livro "pena que foi ontem"

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Romance "Pena que foi Ontem" de Caio Garrido

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Page 1: Livro "Pena que foi Ontem"

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Page 2: Livro "Pena que foi Ontem"

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Page 3: Livro "Pena que foi Ontem"

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Pena que foi OntemPena que foi OntemPena que foi OntemPena que foi Ontem

Page 4: Livro "Pena que foi Ontem"

3

Sumário da Individuação de Ezequiel

Vertigem........................................................................... 07

O

Portal................................................................................ 09

Infância e

Família.............................................................................. 11

Controlando as “dezenas” que caem em seus

pés..................................................................................... 17

Sua dor.............................................................................. 23

Seus sonhos....................................................................... 27

Fotografias e

Acasos............................................................................... 31

Passeios

Gratuitos........................................................................... 33

Nascimento....................................................................... 35

Mais

viagens.............................................................................. 37

Tempestividades Festivas e

Falarsofias....................................................................... 41

O Tempo Devora Tudo..................................................... 43

Silêncio............................................................................. 45

Morte................................................................................ 47

Page 5: Livro "Pena que foi Ontem"

4

As águas dos olhos dele não são

mais as mesmas............................................................... 49

Correntes do

Tempo............................................................................... 51

Insônia Soporífera e Delírios Oníricos............................ 55

Sonhos enlutados.............................................................. 57

Um dia de Natal............................................................... 59

Navegando........................................................................ 61

Dias de tormenta.............................................................. 65

Renovação........................................................................ 71

A Partida.......................................................................... 73

Novas fugas?.................................................................... 75

Instinto e Loucura............................................................ 77

Identidade extraviada...................................................... 81

Verdades ao Avesso......................................................... 83

Caminhos........................................................................ 85

Um sonho de dar inveja aos pássaros............................. 87

Divagações de um Homem

à beira de um Futuro ...................................................... 89

Cartomantes insensíveis.................................................. 91

Aura de Mistério.............................................................. 93

Page 6: Livro "Pena que foi Ontem"

5

Desacelerando o Vazio.................................................... 97

Na cabana de vento......................................................... 99

A estória........................................................................... 103

Vínculo perdido................................................................ 107

Assombração Supramolecular......................................... 113

Frutos da Alma................................................................. 115

Em Ponto.......................................................................... 119

Atenção, é Primavera, a Quarta

Estação............................................................................. 121

Vida

Particular......................................................................... 125

Moratória......................................................................... 127

Pepe................................................................................. 129

Fim?................................................................................. 131

Pena que foi ontem........................................................... 133

Agradecimentos................................................................ 135

Page 7: Livro "Pena que foi Ontem"

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Page 8: Livro "Pena que foi Ontem"

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Vertigem

Era uma segunda-feira chuvosa. Um dia de verão. Mas

naquela manhã atípica, não parecia verão. Nas toscas encostas das colinas amanteigadas, um

vento frio se abatia e batia como folhas de carvão se diluindo no espaço a uma velocidade alucinante. Minha cabeça reluzia em sinuosas vertigens de colapso constritivo.

Eu presenciava um fato naquele momento... Um recorte de uma vida alheia: Aquele cara, antes pobre, mas agora já destituído de

sua pobreza, em sua secreta casa de campo, lembrava histórias que mal podiam ser contadas.

A atenção se fincava em um local: Era um beiral de uma chaminé, donde saía uma luz abraçal com forte tom branco, e com nervosos ventos debatendo-se sobre suas camadas de concreto. Naquela casa longínqua habita um homem. Seu nome é Ezequiel.

Ezequiel em sua onda de humor branco e destilado, não via mais sinais de lisura humana.

Inusitado dom esse que o fazia ficar tórrido de solidão amável e luxuosa.

Mantinha em seu quarto uma quantidade razoável de gatos. Eles tremiam como ratos naquele dia chuvoso. O mais velho dos gatos, já senil, coitado, parecia estar carregando a própria cabeça como se fosse um guarda-chuva preso numa algema roubada do cárcere.

Conforme a chuva caía, ia derrubando o ar de ozônio que não estava mais de plantão durante estes tempos.

A chuva tem dois lados: um lado fino, sutil, etéreo. E o outro grosso, pesado, denso e cheio de vicissitudes.

Page 9: Livro "Pena que foi Ontem"

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Este lado denso e pesado da chuva, nesse imperativo dia, o fazia pensar em muitas coisas que já havia tolhido de sua sensibilidade, mas que de alguma forma ainda estavam ali.

Ezequiel fora carpinteiro quando jovem. De uma família de nove irmãos, duas mulheres e sete homens, ele era o mais novo. Enquanto jovem, semeava a sensação subjetiva de estar sempre longe dos outros. Não via destino em sua vida. Relativizava tudo. Como o último dos irmãos, se achava realmente o último.

Paradoxalmente, a vida nele vibrava. Vibrava em tons verde-fosforescentes colorindo suas pálpebras com calor em dias mais abastados. Ele tinha um brilho interno represado, como um trunfo para a próxima jogada, mesmo estando o jogo já deveras perdido.

Sua família era pobre. Logo ao nascer, sua mãe se foi no parto, abriu-se ao infinito. Seu pai nunca o culpou, assim como seus irmãos e parentes.

Ele tinha vaga noção do que aconteceu... Óbvio... Mas as lembranças alheias à sua vontade não o deixavam em mínima paz.

E naquele dia escuro de falso verão, ele pôde lembrar-se de muitas coisas...

Page 10: Livro "Pena que foi Ontem"

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O Portal

Ezequiel temia a sorte... A própria sorte. Ambicionava muita vida, muitas possíveis satisfações,

mas não se permitia realizá-las. Um suplício de desejo sempre o apanhava. Para sentir

fome, bastava desatar um nó. Mas vivia para não se perder. Em sua grande e luxuosa casa de campo havia um

Portal. Esse Portal, como era de se esperar, definia o que iria entrar e sair daquele “albergue” incrustado e finito, em que um dia pairou um homem, uma alma.

Pairou um dia, porque a alma parecia já ter se deslocado de Ezequiel.

Passava dias e noites acordado, isolado em seu templo de dor. Não se permitia mais o prazer, apesar das fagulhas que ainda o consumiam.

Nesse Portal havia plantas trepadeiras e restos de pequenas árvores em volta, que mais pareciam cactos. Eles o representavam.

Assim como a sorte, Ezequiel agora já com seus 55 anos, temia a morte. Mais do que a morte, temia o esquecimento.

Um esquecimento que estava zunindo em si. Ezequiel fora casado. Teve mulher e dois filhos, um

casal. Mas o destino concorreu com sua felicidade. Ocorreu uma ruptura, que se deu exatamente em um infausto, sinistro e espelhoso dia, chuvoso como este, no Portal.

Ele agora estava revestido de sonhos apenas. Apesar de que na maioria das vezes eram belos pesadelos.

Nunca soube exatamente o que aconteceu direito no dia desventurado. Acho que nunca quis saber realmente. Mantinha dentro de si, e diante de si, uma certa postura de

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distância, que imprimia uma certa suficiência de energia para enfrentar os dias.

Determinada noite, teve um sonho. E se dava exatamente neste Portal.

Nesse sonho, Ezequiel corria fervorosamente no quintal. Era mais jovem, forte e feliz. Tinha dezenas de crianças a sua volta, que pareciam quase imitá-lo.

Ao correr, via dados gigantes com números pretos gritantes que pareciam saltar dos dados. Tinha uma enorme impressão de esmagamento ao correr por entre as crianças e os dados. Até que uma mulher aparece e o salva saindo através do Portal. Em sua inteireza corporal, esta mulher, Ezequiel não sabia quem era. Parecia ser uma mistura de sua mãe, sua mulher e sua irmã mais velha. Ela tinha um aspecto saudável e aprazível. Saindo do Portal, sentiu um forte alívio. Mas o que era alívio se tornou terror. Vieram leões e “pastores-alemães” a correr por perto, e tentavam abatê-lo e fazê-lo fugir. Sob seus pés apareciam bolhas. Bolhas de querosene que se tornavam cada vez maiores e prestes a explodir. O que era aquele querosene? Algo ligado ao fatídico dia? ... E o sonho se seguiu. Em seu seguimento uma voz parou e disse: “Determinado está. Apenas finja!”. Ezequiel parou e sentiu uma enorme dor, retornou e dividiu-se em dois, e logo depois se sentiu mais relaxado do que nunca. O que o despertou foi o barulho da chuva batendo no Portal...

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Infância e Família

Na sua precocidade juvenil, Ezequiel apontava o dedo para o que gostava e o que não gostava de forma sempre veemente. Possuía um instinto mágico dando vida a tudo o que a gosto ou contragosto passava por si.

Foi uma criança ativa, mas ao mesmo tempo introspectiva. Gostava de brincar ao ar livre, mas seu verdadeiro lar estava na sua própria cabeça e imaginação.

Ezequiba não gostava do espelho. Ele era alto, magro, tinha uma cicatriz no rosto, resultado do parto sem planejamento aeróbico. Meio corcundinha, além de tudo e ainda mais, tinha os olhos como duas pequenas lantejoulas grudadas no rosto.

Apesar de se achar o “último” dos irmãos e se afastar um pouco, seus mais chegados sempre foram os mais próximos de idade. Pedro era seu irmão mais imediato, e em seus encontros matinais no quintal de sua humilde casa, jogavam bolinhas de pedra modeladas pelas próprias mãos e férteis fantasias de Ezequiel. Ele juntava pequenas pedrinhas e arrumava um jeito sabe-se-lá como, de colá-las umas às outras.

Pedro, com seus lábios esgarçados, formando um molde ovalar (que muitas vezes servia-o muito bem para soltar os silvestres grunhidos que lhe tomavam a ideia) gostava de beijar Ezequiel na face, o que por vezes deixava-o envergonhado e nervoso. Mas Ezequiel acabava ignorando isso tudo, pois era premente para ele, deixar Pedro se expressar da forma que lhe fosse possível.

Eles eram amigos dedicados e tinham intensas alterações engraçadas de humor quando eram obrigados pelo seu pai e sua tia a parar de brincar e ir almoçar ou fazer seus deveres.

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Seu pai tinha uma postura calma, mas ativa, e seu semblante sempre demonstrava seriedade. Seriedade na criação de seus filhos, que eram muitos e que o deixavam muitas vezes de cabelo em pé e deitado. A distância das idades entre os irmãos era pequena, no máximo de dois anos entre um e outro. Pela falta da mãe, com a ajuda da tia de Ezequiel, os filhos foram sendo criados com muita dificuldade.

Tia Mara. Era assim que carinhosamente Ezequiel a chamava. Costumava falar: “Maravilha!”... Ela sempre muito afetuosa, entendia o que se passava e não deixava dúvidas a ele de seu sentimento terno. Na sua mocidade, Ezequiel era chamado de iluminado imberbe por ela, pois ele deixava sua careca reluzindo ao bel prazer do sol. Ele adorava raspar a cabeça para se prevenir de possíveis piolhos-de-verão que pudessem aflorar em seu obeso e oleoso couro cabeludo. Mas também não se reprimia em dizer que tinha prazer em deixar a cuca fresca, para ver se conseguia a proeza de educar e refrescar seus proto-pensamentos.

Ezequiel tinha uma irmã de que muito gostava. Na sua pré-adolescência, Flávia o ajudava nas tarefas do lar e tinha uma amizade quase perfeita com ele. Laços inquebrantáveis os uniam, e os faziam parecer terem nascidos juntos, apesar de terem um ano de diferença de um em relação ao outro.

Todo seu tom afetivo em relação às mulheres nasceu de alguma forma do bom relacionamento que mantinha com Flávia.

Ezequiel sempre tivera muitas histórias para contar. E uma delas foi uma cômica aparição de uma fantasmagórica imagem em uma aventura que se meteram ele e a irmã.

Num dia claro e calmo de domingo, foram se aventurar perto de uma pequena floresta que ficava perto de sua

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casa. Lá havia uma cachoeira e tiveram a ideia de se engalfinhar em meio às pequenas correntezas. Nadaram, jogaram, entretiveram-se, mas em todo o tempo que por lá estiveram, ambos sentiram estarem sendo acompanhados por algo invisível. Tornou-se essa ideia algo risível para os dois. Mas lá pelo final da tarde, Ezequiel gelou e sentiu seus ossos girarem em torno de si mesmo, com um frio na espinha que congelaria até a mais quente luz de um raio solar desprevenido no universo. Eles viram um vulto branco, que apareceu e logo sumiu em uma das encostas de uma grande pedra próxima à cachoeira. Talvez tenha sido a aparição do mítico Homem das Águas de Gelo, que sempre fez partes dos contos daquele lugar; Dizem que ele costumava revelar-se sempre que sentisse a sujeição de verificar as “Obras de Deus” na Terra. Os filhos de Deus seriam amparados ou desamparados de acordo com sua vil experiência e interesse arbitrário. Diziam também que sempre surgia às vésperas de “pequenas tragédias”.

Flávia, naquele momento crítico, gritou, mas Ezequiel ficou estático, amparando a irmã depois. Nunca souberam a verdadeira natureza do vulto. Ezequiel se ajoelhou gracejando e pediu para Flávia correr. E ela correu, sacolejando as pernas magras e malemolentes. Só quando chegaram em casa, foi que perceberam ter deixado a maior parte de suas roupas próximo à cachoeira. Ezequiel estava semi-pelado, e Flávia acompanhada somente de fina cutícula avermelhada, seu maiô oriental. Mas não se acabrunharam por tal fato. No dia seguinte voltaram e encontraram suas respectivas vestes. Encontravam-se tortas, rasgadas e com bolhas, principalmente as sandálias da menina... Sinais?... Acentuaram a vigília no mato e saíram correndo. De novo... Talvez foi a última corrida que Flávia verdadeiramente deu...

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Flávia ficara manca, e dos dois pés. Ezequiel era seu braço direito. E seu pé direito também. Conta a lenda - se verídica ou não só os dois sabiam- que ela ficou assim por acaso, num pisão em falso em um shopping center. Ela era muito do campo. Por lá morava e não surtia muito efeito nela, visitar a cidade. Certo dia, garoto Ezequiel, um gameta a procura de fecundação, convidou-a. Queria ver as meninas da cidade. Ela, mesmo a contragosto, se embonitou toda e foi.

Deus perdoe quem viu a situação toda e não se desordenou a rir e se bagunçar por dentro, apesar da trágica situação... Ezequiel chamou-a num segundo e disse: “Venha, suba a escada rolante.” Ela foi... Tremelicando seus joelhos e com sua terrível ansiedade principiante, subia mais rápido do que a escada tecia seus movimentos. Em meio à sua pequena caminhada a favor e contra ao vento, seu pequeno novo sapato engastalhou na divisória entre um degrau e outro... Resultado final: Dois tornozelos quebrados e desossados, deixando um rastro de trauma psíquico e físico na moça, além de ela ter de embuçar-se, cobrindo o rosto com seu top, desnudando seu sutiã-suspensório mal amarrado.

Emocionante para quem viu. Terrível para quem viveu. E foi assim que Ezequiel virou seu melhor confidente. Ele viu aquilo que poucos na vida dela puderam ver. Ela fechou-se para si e para o mundo. Tornou-se um exemplo de recato quase caricatural. Misturada nela estava o fogo de uma pintura mal desenhada.

Disso tudo resultou a capacidade quase inata de ajoelhar e pedir a Deus uma vida melhor... Com o tempo, uma monja ela se tornaria, e iria sempre pedir perdão por algo que nunca fez.

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Seus mancos pés traduziam-se como símbolos de uma resistência de poder andar com as próprias pernas, não podendo assim peregrinar pelo mundo sozinha.

E Ezequiel era dado a essas coisas. Andar pelo mundo sozinho, apesar da vontade de ter ligações e vínculos torrenciais com os outros.

Tais vivências e jornadas repaginavam diariamente sua vida, e forneciam a base da grade imaginativa que estaria presente em seus próximos passos em direção à sua especialidade: Aviar destinos venturosos a futuros sempre intrépidos e totalmente imprevistos.

