livro - o csnu - operações de paz e o brasil (eduardo uziel)

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O CONSELHO DE SEGURANA, AS OPERAES DE MANUTENO DA PAZ E A INSERO DO BRASIL NO MECANISMO DE SEGURANA COLETIVA DAS NAES UNIDAS

MINISTRIO DAS RELAES EXTERIORES

Ministro de Estado Secretrio-Geral

Embaixador Celso Amorim Embaixador Antonio de Aguiar Patriota

FUNDAO ALEXANDRE DE GUSMO

Presidente INSTITUTO RIO BRANCO Diretor-Geral

Embaixador Jeronimo Moscardo

Embaixador Georges Lamazire

A Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira.

Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo 70170-900 Braslia, DF Telefones: (61) 3411-6033/6034 Fax: (61) 3411-9125 Site: www.funag.gov.br

EDUARDO UZIEL

O Conselho de Segurana, as Operaes de Manuteno da Paz e a Insero do Brasil no Mecanismo de Segurana Coletiva das Naes Unidas

Braslia, 2010

Copyright Fundao Alexandre de Gusmo Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo 70170-900 Braslia DF Telefones: (61) 3411-6033/6034 Fax: (61) 3411-9125 Site: www.funag.gov.br E-mail: [email protected] Capa: Roberto Burle Marx, Sem ttulo. Kamanita, gravura, 40,01 x 53,98 cm, 1989.

Equipe Tcnica: Maria Marta Cezar Lopes Cntia Rejane Sousa Arajo Gonalves Erika Silva Nascimento Fabio Fonseca Rodrigues Jlia Lima Thomaz de Godoy Juliana Corra de Freitas Programao Visual e Diagramao: Juliana Orem e Maria Loureiro

Impresso no Brasil 2010 U99c Uziel, Eduardo. Conselho de segurana, as operaes e manuteno da paz e a insero do Brasil no mecanismo de segurana coletiva das Naes Unidas / Eduardo Uziel.Braslia : FUNAG, 2010. 244 p. : il. ; color. Quinquagsimo-quarto Curso de Altos Estudos. Instituto Rio Branco, MRE. 1. Manuteno da paz. 2. Segurana coletiva. 3. Misso de paz. 4. Misso diplomtica. I. Ttulo. CDU: 341.781

Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Lei n 10.994, de 14/12/2004.

A minha Me e Dica, zl.

Agradecimentos

A meu Pai, minhas irms, meus sobrinhos, por tudo. Kaska por ter mudado minha vida, para muito melhor. Ao Embaixador Paulo Tarrisse por ser um amigo, chefe e guru para as Naes Unidas. Aos Embaixadores Ronaldo Sardenberg, Henrique Valle, Piragibe Tarrag, Maria Luiza Viotti e Regina Dunlop, meus chefes em Nova York, pelos ensinamentos e oportunidades. Ao Embaixador Tadeu Valladares que teve a bravura de ler atentamente os rascunhos e ser sempre otimista. Ao Ministro Carlos Duarte, Conselheira Gilda e a todo o pessoal da DNU e do DOI durante o perodo de pesquisas por se inestimvel apoio. Ao Bruno, Alexandre e Matias por terem tido a pacincia de ler o texto e contribuir e aos colegas de Delbrasonu pela amizade. Aos funcionrios das bibliotecas Dag Hammarskjld das Naes Unidas, Antonio Azeredo da Silveira do Itamaraty e dos arquivos do Itamaraty, da Cmara dos Deputados e do Senado Federal por sua cooperao.

Abreviaturas e Siglas

So listadas abaixo as abreviaturas e siglas utilizadas neste trabalho. Quando necessrio para melhor compreenso, alm designao por extenso, formulada explicao sobre a utilizao da sigla ou opo entre duas existentes. AI-5 AGNU C-34 (C-33) Ato Institucional no. 5 Assembleia Geral das Naes Unidas Comit Especial sobre Operaes de Manuteno da Paz. Criado em 1965 com 33 membros, foi conhecido originalmente como C-33, passando designao C-34 em 1988, a qual mantm at hoje. Canad, Austrlia e Nova Zelndia Comunidade do Caribe Comisso de Construo da Paz Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa Conselho de Segurana das Naes Unidas Departamento de Apoio ao Terreno Misso do Representante do Secretrio-Geral na Repblica Dominicana Departamento de Operaes de Manuteno da Paz Conselho Econmico e Social

CANZ CARICOM CCP CPLP CSNU DFS DOMREP DPKO ECOSOC

E-10 EUA FFAA FMEI FMI GRULAC G-77 IBAS INTERFET LDN MD MINURCAT MINUSTAH MNA MONUC MPOG MRE ONG ONU

ONUC ONUMOZ OTAN P-3 P-5 PCCs PDD-25 PNUD

Os dez membros eletivos do Conselho de Segurana Estados Unidos da Amrica Foras Armadas Fora Multinacional de Emergncia Interina na Repblica Democrtica do Congo Fora Multinacional Interina no Haiti, estabelecida pela Resoluo 1529 (2004) Grupo Latino-Americano e Caribenho Grupo dos 77 e China Foro ndia-Brasil-frica do Sul Fora Internacional para Timor-Leste Liga das Naes Ministrio da Defesa Misso das Naes Unidas na Repblica CentroAfricana e no Chade Misso de Estabilizao das Naes Unidas no Haiti Movimento dos Pases No Alinhados Misso das Naes Unidas na Repblica Democrtica do Congo Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto Ministrio das Relaes Exteriores Organizao No Governamental Organizao das Naes Unidas. No corpo deste trabalho no se utiliza a sigla ONU, preferindo-se Naes Unidas ou a Organizao, termos mais consoantes Carta. A sigla foi mantida em citaes. Misso das Naes Unidas na Repblica do Congo Operao das Naes Unidas em Moambique Organizao do Tratado do Atlntico norte Membros permanentes ocidentais do Conselho de Segurana: EUA, Reino Unido e Frana Membros permanentes do Conselho de Segurana: EUA, Reino Unido, China, Rssia e Frana Pases contribuintes de policiais Deciso Diretiva Presidencial 25, de 3/5/1994, dos EUA Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento

