN, 1994: 106), no necessariamente estruturando

    um problema de convivncia.

    4 Sobre a dispora, consultar: GRUEN, 2002.

    5 Martin Goodman (1994 A, p. 328) observa a existncia de 11 ou mais

    sinagogas em Roma durante o sculo I a.e.c. 6 Ellen Birnbaum (2004: 114) entende que os gregos de Alexandria

    condenavam o comportamento passivo dos judeus frente ao comando romano

    da cidade, o que produzia muitos conflitos e ressentimentos entre as duas

    comunidades. 7 Sobre a relao dos romanos com a religio judaica, concordamos com o

    que diz Maurice Sartre (1994: 392): Es abusivo hablar con respecto al judasmo de una religio licita, nocin jurdica desconocida por los romanos,

    pero en funcin de su respeto de los derechos locales de todos los peregrinos

    del Imperio, se reconoce la Torah como la ley de los judos, incluidos sus

    aspectos religiosos.

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    15

    O Imprio Romano, composto por sociedades distintas8, se

    apoiava em algumas estruturas unificantes, como o imperador, a

    cidade e os exrcitos. Em relao aos assuntos cotidianos, o poder

    romano encontrava-se ligado aos aparatos das polticas local e

    regional, tendo a cidade como unidade bsica de organizao. De fato,

    as cidades eram os centros primrios de poder, e no Roma (PRICE,

    2004: 54). Foi nas cidades que a poltica romana procurou fazer sentir

    sua presena, cooptando suas classes dirigentes e buscando encontrar

    nesse centro de organizao instituies unificadoras para estabelecer

    sistemas coletores de impostos, mantenedores da ordem pblica9 e de

    culto ao imperador10

    . Na Palestina judaica a maior e mais honrada

    estrutura nacional era o Templo de Jerusalm (HORSLEY, 2000: 17),

    local no qual se nutriam as ramificaes do poder na antiga Palestina

    judaica e de sua aristocracia religiosa sacerdotal que acabava

    assumindo tambm as direes de classe dirigente civil (VIDAL-

    NAQUET, 1996: 33). Flvio Josefo, como muito se orgulhava (Vita,

    1, 1-6), pertencia a esta elite sacerdotal, descendente da casa real

    asmonia e da tribo sacerdotal de Levi11

    . Yosef benMattitiahou ha

    8Como todos os imprios os imprios, o imprio romano no era uma sociedade unitria, mas uma combinao de muitas sociedades [...]. Historicamente, qualquer grau aprecivel de integrao foi alcanado

    unicamente por meio do exerccio de vrias espcies de poder (HORSLEY, 2000: 17). 9Garnsey e Saller observam que os objetivos bsicos deste mtodo de

    governana construdo por Roma e elites regionais eram dois: manter a

    ordem e arrecadar impostos. GARNSEY; SALLER, 1991: 32. 10

    Sobre o culto ao imperador na parte oriental do Imprio do sculo I:

    PRICE, 2004: 53-76. 11Sobre o lugar da elite sacerdotal na Palestina romana: O sacerdote era algum separado para servir exclusivamente sua vocao, tendo sua

    existncia inteira comprometida com uma total entrega a Deus (PEDREIRA, 2002: 271); Os prprios sacerdotes, ou cohanim, pertencem tribo de Levi. Esta no recebeu territrios nos tempos bblicos, pois cabe-lhe

    uma misso mais elevada: a de guardar a Aliana. Dessa tribo provm, em

    especial, Aaro e Moiss, filhos de Amram, mas somente a descendncia de

    Aaro, o irmo mais velho, tida por fornecedora dos grandes sacerdotes

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    16

    Cohen, antes da adoo pelos Flvios o renomear

    comoTitusFlaviusJosephus12

    , era um sacerdote fariseu13

    e, dando

    crdito aos seus textos, figura importante na sociedade de Jerusalm

    antes da revolta. Para Per Bilde14

    , TessaRajak15

    e David M. Rhoads16

    sob este ponto que devemos ler e interpretar as descries que Josefo

    faz da guerra, do Judasmo e dos rebeldes: para estes autores, a elite

    sacerdotal a que Josefo pertencia estaria no s em desacordo com os

    grupos de revoltosos, mas tambm procuravam se opor a eles em um

    projeto nacional (RHOADS, 1976: 05). Bilde afirma que Josefo e seus

    pares formariam uma espcie de partido moderado, tentando equilibrar as tenses entre judeus e autoridades romanas, atuando

    como um grupo poltico que lutou por esvaziar o descontentamento

    ungidos pelo Senhor e pode usar o ttulo de Cohen (HADAS-LEBEL, 1991: 19). 12

    Hadas-Lebel (1991: 11) explica que, Josefo o prenome bblico que o pai, Matias, lhe deu ao nascer. Quando, mais tarde, o imperador Vespasiano fez

    dele um cidado romano, esse prenome brbaro tornou-se um cognomen associado ao nome de famlia do benfeitor que o libertou aps t-lo

    aprisionado, o nome da gens Flvia. 13

    Sobre Josefo com um fariseu na juventude, consultar: RAJAK, 1983: 11-

    45. 14

    Para Bilde (1988: 179): Josephus was of an aristocratic, priestly and noble family. He had been well educated []. Moreover, he was wealthy throughout his life. Thus, Josephus was deeply rooted in the Palestinian-

    Jewish and Jerusalem upper-class, and later it appears that in the Diaspora

    and in Rome, he seems to have established himself in a similar position. 15

    Para Tessa Rajak (1983: 79):The various strands of Josephus interpretation of the revolt fall into place, and make sense, when the simple

    point is understood that his opinions are, as is quite natural, the product of

    his position within Palestinian society, and that they are those of a partisan

    on one of the two sides in a violent civil conflict. 16

    Para David Rhoads (1976: 5): Josephus heritage thus identifies him the priestly ruling class of Israel, the class which cooperated most directly with

    the Romans and which had the most to lose by a war white Rome.

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    17

    popular de seu contedo revolucionrio, tentando ganhar tempo17

    ,

    dominando os fanticos, preservando a amizade com Agripa II e

    esperando uma ao romana para abrir novas negociaes.

    Provavelmente o desaparecimento da ordem romana tambm

    significaria uma sria ameaa a esta classe dirigente.

    Ainda centrada na classe dirigente a qual Josefo pertencia,

    Martin Goodman oferece uma interpretao interessante. Para

    Goodman a elite dirigente mantinha profundas oposies em relao

    aos grupos rebeldes (GOODMAN, 1994: 26), na maioria compostos

    por judeus camponeses (GOODMAN, 1994: 84), distantes do

    cotidiano dos ofcios do Templo e da cidade18

    . Josefo no esconde as

    diferenas entre o judeu que ele e os galileus e idumeus, ressaltando

    as especificidades destes grupos em suas relaes com o Judasmo19

    .

    Entretanto, Goodman afirma que esta elite sacerdotal do Templo no

    se ops ao conflito aberto contra Roma porque tambm o desejava.