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Controlando as “dezenas” que caem em seus pés

Ezequiel começou sua vida como carpinteiro. Assim

como seu pai... Gostava do fato, mas nunca o satisfez a atividade que fazia na época de sua juventude. Com sua coragem e destreza, reinventou seu rumo e seu destino.

Sempre teve uma paixão fundante pelas palavras. Um dia enviou uma carta para um jornal. Era uma

carta simples, mas fervorosa. Havia nela um conteúdo que o levou a trabalhar como

jornalista. O que havia ele escrito era de tal beleza e mistério que nunca se soube ao certo o que redigiu. Mas aquilo fez ele entrar em um novo subarrendado mundo. Dedicou-se, cresceu e enriqueceu. Como ninguém na família antes, com seu mérito, obteve muito sucesso graças a seu ímpeto investigativo e introspectivo.

Escreveu livros, poesias e participou de diversos círculos jornalísticos, onde por muito tempo contribuiu para diversos jornais de importância, o que lhe deu uma certa visibilidade e notoriedade.

Mas tal notoriedade era espraiada. Não tinha concretude. Não criava laços.

Seu sucesso não lhe produzia plena verdade de satisfação.

Sua busca era o amor. Amor de si para os sis. Ele endereçava a si mesmo uma tentação sempre negada. Tentava criar um amor próprio, instigado pela ausência e pelo desejo errante por uma mulher platonizada.

Ele tinha no amor uma expectativa que não era terrena.

Talvez tivesse medo de tocar a mão no melado doce da mulher sonhada.

Tal busca se dissipou um tempo atrás, depois de ter sido virtualmente dispensado por sua anterior namorada,

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já quase sua mulher. Ela sumiu pelo mundo. Nunca se soube de seu paradeiro. Mas como a esperança idealizada se renova a cada passo e parágrafo da vida, Ezequiel remoeu suas mágoas e transformou-as em pó para perfume de suas próximas paixões.

E foi no meio de todas essas intempéries emocionais, entre o sucesso profissional e a estagnação amorosa, que conheceu a que viria ser sua primeira esposa, Marina. Meio tímida, mas que o tentou logo quando o primeiro olhar se entrecruzou entre eles.

Ezequiel, meio atrapalhado, depois de tê-la conhecido na redação do jornal, presenteou-a com uma flor de plástico. Veja só, uma flor de plástico! Só Ezequiel para ter uma ideia estapafúrdia dessa. Gostava de dissimular o seu amor e carinho quando encontrava alguém de quem gostava. Tinha que demonstrar algo, mas só um pouco, porque se não, iria zangar os seus deuses internos.

Ela era uma intelectual calada, com uma voz calma e cintilante. As pálpebras de seus olhos pareciam querer pular.

Seu instinto feminino aguçado ajudava-a ver que Ezequiel tinha algo do qual ele não sabia dizer de si mesmo. Constatava “um algo” conflitante na natureza dele.

Quem conquistou nesse jogo obviamente foi ela. Ela teve a iniciativa de convidá-lo para um café após o trabalho. Ezequiel não se conteve. Calçou seu melhor sapato e encaminhou-se a um encontro já estereotipado em sua cabeça. Julgou que tudo seria como pensou para aquele dia. Mas foi tudo como num susto bom.

Não se consumou a ordem dos fatores esperada. Marina o beijou, e Ezequiel apenas cuidou de se entregar totalmente.

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O primeiro encontro afável entre os dois foi uma espécie de catarse para Ezequiel. Saltou de si uma certa voracidade e desejo, como nunca antes havia sentido... Uma paixão que o deixava impregnado de livre-arbítrio.

Eles se continuavam... A vida torneante e bela era indescritível. A paixão sem intermitências participava sem falácias através do véu que unia os dois amantes.

Era como aprender a nadar pela primeira vez Á g u a que te afoga, mas o cheiro da piscina, Ahh, o cheiro... Fica marcado na memória E após um beijo, as gengivas em estado de torpor

absoluto, estavam inundadas pelas salivas doces e salinizadas do par.

Riomar Aqui o rio e o mar se confundem E começam a dançar E começam a nadar E a chamar Você e eu Em seu palácio febril, palavras eram obras; Beijos,

espumas fustigantes; Abraços eram amores sem pedaços; e olhares, fronteiras sem dor e cor... Amor.

Jornalista também, ela estava acostumada a ver todos os infortúnios da vida para poder transmitir o que via no jornal em que escrevia, e não tolerava o sofrimento na sua

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própria casa. Fazia Ezequiel ser o melhor Ezequiel que podia ser.

A realização de seu desejo com Marina apropriou a mulher pré-idealizada em Ezequiel, e que estava antes apenas domiciliada em sua quintessência não completada.

Entretidos na união de suas almas, o ardor provocava um paradoxo ideal.

E de tal paradoxo criativo, criou-se o primeiro filho deles, nascido após um ano de casado. Marcos Filipe, menino enérgico e com boa dose de significante esperteza.

Ezequiel se descobriu como pai. Sentiu-se fisgado pela abundância de vida que se espairava.

Espalhava-se nas brincadeiras com ele... “Objeto transferencial” agudo. Em ¨carne viva¨, deitava-se ao chão e sentia as cócegas do universo.

Em prantos límpidos, se utilizava de sua “dor” para gerar alegria. Seu filho crescia, e crescia feliz, não crescia torto.

Eis que nas tortuosas engendras da vida, Ezequiel, através dessa fantástica relação com o filho, começa a maquinar e obter a poção mágica da máquina de escrever que habitava sua cabeça.

Entre afagos e prazeres, no trio amoroso que se configurava em sua família, Ezequiel tornou-se um belo escritor de contos infantis, baseados na verdade criativa presente nas crianças e em seu filho.

Em sua regressão, Ezequiel foi longe. Tão longe, que aprendeu a viajar. Não somente interiormente, mas exteriormente.

Outrora caseiro e pacato, começara a viajar e empreender ¨fugas¨ espalhadas pelo universo andante dos territórios.

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Fez um pacto consigo mesmo, e possuía todos os aspectos inerentes que o possibilitavam realizar suas fantasias.

Uma delas era visitar a África. Ezequiel, de descendência africana, não se bastava em

sua inteireza brasileira. Sentia uma ligação interconecta com um passado

retirado de si mesmo. Sua atenção ao momento presente era sempre

desconectada assim que um simples toque do inconsciente o acarinhava. Esse ¨toque¨ vinha desse passado interrompido de outras gerações e de história herdada em sua pele e em seus circuitos bisensoriais. Ora se sentia destituído de espécie, raça e cor. Não sabia sua verdadeira cultura, se ela vinha de seu chulé amargado, de suas roupas extravagantes, ou de suas vagantes ideias. Tudo isso coexistindo em sua dose exuberante de singularidade multifacetada.

Era um certo Vazio que habitava em algum canto de si sem saber se pronunciar direito. E por não conhecer e não reconhecer direito seu perfil e identidade africana, é que precisava entendê-la de alguma forma.

Em uma dessas decadências inconscientes, Ezequiel abraçou o que nele se pedia, e foi em busca desta terra encantada.

Por três meses se sucedeu uma das mais instigantes experiências de sua vida. Encantou-se, se esbaldou e tornou-se um objeto cantante. Cantante e cortante. Cantava e chorava a ¨dança¨ daquele povo frente às dificuldades e à pobreza material. O povo de lá tinha uma trôpega felicidade que ia muito além dos problemas tácteis de sua vida no Brasil.

Sua inocência, às vezes fétida, transformava-se em deformada raiva, que tomava Ezequiel de tal forma, na

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qual se erguia uma força vitalizante contra as injustiças beirantes naquele espaço de terra deslocada.

Acidental expressão essa em que ascendia suas emoções, que vinha ora em forma de vazio, ora em forma de entonação cáustica, na qual convinha falar, ressuscitar e palavrear, desnudando as bordas infinitas do estranho acometimento emocional que o tomava e o deixava à beira do precipício. Mas esse precipício era apenas o princípio de uma jornada inesgotável a longas terras que o esperavam e o espreitavam.

Miríades de desejos o impulsionavam, e formavam em si, um si mesmo forte e desbravador. Desbravava sua própria dor, confinada em seu antro de fé. Sua fé, baseada no ser humano e em sua arte. Arte do amor, da regeneração, compaixão e da latitude exponencial de suas atitudes e valores.

Não fabricava sua fé em abordagens ilícitas vindas de outros seres humanos. Não tinha a boa vontade de se vender e se render a nenhuma religião. Tinha em si mesmo a ligadura do bem, da paz e da verdade, apesar de sua dor.

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Sua dor

¨Sou uma fraude. Um camaleão. Não confio em mim... Como pode essa dor apoderar-me e fazer-me fugir de mim mesmo? Saqueado e fraudado por mim! Que espanto... Santo oprimido que chora no canto escuro e não se esquece do mundo rígido, duro... Que espanto!¨

Assim falava Ezequiel de sua indistinta e infinita paisagem, de onde se formava a astuta e conhecida dor. Dor configurada na ¨indecente¨ perda de sua mãe. Talvez aí a origem dessa dissonância interna. Por um lado, dono de uma família linda, lúcida, mas de propriedade fugaz... Como a vida... Por outro, a contida história incessante da perda, que o espreitava inconsciente e conscientemente, mesmo quando tudo estava bom. Ezequiel dizia: ¨As incontroláveis estações de tempo que acometem minha alma são o colo do útero que ainda me jorra restos de um amor seqüestrado e nunca realizado.¨

Os primeiros traços de sua “dor” se deram logo na infância, quando o garoto Ezequiel se inclinava para elucubrações imaginárias de um tempo que nunca existiu, mas que era pra ter sido. Em sua peculiar textura de tristeza querubim, jampeava sua realidade para um passado distante e abordava acontecimentos inimagináveis, como um mergulho junto de sua mãe às águas do Rio Doce de Carajandá do Sul, próximo à Queratina, cidade onde morava em Minas Gerais. Lá, ela o colocaria no colo, cantaria canções de Beethoven só de assovio, e depois entrariam em um êxtase pré-homérico de uma corrida sob as estrelas, e sob o luar estremecido pela Lua Nova que nunca chegava.

Ele tecia e retecia sua dor, em suas duras, mas fortes e fugidias imaginações.

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Imaginações de um mundo complicado, complexo, mas ao mesmo tempo, rico e hiperventilado de si.

Úmida flor que se erguia de sua própria dor. Embasbacado por suas ideias fortuitas, desligava-se de sua dor e permitia a si mesmo e ao mundo uma bela experiência da vida. De instante a instante usava de si para praticar sua arte, a escrita. Em um de seus longos livros, Ezequiel, em uma obra quase autobiográfica, queixava-se de uma dor que o deixava à beira de um vórtice abissal. Que o pregava e o concluía sem magicidade ou perfeita instância. Que o buscava e o arrastava para onde ¨ela¨ achava que ele deveria estar.

Nesses momentos, quase não falava, não se explicava, não se rompia.

Estigmatizava-se uma questão forte nele... O que fazer com seu belo terror?

Ora tal dor o transfigurava de prazer em suas belas sublimações e criações, ora o trazia a poços fundos, mas tão fundos que eram recobertos de um lodo à primeira vista invisível, mas que possuíam a propriedade de quase serem enxergados a olho nu. Ezequiel ambicionava deslanchar sua “visão” através de um olho desvelado de visão egóica, que pudesse assim avistar um horizonte mágico que se espelhasse entre suas retinas. Isto, ao invés dos momentos perniciosos que o habitavam nessas horas. Toda a corrente de vida e de promíscua criatividade entrava em choque com a sua perene angústia, e combatia sua fonte de amor, esperança e irmandade. Não tinha mais idade nesses momentos. Era como se voltasse à Idade da Pedra. Não possuía mais o tempo a seu favor, tinha pavor, inconstância, desejo de não viver, falta de esperteza. Às vezes apagava, e sob a nuvem fatigante do sono, acordava por entre sonhos que o traziam de volta à realidade. Que

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paradoxo! O sonho o trazia à realidade. O trazia de volta à crueldade e à beleza do mundo.

Esses doces e densos sonhos, às vezes amargos, o tinham durante a noite. Não era ele que tinha os sonhos, e sim os sonhos que o tinham e criavam Ezequiel.

Os sonhos o entornavam, em torno de estórias apaixonantes e apavorantes que apareciam para ele e se tornavam volantes de sua própria história.

Com sua carne já abrandada, podia deslocar-se então de sua dor e reprocurar sua ordem e firmeza.

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Seus sonhos

Em especial retidão, seus sonhos lhe convidavam toda noite para entrar em um mar de imensidão e tortuosidades.

Em sua austeridade anárquica, sonhos e pesadelos entravam em comunhão, e o circulavam até que fosse posto um novo caminho para si e para seus territórios internos. Era como se Deus, atravessando seu Inconsciente, jogasse dados não criados por Ele.

União onírica essa, composta de opostos e decompostos sonhos e anti-sonhos amortecidos e engrandecidos.

Sonhos bons eram sonhos que o levavam a ejacular dores e maus prazeres, transformando morte em pré-vida, perda em chance, vida em luz, luz em esperança, esperança em renovação e criação. Criação em amor.

Amor era muito mais do que a errônea expressão arcaica objetiva.

Era muito do que via ou desejava ardente e profundamente.

O amor que sentia por seu filho e sua esposa era insuficiente para preencher as bênçãos errantes que aguardava, desejos vacilantes de sua própria democracia interna.

Intenções maldizidas provocavam em si abismos úteis para a oclusão virginal de seus desejos não realizados.

Em um de seus sonhos, Ezequiel foi buscar uma pasta em uma padaria. Tinha por que tinha de buscar uma pasta de trabalho na padaria. Só que essa padaria não o encontrava, e ele não encontrava ela. Ao andar, ele se sentia velho, e conforme ia andando, meio que seu corpo caía aos pedaços. Pedaços que iam despencando ao chão, e que gritavam para ele: “Lís, Lís !!!” Mas ele não sabia o

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que era isso. Nunca havia conhecido ninguém com esse nome... Sua memória inconsciente procurava, mas não achava.

Sempre temia um sonho vertiginoso como esse. Em seu passeio ambulante, andava torto agora. Era sua identidade que se desfigurava e reconfigurava

a cada momento? Transvestido de sua própria sorte, a cena do sonho

muda radicalmente para um lugar mágico. Ele está num castelo, estando entre reis e rainhas, todos mal vestidos, mas com uma elegância sinistra.

Pequenos caminhões a diesel miniaturas entrecruzavam suas pernas. Conforme se inteirava do ambiente, suas vestimentas sumiam. Ele procurava as roupas em si, mas não mais as achava. Olhou e avistou um varal com roupas dispostas. E lá se encontravam elas. Neste varal se encontravam suas roupas, mas também fantasias, chifres, e as mais belas e brilhantes roupas já vistas nesta centelha de Terra. Ele mesmo não reconhecia as cores. Não eram cores deste mundo. Tais roupas eram as vestes perdidas dos serviçais luxuosos dos príncipes, reis e rainhas que viviam no castelo. Mas porque essas roupas não eram dos próprios reis e rainhas, e sim dos serviçais?

No próprio varal, as roupas eram presas por dentes, dentes assustadores de cor prata com as raízes juntas. Juntos nesse varal, havia crianças dispostas em série, de pele morena, parecidas com a cor de pele esbelta de Ezequiel. As nádegas rosadas das crianças estavam para cima. Nesse circuito de lacunas e emoções, Ezequiel ficava cada vez mais com os instintos aguçados. Cada vez mais forte batia seu peito úmido, embebedando-se do próprio sangue. De repente viu a pasta que tanto desejava. Estava nas mãos da grandiosa Duquesa de Marcondes Fá. Foi esse o exótico nome, destituído de significado prévio, que veio à

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cabeça de Ezequiel. Já não enxergava com clareza e sentia uma forte excitação que vinha de seu ventre alto.