RDC SGNU SNA SOFA TCCs TIAR TPI UA UE UNAMIR UNAMSIL UNAVEM III UNCIO UNCTAD UNDOF UNEF UNEF II UNFICYP UNIFIL UNIPOM UNITA UNITAF UNMEE UNMIK UNMISET UNMIT UNMOGIP

Repblica Democrtica do Congo Secretrio-Geral das Naes Unidas Aliana Nacional Somali Acordo sobre Status da Fora Pases contribuintes de tropas Tratado Interamericano de Assistncia Recproca Tribunal Penal Internacional Unio Africana Unio Europeia Misso das Naes Unidas em Ruanda Misso das Naes Unidas em Serra Leoa Misso de Verificao das Naes Unidas em Angola III Conferncia das Naes Unidas sobre Organizao Internacional Conferncia das Naes Unidas para o Comrcio e o Desenvolvimento Fora de Desengajamento das Naes Unidas Fora de Emergncia das Naes Unidas (19561967) Segunda Fora de Emergncia das Naes Unidas (1973-1979) Fora de Manuteno da Paz das Naes Unidas em Chipre Fora Interina das Naes Unidas no Lbano Misso de Observao das Naes Unidas ndiaPaquisto Unio para a Libertao Total de Angola Fora Tarefa Unificada Misso das Naes Unidas na Etipia e Eritreia Misso de Administrao Interina das Naes Unidas em Kossovo Misso das Naes Unidas de Assistncia a TimorLeste Misso Integrada das Naes Unidas em Timor-Leste Grupo de Observao das Naes Unidas na ndia e no Paquisto

UNMOVIC UNOGBIS UNOSOM I e II UNOTIL UNPROFOR UNSF UNTAET UNTAG UNTSO UNYOM URSS

Comisso das Naes Unidas de Monitoramento, Verificao e Inspeo Escritrio das Naes Unidas de Construo da Paz em Guin-Bissau Operao das Naes Unidas na Somlia Escritrio das Naes Unidas em Timor-Leste Fora de Proteo das Naes Unidas Fora de Segurana das Naes Unidas na Nova Guin Ocidental Administrao de Transio das Naes Unidas em Timor-Leste Grupo das Naes Unidas de Apoio Transio Organizao das Naes Unidas para Superviso da Trgua Misso de Observao das Naes Unidas no Imen Unio das Repblicas Socialistas Soviticas

Sumrio

Introduo, 17 O Conceito de Operaes de Manuteno da Paz, 19 O Conceito de Segurana Coletiva, 24 Potncias Grandes, Mdias e Pequenas nas Naes Unidas, 27 Estrutura do Trabalho e dos Captulos, 30 I. As Naes Unidas, a Segurana Coletiva e as Operaes de Manuteno da Paz, 33 I. 1. Introduo, 33 I. 2. Da Carta Resoluo Uniting for Peace, 34 I. 3. A Criao da UNEF e a Inovao representada pelas Misses de Paz, 45 I. 4. As Crises da Dcada de 1960 e as Misses de Paz at o Fim da Guerra Fria, 50 I. 5. A Emergncia das Misses de Paz como Instrumento de Segurana Coletiva aps 1988, 54 I. 6. O Relatrio Brahimi e seu Significado, 63 I. 7. O Novo Surto de Misses de Paz e seus Contribuintes de Tropas, 67 I. 8. Debates, Desafios e Estratgias Atuais, 74 I. 9. Concluses Preliminares,77

II. O Brasil e sua experincia nas Operaes de Manuteno da Paz, 79 II. 1. Introduo, 79 II. 2. A Atuao Brasileira de So Francisco a Suez, 80 II. 3. O caso e Ressurgimento do Ativismo Brasileiro, 85 II. 4. As Decises Brasileiras de Enviar Tropas para Misses de Paz, 89 II. 4. 1. Moambique ONUMOZ, 91 II. 4. 2. Angola UNAVEM III, 93 II. 4. 3. Timor-Leste UNTAET (2000)/UNMISET (2004), 93 II. 4. 4. Haiti MINUSTAH, 95 II. 4. 5. As Foras Multinacionais em Timor-Leste e na RDC, 97 II. 4. 6. Contribuies para Misses de Paz e Estratgias Brasileiras, 99 II. 5. Situao Atual e Perspectivas, 104 II. 6. Concluses Preliminares, 109 III. O Processo decisrio do Conselho de Segurana e as Operaes de Manuteno da Paz, 113 III. 1. Introduo, 113 III. 2. Estrutura, Procedimentos e Mtodos de Trabalho, 114 III. 3. As Decises do CSNU e suas Caractersticas, 121 III. 4. Membros Permanentes e Membros Eletivos, 126 III. 5. Foros Decisrios Multilaterais o Caso do CSNU, 129 III. 6. Prticas e Barganhas do CSNU em Relao s Operaes de Manuteno da Paz, 134 III. 7. O Papel do Secretariado e dos Grupos de Amigos, 138 III. 8. As Decises do Conselho de Segurana e as Misses de Paz Casos Exemplares, 144 III. 9. Perspectivas e Concluses Preliminares, 151 IV. O Brasil, o Conselho de Segurana e as Operaes de Manuteno da Paz, 155 IV. 1. Introduo, 155 IV. 2. A Experincia nos ltimos Binios e a Condio de Membro Eletivo do CSNU, 156 IV. 3. O Binio 2004-2005 e a Poltica do Brasil no Conselho de Segurana, 163 IV. 4. O Brasil como Membro do Conselho e as Operaes de Manuteno da Paz, 169