    Para ele, a revolta foi, assim, desde o incio conduzida pela classe dirigente, numa tentativa desesperada de manter sua importncia na

    sociedade judaica depois que o apoio romano, em que haviam

    anteriormente confiado, foi retirado (GOODMAN, 1994: 173). De fato, como nos mostra Richard A. Horsley, a centralidade do Templo

    e de suas estruturas de poder nunca foram totalmente aceitos por todos

    os judeus20

    , e os romanos, na tentativa de assentar sua influncia na

    17He tried to control the rebellious forces, to subdue the religious fanatics, to retain the relationship to King Agripa II and thus to the Romans, to

    maintain control of the entire province and, by and large, to wait and see,

    hoping that a possibility of negotiation might turn up (BILDE, 1988: 179). 18

    Sobre a relao entre banditismo social e meio rural na Palestina romana

    do sculo I: HORSLEY; HANSON, 1995: 57-88. 19

    Richard Horsley(2000: 19) observa que, embora em algumas passagens Josefo se refira aos hoiioudaioi de modo um tanto indefinido, em geral ele

    bastante preciso com relao aos galileus ou aos idumeus em situaes em

    que seus intrpretes substituem por judeus. 20O Templo, porm, foi sempre uma instituio contestada e negociada, quer no tempo de Salomo (construdo com o emprego de trabalho forado

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    18

    aristocracia nativa, aceleraram seu descrdito frente ao frgil corpo

    social da Palestina judaica. Com o fracasso do modelo de dinastia

    helenstica aps a morte de Herodes, os romanos incorporaram a

    regio ao plano administrativo direto da provncia da Sria21

    , assistida

    por um procurador ou prefeito22

    , buscando ajuda no cargo de Sumo

    contra o qual quase todas as tribos finalmente se revoltaram; 1Rs 5:12), na

    poca de sua reconstruo nas ltimas dcadas do sculo VI e sob o

    patrocnio do Imprio Persa (Ageu, Malaquias, Isaas 56-66, Esdras,

    Neemias), na crise do fim do sculo III / incio do sculo II a.C. (1 Henoc 92-

    104; Reforma Helenizadora, Rebelio Macabaica, comunidade de Qumr /

    Manuscritos do Mar Morto), na reconstruo imponente do Templo em estilo

    romano-helenstico empreendida por Herodes ou na grande revolta de 66-

    70. Instituies como a do Templo de Jerusalm eram resultados

    contestados, negociados, de compromisso continuado, assumido por um

    povo imperialmente dominado (HORSLEY, 2000: 17-18). 21Siria, engrandecida con Cilicia Llana, slo ocupa de hecho el Norte y Centro de la gran Siria (en sentido antiguo), puesto que en el sur estn los

    reinos de Judea (Palestina) y Nabatea (Transjordania). Ella misma est

    conformada por una constelacin de microestados que ocupan su territorio.

    El gobernador, que reside en Antioquia, gobierna de hecho sobre la Siria de

    las ciudades. Como provincia fronteriza limita con el territorio de los partos,

    lo que explica la presencia de tres o cuatro legiones en su territorio. Augusto

    conserva el mando de la provincia para s mismo y nombra a un legado de

    rango consular. Siria permanece ininterrumpidamente como uno de los ms

    importantes gobiernos provinciales (SARTRE, 1994: 21). 22

    Sobre a dvida se a Judia romana aps o ano 6 era administrada por um

    procurador ou prefeito: SARTRE, M., 1994: 388. Siguiendo a Flavio Josefo y los escritos intertestamentarios, se crey durante mucho tiempo que Judea

    form una provincia autnoma confina a un procurador desde ese momento.

    Una inscripcin encontrada en Cesarea en 1969 prueba que Poncio Pilato

    llevaba el ttulo de praefectus. En realidad Judea estuvo, pues, anexionada a

    Siria cosa probada suficientemente por las mltiples intervenciones de los gobernadores de Siria en Judea hasta la revuelta del 66 y por lo que Josefo

    declara explcitamente, pero un prefecto al mando de las tropas

    representaba al gobernador; el mismo hombre estaba tambin, sin duda,

    encargado de las finanzas de la regin, al menos de la gestin de los

    dominios imperiales, y actuaba entonces como procurador (SARTRE,

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    19

    Sacerdote23

    . Este antigo cargo, em acentuado desprestgio desde 37

    a.e.c., abalado pela ao centralizadora de Herodes, s seduzia ainda

    membros da prpria classe sacerdotal. O Evangelho de Joo registrou

    este desgaste do sumo sacerdcio frente ao povo judeu em duas

    oportunidades24

    , sugerindo que o ofcio no cargo era anual. No era,

    como demonstra Goodman (1994: 118), mas as rpidas mudanas,

    devido aos jogos de poder entre Herodes e, posteriormente, romanos e

    famlias sacerdotais, mimaram definitivamente a importncia do cargo

    aos olhos dos judeus simples (GOODMAN, 1994: 118).

    Concordamos com Goodman em sua anlisedo quadro de

    alienao poltica da elite dirigente judaica, falida e sem capital moral

    para comandar a Judia25

    , mas no temos muita certeza quanto a sua

    participao decisiva na ecloso e conduo da revolta. Mesmo

    quando Goodman argumenta que a razo da excessiva punio

    1994: 388);Cette inscription dcouverte Csare [] porte le nom de Ponce Pilate et indique son tigre officiel, prfet de Jude. Aprs le bref

    intermde du rgne dAgrippa, les gouverneurs de Jude prennent le titre de procurateur (HADAS-LEBEL, 1997 : 94). 23

    Concordamos com a precisa observao de Martin Goodman (1994: 116):

    A Judia havia sido governada durante quase um sculo e meio por monarcas de molde helenstico. Quando as instituies da monarquia

    desapareceram naturalmente com a destituio de Arquelau, os romanos

    procuraram instituies nativas alternativas para substitu-las. Foram

    atrados a promover o sumo sacerdcio liderana da nao apenas por

    aquela posio ser no s antiga como tambm venerada pelos judeus. 24Mas um deles, chamado Caifs, que era o pontfice daquele ano, disse-lhe: Vos no sabeis nada (Jo 11:49). Primeiramente levaram-no casa de Ans, por ser sogro de Caifs, que era o pontfice daquele ano (Jo 18:13). 25Eles (o povo judeu) no confiavam nas representaes dos seus pretensos lderes. Se toda a classe dirigente de fato conseguiu, com Josefo, iludir-se de

    que seus membros eram a elite judaica natural, foram eles ento a nica

    poro da sociedade a ter essa iluso. Outros judeus no sentiam tal

    confiana no direito da classe dirigente de governar (GOODMAN, 1994: 57).

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    20

    romana estaria ligada a elevada participaoda elite de Jerusalm na

    revolta (GOODMAN, 1994: 238-239), acreditamos que a causa disto

    estaria no fato de que uma nova dinastia de imperadores, os Flavianos,

    necessitava de uma gloriosa conquista, com um triunfo grandioso,

    para consolidar e legitimar seu poder. Preferimos a anlise de

    TessaRajak que relacionou o desgaste e racha entre dirigentes judeus e

    romanos como um fruto das vacilaes e inabilidades de sucessivos

    governantes latinos na administrao da regio, como tambm sendo

    gerada pelas disputas polticas locais e pela incapacidade da elite

    hierosolimitana em lidar com os complexos problemas que a Judia da

    segunda metade do sculo I se encontrava26

    . H uma clara falta de

    identificao entre as classes sociais (RAJAK, 1983: 85) e um surto

    de banditismo rural que nos revela a desintegrao que a tradicional

    sociedade camponesa da Palestina sofreu27

    . Rajak (1983: 123-124) e

    Goodman (1994: 61-64) apontam perodos de secas e de aguda crise

    econmica na dcada de 60 e.c. Fica evidente a inabilidade da classe

    dirigente em administrar a regio, com suas instituies

    constantemente vistas como injustas e intolerveis (HORSLEY;

    HANSON, 1995: 58), sem indcios de um sincero engajamento em um

    levante popular contra o domnio romano. Como os romanos

    tradicionalmente viam as elites como as portadoras de riqueza

    26

    Para Rajak (1983: 78): a rift between Jews and Romans had been opened by bad governors and was widened by various criminal or reckless types

    among the Jews themselves, for their own ends, or out of their own madness

    []. The inactivity of the established leadership made this possible. 27

    Segundo Horsley e Hanson (1995: 57-58):o banditismo social surge em sociedades agrrias tradicionais, em que os camponeses so explorados por

    governos e proprietrios de terras, particularmente em situaes nas quais

    os camponeses so economicamente vulnerveis e os governos

    administrativamente ineficientes. Esse banditismo pode aumentar em pocas

    de crise econmica, incitado pela fome ou elevada tributao, por exemplo,

    bem como em perodos de desintegrao social, talvez resultante da

    imposio de um novo sistema poltico ou econmico-social [...]. O contexto

    econmico-social do antigo banditismo judeu apresentava exatamente essas

    condies.