Entretido em sua nudez cortante e salivante, foi ao encontro dessa rica duquesa. Ela estava trajando absolutamente nada! Nua e com uma coroa de rainha sobre a cabeça.

Foi ele em busca e ao encontro dela, e abraçou-a. Por mais que parecesse um abraço sexual, o abraço se dessexualizou naquele instante. O choque do passado com o futuro... Sua pasta ao lado ele apenas olhou de relance. Não era mais esse seu objetivo...

Ezequiel não fora criado para ficar paralisado por seu passado. Fora criado para se aventurar.

Zelador de suas próprias angústias, Ezequiel se tornou um ótimo inquisidor de seus sonhos. Questionava muito a si mesmo após acordar e relembrar os restos que se afiguravam em sua mente.

Sua pasta, sua vida Suas memórias, ruas sem-saída Luxo, serviçais A gloriosa morte está no mar A “Apenas” morte está no cais

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Fotografias e Acasos

Cismou com o acaso. Volta e meia, como sempre, perdia o chão. Movia-se inconstante e em término de algo.

Em fotografias antigas em sua casa, Ezequiel em um dia perdido no espaço-tempo, olhava e vigiava o esquecido. Com seus pequenos olhos, atordoado no momento instantâneo, foi tomado de repente por uma forte sensação de estranhamento perante uma foto. Neste dia estava com sua mulher e seu filho em casa, e ao ver a fotografia sentia uma espécie de espanto adormecido.

Passou horas observando a foto sem saber muito o porquê.

A foto continha um retrato de seu avô materno com sua avó, e um pequenino cachorro ao lado, sentados em um banco de praça tradicional, e com o vento embolorando os cabelos dos fotografados. Era fim de tarde no momento que foi tirado aquele antigo retrato.

Sentia uma mistura de perplexidade e proximidade com os seres que habitavam aquela foto.

Ele mal conheceu seus avós, faleceram muito cedo. Mas sempre se sentiu conquistado pela impressão que o causavam. Mistura de dor camuflada e esperança, que vingava os fatos morosos e inconclusos da vida.

Mas ali, à espera de seu próprio devir, Ezequiel pôde compreender e entrever, que aqueles seres estampados naquele porta-retratos antigo, chegaram um dia ao tal do “Vir a ser”... Aquilo que na verdade, telegrafado em uma foto ou na memória, “Sempre será”.

Entre fotografias e acasos, o tempo ia passando, e ele ia experimentando o dia-a-dia como um homem aos poucos vai se aderindo por entre as mechas de cabelo que perpassam entre os olhos abrilhantados e corados de uma bela mulher.

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E Ezequiel era habitado por belas mulheres. Em um encontro ocasional e banal, topou com uma

velha “amiga” dos tempos de infância. Era Márcia, sua querida, da época de brincar no parque do pequeno gramado que separava sua sala de estar. Tinha remotas lembranças deste passado. Ao folgar e entreter-se na balança do parquinho, via as unhas dela descascarem pelo sol, que além de causar isso, derramava um brilho que também funcionava como cola para os dois corpos. E assim, por essa cola magmática, os corpos insistiam em não se separar, pois juntos, impediam o descascar de si mesmos, pois, assim não precisariam ter o mesmo destino dos dedos das mãos, que quando solitários, ficam a desmanchar-se após muito tempo na água.

O encontro inesperado trouxe sentimentos de que não sabia dizer deles. Sentia que Márcia era uma importante peça que compunha sua matéria de paixão pelas mulheres. Ela tinha uma leveza como uma massa folhada de um doce de morango. Seus belos olhos e a massa ventricular de seus lábios a enchiam de poder e sensação eternizada.

Com sua aprazível camisa de camurça, Ezequiel cumprimentou-a, abraçou-a intensamente, deslocando-o do agora, e trazendo para si um descuidado compromisso com seu lado nostálgico.

Conversaram pouco, relembraram-se, concentraram olhares, e depois se distanciaram como um romance que nasce, quase cresce, decresce e se dissolve no meio da estória.

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Passeios Gratuitos

Por sua família, Ezequiel se erguia e com primazia erigia alegrias com sua mulher e filho.

Abria-se aos mais suaves passeios e se envolvia nas calmas tardes no bosque ou nas ruas de seu bairro.

Acolhia os pássaros, latia junto com os cachorros, não buscava esconder nada, nem do mundo nem de si mesmo.

Intraventricular era o amor que sentia por seu filho. Dedicação tão grande que exigia demasiada paixão de ambos. Ambos eram “crianças” resolutas na maneira como brincavam no parque.

Em um desses passeios, decidiram viajar a mando de umas férias que Ezequiel precisava tirar. Foram a uma cidadezinha do sul, com muitas pedreiras e cachoeiras. Era um lugar abrasivo. Pedras preciosas foram descobertas lá.

Mas o que estava para ser descoberto era uma fortuna maior, já condensada e preparada há um bom tempo...

Mediante apelos calorosos de Marina, sua mulher, Ezequiel foi convidado a um piquenique em um lugar de vista linda, próximo a uma das cachoeiras.

Olhos famintos eram os deles naquele momento, alimentando-se e presenteando-se do universo.

Na caminhada ao local do piquenique, Marina explicou a ele e ao seu filho, que já tinha quatro anos, que havia uma “presença” entre eles. Ezequiel não entendeu muito bem essa distinção informal e digeriu sem refletir essa mensagem.

Logo depois, ela falou de uma surpresa. Ezequiel não conseguiu se esquivar da indireta e reencaminhou a mensagem: “Essa surpresa eu ajudei-a a construir?”

Ela nada falou, apenas impôs um olhar secreto, mas não falso, e seguiu em frente, percebendo os odores da natureza que os cercavam.

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Chegando ao local combinado, arrumaram as coisas e começaram o piquenique. Diante da insólita surpresa porvir, Marina sussurrou ao seu ouvido: “Marco vai ter uma irmã... Agraciados fomos com outro descendente”.

Lágrimas desciam do hemisfério esquerdo de seus dois olhos. Intensamente emocionado, olhou nos olhos dela, beijou-a aguçadamente, como se assim as duas almas pudessem afunilar-se uma à outra.

Seu filho juntou-se a eles. Nessa dimensão, só havia graça e beleza diante da vida

que renascia a cada instante.

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Nascimento

Os pés circundavam-no, macios, suaves. Acabara de sair do banho. Glória, com seu primeiro mês de vida, tossia ternura e paixão. Em seu cálido semblante, o casal composto por sua mulher e filha atingia-o em um prazer profundo. Era um amor sedativo. Impregnados de reticências, viviam ali um inclusivo mundo de narrativa epopéia.

A vida se desenvolvia, e com eles a suave obra pulsional.

Ezequiel imaginava quais seriam as pulsões que a dominariam, o que Glória pensaria daqui alguns anos, o que ela iria fazer quando florescer... Coisas de pai...

Ezequiel era muito tenaz, e sua sagacidade atravessava o tempo, e o implicava numa rede que ele mesmo desconhecia.

Era como se os índios tupinambás pudessem dizer a ele: “O Futuro vos espera, e com ele a imperfeição do mundo”.

A felicidade de sua vida familiar aplicava-lhe alta adrenalina. Mas tinha a intuição de que os ventos levam tudo, e a impermanência para ele era ato concreto.

Impertinências o levavam a crer que a enfermidade é irmã do saudável...

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Mais viagens

Enquanto toda essa esfera familiar se desenvolvia, a carreira de escritor de Ezequiel seguia e o levava a conhecer outros lugares que sua imaginação precisava ir, para descobrir conteúdos ainda inconscientes.

Um desses lugares que resolveu viajar foi uma pequena cidade na Europa, no norte de Portugal.

Ezequiel sabia que lá havia se travado uma luta que condizia com o combate que se travava em seu interior. A eterna luta do bem com o mal.

Impossível não dizer que foi lá que Ezequiel teve uma de suas mais incríveis experiências “religiosas”.

Havia conhecido naqueles dias um outono frio, estação que prenunciava algo que estava para entorpecê-lo.

Netuno e Plutão se alinhavam no horizonte. Uma sensação de torpor tomava conta do corpo de Ezequiel.

Foi neste dia de alvoroço interno, que Ezequiel conheceu Augusto, pobre estudante vindo da Macedônia. Incluído num status, que para ele era de uma pessoa num contexto altamente desfigurado e que por acaso encontrou seu caminho.

O dia que Ezequiel conheceu Augusto foi num domingo, em uma feira livre que ocorria numa pequena rua solta desta cidade portuguesa.

Ezequiel caminhava sozinho, fato que gostava muito de fazer, pois possibilitava conhecer gente de diferentes “espécies”, jeitos, trejeitos, e seus diversos caracteres portáteis.

Enquanto se dirigia a uma pequena barraca da feira, ouviu uma certa algazarra nas barracas ao lado, e um aglomerado de gente a volta de uma pessoa que estava sendo segura por outro homem. Era Augusto, que havia acabado de tentar roubar duas laranjas na feira!

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Apesar disso, Ezequiel sentiu uma espécie de sorte em seu peito.

Logo retiraram Augusto do local, e ele foi embora sem muitas conseqüências. Ezequiel foi atrás dele, para tentar descobrir quem era esse homem, de que “barro” ele era feito.

Instável e um pouco perturbado, o jovem de vinte e poucos anos chorava um pouco, mas continha um poço de raiva escondida dentro dele, apesar de sua aura benevolente que habitava o rosto.

Era uma pessoa aparentemente simples, e indagado por Ezequiel, se abriu como poucas vezes. Augusto contara sua história, seus algozes, seus sonhos, e encontrou em Ezequiel um anteparo para seus próprios conflitos.

Mas uma coisa que chamou à atenção de Ezequiel foi sua necessidade premente de se destituir de si mesmo e ir de encontro ao desconhecido. Augusto, que era um jovem estudante, perseguia seu sonho de um dia se tornar médico. Vindo da Macedônia, teve uma vida sofrida, difícil, com uma infância conturbada e delicada...

Infante partícipe de seu próprio destino, Augusto empreendera em sua vida o objetivo de seguir o Deus de sua religião. Apesar de sua pobreza, simplicidade, e de seus atos incongruentes com seu caráter, Augusto encontrou uma espécie de paz, que conseguira através daquilo do que ele chamou de Religião Formosa. Uma intensidade de percebimento divino que ele classificou como assombrosa.

Provável ser isso o que Ezequiel sentiu ao se deparar com ele. Sentiu uma profunda empatia. Algo o simpatizava com seu coração. Era uma confluência de desejos e interação.

Ezequiel sempre teve uma necessidade religiosa forte, e por nunca ter se identificado completamente com nenhuma religião, procurou transcender os conceitos e

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buscar a sua “bondade interna”, a verdade por si mesmo, no encontro com o outro.

E nessa ocasião, na singularidade que viu no rapaz, parece ter despertado algo em seu coração que não sabia explicar, uma espécie de compaixão, algo do divino. Era como se tivesse encontrado um guru, mesmo com Augusto não sabendo que era essa espécie de guru. Um guru declaradamente humano, onde reconhecia indiretamente as formas inexplicáveis e complexas que o amor poderia agir.

Dessa compaixão e inestimável afinidade, nasceu uma rápida amizade, que durou o tempo desta tempestiva viagem.

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Tempestividades Festivas e Falarsofias

De volta de viagem, Ezequiel rememorava seus verdadeiros irmãos-de-vida, pessoas que já haviam se despedido desta vida também. Sobrara pouco a ele, muito pouco...

De suas reminiscências, as de sempre populavam em suas recordações... O afeto fino e afinado que tinha com Pedro, seu ótimo-irmão mezzo-insano, mero gênio desafinado.

Congraçado com sua própria loucura, Pedro gostava de usar parafina nos cabelos. “É pra alegrar Ezequiel”, dizia ele inocente, mas com sabedoria, em voz incoerentemente alta para sua tia Mara.

Mara não tivera filhos, seus principais sobrinhos davam a ela todo o motivo emotivo para conduzir uma simples vida simples. Pedro, apesar de doido, tinha um sonho que o trazia alguma realidade: “Um dia ver Ezequiel sorrir de verdade”, longe da tristeza, que já se esboçava na infância.

E uma coisa que tirava a tristeza de Ezequiel, já antevista por Pedro, era Mara, que chegava aos domingos com “muamba” nas mãos... Ia diretamente a Pedro, que se regozijava com o cortejo que Mara imprimia na entrada da casa, com as sacolas cheias de presentes. Com seu chinelo Azul-Fuscão, rastreando pegadas rasteiras na areia que serpenteava o caminho até a porta, ela era sempre aguardada ansiosamente por eles.

A exaltação das paixões internas do pequeno Ezequiba se aclimatava conforme a maré de alegria que era trazida por sua tia. Se algo não fechasse com sua feérica passionalidade reprimida, ele logo se sentia amalucado, que nem seu bom irmão.

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Surgia um pensamento em Ezequiel por estes tempos: “No engenho de toda minha futura corporificação na

vida, terei só uma sombra: O rosto calado do filho que nunca terei. Porque sempre haverei de não ter um filho que poderia Ser”

Entre mistérios que já lhe rondavam, como pensamentos-calafrios em cabeça quente, sabia ele, que um futuro fruto nem sempre é gerado por uma semente.

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O Tempo Devora Tudo

De tempos em tempos, Ezequiel era tomado por uma tenebrosa insônia. Para se consolar dessas horas perdidas, ele cuidava de seus cãezinhos que começara a criar. Usava as noites em que ficava acordado para escrever e para se desaperceber um pouco de si.

Em uma noite de horas que pareciam incontáveis, com seu pijama velho, saiu do quarto e começou a se esgueirar pela sala, acompanhado apenas pelos seus pares de meias e pensamentos. Tivera a fantasia de que naquela noite falaria com sua mãe. Incomodado pelo vento que batia em frenesi à sua janela, procurou rapidamente fechá-la. Disse a si mesmo que algo estava em falta em seu coração idealizado. De repente, chorava intensamente, depois parava, depois em relances era hipnotizado por um ou outro pensamento...

Sentou-se na varanda de sua casa. Pudera sentir ele ali, estacionado sob a lua, o gosto de

se aproximar do céu e inspirar as gotas adormecidas da chuva que insistia em não cair.

Voltou para a sala e por lá finalmente adormeceu... Logo pela manhã, a brisa que descia vagarosamente

tinha um gosto inconsciente de pesar, tensão e de terrorífica perda. Pedra jogada do pacífico, estante desabante do caos intumescido.

Era o prenúncio de uma tragédia não anunciada... Naquela manhã, as crianças haviam saído com a mãe

para caminhar, e não acordaram Ezequiel por capricho. A selva da vida, seiva fugaz, impermanente; Pela manhã, ao estarem quase chegando em casa, um

imprevisto aconteceu... Fatalidade... Ezequiel acordara por um zunido de movimentação

que havia fora da casa. No mesmo momento, soube que

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havia acontecido algo grave, indigesto e doloroso. Subiu ao andar de cima e viu os quartos vazios. Em seu gueto, sentiu que algo havia usurpado a luz de felicidade que havia em si e em sua volta. Esparramou-se e correu até à janela. O que viu lá fora é indizível...

Seu rosto caiu. Correu para fora e foi informado do ocorrido. E como um susto vindo de dentro, desmaiou.

A vida naquele momento perdera todo o brilho para ele. Estava inconsolável. Sua direção, seu rumo, sua espécie, sua identidade lhe foi tirada! Não sabia mais o que era... O que era a vida?

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Silêncio

A morte prematura... O caos desinformado. A experiência desigualmada. Ezequiel acende fósforos alucinadamente, Tenta se esquivar da dor... Foge para o quarto. Se enobrece com seu senso vital, Eles se foram, mas eu ainda estou aqui? Não diz nada Não come nada... Apenas indaga. Indaga sobre a vida e sobre a morte Sobre o estar vivo e sobre o estar morto Ou estar diante do mote da morte Culpa perante os seus que se foram... Futuro que o espera, mas que ele não espera mais. O Futuro é presente. E o passado é uma intenção de um presente não [desaguado Não se sente mais homem, não se sente mais humano. Nem mesmo um desejo latente ou manifesto... Escuro céu azul A penumbra do sol nem é mais a mesma Nem mesmo amena O efeito da cor é um dominó preto e branco que cai sem parar, e sem se importar com os números à sua [frente

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Morte

Fratura exposta da alma Princípio da vida eterna Princípio do amor eterno Visão habilitada pela dor Intensa e corpórea Fugidia e fora de sentido O pó branco que sai dos poros É a maquiagem do nosense Espírito e Alma. Não são a mesma coisa? Ou mera designação? Resignação ou evolução? Buraco negro ou espectro de esperança? Ruidosa névoa, Destino de todos...