IV. 5. O Brasil e a Estruturao de Misses de Paz, 172 IV. 5. 1. Timor-Leste UNMISET (2004) e UNMIT (2006), 174 IV. 5. 2. Haiti MINUSTAH (2004 e 2007, 178 IV. 5. 3. Guin-Bissau UNOGBIS (2004 e 2008), 184 IV. 6. O Conselho de Segurana, as Misses de Paz e as Perspectivas para o Brasil, 187 IV. 7. Concluses Preliminares, 190 Concluso, 193 Bibliografia, 207

Introduo

Na ltima dcada, popularizou-se nas Naes Unidas a metfora segundo a qual as operaes de manuteno da paz so assimiladas a um corpo de bombeiros voluntrio. Nessa percepo, toda vez que surge um incndio, necessrio encontrar os cidados dispostos a trabalhar como bombeiros, trein-los, equip-los e envi-los para o local do fogo. Como explicou Kofi Annan no Relatrio do Milnio:Our system for launching operations has sometimes been compared to a volunteer fire department, but that description is too generous. Every time there is a fire, we must first find fire engines and the funds to run them before we can start dousing any flames1.

No entanto, para que essa figura de linguagem se torne mais adequada, necessrio ir alm dos elementos tradicionalmente mencionados. Em realidade, para que os bombeiros peacekeepers possam ser mobilizados, indispensvel que ocorra uma reunio da cmara de vereadores metafrica (nesse caso, o Conselho de Segurana), o rgo poltico que dever discutir se existe realmente um1 We the Peolpes the Role of the United nations in the twenty-first Century (A/54/2000). Nova York: Naes Unidas, 2000, pg. 37 ( 224).

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incndio, se conveniente apag-lo e a quem caberia essa tarefa. Se os vereadores concordarem que existe o fogo e sobre as outras questes, passaro a debater qual a estrutura e os recursos que sero dados ao corpo de bombeiros voluntrio, quanto tempo ele poder atuar e quais os limites de suas aes no combate ao fogo. S quando, e se, houver novo acordo sobre esses temas, ser autorizado o recrutamento desses bombeiros, cuja mobilizao depender, em alguns casos, de permisso a ser dada pelo prprio incendirio2. Essa imagem poderia se tornar ainda mais complexa se fossem adicionados elementos como, por exemplo, as segundas intenes dos bombeiros e dos vereadores ou as estratgias de venda dos fornecedores de equipamentos. Mas o importante passar do plano da linguagem figurada para o da anlise da realidade internacional. As operaes de manuteno da paz esto no mago de um complexo mecanismo de segurana coletiva que parte do funcionamento das Naes Unidas, e que hoje lida com alguns dos principais conflitos no mundo. Este trabalho tem por objetivo analisar as operaes de manuteno da paz como instrumento de atuao das Naes Unidas no cenrio internacional e como possvel meio de otimizao da atuao do Brasil na rea de paz e segurana internacionais, especificamente nos esforos multilaterais de encaminhamento e soluo pacfica de conflitos armados. Ser tambm estudada a dinmica poltica do Conselho de Segurana, a qual determina a estrutura e o mandato das misses, bem como a atuao brasileira recente naquele foro e possibilidades de ampliar o papel brasileiro no futuro. Conforme explicitado na metfora do corpo de bombeiros, no se trata de investigar os aspectos operacionais das misses de paz, mas antes os debates polticos que as definem e o sentido que ganham no contexto da poltica internacional. Em fins de 2009, as quinze operaes de manuteno da paz das Naes Unidas empregavam mais de 100 mil pessoas (includos militares, policiais e pessoal civil). As Naes Unidas comandam o segundo maior nmero de tropas em atividade atrs somente dos EUA. As misses de paz contam com oramento de cerca de US$ 7,8 bilhes de dlares para o perodo de 2008-2009 quase o triplo do oramento regular das Naes Unidas. Se, para um Estado, um esforo dessa natureza j seria muito2

Para um outro uso dessa metfora, ver Sitkowski, A. UN Peacekeeping Myth and Reality. Westport: Praeger, 2006, pg. 8.

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significativo, ainda mais surpreendente em se tratando de uma organizao internacional3. Apesar de seu valor considervel, as operaes de manuteno da paz representam apenas cerca de 0,5% dos gastos militares atuais (de um total de US$ 1.339 trilho por ano, aproximadamente). So tambm muito menos dispendiosas do que misses similares levadas a cabo pelos EUA4. O engajamento brasileiro na reforma do Conselho de Segurana e a busca de um assento permanente em eventual configurao expandida do testemunho da importncia atribuda pelo Brasil ao CSNU como pea central da poltica global. Como afirmou o Presidente Lula, nenhum organismo pode substituir as Naes Unidas na misso de assegurar ao mundo convergncia em torno de objetivos comuns. S o Conselho de Segurana pode conferir legitimidade s aes no campo da paz e da segurana internacionais5. O Conselho, por sua vez, tem as misses de paz como seu principal instrumento de atuao direta nas crises e conflitos internacionais. Nesta introduo, sero discutidos, inicialmente, trs conceitos que permearo todo o trabalho: a definio de operaes de manuteno da paz; a ideia de segurana coletiva; e a diferenciao entre potncias grandes, mdias e pequenas no mbito das Naes Unidas. Em seguida se passar a uma breve descrio dos quatro Captulos que compem o trabalho, seus objetivos e estrutura. O Conceito de Operaes de Manuteno da Paz No h uma deciso das Naes Unidas que defina o que so operaes de manuteno da paz. Na dcada de 1970, quando foi feita uma tentativa de defini-las, o Comit Especial de Operaes de Manuteno da Paz no chegou a uma concluso. Nem mesmo sobre a terminologia existe um acordo alguns preferem peace operations, outros, peacekeeping operations,Dados disponveis no endereo www.un.org/Depts/dpko/dpko/bnote.htm, acessado em 23/ 11/2008; Approved resources for peacekeeping operations for the period from 1 July 2008 to 30 June 2009 (A/C.5/62/31). Nova York: Naes Unidas, 2008. 4 Security Council Report. Collective Security and Armament Regulation. Nova York: Security Council Report, 2008, pg. 7; United States Government Accountability Office. Peacekeeping: Cost Comparison of Actual UN and Hypothetical U.S. Operations in Haiti. Washington: GAO, 2006. 5 Seixas Corra, L. F. (org.). O Brasil nas Naes Unidas (1946-2006). Braslia: FUNAG, 2007, pg. 721.3