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    21

    fundiria (GOODMAN, 1994: 131), e tampouco tinham sensibilidade

    para entender estruturas sociais distintas da sua28

    , esta insistncia

    romana em apoiar a elite judaica, seja pela descendncia sacerdotal

    desgastada, ou pela riqueza agrria, s fez piorar a situao. Os

    publicanos29

    , preferidos pelos romanos como mandatrios locais, eram

    sumariamente desprezados pelos judeus30

    . Mesmo o evergetismo,

    trao fundamental da poltica romana31

    , parece que nunca seduziu por

    completo os judeus da Palestina: Herodes atraia muito mais a

    admirao grega por suas obras do que a judaica32

    . Em resumo, esta

    elite nacional judaica, que Josefo representava ativamente, padecia de

    uma iluso se sentindo como inquestionvel. Roma tambm,

    assentando seu poder nestes clientes judeus33

    , ignorava

    completamente a situao complexa da Judia do sculo I. Yosef

    28O governo romano era culposamente ignorante a respeito das estruturas sociais dos povos submetidos no imprio. Essa ignorncia era profunda e

    entranhada em todo o arcabouo mental romano atravs do qual eles

    compreendiam outras naes (GOODMAN, 1994: 247). 29Em outras provncias do Imprio Romano os homens ricos que arrecadavam os impostos estatais estavam entre os membros mais

    respeitados da sociedade. Chegando ateno de governadores romanos

    atravs de tais servios, eram eles justamente a espcie de homens que se

    tornavam procuradores do imperador e cujos descendentes eventuais

    ascendiam classe dirigente romana (GOODMAN, 1994: 137). 30

    O assombro, registrado no Evangelho de Lucas, que os fariseus

    manifestaram ao saber que Jesus tinha se reunido em refeio com

    publicanos, confirma esta viso negativa que os judeus palestinos tinham dos

    coletores de impostos; Lucas 5:27-32. 31

    Sobre a relao entre o papel sacerdotal do imperador e oevergetismo em

    Roma: GORDON, 2004: 134-140. 32

    Josefo registra no Bellum Judaicum muitas passagens que refletem a

    gratido grega ao evergetismo praticado por Herodes, em contraposio ao

    silncio judeu sobre a maioria destas obras. Um longo relato das aes

    promovidas por Herodes com intuito de alegrar os gregos, incluindo o

    patrocino de um jogo olmpico, segue em Bellum Judaicum, I: 401-418. 33

    Sobre a relao do Estado imperial romano com lideranas clientes do

    oriente: SARTRE, 1994: 60-66.

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    22

    benMattitiahoue a classe sacerdotal a que pertencia eram marginais na

    sociedade que deveriam dirigir.

    No entanto, apesar desta profunda alienao poltica, em 66

    e.c. estava o partido moderado de Josefo coordenando a resistncia e administrando a Palestina judaica rebelada. Apesar da desconfiana

    de grupos populares como os sicrios e os zelotes, algum prestgio

    eles ainda deveriam ter. Antes mesmo da revolta, em 64 e.c., o jovem

    fariseu Yosef benMattitiahou integrou uma comisso que viajou at

    Roma (Vita, 13-16) a fim de negociar junto a Popeia Sabina a

    libertao de alguns sacerdotes detidos34

    . Conforme observaram

    David Rhoads35

    e MireilleHadas-Lebel (1991: 73) a viagem o deve ter

    impressionado muito, estando na grande cidade e no centro do poder

    do grande imprio,e talvez esta experincia tenha aprofundado suas

    dvidas sobre as reais chances de sucesso de um levante. A comisso

    foi bem sucedida e Josefo deve ter colhido algumas glrias entre os

    dirigentes de Jerusalm e os judeus de Roma36

    . Hadas-Lebel(1991:

    60) deduz que j neste ano Josefo deveria conhecer a lngua grega, ao

    menos o suficiente para participar da embaixada judaica, observao

    reforada por Momigliano (1992: 186) quando aponta a dupla

    formao de Josefo, versado no judasmo farisaico e na retrica

    34Em 64, com 26 anos completos, Josefo foi encarregado de uma misso em Roma. Tratava-se, observa ele, de conseguir a libertao de alguns

    sacerdotes amigos seus, homens distintos. Segundo o relato bastante sucinto contido na Autobiografia, o procurador da Judia, Flix (52-60),

    no se sabe por que razo, tinha mandado prend-los e lev-los a Roma para que se explicassem diante do imperador Nero. Josefo gaba-se de ter

    tido xito nessa misso intervindo junto imperatriz Popia (HADAS-LEBEL, 1991: 58). 35Josephus was especially impressed by the might of Rome. When he returned in 66 C. E. to a Jerusalem on the brink of revolt, he tried to

    dissuade those bent on revolution by reminding them of the power of Rome (RHOADS, 1976: 06). 36

    Sobre a relao de Josefo com os judeus de Roma: HADAS-LEBEL, 1991:

    67-72; GOODMAN, 1994 A.

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    23

    grega37

    , se enquadrado numa constituio helenstica geral das elites

    de Jerusalm que poderia provocar censura de alguns dos lderes

    populares do levante. Seu retorno ao lar dos judeus ocorreu

    praticamente ao mesmo tempo em que o rompimento com Roma se

    dava, e mais uma vez Josefo esteve presente no centro das decises

    judaicas38

    : foi confiado a ele o comando e organizao da Galileia

    (alta e inferior) e de Gamala, em Golan. Novamente podemos supor

    que seu prestgio entre os dirigentes hierosolimitanos era alto, pois a

    Galileia no era uma regio pacfica.Fazendo fronteira com os partos e

    com o reinado de Agripa, ao norte de Jerusalm e sul da provncia da

    Sria, a regio era a provvel porta de entrada dos romanos na

    Palestina judaica independente, situao que se confirmou. No

    obstante, a situao interna parecia catica, j que a ordem poltica

    herodiana e romana desintegrou-se primeiro l, mergulhando a regio

    num surto de banditismo. Historicamente a Galileia sempre foi uma

    regio complexa e particular, prensada entre imprios e

    continuadamente invadida. Horsley (2000: 23) observa que:

    Tanto as tradies hebraicas com a literatura judaica

    recente apresentam o povo da Galileia como ardentemente

    independente. Esse povo precisava ser assim, pois um

    soberano estrangeiro aps o outro assumia o controle da

    regio e determinava sua vida e sua geografia [...]. Os

    galileus devem ter sido resistentes e persistentes para

    37

    Josefo afirma que estudou lngua grega antes de 64 em Antiquitates

    Judaicae, 20, 263. Procurei tambm, atravs de muito esforo, ter acesso aos textos e disciplinas elaboradas em grego, depois de ter recebido lies

    de gramtica, ainda que, na verdade, eu no consegui a pronncia correta,

    j que a maneira peculiar dos judeus ver as coisas me impediu. 38Ao voltar de sua misso, Josefo certamente no partidrio de um confronto com Roma. No acaba ele de beneficiar-se de apoios na corte

    imperial, de avaliar o nmero de seus correligionrios na capital do mundo?

    E, no entanto, alguns meses mais tarde, ele se encontra no s envolvido na

    guerra contra Roma, mas tambm investido de uma responsabilidade muito

    grande: o comando de toda a Galilia e da regio do Golan (HADAS-LEBEL, 1991: 77).

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    24

    manter seu esprito independente ao longo de uma srie

    aparentemente interminvel de dominadores estrangeiros,

    desde as primeiras cidadescananias at o imprio romano.

    Mesmo as relaes com Jerusalm e o Templo nunca foram

    absolutamente tranquilas (CHEVITARESE; CORNELLI, 2003: 28),

    registrando os textos bblicos a Galileia como uma regio conquistada

    e dominada pela realeza de Davi e Salomo (HORSLEY, 2000: 26-

    28). O cisma das 12 tribos, provocado aps a morte de Salomo,

    refora a ideia de que as tribos do norte, dentre elas a regio da

    Galileia, no aceitavam passivamente um comando partindo de

    Jerusalm.