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As águas dos olhos dele não são mais as mesmas

Por dias, semanas, Ezequiel se sentiu como um armário embutido vazio em uma casa mal abandonada. Trancafiou-se em casa, não deixando nenhum aviso textual a seus irmãos e parentes, que em vão, tentavam, sem tenteios, invadir sua casa a vassouradas. Temiam pelo destino de Ezequiel.

Mas ele fechou-se bem. Seus cachorros e gatos passavam fome. Mas a fome do dono era outra... Era uma fome que

não mais existia. Por que ter fome, se as entranhas já estavam começando a ficar em desuso e empalhadas dentro de si?

E tanto saber, tanto amor, agora endereçados ao ralo... Tanto se pode saber que isso é verdade, que ele, o “antigo” Ezequiel, estava sendo regurgitado por tamanha quantidade de água lacrimal que jorrava de seus olhos por aqueles dias...

Isso, que meramente, é apenas uma simplicidade da natureza... A natureza tem formas simples e poderosas de nos informar que somos água encarnada. E quando a água pede saída, é preciso reciclá-la.

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Correntes do Tempo

Sacrificar a própria existência da memória é um ato inglório e impossível. A tentativa de deleitar-se no escuro, franzir a testa e buscar reaver um mapa de existir, deixa os nós impraticáveis de tear. É preciso viver e dar algum respiro ao tempo para que sobrevenha alguma esperança.

E foi assim que Ezequiel, por muito tempo, sacrificou sua esperança. As armas que lutam na guerra são o mesmo que o impulso cego da morte, que vem em fatos, que mesmo inexistindo violência, vem sem explicação nem aparente razão.

Armas que não calam... Almas que não sabem falar. Amar o seu afeto Julgar o seu tributo Aceitar o ser materno Nas flores do seu luto. Eis as palavras de Ezequiel, simbolizando seu luto e

possibilidade de renovação. Renovação em busca de uma paz. Em busca de paz e

infinitude de espírito. Paz, símbolo fálico da Saudade... Saudade, saudades..., a forma única de dizer oi e Adeus ao [mesmo tempo Nostalgia... Dejavú Aborto inesperado.

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Ezequiel busca uma paz imprescindível... Inacolorido pela ânsia e vômito da dor, na incógnita do

futuro, ele se pergunta se tudo isso que se passou com ele é de alguma forma razoável... É possível viver e sobreviver com isso tudo? Viver com toda essa perda, toda essa esquisitice de falta?

Rancor na angústia. Ezequiel tende a manejar seu ímpeto de vida e buscar novos sentidos, apesar de tudo ainda estar muito recente. Sentidos e possibilidades ancoradas no mais fundo prurido de sua alma, para constranger aqueles que acreditam que tudo acabou, e recomeçar tudo de novo, dizer a todos em carta aberta que a felicidade é hospitaleira e possível, sempre.

Indignos de si mesmos os que acreditam na falibilidade total das coisas, na conjectura mal pronunciada do ser animado preso nas vestes de animal-homem.

A morte pode ser o vértice da loucura, mas pode abrir o coração e impor franqueza de sentimentos, absurda compreensão da vida.

Ezequiel acreditava além de tudo, depois e apesar de tudo, que era um homem de sorte. Impossível de se compreender, não?

Mas a esperança era a nascente da vitória para ele, e ele esperava tudo, menos sua própria morte. Intrínseca e absoluta vontade de viver ia aos poucos possuindo o coração de Ezequiel.

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Ele observava a ampulheta do tempo E se comunicava com a areia que submergia Enquanto o sol Na alquimia do céu se recolhia Que, de instante a instante Era engolido pela fúria da Terra Que precisa girar E ele observava A areia confinada, ali. Estanque. Ele precisava girar a órbita do tempo... Com a confiança de um deus sem-fé (Fé represada) Ele virava a ampulheta E começava tudo de novo...

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Insônia Soporífera e Delírios Oníricos

Desejos latentes... Eis Ezequiel à espera da quebra de sua agora constante

vigília noturna: “Diante de um silêncio diafragmático, os minutos

correm, e os decibéis de minha alma se entreolham e se esbarram caóticos e inflamados. Um implante da nora da adrenalina. Caos... Confusão... Escravo da própria angústia. Espectador do espectro expectorante do espirro da expectativa. Ambivalência e benevolência do desejo que engendra uma maldade mal acabada e me impede de saber o que vou sonhar essa noite. Certamente o abacate espera à minha porta. Ou o abacaxi que acabo de escrever sem saber por quê. Eis o que o doutor me disse: Você quer ser rei? Então encontre a chave do paraíso... Que paraíso permanece o mesmo, se a cada porta aberta, o mistério somatopsíquico muda e nos farta de abracadabras? Não desvendo o que falo nem o que quero. Transmitir. Transferência de torpe quando a cama parece chata e inadequada, abobada e à espera de um sono que nunca vem. Me dê uma pílula Anti-Egóica! Agora não...”

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Sonhos enlutados

Ao ficar isolado no quarto e sem perceber a noite que

o tomava pelo colarinho, no incipiente sono imprevisto, incalculado, Ezequiel ficava imaculado de toda preguiça vital que o tomava durante as horas prévias dos dias de tédio e de solidão, e no ar dessa impávida força do seu sono, ele dormia ilocável, entre sons e grilhões.

Ezequiel sonhara... Em seu longínquo sonho, ele visualizava, deitado, o

relógio da parede bater freneticamente com os ponteiros ensangüentados e com horas marcando dias e datas que pareciam centenas de horas e não a dúzia comum presente nos relógios ditos normais, e seu olho puxou-o com uma intensidade enorme para fora de si, chamando-o para fora da casa, ele subiu num cavalo e galopou por cima e entre folhas de papel em branco com suaves gotas vermelhas furando cada uma das folhas... Chegando a um abismo que dava em direção ao mar gelado e acinzentado, o cavalo parou abruptamente e deu um violento coice, jogando Ezequiel para longe e para trás. Caiu meio sonolento e gritou com uma intensidade fora do normal, agitando suas mãos e gritando aos céus palavras desencontradas e desfluídas de contentamento. Estava quase divagando em alucinações inibidas. Entrou num estado semelhante a estar próximo de ser engolido para dentro do chão molhado, parecendo um molho com tomates que o fazia se debater, e lentamente ia se fundindo ao chão, com a sensação de leve desmaio, levando-o aos poucos a acordar do exaltado sonho.

Ezequiel, nesses dias de dificuldade de luto não totalmente elaborado, se advertia internamente, e o sonho mostrava através do sangue presente no relógio e nas folhas que, cobertas de pingos vermelhos, podiam

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representar a tragédia manchando a sua arte e a vida, declarando para si um desejo ainda incerto de morte, silêncio, na tentativa de dissipar a dor que o tomava.

Sistolicamente batia seu coração. Tentava paradoxal e intencionalmente abandonar suas angústias. Temia o desaconchego da solidão e do despreparo diante do vital desaparecimento do mundo e de si.

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Um dia de Natal

Ancorado pela gratidão e amizade que alguns de seus semelhantes irmãos sentiam, Ezequiel tomava fôlego e enfrentava a vida.

A lembrança saudável da contenção de espírito de Pedro, outrora falecido, a ignorância dos mortos, o silêncio dos vivos, a fluidez do afeto de Mara, o amor compassivo de Flávia, tudo isso, ou apenas isso, acajadava o sofrimento de Ezequiel.

Ele se tornava muito mais sereno ao lado de Flávia... Tinha um apreço especial pela agora Monja que estava

ao seu lado naquele momento. Agora mais pacata, em ascendente desapego, ela discorria em interpretações espirituais acerca dos sofrimentos carnais de Ezequiel, além de suas sempre-confusões emocionais também.

Apesar de viver em uma “certa” redoma de contato, evitando o calor “demasiadamente humano”, quando saía ela de seus rituais e poltronas-lótus, sua deidade emitia desapego a Ezequiel.

Neste Natal de 1981, apesar do disparate “assalto” a que Ezequiel fora tomado, alegrias culturalmente pré-constituídas impulsionavam a família a ajudá-lo nesta crise monumental.

A data festiva, apesar de acompanhada de muita comida, bebida, e de tentativa alegria, perpassava por Ezequiel como flechas roçando os tendões dos pés e das mãos, que era por onde ele se erguia e se apoiava.

Ezequiel dizia: “Natal é chato. Tento catar os cacos dos natais

passados, dos verões passados, mas parece tudo extremamente distante. Não por acaso, no meu sapato apertado vejo a obra do tempo também. Ninguém

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percebe, ninguém vê, mas o mais real está dentro, e não fora. Tento entender, mas o chamado é mais pro alto... Alto do despenhadeiro que caí há muito tempo, e agora cá estou procurando “água no deserto”, quem sabe mais perto, ali na água suja do mar. Será que o mar realmente revitaliza? Isso rivaliza com meu pessimismo, minha amargura, minha armadura sem cura. Que espécime de pessoa vem me procurar? Vem me desejar? Meu grito vem sussurrado, errado, como no sonho. Onde está o atalho? Quero poder ver a luz. Existe luz? Existe luz? Ou é um fantasma desacordado, atolado nas próprias vestes sofridas de bom pagão? E essa luz? Será que um dia apagarão?”

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Navegando

Pólvora e paixão Irradiada em seu meio Meio à luz, meio à escuridão Ezequiel não sabe por onde ir Decisão Sim. Há um dever em dizer sim. Em uma manhã aparentemente suja de outono, onde

as folhas das árvores depositavam restos catárticos sobre o chão umedecido pelas ondas que batiam à porta da areia baixa, Ezequiel esperava em tom de serena excitação, o seu barco.

Ezequiel comprara uma embarcação leve, mas de respeito.

Estará entrando aos mares sozinho, acompanhado somente por sua distinta força, coragem e aprendizado do riscado. Por força de sua curiosidade levitante, em viagens anteriores, ele fez cursos de navegação e conheceu quase tudo o que podia sobre o mar, fauna marinha e outras dedicações mais, a fim de um dia enfrentar o inesperado, que nem ele algum dia esperou verdadeiramente.

Em forte oclusão relacional, Ezequiel em um furor de

raiva e dor sublimadas, tenta viver por ondas próprias, exprimindo sua dor numa relação solitária, para talvez um dia reacordar seu ventre amoroso.

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Te levo comigo, por que tu és meu: Coração... Infligido pelos mais nobres sofrimentos Não vai sofrer o descaso de mim E há de preparar-se para as mais honrosas aventuras [e desventuras Porque a vida há de conter vida Porque a vida há de conter emoção Para um dia, quem sabe, tornar-me são. Sabe-se lá a que mares levará sua “prancha” de

ousadia e busca de emoção revirada. Tateia pelo mar como um garoto na sua primeira vez

com a namorada, beirando os lábios da amada, sem saber pronunciar por onde a fundação de sua alma vai atracar.

E fluido está Ezequiel nas primeiras horas ao mar... Sente-se uno e relaxado, mas presente e temente a

tudo, encontrando-se em estado de alerta no seu tráfego em mar aberto, deslizando por ele sem receio e com surpreendente destreza, como um comandante-equilibrista caminhando descalço sobre um fino arame farpado.

E não se sabe se por sorte de principiante ou por ajuda de alguma inteligência superior, as águas pareciam aderir ao casco e à quilha de tal forma, que era como se formasse lençóis freáticos no interior da estrutura da embarcação, potencializando assim a capacidade de lastro e intento de Ezequiel e seu barco.

Assim como o barco necessitava de certo vigor, Ezequiel também precisava. Carregava ele, comida suficiente para alimentar uma manada. Muitos livros o acompanhavam, apesar de que muito provavelmente não teria tempo de lê-los, afinal de quê, como escritor que era, sempre apeteceu mais aos seus instintos, despejar suas

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ondas primitivas de escrita ao invés de ler coisas que há tempos ficaram apoiadas em série de estantes, e antes ranqueadas de acordo com a quantidade de pó neles acumulada.

Conforme ia viajando, encontrava cardumes, no qual se comunicavam entre si. Logo no começo da viagem via golfinhos, que estremeciam a aguda ponta de água em que tocavam.

Os tubarões-azuis e peixes-serra seguiam-se a eles e descascavam na aura de Ezequiel um temeroso receio que o tornava mais consciente e concentrado.

Com o sentimento ambivalente, assim como em todos os “bons humanos”, em parte Ezequiel se sentia isolado, mas por outro lado, havia uma grandeza de intenção, foco e desejos especiais em toda aquela experiência. O calibre de sua loucura e sofrimento o movimentava e o situava. Era como uma monção marítima presente dentro do seu corpo. Assim como as monções continentais e marítimas, em suas sazonalidades, dirigiam e determinavam a temperatura do mar e sua configuração, Ezequiel era dominado por forças parecidas, como um encontro inconsciente esbravejante de movimentos afetivos atípicos, contrastando com a energia e vontade consciente, imperando assim um jogo de forças explícito.

Seu cabelo estava disforme, deveras engraçado. Parecia uma lula gigante que se agarrou à sua cabeça e não o deixava mais escapar. Os ventos monçônicos imperavam e davam à área navegada um aspecto de rara beleza e independência à natureza.

No primeiro dia de sua dita função navegante, Ezequiel se saíra muito bem.

Mas as asas dos bravos também encontram seus revezes...

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Esperta ave, que inteligente Tem o céu a seu favor Em seu esplendor. O aviso reinante é de acender os pavios curtos da [imaginação E com sabedoria atrasar o ritmo inócuo do [próximo verão Incessante era a briga de Ezequiel por conseguir novas

palavras que beirassem um precipício e o assustassem como um véu que refina a luz mas não traz benefício.

Durante a viagem contava com cerca de cem anotações que ficavam espalhadas pela embarcação, à espera de novos contos e estórias inebriantes ditadas por ele.

Pode-se dizer que o período em que esteve em alto mar, foi a ponte para o melhor ponto de sua breve memória de criador de estórias literárias.

Entretanto, a digna aventura tinha que ser uma aventura no mar. Mar aberto, imensidão de paz, mas que também escondia certa voracidade de tormenta hibernada.

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Dias de tormenta

Em torno de seus olhos, uma tontura atônita circundava-o. De frente a ele, uma onda gigante o esgueirava e vibrava o mar à sua volta.

Receando uma tragédia, se escondeu por trás do mastro principal da embarcação. Instantaneamente, mil emoções passavam e ultrapassavam sua mente. O mar desenrolado pelo vento vinha colecionando forças marítimas e expulsava suas rédeas empinando o barco e fazendo bater violentamente a água sobre o casco inerte.

Apesar de sobressaltado, estava preparado para enfrentar a adversidade evanescente, e preparado para o pior.

Colocou seu colete salva-vidas e segurou-se, enquanto a tormenta tomava conta da área. Tudo de repente ficou escuro e incógnito. Sua vida neste momento parecia uma incógnita. Passou o que passou para talvez acabar aqui, no meio do nada, no meio da imensidão do mar. Uma precaução náutica nestes momentos era sempre manter a calma e rever sempre as condições em que a embarcação ia ficando. O casco parecia estar sobrevivendo inteiro ao ataque insensível das águas. Ezequiel todo molhado, tombava para um lado e para o outro, sentindo que suas energias poderiam começar a dissipar-se a qualquer momento, temendo ser provavelmente engolido pelo mar.

Atento a tudo, não percebia sinais de mudanças na tempestade e se mantinha honrosamente pleno de instinto de vida.