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outros peacekeeping missions ou ainda peace forces. Esse complexo campo terminolgico e conceitual reflete razes histricas e polticas6. Do ponto de vista histrico, as misses de paz surgiram de modo improvisado, no estando previstas na Carta de So Francisco, e se consolidaram ao longo de muitos anos. Como afirma Boyd, as Naes Unidas tm uma natural dificuldade em concordar sobre um nome a ser dado a qualquer fenmeno. Isso ocorre porque os Estados tendem a desconfiar que uma designao mascara interesses de outros Estados em controlar aquele instrumento e exclu-los da possibilidade de influir nas decises mais relevantes o que, por vezes, verdade. Como resultado, proliferaram as designaes atribudas a essas operaes, organizadas desde os anos 1940, mas que ganharam fora a partir de 19567. Politicamente, a terminologia utilizada reflete posies e preferncias de pases e grupos de pases, expressas nos rgos intergovernamentais das Naes Unidas que tratam do tema, tais como o Conselho de Segurana, o Comit Especial de Operaes de Manuteno da Paz e a V Comisso da Assembleia Geral. Esses rgos no primam pela coerncia em suas decises e costumam estabelecer misses de paz cujos nomes variam ou introduzem novos termos sem qualquer rigor conceitual. A mais recente das controvrsias sobre a terminologia ope o termo peace operations a peacekeeping operations. Os defensores da primeira expresso argumentam que existe uma ampla gama de operaes de paz, empreendidas por muitos pases e organismos internacionais, entre as quais esto as misses das Naes Unidas. Nesse sentido, peace operations seria um termo mais amplo que englobaria peacekeeping operations e deveria ser preferido nos documentos da Organizao. Essa posio abriga vrias posturas polticas. Para o Canad e a Unio Europeia, por exemplo, trata-se de legitimar as misses que levam a cabo por meio de seus arranjos regionais e de defesa ou individualmente, que no contam com o reconhecimento de que desfrutam as Naes Unidas. Para os EUA, por sua vez, peace operations contemplaria qualquer operao militar diferente de guerra declarada,Eleventh Report of the Working Group (A/AC.121/L.3). Nova York: Naes Unidas, 1977. A revista The Economist refletiu essa situao: Call it peacekeeping, peace-enforcement, stabilisation or anything else, but one thing is clear: the worlds soldiers are busier than ever operating in the wide grey zone between war and peace, em Call the blue helmets. In. The Economist, 6/1/2007, pg 22. 7 Boyd, A. Fifteen Men on a Powder Keg. Nova York: Stein and Day, 1971, pp. 222-223.6

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prescindiria do consentimento das partes e incluiria, por exemplo, a invaso e ocupao do Iraque em 20038. Essa posio conta com respaldo acadmico. Alguns, como Kimberley Marten, defendem que as antigas potncias coloniais esto mais bem qualificadas para atuar em misses de paz por entenderem a dinmica das intervenes estrangeiras; outros, como Roland Paris, argumentam que a soberania e o consentimento das partes no so realmente relevantes, podendo ser descartadas; Daniel e Caraher, ainda, consideram que no h diferena real entre as operaes das Naes Unidas e a presena dos EUA no Iraque. A influente publicao Global Peace Operations, da New York University, faz diferenciao ente UN missions e non-UN missions, mas as considera parte de um mesmo fenmeno9. O uso da expresso peacekeeping operations defendido pelos principais contribuintes de tropas das operaes de manuteno da paz das Naes Unidas, os quais, de modo geral, so pases em desenvolvimento. Os membros do Movimento dos Pases No Alinhados (MNA) so particularmente aguerridos, alegando que o termo peace operations seria parte de um processo que acabaria por desconsiderar a soberania dos Estados no ocidentais e convalidaria intervenes internacionais realizadas por EUA, Unio Europeia, OTAN e, no futuro, at mesmo pelas Naes Unidas. O Brasil e os pases da Amrica Latina compartilham, em grande medida, a preferncia pelo termo peacekeeping operations10. Como resultado da controvrsia, o prprio Comit Especial no pde chegar a uma deciso conclusiva e apenas manteve a terminologia tradicional11. O Secretariado, por seu turno, em seus documentos internos, oscila entre