    Assim, no incio da revolta judaica estava Josefo coordenando

    os esforos e representando os interesses hierosolimitanos na Galileia.

    S dispomos de informaes que ele mesmo nos deu sobre este

    perodo, que no so poucas, mas desencontradas e com lacunas

    (HADAS-LEBEL, 1991: 251). Seu constrangimento em narrar suas

    aes contra a campanha de Vespasiano evidente, e talvez por isto

    ele no nos fornea informaes sobre sua formao militar antes de

    66. Sendo Josefo escolhido comandante de uma regio importante,

    complexa e que seria a primeira a sofrer com a empreitada romana,

    deveria conhecer um pouco de disciplina e ttica blicas? No

    sabemos. Josefo diz que procurou fortificar cidades, unificar as

    guerrilhas locais e organizar um exrcito seguindo o modelo romano.

    Informou que provocou imediatas desconfianas entre os lderes

    galileus populares quanto as suas intenes frente aos romanos e

    Agripa II. Para Richard Laqueureste um indcio que ele abusou de

    sua autoridade39

    , despertando rancores locais, e Cornelli observa que

    sua autoridade na Galileia era to fraca que ele tinha que se valer de

    39Josephus abused his mission by assuming the role of tyrant of the northern province. Laqueur builds this part of his reconstruction on Vita, partly the

    hypothetical statement of affairs from 67, and partly the final version which is supposed to be determined by Josephus polemics against Justus of Tiberias (BILDE, 1988: 174).

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    25

    sua guarda pessoal e de mercenrios para se sustentar, mas no do

    povo (CHEVITARESE; CORNELLI, 2003: 42). O certo que em sua

    misso galileia ele sustentou duas guerras: uma externa, contra

    Vespasiano e romanos, e outra interna, contra grupos independentes

    de judeus rebelados (IGLESIAS, 1994: 19). E de certa forma foi

    engolido pelas duas.

    Neste ponto, a posio poltica de Josefo se coloca na

    pergunta: ele foi um traidor40

    ? Aos olhos dos rebeldes, sua capitulao

    em Jotapata foi uma grande traio nacional, mas ser que esta era a

    viso de sua classe social? As discusses e dvidas acerca de sua

    traio so contemporneas aos seus escritos. Justo de Tiberades, um

    antigo opositor galileu, contestou o papel de Josefo na guerra em uma

    obra que infelizmente no sobreviveu(Vita, 336-367). Imediatamente

    Josefo se justificou, publicando uma autobiografia, Vita, no final do

    sculo I e.c., na qual estruturou uma defesa poltica pessoal temperada

    com algumas informaes pessoais41

    . MireilleHadas-Lebel observa

    que a necessidade de Josefo em se autojustificar era to grande que

    nove dcimos de Vita so dedicados ao perodo do comando na

    Galileia (HADAS-LEBEL, 1991: 77). Todavia, como observa Per

    Bilde (1988: 181), a traio de Josefo, negada com constrangimento,

    pode ser relativizada se interpretarmos seu comportamento o

    comparando com outros judeus de situao social parecida, como

    Herodes, Agripa II, Filo de Alexandria, os saduceus e os judeus de

    Roma42

    . Tampouco devemos desconsiderar que Josefo atemorizado

    pelas desgraas da guerra lutou instintivamente por sobreviver,

    40

    Sobre o tema da traio e Flvio Josefo: VIDAL-NAQUET, 1980. 41

    Uma interessante leitura do Vita, observando as contradies com seus

    escritos anteriores e violncia que o texto orienta sua polmica foi feita por

    Denis Lamour, 1999. 42On a very crude level, of course, Jews in Rome must have seen Josephus as a highly desirable patron. He wasanimportantperson in Roman society. (GOODMAN, 1994 A: 332).

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    26

    observao apontada por Elias Canetti43

    . Os romanos, antigos

    parceiros da aristocracia de Jerusalm, lhe prometeram a vida,

    enquanto a causa da independncia judaica lhe colocou o dilema da

    sobrevivncia e do suicdio. Foi neste Josefo sobrevivente Flavius Josephus que os judeus da dispora poderiam buscar algum modelo ou orientao frente ao desespero da destruio do Templo e da

    desconfiana sofrida pelo Judasmo dentro do Imprio. Ele no

    renegou sua f judaica para se tornar cidado romano (Vita, 422-423),

    e trabalhou na redao de uma obra que se dedicou em mostrar que o

    Judasmo poderia ser compatvel com a sociedade romana e ordem

    imperial44

    . Aristocrata, fariseu, sacerdote com prestgio dentro da

    classe dirigente de Jerusalm, a posio poltica de Josefo transitou

    entre romanos e judeus, primeiramente tentando preservar a posio

    de destaque de sua classe social na Judia e, depois da catstrofe de

    70, negociando a sobrevivncia de sua religio em um ambiente hostil

    ao povo de YHWH. Este homem intermedirio (VIDAL-NAQUET,

    1980: 32) permaneceu cindido at o fim, tentando sepultar as suspeitas

    que o cercavam e seus fantasmas passados escrevendo histrias do

    Judasmo, com se tivesse a necessidade de se convencer de sua

    grandeza. Ator de paixes polticas e religiosas, testemunha parcial de

    43

    Segundo Canetti (1983: 251), o momento de sobreviver o momento de poder. O espanto diante da viso da morte se dissolve em satisfao, pois

    no se o morto. O morto jaz estendido e o sobrevivente est de p. como

    se um combate tivesse antecedido aquele momento, e ns mesmos tivssemos

    derrubado o morto. Na sobrevivncia, cada qual inimigo do outro,

    comparado com este triunfo elementar, qualquer outra dor no tem muita

    importncia. Mas importante que o sobrevivente esteja sozinho diante de

    um ou de vrios mortos. Ele se V s, se sente s, e, quando se fala do poder

    que este momento lhe confere, jamais se deve esquecer que ele deriva da sua

    unicidade e somente dela. 44Josephus could have identified himself with Roman society. Much of is writing was aimed at convincing both Jews and Romans that the practice of

    Judaism was not incompatible with living in a roman society, and it would

    have been entirely logical for him to present himself as a Roman of the Jewish faith (GOODMAN, 1994 A: 334).

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    27

    deprimidos acontecimentos e fundador de uma historiografia

    judaica45

    , sua traio ajudou a nos legar uma obra forte e

    impressionante, sem paralelos para o historiador moderno dedicado ao

    perodo. Sua triste sorte revelou-se nosso prodgio. Estranhos

    caminhos da Histria.

    Documentao Textual

    JOSEPHUS. The Life.Against Apion. Translated by H. St. J.

    Thackeray. Cambridge: Harvard University Press (Loeb Classical

    Library), 2004.

    JOSEPHUS. Jewish Antiquities. Translated by H. St. Thackeray,

    Ralph Marcus, Louis H. Feldman and Allen Wikgren. Cambridge:

    Harvard University Press (Loeb Classical Library), 1957.

    JOSEPHUS. The Jewish War. Translated by H. St. Thackeray.

    Cambridge: Harvard University Press (Loeb Classical Library), 1989.

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    Others. In: HARRIS, William V.; RUFFINI, Giovanni (eds.).

    Ancient Alexandria between Egypt and Greece. Leiden/Boston:

    Brill, 2004.

    45

    Denis Lamour (2006: 145) observa que Josefo foi o primeiro judeu que procurou levar em considerao, por um lado, o encadeamento lgico das

    causas materiais e, por outro, o desgnio impenetrvel de Deus de Israel,

    tendo evitado, ao mesmo tempo, a perdio.