De repente, ouviu um tremendo estrondo vindo da proa, lá na ponta do casco... Um pedaço se esfacelou, mas o barco continuou flutuando em meio a todo aquele conflito marítimo... Rapidamente, viu um enorme peixe, pensou ser um tubarão morto passando ao lado do barco

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em meio às águas altamente borrifadoras. Perguntou-se se aquele não seria seu destino e ele seria o próximo.

Em pensamentos velozes, se questionava assiduamente nesses momentos agonizantes. Preparava o terreno para a vindoura morte, ou para as mais abafadas e não verdadeiramente controladas angústias.

Ele estava confrontando-se consigo mesmo diante daquela imensa e temível quantidade de mar infinito à sua frente. Pálido, sentia suas vísceras gritarem para si o quanto ele era inexperiente diante de toda aquela situação. Os pensamentos rondavam seu cabelo mastigado pela tempestade. Questionava a imprudência de se viver, quanto sofrimento ainda havia de encontrar no caminho para achar algum ca-mi-nho. Talvez encontrar algum cantinho dentro de si que o pudesse acobertar da dor de dentro e de fora.

“O que estou fazendo aqui agora?” “No meio dessa água despejante e frequente?... Que

nem toma conhecimento do que está à frente, que não tem cara nem coração, só com uma agitação fremente?”

Ele simbolizava tudo isso, talvez como uma ingratidão do universo. Comparava isso à fatalidade da vida e de sua própria vida e história. Comparava essa falta de coração do mar, com os humanos que conheceu durante a vida, que por baixo das vestes de boa-gente, vestiam a mentira e a maldade.

O que isso tudo provocava nele? Expulso da sensação do bem viver e de sentir que vale

a pena acreditar na vida, nos outros e no amor? A resposta não acha-se fácil, ou nunca se revela

completamente. Ezequiel sabia menos ainda sobre essa resposta.

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Estamos meio à flor da pele aqui neste prisma Luzes parecem me afogar e me ressuscitar Quem é o dono do interruptor desta lâmpada? Os pequenos buracos que iam aparecendo no barco o

deixavam atormentado. Ele se segurava, tentando provocar alguma magia dentro de si. Não iria fracassar diante da tormenta.

Controlando sentimentos, e com extrema energia voltada para desobedecer a natureza em sua desordem natural, Ezequiel ia tocando o barco com a fisionomia de um garoto novamente, reavivando sua juventude e “nenêrgia” que foram se perdendo nas rebentações da vida.

E conforme as rajadas de vento e água se tornavam mais espaçadas, a estação tenebrosa de agonia também passava.

Boas intuições voltavam. Tempos, gerúndios e futuros eram previstos novamente.

A tempestade, antes densa, transmitia um rastro de luz no meio dela, que deixava escapar um possível cessar-água. Quanto mais via isso, um promissor aplauso de esperança se aglutinava novamente dentro dele.

Enquanto o sol começava a se esconder no horizonte, as águas também aos poucos paravam de jorrar. E nesse meio tempo, avistou uma outra embarcação bem longe. Parecia ser um barco vindo de outra época, tamanha sua aparência de estética antiga.

Pegou uma bandeirola e começou a acenar ao barco vizinho. Em reposta, acenderam e piscaram uma luz fosca.

“Será esta a luz que havia em minhas expectativas idealizadas de minhas fantasias?”

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Em tempos de chuva, de necessidade eterna de aconchego, o sangue de outono de Ezequiel na ânsia de ajuda, estava fadado a ajudar.

Do barco vizinho, avistou um casal. A mulher parecia estar atônita e ferida, e o homem ao seu lado procurando auxílio.

Assim que os barcos se encostaram, Ezequiel subitamente partiu para o outro barco. Era um casal de holandeses que estavam viajando de férias pelos mares do mundo. Julia estava ferida, mas plenamente consciente, precisando de alguns pequenos cuidados, de que o marido já tentava reparar. Passada a agitação do mar, Ezequiel pôde cuidar do barco enquanto o marido da moça a ajudava.

Um bom tempo levou até que Julia ressurgisse após um longo repouso. Ela voltou agradecendo e sentindo imensa gratidão por Ezequiel ter aparecido naquele momento. Por um instante, Ezequiel se sentiu vivo novamente. Bastiaan, o marido de Julia, passou a noite fria conversando com Ezequiel.

Dizia ele, que somente trinta horas foram necessárias para que visse a insanidade da natureza. E que de nenhuma forma, podia ser considerado um homem do mar. Bastiaan, teimoso, sempre acabava cometendo erros em pró de alguma expedição insensata.

Bastiaan era um artista plástico de renome em seu país, mas tinha verdadeira paixão por qualquer outro estilo de vida deliberadamente arriscado.

Bastiann e Julia eram um espécime raro de casal. Os dois podiam passar até meses sem se ver, mas a união, a parceria e o amor continuavam os mesmos. Contaram várias situações que passaram juntos; Do dia que seu filho saiu de casa, do dia de explosão narcísica de quando se

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conheceram, e de como era a dinâmica compartilhada pelos dois...

Ezequiel se sentira abençoado por tal encontro, mas tinha que continuar sua feroz jornada. Agora seria a viagem de volta à sua casa. Na verdade, seria sua nova casa. Àquela que pretendia ser seu novo lar.

Em seus longos versos escritos após aqueles dias atabalhoados de astúcia marítima, Ezequiel plantificava sua alma sôfrega de façanhas, através de seus poemas:

Ó Culta oculta alma Agitação normal do mar Tu te vestes tão clara como a luz Um grito no coração... “Oi, estou aqui. Aqui não sinto frio Enquanto você dorme Eu nado nado até onde o rio chegar” Nado, nada, ... Pra que lado proclamo meu dizer? Clara Alma Olhando a imensidão do mar, testemunhava: “O

sublime da vida, por um período curto de tempo foi algo que pouco me atingia. Não sei se a profundidade dos outros era muito pequena e rasa demais para o meu alto padrão de exigência, ou se uma profundidade, por tão profunda e impenetrável, que eu, sem conseguir enxergá-la, só conseguia ver o raso ou a superfície. E eu? Quanto de raso e de profundo eu fui? Quanto sou? Quanto ou quantos serei?“

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Renovação

Ezequiel realmente voltara para casa. Mas não

pretendia ficar por lá. Seria uma volta por onde ainda não começou.

Com a idade apertando os lábios de sua mente, pretendia ele excomungar as lembranças e determinar um novo começo-fim válido para sua vida estimulante e dolorosa.

Nada melhor que um velho amigo para estimulá-lo. Astor era o nome de um amigo seu, que vivia próximo à sua casa. Astor era um retirante vindo da Bolívia e que plantava e cultivava diversos tipos de grãos e alimentos para serem usados para a própria subsistência e em pró de atividades comerciais também.

Astor acompanhou toda a seqüência de vida de Ezequiel, e tinha em sua vida atual alguns pontos em comum a ele. Era um homem solitário que vivia de raras visitas esporádicas de amigos, na qual davam pouca atenção a ele.

Astor, às vezes, pela solidão extrema a que se submetia, sentia que podia falar com as plantas. Em uma dessas possessões emocionais de encontro com o mundo invertebrado da natureza quântica que habitava sua cabeça, Astor disse que uma das plantas ditou-lhe que estava faltando ar. A planta dizia que nem o CO2 que recebia não era mais suficiente, e que os homens estavam tragando todas suas forças e desequilibrando seu ânimo. A planta disse à Astor também, que ela conhecia Ezequiel, e que ele deveria se dispor a reencontrar sua paz, de uma forma que ela ainda não sabia como, mas avisou que não poderia ser mais naquela casa que ele costumava chamar de lar.

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Lebre que corre no campo, imbuída de prazer, parecia acenar para Ezequiel... Era Astor, que de longe vinha correndo em sua direção para anunciar sua descoberta.

Astor parecia um boi em rasante, um vira-lata sem “panelinha” animal, um bicho-da-seda costurando o caminho, cabra apressado esse...

Ezequiel percebia o vento que Astor produzia, e era um som de vento no ouvido, originado de uma mistura pervertida de timbres esquecidos do universo, e que insistiam em compartilhar com ele a matéria e essa coiserada toda dele...

Sem cerimonial e recheado de loucura, Astor disse a Ezequiel:

“Espírito de luz me falou...” “Quem te falou o que, Astor?” – perguntou Ezequiel. “É que, é que, ..., sabe aquela plantinha que de vez em quando troco algumas palavrinhas? ... Então, ela me disse que você tem que partir”... “Partir para onde?” - retrucou Ezequiel. “Para onde ela não sabia, mas disse que chegou o momento!”.

“Liberte-se!” Ezequiel ouvira uma voz dentro de si... Falou para Astor ir embora... Estava ensimesmado com

tudo aquilo e não acreditava nele de maneira alguma. Ezequiel guardava um resto dentro de si impalpável

ainda. Era uma febre lunar embutida, esperando a cor intumescida do fósforo da verdade riscar a si mesmo, na vontade de buscar sapiência e uma felicidade singular e singrante não decifrada.

Os ciclos inscritos em sua face redigiam sons acelerados que saíam de sua boca, e teciam algas resplandecentes em seus olhos, que saltavam-se e vibravam a cada novo brilho realçado.

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A Partida

“Acordo ao meio-dia. Meia xícara de chá. Ovos nem

pensar. Gosto levemente azedo na boca. Pernas ainda não respondendo corretamente.“

Nesse dia ensolarado, Ezequiel tinha uma missão: Encontrar o caminho perdido.

Anteriormente escondido e refugiado em sua arte, afirmou agora que a abandonaria. Que não iria mais escrever. Queria viver algo que não tivesse que ser sempre relatado à sua mente racional.

Chacoalhou as calças meio caídas, deu um passo, urrou e se desenraizou por dentro.

Suas coisas, suas roupas, suas malas, tudo de sua casa já estava preparado para a partida.

Deu adeus e foi.

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Novas fugas?

Seria essa mudança repentina de casa mais uma fuga para não enfrentar sua realidade? Uma “indiferença”, um não-se-importar leve, para distraí-lo da cruel realidade da vida?

Ezequiel assim não achava. Procurou uma cidade fria do sul do Brasil para encarar

sua nova aventura e interesse. Interesses que ele iria buscar, pois como havia

decidido se destituir de sua arte principal, que era a literatura a que se dedicava, tentaria viver a vida de uma forma mais aberta, ampla, desinteressada.

Chegando à “sua” nova cidade, se instalou e começou a fazer amigos.

Conheceu rapazes e moças mais jovens que ele, com quem saía, apesar de sua idade mais avançada.

Encarava a vida como se tivesse realmente vivendo uma nova realidade paralela.

Começou a ter interesse por bebidas, como o vinho, que muito o atraía por sua diversidade, que vinha dos cultivos daquelas terras do sul. Logo esse interesse começou a se tornar uma paixão, e sem demora, a paixão levou-o à perdição. Cheio de vida novamente, começou a beber vigorosamente e passava suas noites em claro, sentindo a brisa leve de reentrância notívaga.

Uma, duas, três garrafas e meia… Era como se seu sangue fosse formado por alguma espécie de melaço, que combinado à natureza do vinho, espalhava um excesso de desordem em seu mal formado corpo.

Tivera ele, momentos de leve depressão devido ao alto salto a que se submetia. Explodia de prazer nos dias de embriaguez, voltando bêbado quase toda noite. E depois, passava horas se recusando a viver qualquer tipo de vida

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produtiva diurna a que pudesse estabelecer alguma conexão.

Alguma coisa precisava se reconectar dentro dele, como um filme a uma TV, antes fria e desligada. Talvez este filme fosse correr nos próximos “retiros” pré-espirituais a que ele iria se submeter. É de se supor que o verdadeiro Vinho de sua vida fosse a Mulher, Natureza Vaga dos sonhadores que perdem o contato consigo mesmo. Esse mito era seu verbo, sua conjunção, seu predicado, sua ação.

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Instinto e Loucura

Escalo o universo incontornável que me habita Situações inacalorosas cobrem o véu da minha ação Caço sentado o prêmio da dor E em férteis imaginações dou o restante de mim E esqueço do fim.

Ezequiel sempre se sentia dominado pela dor da

perda. A terrível perda de sua mulher e filhos, às vezes se

tornava uma tonelada de angústia perene, que ia se avolumando dentro dele.

A raiva que sentia, o invadia com tanta força, que parecia um redemoinho de ventos internos procurando um buraco negro dentro de si para se entorpecer. Dava a si as mais inusitadas soluções. Achava que estava sendo dominado pelo mal, pelas trevas. Se sentia mal, se sentia mau. Tinha inveja. Hostilizado por sua própria raiva, enxergava por lentes não distorcidas o que era distorcido e surreal da tragédia de uma vida. Tentava dar as costas para tudo.

Certa vez, para se sentir vivo novamente, pulou de um pequeno terraço para outro como se fosse questão de vida ou morte.

Loucura tudo isso? Não para ele, que tensionado por tamanhos sofrimentos, buscava dar algum sentido à sua perpétua conduta de existência.

E foi nesse meio tempo que conheceu Lís... Era um dia de inverno, e como uma lareira acesa em

dia frio, o fogo aquecia as nuvens que encobriam a cabeça de Ezequiel.

Próximo à Padaria das Nuvens, estava ele só, à beira do asfalto, rente à calçada, galgando posições imaginárias

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em uma corrida de cavalos que acontecia somente em sua mente.

Encontrava-se em frente a um restaurante, que ao fundo exibia uma lua exuberante, como um filme entre as cortinas.

Dentro deste restaurante trabalhava uma moçoila muito atraente. Lís era filha de imigrantes ingleses, que vieram a trabalho ao sul do Brasil. Movimento atípico de imigração, que também provocou uma atitude atípica à moça. Ela atraía os olhares dos mais estranhos homens que passavam pela rua e pela vizinhança.

Atropelado pelo desejo, Ezequiel sentiu uma linhada provocando sua atenção. Era a carne jubilosa de Lís brilhando sob aquela região montanhosa e sigilosa.

Ezequiel estava trêmulo. Humilde expansão de pensamento trouxe a ele uma nova roupagem. Extasiante, ele a via com um quê de frenesi de palpitante excitação.

Lís, ahh Lís... Suas pernas eram como vigas esbeltas de um prédio de luxo em lapidação.

Uma onda intensa perpassava por si. Quando a conheceu, o impacto do desejo abrupto

tomou conta dos dois. Interna sensação de volúpia que Ezequiel temia, e ao mesmo tempo queria com todos os seus impulsos musculares curativos.

Romantismo... Tragado, encapsulado, Ezequiel erguia poesias declamadas à frente de sua nova conquista:

Hoje eu vi Tu estavas lá No meio do meu peito Vibrando forte como chakras desafortunados

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Seu semblante era doce Em carne viva, meu corpo e minha alma latejavam por [você Senti que tudo isso... Éramos nós. Ezequiel reflete e pensa acerca de tudo isso com

paixão e asco ao mesmo tempo. Se sente intoxicado por tamanho desejo, mas sabe que

seus instintos falando ininterruptamente abrem portas para um destino não muito bem elaborado.

Filosofa ele sobre todo esse furor instintual humano, pois tem dificuldade de permitir-se tal traço de alegria perante o fiasco de seu passado, por trazer-lhe culpa e resignação...

“Será que somos fogo que se extingue, ou gota que se junta ao “Todo-Água” no “final” da existência? Impulso, instinto que insurge sem ser anunciado por nenhuma maré e que se instala em nós?... Em nós? Aquela insanidade que às vezes me consome e eu costumo falar que nos consome. Consome e come a costura de que cosemos. E se minha mente e suas sinapses não foram cosidas adequadamente, a carne fica fraca. Se a carne é fraca, ou se é praxe da alma perpetuar e projetar seus desejos no corpo, ainda não saberei lhe dizer. Ela aponta o arco que atirei contra a flecha que guardei. Grito no recinto dos maldosos, que vem e me falam em letras miúdas sobre minhas loucuras emancipadas da sociedade. Sociedade que cria e se recria em curvas construídas através de retas malfeitas. Entendo os orangotangos que caminham pelados pelas praias noturnas das florestas solitárias. Comem em pratos limpos e se tornam robustos com os alimentos quase antropofágicos, mas não pedem desculpas. São apenas seus instintos!”