Entrevista com diplomatas estrangeiros. Em vista da solicitao de confidencialidade com respeito s entrevistas concedidas ao autor, sero feitas referncias apenas a categorias genricas: diplomata brasileiro, diplomata estrangeiro, militar brasileiro e funcionrio das Naes Unidas. 9 Marten, K. Enforcing the Peace. Learning from the Imperial Past. Nova York: Columbia University Press, 2004; Paris, R. Peacekeeping and the Constraints of Global Culture. In. Journal of Peace Research, vol. 32, no. 2, 1995; Daniel, D. e Caraher, L. Characteristics of Troop Contributors to Peace Operations and Implications for Global Capacity. In. International Peacekeeping, vol. 13, no. 3, 2006; Center on International Cooperation. Global Peace Operations 2008. Boulder: Lynne Rienner Publishers, 2008. 10 Entrevista com diplomata estrangeiro. 11 Report of the Special Committee on Peacekeeping Operations and its Working Group (A/61/ 19). Nova York: Naes Unidas, 2007, pg. 19 ( 117): The Special Committee (...) looks forward to undertake a meaningful exchange with a view to reaching a consensus on the definition and use of such terms as peacekeeping and peace operations, among others.8

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vrios termos, razo por que sofre crticas dos Estados membros. Para efeitos deste trabalho, sero adotadas as expresses operaes de manuteno da paz e misses de paz, que tero o mesmo significado ao longo do texto. Estabelecida a terminologia, necessrio delinear com mais clareza o fenmeno a que ela se refere. A maioria dos autores opta por definies que lidam, sobretudo, com as caractersticas operacionais e com os objetivos das misses de paz no terreno. Assim, Paulo R. C. T. da Fontoura explicita sua definio de peacekeeping:(...) trata das atividades levadas a cabo no terreno com o consentimento das partes em conflito, por militares, policiais e civis, para implementar ou monitorar a execuo de arranjos relativos ao controle de conflitos (...) e sua soluo (...), em complemento aos esforos polticos realizados para encontrar uma soluo pacfica e duradoura para o conflito 12.

Para este trabalho, porm, importante explorar outros aspectos das misses de paz, marcadamente os rgos que as estabelecem e comandam, visto que sua poltica ser objeto de anlise. Nesse sentido, a definio de operaes de manuteno da paz a ser seguida ser: operaes estabelecidas pelo Conselho de Segurana ou pela Assembleia Geral das Naes Unidas, de quem recebem mandatos e a quem se reportam periodicamente, que so financiadas por contribuies de todos os membros das Naes Unidas e esto sob comando e controle do Secretrio-Geral e do Departamento de Operaes de Manuteno da Paz (DPKO); englobam militares, policiais e civis e, no terreno visam a controlar ou resolver conflitos, respeitando os princpios da imparcialidade, consentimento das partes e uso da fora somente em legtima defesa. Os princpios bsicos das operaes de manuteno da paz foram inicialmente compilados pelo Secretariado aps a experincia da UNEF, em Suez. Embora sua validade seja questionada por alguns Estados, so entendidos por todos: 1) imparcialidade significa que os peacekeepers no so desdobrados13 para ganhar a guerra em nome de uma das partes, mas antes para ajud-las12 Fontoura, P. R. C. T. O Brasil e as Operaes de Manuteno da Paz das Naes Unidas. Braslia: FUNAG, 1999, pg. 32. 13 O verbo desdobrar utilizado, ao longo do texto, por falta de melhor palavra, para traduzir o termo deploy.

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a chegar paz. No se confunde com a neutralidade, porque no pode haver omisso em vista de atos que contrariem os mandatos; 2) consentimento das partes a necessidade de que os grupos em conflito concordem com a presena das Naes Unidas. Nos atuais conflitos, pode ser difcil identificar quem so as partes legtimas, mas isso no exclui a necessidade de que se obtenha algum tipo de acordo para o desdobramento das misses. Em ltima instncia, a definio de quem parte caber ao CSNU e ao Secretariado; 3) uso da fora somente em legtima defesa o compromisso de que os peacekeepers evitaro ao mximo o uso da fora, o que no significa que devero se deixar agredir pelas partes em conflito e podem agir preventivamente14. A definio apresentada no arbitrria e se liga diretamente ao propsito de analisar a poltica interna das Naes Unidas como central na estruturao e execuo das misses. As operaes de manuteno da paz das Naes Unidas apresentam natureza diversa de outras misses militares existentes tanto pelo processo decisrio que as estabelece quanto pelo modo de gerenci-las. Nenhuma outra organizao internacional adota, ao mesmo tempo, o princpio da igualdade soberana dos Estados e composta por grupo to amplo e heterogneo de pases. Essas caractersticas da Organizao singularizam suas misses de paz15. Para maior clareza, necessrio fazer duas distines e uma ressalva. As Naes Unidas tambm estabelecem misses polticas especiais que, administrativamente, so distintas das operaes de manuteno da paz. O processo decisrio de sua criao e seus mandatos, porm, so bastante semelhantes. Por isso, no se incluiro nos nmeros computados de operaes de manuteno da paz as misses polticas especiais, mas,

United Nations Peacekeeping Operations: Principles and Guidelines. Nova York: DPKO, 2008, pp. 31-35. Vale recordar que o termo em ingls self-defense compreende apenas a defesa de si, razo pela qual foi necessrio acrescentar ao longo do tempo a expresso except in self-defense and defense of the mandate. Em portugus, porm, a expresso legtima defesa inclui qualquer bem jurdico protegido, inclusive os de terceiras pessoas, razo pela qual no necessita de complemento. Para uma discusso abrangente do termo no direito brasileiro, ver Hungria, N. Comentrios ao Cdigo Penal, volume I. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1949, pp. 444-468. 15 Diehl, P. Forks in the road: Theoretical and Policy Concerns for 21st Century Peacekeeping. In. Global Society, vol. 14, no. 3, 2000, pp. 339-342.14