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    28

    BRUNT, P. A. LausImperii. In: HORSLEY, Richard A. Paulo e o

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    O Cuidado para com os Pobres no Cristianismo Primitivo Reflexes a partir de Joo Crisstomo

    Carlos Caldas46

    Uma das principais caractersticas das produes teolgicas

    surgidas na Amrica Latina desde a segunda metade do sculo XX tanto a Teologia da Libertao (TdL) como a Teologia da Misso

    Integral (TMI) nfase e a ateno dadas ao fato que as igrejas crists

    devem dar aos pobres, explorados e oprimidos em sua atuao no

    mundo47

    . Evidentemente h uma diferena imensa e uma distncia

    quase abissal entre as duas correntes teolgicas latino-americanas no

    que diz respeito ao lugar e ao papel do pobre para a reflexo teolgica

    e ao pastoral ou ao em misso da igreja no mundo. Enquanto a

    TMI enfatizou a importncia do envolvimento social como parte

    integrante e absolutamente essencial para o cumprimento da misso da

    igreja no mundo, a TdL enfatizou o pobre como chave hermenutica

    da leitura bblica e como sujeito da reflexo teolgica. Alguns crticos

    podem pensar que a TMI tmida demais, especialmente se

    comparada TdL. No obstante, impossvel negar que a TMI

    representou avano, se comparada ao pensamento dos que advogam

    uma compreenso da misso da igreja em termos puramente

    espirituais (entre muitas aspas...), metafsicos e extramundanos. So os que no meio evanglico latino-americano e brasileiro entendem a

    misso da igreja apenas, nica e exclusivamente em termos de

    46

    Carlos Caldas, Doutor em Cincias da Religio pela Universidade

    Metodista de So Paulo, professor da Escola Superior de Teologia e do

    Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio da Universidade

    Presbiteriana Mackenzie, So Paulo. [email protected] 47

    As igrejas que seguem orientao teolgica libertacionista chamaro esta

    atuao de ao pastoral ou simplesmente pastoral, e as que se afinam com a linha teolgica da misso integral a chamaro de misso. Para mais detalhes consultar Longuini Neto (2002: passim).

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    32

    evangelizao, com vistas salvao da alma. Nesta viso, sem dvida estreita, tudo que no tem a ver diretamente com

    evangelizao tido como perda intil de tempo, energia e dinheiro.

    O fim ltimo da misso o crescimento numrico da igreja. Esta

    perspectiva terica, que gera uma prtica concreta de misso, foi

    desafiada pela TMI. A grande referncia da TMI est no documento

    conhecido como Pacto de Lausanne, produzido no Congresso

    Internacional para Evangelizao Mundial (conhecido mais

    simplesmente como Congresso de Lausanne), realizado em 1974. O

    Pacto de Lausanne (PL) gerou uma srie de encontros menores que

    por sua vez tambm geraram documentos, que se tornaram conhecidos

    no meio evangelical no Brasil como Srie Lausanne48. Dentre estes volumes merecem destaque especial Viva a simplicidade!

    Compromisso evanglico com um estilo de vida simples (1985) e

    Evangelizao e responsabilidade social (1984). Lausanne revigorou

    e oxigenou a reflexo teolgica e a prtica missionria das igrejas

    simpatizantes e aderentes da TMI. Nunca demais destacar que a

    atuao dos telogos evangelicais latino-americanos Ren Padilla (do

    Equador), Samuel Escobar (do Peru) e Orlando Costas (de Porto Rico)

    tanto no Congresso de Lausanne como na redao do PL foi

    determinante para que a teologia evanglica conservadora

    compreendesse que a misso da igreja no se resume a um discurso

    terico e mera aceitao de contedos racionais. A TMI advoga que,

    sem embargo do anncio do evangelho, to caro s igrejas de tradio

    evanglica, deve haver tambm um envolvimento com questes de

    natureza social, econmica e poltica49

    . Nos ltimos anos a TMI

    desenvolveu articulaes interessantes em sua prxis50

    , tais como a

    48

    Os dez volumes da Srie Lausanne foram publicados no Brasil pela ABU

    Editora e Viso Mundial de 1982 a 1985. 49

    Para detalhes quanto TMI e sua atuao no contexto hispano-americano,

    consultar: www.kairos.org.ar 50

    A palavra prxis utilizada no na acepo do senso comum, que a

    entende como mero sinnimo de "prtica", mas em seu sentido de reflexo

    sobre a prtica. O conceito de "prxis" bastante antigo, pois tem razes

    remotas no pensamento de Aristteles. Todavia, se tornou termo tcnico

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    33

    Rede Miquias (Mica Network) 51

    e a RENAS Rede Evanglica Nacional de Ao Social

    52. So movimentos que priorizam de diversas

    maneiras a responsabilidade e o cuidado que a igreja em misso no

    mundo deve ter para com o pobre, o oprimido e o necessitado. Neste

    sentido, a TMI resgatou o aspecto original do evangelicalismo

    britnico dos sculos XVIII e XIX, o qual j tinha em sua gnese a

    compreenso e a prtica do envolvimento em questes de natureza

    social, poltica e econmica53

    . O evangelicalismo movimento

    teolgico multifacetado por demais. H pontos em comum entre suas

    diversas ramificaes, como o aspecto fortemente estaurocntrico do

    movimento, com uma viso substitucionria anselmiana da morte de

    Jesus na cruz, alm das bandeiras Solas da Reforma Protestante do sculo XVI (Sola Fide, Sola Gratia, Sola Scriptura e Solo Christo,

    ou Solus Christus respectivamente, S a f, S a Graa, S as Escrituras e S Cristo). Mas vertente latino-americana do evangelicalismo conhecida como Evangelicalismo radical, pela compreenso que tem da necessidade de radicalidade na insero em

    problemas de natureza social, poltica e econmica, levando em conta

    central no materialismo histrico de Karl Marx, que, a partir de sua

    interlocuo com o pensamento de Ludwig Feuerbach, a entende como

    atividade humana a um s tempo prtica e crtica. Prxis sem dvida

    conceito multifacetado. Antonio Gramsci deu-lhe novos contornos, e o

    mesmo fizeram Georg Lukcs e Jurgen Habermas. A teologia prtica na

    Amrica Latina se apropriou do termo, utilizando-o farta, no sentido acima

    citado, de reflexo crtica sobre a ao pastoral da igreja em misso. 51

    Para detalhes quanto aos propsitos e atuao da Rede Miquias, consultar

    o web site do movimento: http://redemiqueias.org/ 52

    Para detalhes quanto aos propsitos e atuao da RENAS, consultar o web

    site do movimento: http://www.renas.org.br/ 53

    Exemplo clssico William Wilberforce (1759-1833), poltico ingls, lder

    do movimento anti-escravagista no Imprio Britnico. Sua ao poltica foi

    motivada por sua convico teolgica evangelical. Para detalhes quanto sua

    teologia, consultar Wilbeforce, William. Cristianismo verdadeiro. Braslia:

    Editora Palavra, 2008.

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    34

    especialmente (mas no apenas) as doutrinas da criao e da

    encarnao54

    .

    J a TdL foi sem dvida mais avanada que a TMI no que diz respeito ao envolvimento da igreja em misso no mundo com

    questes sociais. Gustavo Gutierrez por exemplo (1981), padre

    catlico peruano, fala a respeito da fora dos pobres na histria. A hermenutica bblica latino-americana de inspirao libertacionista

    usou a figura do pobre como chave de leitura dos textos bblicos.