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Identidade extraviada

Extraviado pelo tempo Tempo Oco... No magro canto da sala Me escorre pelos dedos O sangue da vertigem de ser Eu

“Estou diante do espelho. Minha vida é repassada nos meus olhos interiores. Falsidade acreditar que tudo o que se passa na memória é verdade. Estar aqui e agora é real. “Penso, existo”, penso e insisto. Quando eu cessar de viver, espero poder rever a mulher de meus sonhos, aquela com quem me casei... É difícil pensar nesses termos. Quando casamos, temos filhos, a sensação do eterno parece que gira dentro de nós. E quando a perda inevitável da morte acontece, sabemos que a ilusão foi boa, intensa, mas o quanto dela é verdadeira e qual parte é ilusória? Não que o que foi sentido foi falso. O que senti foi uma das coisas mais belas que um homem pode ter imaginado. Mas o jogo instável da vida nos devolve uma sensação de solidão, descompasso e desamparo. Parece ser realmente um jogo. E que me sublocaram aqui nesse sótão escondido que mais parece uma prisão. Prisão de sentimentos, sensações, e desejos descontinuados e impedidos. Desenganado, procuro agora um sentido condizente com minha verdade. E depois de tanto andar e pesar, o que tenho a fazer ainda neste mundo? Será que existe uma Missão ou essa ideia é só uma fantasia furada para dar o fim necessário e honroso ao corpo que ganhamos nessa encarnação? Essa encarnação, que pode ser a única...”

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Verdades ao Avesso

Caminhando pelos campos do sul, Ezequiel volta a se sentir espirante. Sente em si um vento pronominal. Algo inconsciente o busca dentro dele. Ele pára e conversa com as crianças à beira do lago. Tem uma sensação vivaz, embora aja como se estivesse se abstendo de determinadas coisas, sentimentos e emoções.

Atrás dele, em espiral, centenas e milhares de plantas se escondem no mato espesso que comporta as mais diferentes espécies esotéricas.

Encabeçam na sentença de seu caminhar seus mais harmoniosos e desarmônicos pensamentos.

Encobre sua luta consigo através de sua palpável tentativa de integração com a natureza e com os vários tipos de homens que topam por seu tortuoso caminho.

Tantas rupturas teve em sua vida, tantas novas emoções tivera... E o que restou de tudo isso? Apenas um leve caminhar por entre as campinas?

Entretanto, o espaço dentro do seu corpo está mais calmo, seu andar está mais calmo. Sua cor está mais branda, a pele laceada.

Mas algo permanece estático dentro de si, diante de tantas vãs filosofolias.

A realidade subjetiva em que ele se encontra imposto deve estar antenada às várias “bagagens” que carregou no decorrer de sua jornada. Tentando atenuar o efeito disso tudo, ele diz: “Tem horas que a vida parece ser eterna, mas a maioria das últimas horas do nosso tempo me transpassa uma sensação de dejavú e transformação constante. É como se visse o início, o meio e o fim de tudo. A vida passando veloz e eu tentando colocar band-aids para tentar visualizar algum campo de visão válido para mim e

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para os outros. Procuro a verdade debaixo dos panos, e acabo enxergando nada mais do que o seu lado avesso”.

Andando pelo campo e por entre as colinas, Ezequiel avista um lago muito abaixo do lugar onde se encontra... Parece um porão cristalino de um despenhadeiro.

Corre, quase que balbuciando a intenção vertiginosa de pular de cabeça naquele lago.

Chegando lá, assim o faz, e nada, nadando como se fosse chegar ao final do horizonte e lá chegando encontraria a tão esperada felicidade como se fosse um feitiço do espaço.

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Caminhos

Um dos caminhos a que Ezequiel parece que iria recorrer era sua Lís, que conheceu há tão pouco tempo, mas o desejo ainda não o tinha recoberto por inteiro. Nos dias de angústia acelerada, ele mal procurava se relacionar com os outros. Procurava se imbuir de relacionar-se com si mesmo e seus pensamentos claudicantes. Ficava introspectivo e poucas vezes buscava um encontro com outras visões e pensamentos outros.

Mas a relação com Lís o tomou de tal forma que não dava para esquecê-la ou ignorá-la facilmente.

Na busca de um caminho e carinho, voltou a se encontrar com ela, e a busca não era simplesmente uma retórica de Ezequiel. Lís tinha uma compatibilidade inata com Ezequiel, desejava tanto quanto gostava de ser desejada por ele.

Quase da mesma idade, ela não havia passado por dificuldades tantas como ele passou, mas suas posturas e indas e vindas no mundo foram tão complicadas como as dele. Ela casou-se duas vezes, não tendo sorte nos dois casamentos. O seu primeiro marido morreu após deixá-la, e o segundo, a natureza tempestuosa do relacionamento não promoveu um gasto adequado do amor e da cumplicidade que Lís tanto desejava.

Ela não tinha filhos e nem pretendia mais tê-los a essa altura da vida. Mas isso não impede a vontade de vida de mostrar as caras e inervar os afetos.

Chamegos e trocas gasosas era o que se passava em noites notáveis. Era um veneno mágico. Atordoante. Imperecível.

Entre os batimentos do relógio de sua casa, que tinha somente o ponteiro das horas como espelho da realidade, Ezequiel ainda enxergava escuridão em meio à clara e

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vivificante entrega a que estava disposto sobre e sob Lís. Ela parecia relembrar Marina, sua feição, sua voz de tessitura fina e amorosa, e que vociferava lembranças tropeçadas em sua mente. Acordes e timbres em assonância vibravam nos alvéolos e quase invadiam e tomavam por completo o seu coração. Mas ele se defendia desses novos e fortes sentimentos. Talvez a temerosa possibilidade de uma nova perda fosse mais forte do que seu desejo de equilíbrio e verdadeiro amor.

Assumia que era vaga a sua intenção com Lís, mas o chamado desse amor era profundo e não podia ser perdido. Não desta vez...

E seu beijo... É a troca gasosa que nos define É o efeito colateral de Eros O detentor da paixão O seu beijo, o delírio do desejo Assim como o tracejado do seu caminhar, obelisco de seu gracejo Gravitar em torno a ti É o que me importa Vem com tudo e arromba a porta

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Um sonho de dar inveja aos pássaros

O que está acima do céu...? Agacho humildemente Minha camisa estampada brilha E tento ter força para oferecer algo digno Sincero como a tampa para uma garrafa desprotegida Acendo um fósforo Permeio a vista e agradeço Quem sente o fungo da compaixão Estala o profundo Às do espaço Tento entender minhas palavras mas não consigo Elas não são ditadas por mim Nem sei se as mereço Não sei se mereço o céu. O que está acima do céu é seu.

Ezequiel fala sobre um sonho que teve: “Estava voando... Uma bela paisagem que se afigurava

à minha frente com a imponência de um cartão postal. Estico-me todo e toco todas minhas partes de meu corpo. Tenho uma sensação de liberdade estonteante. Penso que será difícil achar uma felicidade igual a essa quando acordar. Vejo pássaros, baleias voando também, mas seus rostos me parecem tristes, dá impressão que estão cansados, que tem de atravessar um oceano! Que linhagem vem e desaparece diante de mim como esses aveludados pássaros cor de tinta roxa que passam pelo céu? De repente todos começam a cair! O que isso tudo tem a ver comigo?? Estou roubando a energia deles? Será que não sou grato pela minha vida humana, e estou aqui fantasiando isto nesse sonho? Ou essa liberdade que estou sentindo é uma resposta de um futuro que será meu, e que ainda não chegou? Basta ter paciência para chegar lá?”

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Divagações de um Homem à beira de um Futuro

O que farei amanhã de manhã? Tenho certeza Tão inocente são as palavras Assim como a voz que as soletra Espero consertar o carro Não acordar o vizinho com o barulho das trombetas que vão gritar do fundo do meu ser Espelhar o acaso e não dizer o profundo. O profundo guardo pra mim Que de tão profano, não encontra letras e espaços para se [expressar De mais em todo o destino Irei me ocupar de não fazer nada Acordo o passado e descrevo o futuro Sem saber se aquele que busquei é aquilo que criei Se criei ou fui criado Malcriado sou de ter escutado E arrependido por não saber O quanto estou longe de entender.

Descreve assim, Ezequiel, os seus próximos conflitos e caminhos... Somatório dos vários si-mesmos que ocupam o mesmo espaço...

Mas já com outra intenção e outro ritmo. Um suspiro Seis passos Em direção ao paraíso...

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Cartomantes insensíveis

O campo gravitacional de Ezequiel girava em torno de

sua dor, transitoriedade, paixão e amistosa perspectiva. Entusiasmado, vezes só, vezes alado, sonhava em ter

um sonho bom. Quem sabe, um sono bom, daqueles amestrados, em

que macacos sobem nos pés das mangabeiras, curvando-se como fogo atingido pelas brasas de carvão enriquecido.

Cada vez que Ezequiel tentava se reerguer, erguia-se uma reprimenda de tal tamanho, tão suja quanto o betume bichento debaixo do asfalto, que sob ele, enclausuráva-o em suas falsas compreensões inatas.

Aborrecia-se com as inações da vida, da peste e da loucura. Ele tinha uma sedenta compaixão direcionada ao mundo e as pessoas-habitantes deste... Compaixão à loucura que os assolava em intempéries, e que era cultivada nas bocas secas dos parceiros contundidos da vida.

Canções de ninar tocavam constantemente, mas ele as não ouvia.

O que fazer? Sentia-se só, mas ao mesmo tempo sensitivo. O que cabia nele era o que não cabia na organização

arcaica e supérflua da sociedade. Ele via a sociedade como uma cartomante que

despejava sempre as mesmas cartas. Só que ele desejava muito mais... Desejava lírios que nascessem do concreto. Aventuras que nascessem do drama. Cores ocultas que brotassem do diamante. Pérola quase despida estava por colorir o céu escuro

do coração de Ezequiel.

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Aura de Mistério

No escuro de sua casa, em sua varanda, mais precisamente em seu saco de dormir, Ezequiel posta-se em posição sacra, pendente de um obscuro sentido instalado em sua mente.

Calejado de tanta dor, a cabeça dele paralisa em determinados momentos antes de dormir, e não sabe muito bem onde está e quem é.

Sentimentos adormecidos que se desabotoam e aparecem na hora do sono.

Após duas horas se engambelando com sua própria mente, ele dorme... E dorme profundamente.

O som rústico que sai de sua boca dita sons mur-murados e politicamente inconcretos.

Suas pálpebras divididas começam um traquejar que mais parece o momento de um sonho.

E ele está sonhando: está numa casa linda, aberta e flutuante, com escadas enormes e prateleiras enfileiradas contendo as mais finas jóias cunhadas a ouro puro. O sentimento presente é cristalino, puro, sensível.

A casa, que mais parece uma espécie de mistura de catedral e mansão, flutua sobre águas extremamente azuis de um lago rodeado de ostensivos rochedos. Ezequiel se encontra vestido de branco, e vê o sol brilhando de maneira intensa lá fora, iluminando o ambiente de maneira voraz. À medida que a casa flutua, certas imagens começam a aparecer intermitentemente em sua cabeça. Cenas da infância, conversas com seu pai, e outros incrementos visuais. A água muda de cor, o vento sopra a casa, alterando sua direção, o que parece ser demasiadamente perigoso, pois ela começa ir diretamente a um dos mais pontiagudos rochedos.

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É entoada então, uma leve e tenra voz no meio disso tudo que ele não consegue nitidamente escutar, se distinguindo como um sussurro feminino.

Uma parte de Ezequiel não quer escutar. Ele parece sentir algo, como aquela pungência que se solta em meio a um agradável bem-estar momentâneo no meio de um dia ensolarado.

E conforme a casa se aproxima do rochedo, diametralmente oposta a ele, aparece uma imagem de uma velha mulher, mas com um semblante especialmente vivo.

Ela também, toda vestida de branco, entorna uma extrema empatia em Ezequiel, que imediatamente sente ser a sua mãe.

Ela comunica algo como: “Olhe um filho” Ezequiel não entende muito bem o significado, apesar

de tudo parecer muitíssimo real. Ainda diz a Mulher, Mãe ou Musa: “Se conseguires arrumar a rede a tempo, o Peixe é teu,

ó meu querido filho! Se ele é teu de verdade, ou pode apenas e tão somente ter seu nome, só o tempo e a ordem dos fatos lhe dirão... Que tu o acoberte, que lhe dê calor, dê-lhe todas as sendas possíveis...”

Ezequiel tenta correr até ela, mas sua imagem desaparece diante dele assim que se aproxima. A casa pára de ir em direção às rochas, começa levemente a afundar e Ezequiel acorda.

Desperta angustiado, com uma sensação de refinada perda, mas também com uma expectativa de transformação, quase uma certeza.

Saiu, levantou, olhou por um instante as fotos penduradas na parede branca desfolhada de seu quarto,

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voltou ao seu saco de dormir na varanda e adormeceu novamente. Que bons ventos o tragam novamente à vida.

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Desacelerando o Vazio

Ezequiel despertou no dia seguinte sentindo-se melhor. Estava mais corado e pronto para enfrentar novos desafios e etapas que pressentia, no qual dizia que eram seu destino final de vida.

Sempre ao acordar, gostava de aguar as plantas, juntar sementes. Mas nesta manhã foi diferente. Levantou e foi à feira, disposto a fazer um almoço no final de semana e juntar algum resto de família, que estavam porvir à cidade.

Ele tinha uma paixão quase já esquecida pela culinária. O que mais gostava de fazer na cozinha era peixe. Dos mais diversos tipos e sabores.

Foi então preparar os ingredientes da reunião. Sentia que algo extra o conduzia e o guiava. Será que era algo advindo do sonho?

Tinha ele plena consciência de que o contato com sua mãe no sonho foi algo palpável, real e deveras representativo de algo.

A anunciação de que iria preparar um almoço com o cardápio baseado principalmente em peixes era algo muito convidativo, e ilustrava seu presente psicológico. Os peixes, para ele, representavam o mistério, a relação do homem com a vida, com os animais e antepassados.

Operando dentro de Ezequiel, havia uma forte congruência de novos sabores à vida, e a expectativa de novas farturas.

Com tudo ali, pronto, pontuado para o dia seguinte, Ezequiel foi diretamente ao quarto fazer suas anotações diárias.

Apesar de não escrever mais nada com o objetivo de verbalizar para outros, continuava a contar estórias para si mesmo.

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Era um espaço absorto diário que usava para fazer confidências, realizar catarses rebeldes de sua alma explosiva, e compor cânticos nunca transformados em música.

Em uma de suas vãs tentativas de desacelerar o mundo, ele disse:

Mi pensamiento Mil pensamentos Te dão um vôo pensado Sem rodeios Quero pensar em algo ainda não pensado Querubim assado! Há quanto tempo queria isso dizer! Engraçado... Eis a célebre frase: “Lembrar pra poder esquecer” Quero um Mi revigorado Tocado com um Dó adiantado Pra solar em Fá E ter alguém ao meu lado

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Na cabana de vento

Os tratores da memória de Ezequiel se entrincheiravam. Esperava neste dia receber quatro de seus irmãos.

A mística dele intuía algo não usual. Chegando à hora do almoço, estava ansioso,

aguardando a chegada de seus conterrâneos. Mas sentiu que algo não ia bem.

Sonhara à noite que estava numa cabana de vento. De vento porque ela parecia estar construída de um material gasoso muito firme e solta no ar. Ele era pequeno, da mesma idade de quando brincava na cabaninha de brinquedo que seu pai deixava ao lado da cama.

Esta cabana guardava semelhança à casa anterior na qual havia sonhado. O odor que se exalava no ar era de conteúdo mal cheiroso, e em determinados momentos parecia asfixiante.