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no Captulo IV, o processo de modificao do mandato de uma delas, o UNOGBIS, em Guin-Bissau, ser analisado. Outra distino diz respeito s foras multinacionais criadas com autorizao do Conselho de Segurana. Elas no esto sob comando e controle do Secretrio-Geral e no so financiadas por todos os Estados membros das Naes Unidas. Essas foras multinacionais no so consideradas como misses de paz neste trabalho 16. indispensvel ressalvar que as operaes de manuteno da paz foram originalmente estabelecidas nos anos 1940, com as pioneiras UNSCOB (Blcs), UNTSO (Palestina) e UNMOGIP (ndia-Paquisto). Em vista, porm, de serem misses muito reduzidas, compostas de observadores, no sero objeto de particular ateno. Este trabalho se concentra nas operaes que contaram ou contam com tropas, a comear pela UNEF (estabelecida em 1956) e que foram um mtodo de soluo das dificuldades enfrentadas pelo mecanismo de segurana coletiva. O Conceito de Segurana Coletiva A ideia de que os Estados poderiam estabelecer um sistema de segurana coletiva que substitusse as alianas e o equilbrio de poder ganhou realmente fora ao fim da Primeira Guerra Mundial, com as propostas do Presidente estadunidense Woodrow Wilson e, no Tratado de Versalhes, com o estabelecimento da Liga das Naes (LDN). O princpio operativo do mecanismo da Liga era o das obrigaes morais universais. A Segunda Guerra Mundial e o evidente fracasso da LDN levaram a uma nova onda de consideraes sobre a viabilidade da segurana coletiva17. No h um consenso sobre o conceito de segurana coletiva. Nos primeiros anos aps o estabelecimento das Naes Unidas e nos anos aps o fim da Guerra Fria, quando a Organizao se viu revitalizada, foram vigorosas as discusses sobre o tema. Em ambos os casos, houve forte tendncia de alguns autores a adotar um conceito rigorista. Inis Claude Jr., escrevendo16 Uziel, E. Trs questes empricas, uma terica e a participao do Brasil em operaes de paz das Naes Unidas. In. Poltica Externa, vol. 14, no. 4, 2006, pg. 92. 17 Haas, E. Types of Collective Security: an Examination of Operational Concepts. In. The American Political Science Review, vol. 49, no. 1, 1955, pp. 40-41; Armstrong, D.; Lloyd, L.; e Redmond, J. From Versailles to Maastricht. Nova York: St. Martins Press, 1996, pp. 62-67.

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originalmente em meados da dcada de 1950, argumentou em favor de uma definio estrita, que colocava a segurana coletiva em oposio direta ao equilbrio de poder. Nessa concepo, deveria haver no s um compromisso de todos os Estados com o sistema, mas tambm as ideias de uma paz indivisvel e de uma submisso do interesse nacional ao coletivo. Ademais, significativa difuso e homogeneidade de poder deveriam caracterizar o mundo para que a segurana coletiva pudesse funcionar. Como resultado dessa viso exigente, comparvel ao mercado perfeito para os economistas clssicos, Claude descartou as Naes Unidas como forma de segurana coletiva, dado o poder concentrado nos cinco membros permanentes do Conselho de Segurana e os interesses nacionais que prevaleciam. Adam Roberts, escrevendo no incio dos anos 1990, tambm no viu perspectivas reais de que o sistema das Naes Unidas se afirmasse como uma forma de segurana coletiva. Nesse caso, as principais dificuldades apontadas seriam os double standards aplicados pelo CSNU, a desconfiana de alguns pases em relao a outros, a impossibilidade de obter unanimidade quanto s medidas a serem aplicadas a um Estado agressor e os custos inerentes ao sistema. Roberts concluiu, ento, que a segurana coletiva no deveria ser vista como um mecanismo perene, mas como uma possibilidade ocasional18. Essas avaliaes exigentes do que seria a segurana coletiva no foram predominantes. Desde o estabelecimento das Naes Unidas houve analistas, como Ernest Haas, que reconheceram o impasse do Conselho de Segurana criado pelas discordncias entre os cinco membros permanentes. Haas assinalou, porm, que a ausncia do funcionamento integral no implicava o fracasso da segurana coletiva e, ainda nos primeiros anos da Organizao, indicou vrios xitos. Postulou tambm que poderia ser traado um contnuo de modalidades de segurana coletiva, as quais atentassem mais para solues pragmticas do que para as exigncias tericas19. O prprio Inis Claude Jr., em outra obra, matizou suas observaes e concordou com a ideia de um espectro que vai do equilbrio de poder ao18 Claude Jr., I. L. Swords into Plowshares. The problems and progress of international organization. Nova York: Random House, 1964, pp. 232-248; Roberts, A. The United Nations and International Security. In. Survival, vol. 35, no. 2, 1993, pp. 23-26. 19 Haas, E. Types of Collective Security: an Examination of Operational Concepts. In. The American Political Science Review, vol. 49, no. 1, 1955, pp. 40-62.