    Exemplo de tal utilizao a Bblia Sagrada Edio Pastoral publicada no Brasil por Paulus desde 1991. Trata-se de uma edio da

    Bblia com um portugus simplificado, apropriado para pessoas com

    pouca leitura (ao estilo da Nova Traduo na Linguagem de Hoje da

    Sociedade Bblica do Brasil), com comentrios em notas de rodap,

    em perspectiva de uma hermenutica libertacionista clssica55

    . A TdL

    latino-americana de inspirao catlica recebeu impulso quando a

    Conferncia do Episcopado Latino-Americano em Medelln,

    Colmbia (1968) assume a opo preferencial pelos pobres. Anos mais tarde o Vaticano envidou esforos para esvaziar a ao engajada

    das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), punir eclesisticos afinados com a TdL, fechar instituies de ensino comprometidas com

    a proposta pedaggica da teologia libertacionista. Caso clssico neste

    sentido foi o acontecido com o ITER Instituto Teolgico do Recife criado pelo legendrio Dom Helder Cmara em 1968 e fechado por

    54

    Para detalhes quanto ao evangelicalismo radical latino-americano

    consultar, inter alia: CALDAS, Carlos. Orlando Costas: Sua contribuio

    na histria da teologia latino-americana. So Paulo: Vida, 2007, pp. 74-83. 55

    Desnecessrio dizer que um empreendimento desta natureza, ainda que

    chamado de pastoral, no deixa de ser acadmico (se bem que o pastoral e o acadmico no esto em oposio antes, devem se completar. Os Pais da Igreja que o digam!). Toda e qualquer chave de leitura para as Escrituras se

    transformar, mais cedo ou mais tarde, em um leito de Procusto, pois, por incrvel que parea, sempre ser algo externo ao texto bblico, e na prtica

    pode produzir uma contradio, isto , uma eisegese e nem tanto uma

    exegese.

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    35

    determinao expressas do Vaticano em 1989, onde lecionaram

    expoentes da TdL, como Joseph (Jos) Comblin, conhecido

    missionrio e telogo belga radicado no Brasil. O ITER foi uma das

    principais casas de educao teolgica e formao clerical catlica no

    Brasil, na qual o ensino da TdL estava ligado ao trabalho das CEBs e da insero em movimentos sociais e populares.

    Esta breve introduo apresenta duas perspectivas teolgicas

    latino-americanas bastante diferentes em termos de mtodo teolgico

    e pressupostos tericos, mas com um ponto em comum, a saber, a

    compreenso que, biblicamente, a igreja tem responsabilidade para

    com o pobre. O que se pretende apresentar neste captulo que, na

    verdade, a preocupao e o cuidado para com os pobres no uma

    inovao produzida no cristianismo latino-americano a partir da

    segunda metade do sculo XX. Antes, era prtica do cristianismo

    primitivo. Como exemplo, mostrar-se- a atuao de So Joo

    Crisstomo (349-407), um dos Pais da Igreja Oriental. Pretende-se

    apresentar o antecedente histrico, seguido de uma tentativa de

    dilogo entre o pensamento teolgico e pastoral de Joo Crisstomo e

    a teologia latino-americana contempornea.

    Joo Crisstomo Esboo biogrfico56

    nasceu em Antioquia, sia Menor (atual Antakya, sul da Turquia) no ano 349. poca do seu

    nascimento, Antioquia era a terceira cidade do Imprio Romano. Joo

    passou histria com o apelido Crisstomo literalmente, boca de ouro, por conta de seus dotes de oratria e retrica, que lhe deram fama e o tornaram conhecido como o maior orador da igreja grega. A

    alcunha lhe foi dada no sculo sexto. Filho de famlia culta e abastada,

    Joo perdeu seu pai muito cedo. O pai de Joo, por nome Segundo,

    srio de nascimento, era oficial do exrcito romano, tinha o ttulo de

    56

    Informaes extradas de Hall, Kelly, Altaner & Stuiber, Hamman e

    Meulenberg.

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    36

    Magister Milium Orientis. Sua me, Antusa, era crist piedosa, e

    contava com apenas 20 anos quando perdeu Segundo. Joo

    praticamente no conheceu o pai. Antusa no entanto esforou-se para

    providenciar para o filho educao da melhor qualidade. O primeiro

    mestre de Joo em Filosofia e Retrica foi o filsofo sofista pago

    Libnio ()57. batizado aos 18 anos, e no h relatos que tenha passado por alguma experincia de converso em moldes

    dramticos como aconteceria, grosso modo, sculo e meio mais tarde

    com o no menos famoso Agostinho de Hipona (que, a propsito, foi

    mais tarde influenciado por Joo Crisstomo em sua abordagem ao

    texto bblico). Joo se fez discpulo de Deodoro de Tarso,

    representante da conhecida Escola de Antioquia de exegese bblica, caracterizada pela nfase no sentido literal dos textos bblicos (em

    contraposio Escola de Alexandria, no Egito, famosa pela

    interpretao alegrica)58

    . Deodoro prope o que denominou theoria

    ou contemplao, o que inclua anlise sinttica propriamente do texto bblico, alm da importncia dada ao elemento histrico dos

    relatos bblicos (no tido como to importante pelos exegetas da

    Escola de Alexandria, que davam mais valor ao elemento espiritual dos textos bblicos). A respeito do modelo de interpretao bblica em

    Antioquia, David Dockery declarou:

    De maneira geral, verdade que os alexandrinos viam um

    significado literal e alegrico, e os antioquenos

    encontravam um sentido histrico e tipolgico. Os

    alexandrinos voltavam-se para a regra de f, a interpretao

    mstica e a autoridade como fontes do dogma. Por sua vez,

    os antioquenos voltavam-se para a razo e para o

    desenvolvimento histrico da Escritura como foco da

    teologia. Os antioquenos tinham mais conscincia do fator

    57

    Curiosamente, Baslio de Cesaria, outro dos grandes Pais da Igreja

    Oriental, tambm foi aluno de Libnio. 58

    Quanto ao modelo de interpretao bblica de Alexandria consultar, inter

    alia: HALL, Christopher. Lendo Lendo as Escrituras com os Pais da

    Igreja. Viosa: Ultimato, 2000, p. 147-165.

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    37

    humano da Escritura e buscavam ser justos com a autoria

    dual da revelao bblica59

    .

    Dado o fato que Joo se notabilizou por seu trabalho como

    pregador, importante sabe a maneira pela qual ele interpretava as

    Escrituras. Retomar-se- este tema adiante neste captulo. Alm disso,

    Joo e Teodoro de Mopsustia (c. 350-428) foram os principais nomes

    da assim chamada Escola de Alexandria. Por hora, interessante

    observar que

    Para Crisstomo, teologia e hermenutica no eram

    exerccios tericos, mas prticos e pastorais. Ele acreditava

    que a mensagem bblica gerava mudanas na vida das

    pessoas. Declarou que a mensagem divina das Escrituras

    preparava as pessoas para boas obras60

    .

    A interpretao bblica praticada por Crisstomo e por seus

    pares da tradio de Antioquia portanto leva em conta aspectos

    humanos propriamente do texto bblico, tais como figuras de

    linguagem, de estilo e de pensamento, mas ao mesmo tempo o texto

    visto como revelao de Deus, e, via de consequncia, autoritativo.

    um modelo de leitura bblica que faz lembrar o assim chamado

    mtodo histrico-gramatical, desenvolvido sculos mais tarde, e ainda

    hoje muito em voga na maioria das escolas teolgicas evanglicas de

    corte conservador no Brasil e na Amrica Latina. Vale ainda destacar

    que Antioquia no tem um conceito fundamentalista e fechado de

    revelao, no qual os escritores bblicos so vistos como autmatos.

    Por um tempo Joo vive entre monges em montanhas, em

    ascetismo rigoroso de jejuns e viglias, o que comprometer em

    definitivo sua sade. Robert Payne descreve de maneira vvida o

    perodo monstico de Joo:

    59

    DOCKERY, David. S. Hermenutica contempornea luz da igreja

    primitiva. So Paulo: Vida, 2005, p. 115. 60

    DOCKERY, op. Cit., p. 115.

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    38

    Ele recolheu-se em uma gruta, onde negava-se a dormir e

    lia a Bblia continuamente, e passou dois anos sem deitar-

    se, visivelmente na crena de que um cristo deve estar

    pronto para obedecer determinao: s vigilante. O resultado foi inevitvel: seu estmago contraiu-se e seus

    rins foram afetados pelo frio. Sua digesto estava sempre

    difcil. Incapaz de curar a si mesmo, ele desceu a montanha,

    foi para Antioquia e apresentou-se ao arcebispo Melcio,

    que o enviou imediatamente a um mdico61

    .