Começou a pular sem parar, até que ouviu um barulho de uma campainha e ficou paralisado.

Nesse momento acordou. Seus sonhos pesavam muito em relação a seus

momentos de vigília. Pareciam retirar momentaneamente uma proteção de si.

No mais, tudo se desenrolava como sempre, com a mesma magia e mistério que envolvia a personalidade e a vida de Ezequiel.

Voltando à hora que Ezequiel esperava sua família para o desjejum, encontrava-se ele novamente sob essa condição fantasmática.

Inexplicavelmente, seus irmãos não pareciam ter atendido seu convite. Nenhum aparecia. Sentia-se irritado, mal sucedido.

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Passaram-se mais duas horas de atormentadora espera, e nada... Por fim, desistiu, e sentou-se à mesa desolado, pronto a iniciar sua desonrosa refeição.

Foi quando ouviu a campainha anunciar. Abriu a porta e um garoto cabisbaixo pedia para adentrar à casa. Havia um recado a lhe entregar.

Ezequiel concordou, convidando Aurélio para sentar-se e comer junto a ele. Perguntou sua idade e ele logo respondeu que tinha dez anos.

À mesa, havia pães dos mais variados sabores, guloseimas das mais diversas delícias, e frutas dos mais diversos odores, que antecipavam a prometida gula que iria se instalar ali, e alimentar agora somente ele e o guri com as iguarias de peixes, delicadamente preparadas pelas mãos sem miudezas de Ezequiel.

Devoraram a refeição com astúcia, tendo Aurélio prometido contar-lhe o que o havia trazido ali. Acintosamente, Aurélio levantou-se sem terminar e aproveitar a conclusão do banquete e saiu correndo para o banheiro, não deixando de esbarrar antes no pequeno pote de azeite.

Ezequiel não compreendeu muito bem a situação, até porque, ultimamente havia poucas coisas de que podia compreender.

Aurélio reapareceu branco, quase como se tivesse com os pigmentos do rosto esfarelados. Cumprimentou-o silenciosamente, sem se reportar ao fato. Sentou-se e continuou a beber com volúpia o líquido posto à mesa.

O que se passava com aquele menino? Chegou ao recinto anarquicamente, se pôs a comer, e

ainda não tinha dito seus motivos calciformes que elaboravam suas atitudes presentes.

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Sabe-se lá que mágoas o rio chora Têm-se a impressão de um dolo desconcertado Distante da luz e distante do agrado Sabe-se lá que ditames no rio impera Passa por bairros imaculados Mas por muitas vezes por onde já esteve congelado. O menino Aurélio rompeu a barreira do som que

existia entre eles e anunciou essas frases quase que num rompante de audácia e surpresa. Ezequiel, quase abobado pelo atrevimento e por todo aquele discurso mais parecido com um provérbio chinês, sentiu um calafrio e uma certa identificação com o que Aurélio despejava diante dele.

Por um momento, Ezequiel evitou qualquer palavra e qualquer pensamento mais elaborado sobre o que acabara de se passar. Lembrou-se do sonho no qual havia se sentido deveras paralisado após um toque alucinado de campainha.

Bela companhia aquela que estava à sua frente. Assustado e com um leve sorriso maroto no rosto, o

menino voltou a se precipitar a falar: “Queria o meu pai, mas ele não me quis” Voltou a ficar em silêncio. O local ficou com uma

quietude demasiadamente silente. Era um clima quase orgânico, um ímpeto de sentimento no ar que deslocou ambos de suas bases.

Em busca da palavra perdida, Ezequiel indagou-o: “Porque você acha que ele não o quis?” “Ele não me conhecia ainda. Por isso!” Ezequiel ficou tomado por uma fúria incontinente. Mal

conseguia conter a ira que começou a sentir do pai que

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deixou o pequenino. Travou-se um encontro de olhares entre eles como nunca espelhado antes.

O olhar de Aurélio soava como um pedido, um clamor, como um chocolate meio amargo se diluindo no canto da boca a espera de uma sinergia mais dulcificada. Uma mistura de pólvora, carinho e incompreensão.

Ezequiel, com seu rosto já muito suado, chamou-o para sentar-se no sofá, e buscou um copo d’água, no qual Aurélio degustou copiosamente.

Ele estava muito interessado no que Aurélio tinha a contar.

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A estória

Aurélio titubeia palavras meio incompreensivas e

desencontradas, contraditoriamente às primeiras ditas defronte a Ezequiel, que foram quase persuasivas.

Existe uma incerteza latente na mente de Aurélio. A atenção de Ezequiel se volta para o olhar de Aurélio.

Ele exerce uma atração imponderável. Aurélio é baixinho, usando um óculos extremamente

cômico e com uma pinta de inteligente como poucos. Tragado pela atenção disforme do garoto, ele mal

ouve as primeiras palavras. Aurélio fala sobre um orfanato... “Eu moro num orfanato desde que nasci... Meu

destino fora traçado no momento em que vim à luz. Minha mãe morreu no parto...”

Ezequiel quase teve uma síncope, tendo que ser amparado pelo próprio Aurélio. Até a tintura do cabelo de Ezequiel parece que perdera a cor.

Passado o susto, se recompôs sozinho e pôs-se a pensar... Parou por alguns instantes e pediu que o menino continuasse.

“Desde então carrego um sentimento, uma vontade de encontrar meu pai. O que eu sei, assim dito por minhas tutoras do orfanato, é que minha mãe faleceu no parto, e que meu pai me deixou, assim que soubera disso. Mas continuo apartado de minha própria história.”

A história de Aurélio apresenta uma característica singular, conflitante com sua própria história. O pai de Ezequiel nunca o culpou pela morte de sua mãe. Sempre foi benquisto, e isso nunca foi motivo de menos amor de sua família. Encararam tudo como uma fatalidade.

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Já Aurélio sofria de um mal tão grave aos olhos de Ezequiel, que além de ter perdido sua mãe, foi deixado pelo próprio pai.

Pai esse de Aurélio, que aparentemente deve ter ficado com a alma extremamente zangada, culpando assim seu filho pelo fim abrupto da vida de sua mulher.

Era um trocadilho da realidade que se apresentava diante deles.

Nessa imprecisão do relato, Ezequiel o abordou e questionou sua prontidão de encontrar o pai. Foi quando lembrou que o menino já havia o dito, e que sua intenção guardava relação com uma espera ativa sua, de que houvesse uma reparação da relação dele com o pai, por o pai não tê-lo conhecido.

Guardava quase uma ilusão consigo de que se o pai o tivesse conhecido, nunca haveria de tê-lo deixado.

O que se passava com o menino? O que se escondia por trás desse desejo?

E porque foi procurá-lo, justamente ele, de história extremamente semelhante à sua?

Incessante coreografia da paz que não vem Assunto desgastado pelo tempo que me convém Convém me ater aos fatos: Não sou pobre, nem tão rico Não concordo, mas convido. Aceito sua face se ela for minha também Espelho do destino Que me escapou num dia intra-uterino.

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Seria esse um laical destino lírico dos dois? O que apontava por intermédio desse encontro era um

enigma que só juntos, os dois poderiam desvendar. A natureza mítica do passado de ambos escolheu-os

para romperem uma nova direção a um futuro. No íntimo de Aurélio o que se via era uma

determinação rara e profundamente interessante. Naquele dia específico, prometeu para si mesmo que

iria sair do orfanato e bater de porta em porta para encontrar seu pai. Demonstrava uma certa inocência e incoerência de atitudes, mas era claro o porquê disso tudo.

Seu desejo o levou inesperadamente até o lar de Ezequiel.

Aurélio disse que parou em cerca de dez casas até bater na porta dele, e que em nenhum lugar sentiu a propensão de falar. Foi somente com Ezequiel que conseguiu desabarcar o que sentia.

Achou, intuitivamente, que ele não era seu pai. Mas isso não o desagradou por ora. Sentiu uma certa

afinidade, e permitiu-se ficar mais um pouco ali. Ezequiel ficara compelido a contar sua própria história

a Aurélio. E assim se sucedeu o dia para os dois. Permaneceram

juntos até a noite, quando Aurélio retornou ao orfanato. Mas prometeu voltar.

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Vínculo perdido

Entregue ao destino, a virtude desejada por si só, era

pele e coração, razão e emoção. As disparidades contidas em Ezequiel não gritavam tão alto mais.

Um caminho desenredava-se à sua frente e ao seu redor.

As dúvidas começavam a dissipar-se para um lugar bem longínquo, não mais importunando seu coração.

Firme em sua intuição, Ezequiel celebrava uma nova possibilidade de realização. Era ele Aurélio. Iria ajudar este menino a encontrar seu desatino.

Em decrescente ordem de compasso, o ajudaria a estabelecer um vínculo perdido com o tempo e o espaço.

Tempos fecundos duram mais que um decênio. Um decêndio é justo e sincero para corroborar intenções explícitas de decisão.

Foi assim, que em dez dias, Ezequiel conseguiu o feito de decidir adotar Aurélio como seu mais íntimo fiel companheiro. Foi tudo muito rápido. Poderá um dia chamá-lo de filho?

Tempo abortado Tempo construído És tu meu templo Enche meu seio de glória Tempo aleatório Tempo contado Passado alucinatório Presente bem vindo

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Aurélio gostou da intenção de Ezequiel, e depois de discutido o assunto, ambos ficaram felizes, apesar do futuro incerto e a não certeza quanto à finalização burocrática do processo adotivo.

Ezequiel tinha o afã de dizer sim. Sim à vida. Não um sim encaixotado, com endereço de carta remetido a um destinatário certo e pré-concebido. Quer um sim desembaraçado, risonho.

Longe do rebuliço dos cata-ventos, o universo assopra ventos eólicos que atravessam Ezequiel.

Assim como os ventos, o que fazia geralmente Ezequiel acordar e dizer sim, eram as chuvas.

A chuva é transformadora da alma. E era isso o que ele queria, libertá-la e deixá-la ir aonde quisesse, sem pré-conceitos, sem lutas, sem sofismas. Ir em direção a um futuro descortinado das amarguras do passado.

O que Ezequiel sentia, pode-se-dizer-que-é muito daquilo que Aurélio se permitia ser.

Em busca do recôndito e do conhecido abortado, os dois viraram cúmplices inconscientes da busca de um pai. O pai esquecido de Aurélio – à primeira vista um vilão – mas que na verdade se afigurava como um protótipo materno perdido na escada, sem saber em qual andar estava. Protótipo materno, pois na “inexistência” da mãe, estava criado na mente lunática de Aurélio, uma figura que exercia sobre ele um poder. Poder de vida e possibilidades futuras de acolhimento e vitória sobre a antiga rejeição.

Era como se Aurélio não se sentisse sóbrio o suficiente para enfrentar a vida até que houvesse o momento em que pudesse reaver um encontro perdido.

A estreiteza da aflição de Aurélio era um sentimento persecutório que às vezes ficava sonâmbulo e andava por dentro dele sorrateiramente, procurando de forma secreta abater a vítima desprevenida.

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Mas nele não rodava somente este filme. Aurélio tinha uma constelação interior. Levemente aéreo, como as estrelas.

Aurélio, em um dia inspirado de conversas esplêndidas com Ezequiel, pensou em palavras latentes e não manifestas, mas não disse e não manifestou sua reflexão verbalmente a ele, por não saber traduzir tal sensação em palavras verossímeis. Mas o que ele pensou, foi mais ou menos assim:

“Quando tiver alguma dúvida em sua vida, olhe para as

estrelas. Pretendentes estações estéticas que aparecem quando já se foram. As intenções delas não são claras. São claras e brilhantes a um olhar rápido e despretensioso, mas o não visto guarda questões mais profundas. Para as estrelas não é preciso nenhum enigma. O enigma é conseguir ser não magnetizado por elas. Para onde fogem suas matérias quando morrem?”

Ezequiel no começo de sua relação com ele, dizia que

Aurélio queria ser “rei”, mas que ainda não sabia disso. Na época em que Aurélio estava no orfanato, parece

ele ter buscado forças além, e sempre foi muito ativo na busca de informações sobre o mundo e a vida. Gostava de ver os noticiários e documentários na televisão e ler os livros que eram deixados de lado por outros. Dedicado a se relacionar com suas tutoras e demais pessoas no orfanato, buscava meios de entrever seus argumentos e visões que o permeariam.

Aurélio costumava narrar na sua cama, antes de dormir, suas histórias de fujão. Fugia do orfanato como um cão que foge do seu dono, sem saber aonde achar um osso que caísse bem aos seus dentes antes bem cuidados. Eis, que feito isso, sempre voltava com o rabinho entre as

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pernas empoeiradas, não escondendo também a pena que sentia dos transeuntes que dormiam na rua.

Tal figuração que o fazia atuar dessa forma, implicava em si uma fermentação aguda do que é ser humano e de sua necessidade de cuidado e proteção.

E proteção Ezequiel estava disposto a lhe dar. Ezequiel não precisava mais ficar em seu solilóquio sentimental.

Sentado à beira de sua humilde biblioteca, Ezequiel, entretido nas apoteóticas “viagens” imaginativas de Aurélio, deixava-se levar também.

Aurélio, sob as vestes de seu sorriso escondido, parecia levantar fumaça da poeira que pairava sobre os livros. Tinha rompantes de vivacidade e tímidos sarcasmos.

Certo dia, Aurélio estava com muita fome, e entre suas descrições de como as coisas devem ser, devorou um lanche de peixe com agrião. Ezequiel, espantadiço, não o interrompeu, esperou-o, e então acenou seu pensamento a ele com uma dopante gargalhada. Aurélio não se apoquentou não. Misterioso, sussurrou a Ezequiel:

“Caro Ezequiba, você não sabe o que Deus lhe deu.” A risada foi mútua. “Quem em sã consciência já viu alguém comer lanche

de peixe com agrião?” Zombando, Ezequiel tentava persuadir Aurélio, mas

Aurélio, em tom sério e despojado, criticava de forma enigmática e estranhamente madura, a forma como as pessoas relacionavam os conteúdos com a beleza e o prazer.

Com a eloqüência de um cavalo de raça, dizia ele que o que está dentro dos alimentos e refeições cuidadosamente preparados e pensados, são sabores que à prima-vista desconectados de relação, anulam seus “defeitos” com a virtude de ambos os sabores. Ainda disse:

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“Pegue os livros, por exemplo. Digamos que eles sejam tais que dentro deles nada há. O que há são coisas que jorram para fora. Parecem vir de dentro deles, mas está errado. O que existe é um puro e destemido conjunto de quantias que variam seus sabores e saberes conforme o paladar único e caprichos do leitor degustador.”

Refutava abundantemente a obediência a padrões, e reconciliava coisas aparentemente contraditórias entre si. Esse era o perfil da paixão de Aurélio.

“Se não existe, a gente inventa”, dizia o pequeno e destemido Aurélio, que exercia seu papel no mundo correndo em busca de um objetivo, persuadindo a si e a todos, usando-se de seus “saca-buchas” para se apresentar ao mundo.

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Assombração Supramolecular

A vida pôde permitir a Aurélio uma retomada de seu caminho longe da seara que o habitava.

Em uma noite de inverno cálido, Ezequiel foi apresentado à “alma manchada” de Aurélio.

Era madrugada, quase manhã, hora da transição entre o momento mais soturno da noite para o esperado brilho que acalma da manhã, quando a tristeza fria de Aurélio veio à tona.

Ezequiel presenciou uma angústia de que tanto tempo se fez presente em sua própria vida. Algo que o habitou mais tempo do que necessário, e que ainda por vezes dava as caras.

Mas o momento fagulhante de desespero mordaz era de Aurélio.

Nesse momento da noite acordou exasperado, suando um frio incrivelmente ácido, onde os gritos pulavam de sua boca em forma de desespero.

Aurélio sentia um medo desorientador... Sentado à cama, reclinou-se e encostou levemente o

ouvido na parede. Colado à parede, escutava as ondas de água que percorriam por dentro dela.

Era como se projetasse alguma outra espécie de vida que corria livre e oculta no espaço entre o quarto e a cozinha.