    Na sequncia, Joo foi dicono por Melcio entre 380/381.

    Como tal, trabalhou em Antioquia, sua terra natal, provavelmente

    entre os anos 386-397. No incio da ltima dcada do quarto sculo da

    era crist ordenado sacerdote. Conta ento com quase quarenta anos

    de idade.

    Uma das tarefas s quais Joo mais se dedica a pregao.

    pregador ousado e combativo: condena erros de clrigos, critica

    costumes pagos antigos, como os jogos de gladiadores, espetculos

    teatrais imorais e corridas de cavalos, a instituio da escravido

    (ainda que no com a mesma intensidade com que criticou a falta de

    misericrdia dos ricos para com os pobres), as festas em honra aos

    antigos deuses, critica o consumismo e a ostentao, defende a causa

    dos pobres e dos oprimidos. Este ltimo tema ser abordado com mais

    detalhes adiante. Suas homilias no raro so comentrios bblicos.

    Comenta Gnesis, Salmos, Isaas, o Evangelho de Mateus, o

    Evangelho de Joo, Atos dos Apstolos, a Epstola aos Romanos, a

    Epstola aos Hebreus62

    . Sua grande preocupao aplicar o texto

    bblico vida diria dos fiis. Para tanto, usa com xito ilustraes a

    61

    PAYNE, Robert. Fathers of the Eastern Church. New York: Dorset

    Press, 1989, p. 195, apud. HALL, op. cit., p. 91.. 62

    Cf. HALL (op. cit., p. 97) Joo Crisstomo escreveu 90 homilias sobre o

    Evangelho de Mateus, 55 sobre Atos, 32 sobre Romanos, 44 sobre 1 e 2

    Corntios, um comentrio sobre Glatas, 24 homilias sobre Efsios, 15 sobre

    Filipenses, 12 sobre Colossenses, 18 sobre 1 Timteo e 34 sobre Hebreus.

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    39

    um s tempo vvidas e comunicativas, extradas muitas vezes de

    atividades comuns do dia a dia.

    Dedica-se tambm obra literria. escritor prolfico. So de

    sua lavra catequeses batismais (textos preparatrios para os candidatos

    ao batismo), e tratados: Sobre o Sacerdcio, Sobre a Vida Monstica,

    Sobre a Virgindade (De virginitate), Sobre a providncia de Deus.

    Sobre o Sacerdcio (Per hierosnes traduzido para o latim como De sacerdotio) at os nossos dias um clssico no assunto. Conforme

    Hamman,

    Joo Crisstomo um orador nato. Conhece o tom

    pitoresco, a mania de sarcasmo, os jogos de palavras (que

    mais tarde lhe custaro caro), a apstrofe direta, franca,

    apaixonada63

    .

    No de se admirar que sua fama de bom pregador crescesse e

    se espalhasse. A respeito de Joo dito que multides se reuniam para

    ouvir seus sermes, claros e corajosos. No de se admirar tambm

    que por esta causa tenha granjeado admiradores e adversrios.

    Mais tarde, Joo foi indicado bispo de Constantinopla, capital

    do Imprio Romano do Oriente sem dvida um privilgio, visto ser

    aquela cidade uma das grandes ss da igreja64

    . Mas por diferentes

    questes pessoais, polticas e religiosas, Joo foi expulso de

    Constantinopla no ano 404, por ordem direta do prprio imperador

    Arcdio (Flavius Arcadius), da citada poro oriental do imprio. Isto

    porque em alguns dos seus sermes Joo criticara Eudxia, esposa de

    Arcdio. Esta tinha grande influncia sobre o marido, e conseguiu que

    ele exilasse o bispo. Na verdade, o exlio de Joo se deu por conta de

    63

    HAMMAN, A. Os Padres da Igreja. So Paulo: Paulinas, 1980, p. 195. 64

    As outras eram Jerusalm (bero do Cristianismo), Antioquia (me do

    movimento missionrio mundial), Alexandria (cidade importante no Egito) e

    Roma (a capital do imprio).

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    40

    crticas contundentes feitas em seus sermes contra a falta de

    escrpulos de polticos, a avareza e a ambio que viu na corte. Em

    seus sermes denunciou tambm colegas do clero. Os ltimos trs

    anos da vida de Joo foram passados em uma cidade pequenina

    chamada Cucusus, nas montanhas da Armnia, em condies bastante

    severas.

    Joo considerado um dos quatro Doutores da Igreja Oriental

    (os outros trs so Atansio, Gregrio de Nazianzo e Baslio o

    Grande). A tradio crist oriental consagrou-lhe o dia 13 de

    novembro. J a tradio crist ocidental no protestante consagrou-lhe

    o dia 13 de setembro, o dia anterior sua morte no ano 407. Suas

    ltimas palavras foram: Glria seja dada a Deus em tudo. Neste dia, nestas igrejas feita a seguinte orao: Vinde Esprito Santo, dai-nos a tmpera dos mrtires, dai-nos anunciar, mas tambm como

    So Joo Crisstomo fez, denunciar aquilo que injustia, que

    mentira, que prejudica principalmente os mais pobres. Vinde Esprito

    Santo, dai-nos a ousadia dos homens e mulheres de Deus 65.

    O cuidado para com os pobres nas homilias de Joo Crisstomo

    Joo ficou conhecido como homem de grande sensibilidade,

    piedade, orao e compaixo. A seguir, citar-se-o partes de sermes

    de Joo, exatamente a respeito da compaixo que os cristos devem

    ter para com os pobres e necessitados:

    medida que passava pelo mercado e pelas ruas estreitas

    [...] vi no meio das ruas muitos excludos, alguns com as

    mos feridas, outros com olhos vazados, outros cheios de

    lceras purulentas e feridas incurveis, fazendo exposio

    daquelas partes do corpo que, por conta de sua podrido

    65

    Extrado de

    http://www.cancaonova.com/portal/canais/liturgia/santo/index.php?dia=13&

    mes=9 [Acesso: 12 out 2010]

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    41

    concentrada, deveriam estar ocultas. Pensei que a pior falta

    de humanidade seria no apelar ao vosso amor para com

    eles, especialmente agora que a estao66

    nos fora a voltar

    a este assunto67

    .

    Neste mesmo sermo, bastante longo por sinal, o Crisstomo

    faz um passeio pelas Escrituras, trabalhando com vrios textos para basear sua argumentao a favor de um envolvimento concreto com

    os pobres da sociedade. Neste esforo para fortalecer sua linha de

    raciocnio, cita textos como Glatas 2:9-10, 1 Corntios 16:1-2, 2

    Tessalonicenses 2:7, Romanos 15:25, Atos 11:29, e outros mais. Ele

    recomenda aos fiis que dem abundantemente aos que precisam68. Sua argumentao no deixa de apelar para o Antigo Testamento: cita

    o profeta Osias (6:7) que fala que Deus quer misericrdia, no sacrifcios. Por isso, os cristos no podem ser negligentes na ajuda e no cuidado aos pobres (cf. Mateus 9:3), pois ao ajud-los, quem

    verdadeiramente receber ajuda quem a d, e no quem a recebe69

    .