Acalmado por Ezequiel, Aurélio soluçou ainda por alguns minutos até poder balbuciar algumas palavras na tentativa de explicar-se.

Mas Ezequiel entendia... Certas coisas não precisam ser ditas. A intensidade que Ezequiel vira brotar do menino nos

dias anteriores vinha de um lugar “conhecido”.

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Paralelismos à parte, apesar do presente se assemelhar a uma prece, uma esperança, uma metáfora, havia em Aurélio um temor absurdo do futuro, quase metafísico.

Passado o ocorrido, os dois foram novamente se deitar, depois de Ezequiel ter prometido levar Aurélio de volta ao orfanato por alguns dias, pois este já era o combinado.

Tantas vezes desmentida, a sensação espumava uma solidão voraz e embriagante.

Aconteça o que acontecer Quero estar só Presente no chão do meu encosto Tentar contar as agruras e as sementes do campo Que jogadas em mim não brotariam um feijão. Aconteça o que acontecer Se estiver só Deixe em ti sentir-me Dê-me um pouco de sua atenção Que no bálsamo que em ti habitas Jorra espelho e compreensão

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Frutos da Alma

Ezequiel apanha amoras no seu jardim. Enquanto se dirige a elas, sente o aroma penetrante das plantas e das flores e medita sobre si mesmo, sobre o menino Aurélio, sua vida e o silêncio:

“Tudo está quieto, tudo está calmo. Desliza sobre meu peito a água quente que não derrama. Quero sentir um calafrio, um desarmamento. Me liquefazer, perder o molde, como uma gota d’água que envolve e se deixa envolver sem perder sua essência. Desejo construir uma questão. Se não, não há o que responder. Não há o que chorar nem o que temer. Não há como me derramar. Preciso. Preciso demasiadamente sentir o sofrimento. Romper o perecimento. Experimentar o calor de novas emoções. Não abafe o caso. Quero sentir... Só quando sinto o sofrimento me sinto realmente vivo. Quero tragar sua fumaça e reciclar. Só há morte quando existe vida. Só há vida quando existe morte. Viver é o bastante? Desejo viver arriscando a morte. É só com a morte aproximada é que sinto a vida. As lágrimas ameaçam desabar, mas está faltando algo para elas entrarem em ebulição e precipitarem a cair com gosto... Não sei bem o que é...”

Ezequiel parecia ter esquecido o sofrimento por um tempo. É preciso ser dito que Ezequiel sentia-se levemente vivo. Mas ele queria a certeza da vida, uma potência que talvez não fosse deste mundo. Este era seu desejo.

Dez dias se passaram. Ezequiel reencontrara Aurélio. Quando o viu novamente encheu-o de abraços. Saudade ascendente.

Junto aos dois nesse reencontro estava Lís. Lís tornou-se uma saudável companheira de Ezequiel. A paixão primeva entre os dois foi se tornando com o tempo um caso mais sólido de compromisso, leve amor e amizade.

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Ezequiel julgava ser importante a participação dela na busca que se iniciaria do pai de Aurélio.

Nas horas em que os dois estavam a sós, geralmente após uma noite de amor e sexo, Ezequiel se entregava às suas reflexões perante a nova companheira. Lís, sempre muito afetiva, cuidava de ouvir tudo com simpatia.

O entrelaçamento que Ezequiel experimentava, o trazia também alguma aflição difusa.

Temia esquecer sua ex-amada mulher. Sentia uma dor de saudade e questionava a si mesmo se a essa altura da vida não fosse melhor viver na solitude.

Mas viver só não parecia ser uma opção mais. Com a procura pelo pai de Aurélio se iniciando, toda

ajuda e parceria seria importante neste momento. As pistas que estavam à disposição deles eram quase

nulas. O orfanato havia perdido grande parte dos registros antigos a que se poderia ter acesso.

Aurélio foi entregue – segundo ele mesmo e seus responsáveis – no orfanato por uma mulher.

O caminho era descobrir quem era essa moça que misteriosamente o largou aos dois anos de idade.

Moça de ombros largos, que atirava palavras como flechas, e que vivia a vida em sentido anti-horário. De traços firmes e rosto caducado pelas rugas prematuramente envelhecidas.

Disseram que ela chegou de forma abrupta ao orfanato, dizendo palavras insensatas e discordantes e que não tinha tempo e dinheiro. Precisava deixar o menino ali e o buscaria dentro de alguns dias. Nunca mais voltou.

Esta mulher dava a impressão de não existir. Era mais como um ornamento espectral.

E todo esse aspecto de falta, de abundante inexistência, fazia-os refletir se tal pessoinha ainda estaria viva...

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Corriam eles por todos os pontos herméticos da cidade e as pistas pareciam não levá-los a lugar algum.

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Em Ponto

O relógio central da cidade batia 2 horas da tarde.

Uma tarde levemente ensolarada, golpeada por pequenas maçãs de nuvens esfumaçadas.

Quem fosse que debruçasse os olhos por sobre o mirante, veria as profundas dificuldades a serem percorridas para descobrir-se algum paradeiro do pai de Aurélio. Apelidado de Pepe por Aurélio, ele era uma incógnita que vivia em sua fantasia, como se estivesse ele disfarçado pelas ruas nuas. Para Aurélio, ora Pepe era um feirante vendendo frutas atropeladas pela enxurrada, ora era um ator cantando canções para-casais sem paixão amordaçada, e ora era o ladrão da esquina, que mitigava sua fome atormentando a paz dos vizinhos semi-leprosos.

A realidade já não bastava mais para Aurélio. Era cruel, crua e densa demais para sua pequena cabecinha.

O leque de possibilidades começou a se reabrir assim que o jogo de cintura de Lís mostrou que poderia assenhorar os dois.

Ela invadiu o quarto de Ezequiel em uma noite clara. Teve uma ideia:

“Ezequiba, uma coisa me chamou a atenção... Quando Aurélio adentrou sua porta, como ele estava? Exasperado, usando palavras contraditórias e desencontradas... Coincidência?”

Ezequiel embarca: “Uma ligação de sangue?” Ela: “Talvez” Tem coisas que tem um poder e força lacrimejantes.

Uma porta se abre e todo um mundo de possibilidades é permitido. Pode ser o olho do furacão, mas também pode

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ser a passagem ínfima que está guardada o melhor dos ouros. De um dourado nunca visto e apreendido pelo olho humano.

Ver através de Aurélio pode ter sido a mais clara visão de Ezequiel sobre sua própria vida. Assim como ver através de Lís, que sempre lhe trazia novos rufados ventos.

“Perdi o olfato e não consegui mais reavê-lo.

Acontecem coisas na vida que se distanciam de nós, abusam de nós e por mais imponderável que seja não lembrar, assim mesmo não lembramos. Em primeira pessoa, não recordamos de nós mesmos. E esse esquecimento traça um caráter impróprio e às vezes falso, pois omite verdades libertadoras.”

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Atenção, é Primavera, a Quarta Estação

A raiz de tudo. A fome do chão. Tão abrasiva quanto a

raiz da sorte, a morte é certa, mas nesse caso, o que ocorreu, pode não ter sido.

No quadrante da arritmia aguda que se assanha em Ezequiel, no quarto vento que hoje bateu na janela escura, acenava com a mão maleavelmente mole uma mulher de que não se entendia a fala de antemão. Veio chamando alto e ansiosamente a alguns metros da porta.

Àquela hora da noite, nem Aurélio nem Ezequiel podiam imaginar o suscedâneo momento e evento que estava prometido.

Espada no cadáver Atinge o coração Vela acesa Impasse e Solidão Enerva a flor da pele Estatelada no chão Estava uma rosa roxa queimando debaixo do meu colchão Ezequiel sempre ficara consternado ao reparar que

Aurélio parecia ter sido bem criado. Notava a afeição que ele dirigia à Lís, afeição que era isenta de carência excessiva, sendo Aurélio o menino que não teve a oportunidade de conhecer sua mãe.

Tudo parecia se encaixar... Por um momento, Ezequiel pensou ao ver aquela

mulher na porta: “Parece-se ela com Aurélio!”

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Entrou, olhou, circundou a casa. Ezequiel não a questionou. Pensou, quanta gente

estranha entra, entranha e se estranha. Ezequiel estava levemente incomodado com a

situação, sentia uma angústia residual quase inominável. Atormentado com a sensação, parecia ele já conhecer aquela mulher já envelhecida de algum lugar longínquo.

O bico da bota da dita cuja estava em extremo desgasto, assim como sua pele em volta dos olhos asfixiados.

Ela quase não respirava. Dava para se ouvir os gemidos das gaivotas lá fora.

Enquanto ela estava ali parada, desconjurada, Aurélio desceu as escadas e por um momento vacilou seu movimento. Simulou um cumprimento, mas logo sentiu uma fisgada em seu apêndice. Não sabia muito bem se era seu apêndice, mas era tão doloroso quanto.

A quantidade de secretos pensamentos que pairou naquele instante no ar, foi como um completo tatear por meio a estrelas. Segurando pelo corrimão torcido das escadas da casa de Ezequiel, Aurélio se lançou ao meio da sala de estar e concentrou um olhar ameaçador para a mulher.

“Quem é você?”- Ele disse. “Você é Aurélio?”- Ela perguntou. “Sim”. “Explico-te:” “Sou eu, querido... Perdão... Meu nome é Berta, meu filho... Sou tua mãe!” Que telalgia senti quando tu ainda era meu! Pensei que isso iria durar para sempre e te entreguei

ao acaso...

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Pobre de mim, agora sofro e te fiz sofrer.” “Pobre de mim?” – Pensou Aurélio. Não precisava

ouvir mais nada. Berta não morreu, apodreceu. Aurélio saiu calado, dedicou um farto Boa-noite a

Ezequiel e prometeu nunca mais pensar naquela mulher que pensou nunca ter existido.

Raciocinou ele: “Vou me saindo. Tirando de mim essa vértebra torta

que calculei ainda estar aqui. Me enfastiei. Vou tratar de reorganizar meu colágeno e sair à vida.”

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Vida Particular

Essa senhora Santa fanha Não sabe o que é ser só Não sabe o que é sentir o pó Caindo no ar enquanto giro meu mundo semi-atento Se embrenhar no mato escuro do meu pensamento Pular nos galhos do silêncio termal do meu coração Que sempre esperou abocanhar a primeira maçã que [caísse no chão Mas não caiu Se espatifou Mas foi com tamanha beleza, que fez surgir uma [macieira em seu lugar Uma semente que era como uma tomada Que frutificava energia limpa em forma de poemas [ para uma amada.

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Moratória

Ezequiel e Aurélio. Ambos pediram moratória ao sofrimento. Foram ao monastério e se “prometeram” um ao outro. Pareciam marido e mulher às vésperas da contígua

vontade de núpcias postergada e prorrogada. Não pretendiam mais fazer leilão de seus desejos. Para que amplificarem seus desejos a ponto de neles

não conter serventia?

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Pepe

Pepe (Ou melhor, Pépe) não foi o mentor do destino de Aurélio. Direção não chancelada por Pepe. Aurélio criou-se sozinho praticamente. Não teve a chance de se desgastar na mão de pais remendados.

De Pepe foi levado o desencadear de uma vida. Embora parecesse que Berta havia implodido na morte

falsamente concebida por todos, a verdade dos fatos, que antes não fora descoberta por eles, acabou por honrar o nome de um homem desgastado pelo tempo.

Pepe não fora responsável por nada do ocorrido. Berta, assim que se descobriu grávida, deixou Pepe, e com seu desejo incondicional de fuga, afastaria de si tudo e todos. Pepe nunca soube de nada. Berta levou Aurélio praticamente roubado. Seus conflitos com Pepe soterraram a existência de Aurélio para ele. E após dois anos de sofreguidão de Berta, acumulou nela certa impaciência e grande dor física, o que logo interpretou como que tivesse sido causada pelo nascimento e existência do menino Aurélio. Deixou-o no orfanato, mudou de cidade, identidade, tudo... Quando o largou sem pai, nem mãe, e nem consideração, construiu uma mentira dizendo que ela cuidou do menino durante um tempo, pois sua verdadeira mãe havia morrido no parto. Ela soterrou documentos e provas que testemunhavam contra a sua história inventada.

Para Aurélio, apesar da relação com sua mãe nunca ter sido lembrada por ele, deixou alguma marca de vínculo, apesar dos passos em falso dela.

O sentimento de desconexão da realidade não era para Aurélio tão verdadeiro. À primeira vista, todos esses acontecimentos assemelhavam-se a um galanteio viral do destino, mas uma marca profunda desenterrou-se dele.

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Finalmente entendeu que a magia-mestre que estava em sua mente era de ordem latente, e escondia uma vontade oculta de vingança do pai. Mas o desenterrar caudaloso da verdade, antes escondida numa mentira constituída para um fim não tão moroso, desmontou um passado arcaico inventado pelo fantasma chamado Berta. Berta consagrou-se por criar uma montagem espífita e brejeira de uma história vital, que aparentemente sujaria a vida e aurora de Aurélio, e acabou por torná-lo inesperadamente o mais honroso imperador de si mesmo.

Aurélio adorou a ideia de um pai que não destronou-o de seu coração. Ele e Pepe tornaram-se figurinhas imbatíveis unidas. Agora eram figuras reais, não meras gravuras estampadas num castelo de cartas a desmoronar-se em um primeiro assopro.

Havia uma força centrífuga proscrita em Aurélio. O encontro com Pepe, creio não precisar descrever

aqui. Foi de uma escala e altura que só os cegos de visão e

leves de coração conseguem enxergar. Aurélio era um exemplo para Ezequiel. Ezequiel ou Pepe, se um ou outro, ou se outro,

encarnado em um só ser, era Aurélio... Ele, que no Firmamento a Aurora conduz, ferindo o céu com sua luz, era o único expoente capaz de alterar e elevar o céu de Ezequiel.

A essa altura da vida, encontrou o princípio ativo da sua existência.

Ezequiel não desiste... Ezequiel existe...

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Fim?

Ezequiel e Pepe, Aurélio, Lís. Precisava ainda de algo? Não desejo aqui contar o passado sôfrego de Lís. O futuro espirituoso de Ezequiel. Nem o presente áureo de Aurélio. Juntas no mesmo núcleo Reúnem-se em uma só gota d’água A Vida e a Morte Gota lilás e cheia de sorte.

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Pena que foi ontem

Pena que foi ontem Onde testei o passado para ver se era branco Nem branco nem preto No seu fundo ainda não escrito sempre gritou um presente colorido Entre o sono e a vigília está o Santo Graal que te convida Hoje é meu melhor martírio Eclode em mim A seu bel prazer E sem rima A vida.

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Agradecimentos

Meus profundos agradecimentos aos meus Pais, que durante todo

o tempo que estive (e estou) Aqui compartilhando este pedaço de chão com eles, sempre me apoiaram e estruturaram todo o meu Ser. Sou parte de vocês.

Agradeço aos mistérios Divinos, inspiradores. Agradeço aos meus bons amigos que tiveram a paciência de ler e

analisar as primeiras cópias do livro antes de publicado: Luís Augusto Morais, Nicolas Guto, Lucas Arantes, e Maria Inês. Ao Alexandre Carolo pela foto da “orelha” do livro.

Agradeço a meus grandes amigos, que independentemente de qualquer coisa, sempre foram meus compatriotas de apoio, de amizade sincera, de vivências musicais, e que fizeram eu ser quem eu sou. Vocês sabem quem vocês são. (Sempre quis dizer isso, rsrs... , em algum agradecimento...)

Agradeço a Luís Henrique Milan pela inspiração e o compartilhar da travessia psicoanalítica.

Agradeço e engrandeço também, (porque não?) a Poderosa Internet, na qual sem ela como ferramenta de pesquisa, seríamos muito mais pobres de conhecimento... rs

Abrs! Caio Garrido. Créditos: Arte da Capa- Jonas de Sene Blogs do autor: www.caiogarrido.blogspot.com www.psiqueativa.blogspot.com www.musicocontemporaneo.blogspot.com email: [email protected]