    De outra feita, Joo criticou de maneira severa os cristos

    ricos que no se incomodavam enquanto pobres excludos passavam a

    noite no em leitos de prata, mas em catres midos de palha junto

    entrada dos banhos pblicos, congelados de rio e morrendo de fome,

    enquanto cidados bem vestidos e bem aquecidos saem dos banhos e

    vo para suas casas onde os esperam jantares bem preparados, os

    pobres morrem de fome sem ter o que comer. Critica tambm a falta

    de misericrdia para com os presos nos crceres, com feridas

    sangrentas provocadas pelos grilhes que os prendem e pelos aoites

    que recebem. Joo condena o egosmo dos ricos que se vestem com

    roupas caras enquanto pobres criados imagem e semelhana de Deus

    66

    Crisstomo se refere ao inverno rigoroso da sia Menor, durante o qual os

    pobres e desvalidos se encontravam em situao ainda pior que a enfrentada

    com o clima ameno das outras estaes. 67

    St. John Chrysostom. On Repentance and Almsgiving, p. 131. 68

    St. John Chrysostom, op cit., p. 149. 69

    St. John Chrysostom, op cit., p. 146.

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    42

    morrem de frio nas ruas. Em uma de suas homilias sobre 1 Timteo,

    Joo apela para a criao do mundo, lembrando aos seus ouvintes e

    leitores que Deus no criou um homem rico e outro pobre. Logo,

    conclui que a diferena entre o rico e o pobre s pode ter sido criada

    pela injustia humana, porque o forte explora o fraco assim como um

    peixe grande engole um peixe pequeno. A linha de argumentao de

    Joo talvez possa soar como ingnua para mentes modernas: em um

    de seus sermes ele argumenta que Deus concedeu indistintamente a

    todos os humanos bnos como o sol, o ar, a terra e a gua, sem

    qualquer tipo de discriminao. Logo, errado se alguns se apropriam

    de riquezas enquanto outros no o podem fazer. Para Joo, as palavras

    meu e seu so palavras frias (to psuchron touto rema no sentido de manifestarem indiferena e egosmo). Para Joo, o cristo

    que tem recursos deve sempre repartir com quem no tem, e jamais

    ser caracterizado pela frieza da indiferena em relao aos que esto

    em situao pior que a sua70

    . luz de tanta contundncia, no de se

    admirar que Joo tenha enfrentado tanta oposio71

    . Muito mais

    poderia ser dito. Todavia, os exemplos apresentados so suficientes

    para demonstrar como, especialmente, mas no somente a partir de

    Joo Crisstomo, era importante no cristianismo primitivo o cuidado

    para com os pobres.

    Joo Crisstomo em dilogo com a teologia latino-americana

    O ponto deste captulo mostrar como a teologia latino-americana contempornea, tanto de corte libertacionista como a de

    corte evangelical, podem aprender a partir de um dilogo com a

    teologia de Joo, expressa em suas homilias. Particularmente, a

    questo da importncia do cuidado para com os pobres e desvalidos da

    sociedade. A este respeito, Marcelo Barros no Prefcio do livro Joo

    Crisstomo. As mos calejadas, afirma:

    70

    Estes trechos de homilias de Joo so citados por Kelly, op cit., p, 97-99. 71

    Cf. Kelly, op cit., p. 136.

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    43

    O modo de ler a Bblia de nossas comunidades

    parte da realidade do amor e da solidariedade

    efetiva para com os milhes de pessoas excludas

    dos mnimos meios de sobrevivncia neste

    sistema social em que vivemos. Vamos descobrir

    a mesma sintonia na palavra engajada de Joo

    Crisstomo que se ofereceu como delegado dos pobres e procurador da justia de Deus para os pequenos deste mundo

    72.

    Por um lado, h uma distncia quase abissal entre a teologia

    expressa nas homilias do Crisstomo e as formulaes da TdL de um

    lado, e da TMI do outro. E nem haveria como ser diferente. As

    diferenas de mtodo so gritantes. A TdL em sua formulao clssica

    trabalhou a partir do referencial terico do conceito marxista de luta

    de classes. Da possvel afirmar que os objetivos da TdL so

    diferentes dos de Joo. Analisados a partir da tica da TdL, as

    homilias de Joo podem revelar uma viso apenas assistencialista e

    paternalista, o que deplorvel para um telogo libertacionista. A

    partir da talvez seja possvel afirmar que a teologia veiculada nos

    sermes de Joo se aproxime mais da viso clssica da TMI que da

    TdL. Pelo menos, em tese. Ao mesmo tempo, h que se reconhecer

    que os telogos evangelicais latino-americanos que se afinam com a

    TMI na maioria das vezes sequer se aproximam da coragem e da

    contundncia do Crisstomo, no que diz respeito a estas questes.

    Conforme afirmado acima, Joo apela para a doutrina da criao em

    sua crtica falta de misericrdia dos ricos e o pedido que faz a estes

    para que ajudem os pobres. A partir da, possvel afirmar que, ao

    menos in nuce, h nas homilias do Crisstomo os princpios para uma

    teologia da pobreza e da riqueza. Este aspecto tem sido em geral

    esquecido pela TMI. Neste sentido, os telogos latino-americanos que

    se identificam com a misso integral da igreja enriquecero sua

    perspectiva teolgica a partir de um exame srio desta fonte patrstica

    importante.

    72

    Marcelo Barros. Prefcio de: Joo Crisstomo. As mos calejadas, II.

  • Prticas Religiosas No Mediterrneo Antigo NEA/UERJ

    44

    Olhada a partir deste prisma, tanto a TMI como a TdL podem

    ser renovadas e revitalizadas a partir de uma dinmica de

    (re)descoberta da fonte patrstica que a teologia expressa nas

    homilias de Joo Crisstomo. A TMI pode aprender com a ousadia de

    Joo na denncia do mal que o acmulo de riquezas. A TdL por sua

    vez pode aprender a enriquecer e a aprofundar o aspecto pastoral

    propriamente da ao de Joo ao ser advogado e porta-voz dos pobres,

    especialmente os mais pobres dentre estes. Principalmente nestes

    ltimos anos em que a TdL latino-americana se encontra em uma crise

    de reviso de modelos e paradigmas. Uma reviso epistemolgica de

    seus paradigmas tericos e de seus objetivos certamente benfica e

    salutar. Ainda que questes como o meio-ambiente sejam

    importantes73

    , a TdL na Amrica Latina se beneficiar de uma volta s origens que lhe pode ser proporcionada pelo estudo da teologia de Joo. Alm disso, conforme j afirmado, um telogo libertacionista

    clssico decerto rejeitar a teologia expressa nos sermes do

    Crisstomo por consider-la assistencialista e paternalista. A TdL

    latino-americana em sua formulao clssica, mormente a de corte

    catlico, caracterizada por ser mais ambiciosa e talvez megalomanaca, por almejar nada menos que a transformao das estruturas da sociedade, de baixo para cima. Mas um erro comum no

    qual consciente ou inconscientemente telogos da libertao podem

    cair o de ficarem apenas na teoria, sem um engajamento com o

    discurso. No se pretende aqui de modo algum cometer a leviandade

    de julgar e generalizar, jogando todos os telogos da libertao na

    vala comum de uma incoerncia entre discurso e prtica. Mas este

    um erro que pode acontecer. As denncias e exortaes contundentes

    e corajosas do Crisstomo podem servir de corretivo a tal situao.

    73

    Neste sentido interessante observar a mudana do Leonardo Boff

    jovem autor de Jesus Cristo Libertador (1972) e de Teologia do Cativeiro e da Libertao (1980) com o Leonardo Boff velho autor de Ecologia: grito da terra, grito dos pobres (1995) e de Ecologia, mundializao e espiritualidade (2008) o sujeito da teologia deixa de ser o pobre para ser o meio-ambiente.

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    O cuidado para com os pobres era uma das marcas do

    cristianismo primitivo. Joo Crisstomo se destacou por suas homilias

    sobre este tema, mas ele de modo algum foi o nico a ter tal

    preocupao. Pais da Igreja Ocidental, como Jernimo, Ambrsio e

    Agostinho trataram desta questo. Mestres da Escola de Alexandria,

    como Clemente e Orgenes, de igual maneira o fizeram74

    . A questo

    da pobreza no mundo ainda traz desafios pastorais e missiolgicos

    srios para a igreja. Certamente est fora de questo uma viso da

    misso que se limita a um discurso terico, que visa a transmisso de

    contedos meramente espirituais qu