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Estado global e que tem a segurana coletiva em seu centro. Afirma que se trata de fenmeno conectado s organizaes internacionais e que tem por objetivos reduzir o abuso de poder, desencorajar a competio violenta e promover a paz. Opinou que, em 1945, se criou um mecanismo de segurana coletiva, mas que no era aplicvel aos cinco membros permanentes20. Escrevendo na dcada de 1990, Kupchan e Kupchan atriburam s instituies multilaterais a capacidade de criar em seus membros a expectativa de que recebero benefcios uniformes se demonstrarem atitudes colaborativas. Nesse sentido, no viram na segurana coletiva o rechao da prpria ideia de equilbrio de poder, mas sua otimizao. Aduziram que deveria haver um mnimo de compatibilidade entre as grandes potncias, como a que se podia ver em ao naquele momento histrico21. Apesar das divergncias sobre o alcance do conceito, os principais analistas concordam que a segurana coletiva no pode ser confundida com a autodefesa coletiva. Arnold Wolfers, procura afastar em termos tericos e prticos as Naes Unidas das alianas militares como a OTAN e o TIAR, que proliferaram no incio da Guerra Fria. A autodefesa coletiva pertence esfera do realismo tradicional, voltada contra um adversrio conhecido; a segurana coletiva pertence esfera wilsoniana de uma comunidade de naes voltadas contra a agresso. Pondera, porm, que os dois sistemas podem se chocar ou ser complementares. Claude considerou tambm que as tentativas de assimilar a segurana coletiva e a autodefesa coletiva so despropositadas22. Este trabalho considerar que o mecanismo estabelecido pela Carta das Naes Unidas em 1945 uma forma de segurana coletiva, e sua evoluo e percalos sero analisados ao longo do Captulo I. Suas caractersticas principais so: 1) a paz como objetivo ltimo, sendo a guerra, em princpio, banida, e a conquista territorial, ilegal; 2) a agncia organizadora das aes

Claude Jr., Inis L. Power and International Relations. Nova York: Random House, 1962, pp. 106-117. 21 Kupchan, C. e Kupchan, C. The Promise of Collective Security. In. Brown, Michael; Cot, Owen; Lynn-Jones, Sean; e Miller, Steven. Theories of War and Peace. Cambridge: MIT Press, 1998, pp. 397-402. 22 Wolfers, Arnold. Discord and Collaboration. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1981, pp. 184-196; Claude Jr., I. L. Swords into Plowshares. The problems and progress of international organization. Nova York: Random House, 1964, pp. 223-226. Ver tambm: Weiss, T.; Forsythe, D. e Coate, R. The United Nations and Changing World Politics. Boulder: Westview Press, 2004, pg. 8.20

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de segurana coletiva de composio quase universal e opera por um princpio, ainda que matizado, de igualdade soberana; 3) as decises sobre aes a serem empreendidas em conflitos armados so tomadas por rgos coletivos e, ao menos do ponto de vista formal, representativos, constitudos anteriormente aos casos com os quais lidam. No h necessidade de que a segurana coletiva funcione para todos os conflitos e de maneira uniforme a existncia desse mecanismo no anula a existncia de relaes de poder entre os Estados mas ela representa fonte indiscutvel de legitimidade23. As operaes de manuteno da paz so, nesse contexto, parte integral do mecanismo de segurana coletiva das Naes Unidas, tal como tem existido e funcionado desde o fim da Guerra Fria. Uma ressalva necessria neste ponto. Este trabalho visa a analisar o funcionamento quotidiano do mecanismo de segurana coletiva tal como ele existe e no as tentativas de reform-lo. Por esse motivo, no so abordadas em profundidade as posies e propostas relativas reforma do Conselho de Segurana, salvo para explicitar casos em que a participao em misses de paz foi utilizada como parte de uma argumentao sobre a reforma. Potncias Grandes, Mdias e Pequenas nas Naes Unidas O artigo 2.1. da carta das Naes Unidas consagra o princpio da igualdade soberana dos Estados mas isso nunca significou para os pases membros que deixassem de existir as diferenas de influncia e de poder. A Organizao marcada desde o incio pela existncia de Estados mais poderosos e influentes, o que fica claro na existncia do veto e de assentos permanentes no Conselho de Segurana24. No se trata aqui de estabelecer uma classificao geral ou uma hierarquia entre os Estados na ordem internacional, mas antes de delinear, como forma de orientao, algumas categorias de Estados, no mbito da Organizao, na rea de paz e segurana. A prpria ideia de uma classificao precisa entre os Estados criticada. Andrew Hurrell, por exemplo, no v sentido em uma categoria de potnciasFonseca Jr., G. Legitimidade Internacional: uma aproximao didtica. In. A Legitimidade e outras Questes Internacionais. So Paulo: Paz e Terra, 1998, pp. 151-153. Ver tambm: O interesse e a regra ensaios sobre o multilateralismo. So Paulo: Paz e Terra, 2008, pp. 26-27. 24 Hurrell, A. Hegemony, liberalism and global order: what space for would-be great powers. In. International Affairs, vol. 82, no. 1, 2006, pg. 10.23

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mdias (middle powers) porque seria muito difcil de encontrar atributos comuns a todos os pases que afirmam estar nessa categoria e ainda mais improvvel identificar estratgias semelhantes de poltica externa. Nesse sentido, considera que a condio de potncia mdia serviria, sobretudo, como um artifcio retrico na narrativa das polticas externas. Admite, entretanto, que, em alguns contextos, Estados que compartilham um certo patamar de influncia regional e peso poltico e econmico acabam por ter comportamentos empiricamente semelhantes e criam uma identidade como grupo25. Os autores que advogam o conceito de potncias mdias ou intermedirias concordam que a definio tem muito de subjetivo e circunstancial26. Dois fatores, que influem diretamente no caso das Naes Unidas, devem ser comentados sobre a dificuldade de definir uma escala de potncias. Em primeiro lugar, ao longo do tempo, a evoluo normal, econmica, social e poltica, dos Estados altera suas caractersticas e sua posio de poder. Exemplos claros so Japo, Alemanha, Itlia e China os trs primeiros, derrotados na Segunda Guerra, retomaram posies de relevncia, partindo quase do zero27; a China passou de aliado menor a potencial rival dos EUA. Em segundo lugar, sendo a hierarquia um conceito essencialmente relacional, a posio relativa de cada Estado se altera com o ingresso de outros na Organizao. Assim, pases como Colmbia ou a Blgica, que exerceram papel destacado nos primeiros anos das Naes Unidas, perderam espao e relevncia com o aumento do nmero e da diversidade de membros. Robert Keohane props, na dcada de 1960, uma categorizao dos Estados, tendo em conta sua capacidade de influenciar decises, a qual se mostra relevante para uma organizao como as Naes Unidas, com um conjunto de regras estruturais definidas. Para o autor, haveria potncias:

Hurrell, A. Some Reflections on the Role of Intermediate Powers in International Institutions. In. Hurrell, A. et al. Paths to Power: Foreign Policy Strategies of Intermediate States. Washington: Woodrow Wilson International Center, Working Paper Nr. 244, 2000; e Hegemony, liberalism and global order: what space for would-be great powers. In. International Affairs, vol. 82, no. 1, 2006, pp. 1-3. 26 Sennes, R. Brasil, Mxico e ndia na Rodada Uruguai do GATT e no Conselho de Segurana da ONU: um estudo sobre pases intermedirios. Tese de Doutorado, Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica, USP, So Paulo, 2001, pp. 24-26. 27 Basta recordar o artigo 53.2. da carta: The term enemy state as used in paragraph 1 of this Article applies to any state which during the Second World War has been an enemy of any signatory of the present Charter.25

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grandes, que desempenham papel central na maioria das decises; secundrias, que no tm perspectiva de dominar todo o sistema, mas podem influenciar significativamente algumas reas; mdias, que, sozinhas, no so capazes de afetar decises, mas que podem faz-lo em conjunto; e pequenas, que esto fadadas a no influir diretamente e a no liderar os grupos relevantes28. A fim de atualizar essa classificao e de torn-la mais simples e adaptada realidade das Naes Unidas e do Conselho de Segurana, este trabalho considerar as seguintes categorias: 1) grandes potncias, que ocupam os assentos permanentes no CSNU (EUA, Rssia, China, Reino Unido e Frana, ditos, em conjunto, P-5) e que desfrutam de poderes especiais na Organizao; 2) potncias mdias, que, por seu peso poltico, econmico ou contribuies para misses de paz, tm a possibilidade de influenciar decises ou de coordenar grupos que as influenciem (incluiriam Brasil, Argentina, Mxico, ndia, Paquisto, Japo, frica do Sul, Nigria, Egito, Alemanha, Itlia, Espanha, entre outros); 3) pequenas potncias, que, mesmo quando integram o Conselho, tm poucas possibilidades de fazer a diferena no processo decisrio. Deve estar claro que essa classificao no exaustiva e, por esse motivo, ao longo do trabalho haver esforo para indicar de que pases se trata. Mas a categoria de potncias mdias permanece por demais ampla, reunindo pases desenvolvidos e em desenvolvimento, com agendas e estratgias muito dspares na Organizao. A fim de mitigar essa dificuldade, este trabalho tambm adotar a classificao proposta por Jordaan para diferenciar entre potncias mdias tradicionais e potncias mdias emergentes. Tradicionais so normalmente pases desenvolvidos, que cresceram no cenrio mundial durante a Guerra Fria, so democracias liberais e, de modo geral, tm vizinhos de poderio semelhante. As emergentes so pases em desenvolvimento, com transio recente para a democracia ou ainda em regimes autoritrios, e que se destacam em suas vizinhanas29. Independentemente da sub-categorizao das potncias mdias, os autores indicam que elas compartilham um interesse em fortalecer as organizaes internacionais, que tambm agrada os pequenos. Esses organismos oferecem

Keohane, R. LilliputiansDilemmas: Small States in International Politics. In. International Organization, vol. 23, no. 2, 1969, pp. 295-296. 29 Jordaan, E. The concept of a middle power in international relations: distinguishing between emerging and traditional middle powers. In. Politikon, vol. 30, no. 2, 2003.28

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igualdade, mesmo que formal, reconhecimento como membro de uma comunidade, facilidade para articular estratgias comuns e limitaes institucionais para as grandes potncias. O comportamento das potncias mdias no mbito das organizaes internacionais e, em particular, das Naes Unidas tende a ser construtivo e a favorecer a formao do consenso. Isso deriva do interesse de manter o funcionamento do sistema como um todo e evitar desistncias por parte dos grandes. Isso no significa que os pases mdios no bloquearo decises, mas que o faro cautelosamente e procuraro circunscrever essas iniciativas a reas especficas30. O Brasil, por suas dimenses geogrfica, econmica, poltica e pela atuao nos foros das Naes Unidas, inclusive o Conselho de Segurana, considerado como uma potncia mdia. Como pas em desenvolvimento, uma potncia mdia emergente, com apreo pelo multilateralismo, atitude construtiva e poltica externa que investe em atuaes autnomas. Por suas caractersticas prprias se posiciona de maneira privilegiada para construir pontes e formar consensos. Embora questione aspectos da estrutura das Naes Unidas (notadamente a composio do Conselho de Segurana), tende a faz-lo de modo a no afetar seu funcionamento quotidiano31. Estrutura do Trabalho e dos Captulos Este trabalho se desenvolve em dois blocos principais: um primeiro histrico e um segundo de anlise da dinmica poltica atual das Naes Unidas. Na primeira parte, sero debatidos os conceitos bsicos sobre a segurana coletiva e as operaes de manuteno da paz, por meio da anlise de sua evoluo. Ainda nessa parte, ser traado o histrico da contribuio brasileira para as misses de paz ao longo das ltimas seis dcadas, com particular nfase nos

30 Keohane, R. Lilliputians Dilemmas: Small States in International Politics. In. International Organization, vol. 23, no. 2, 1969, pp. 294-297; Hurrell, A. Some Reflections on the Role of Intermediate Powers in International Institutions. In. Hurrell, A. et al. Paths to Power: Foreign Policy Strategies of Intermediate States. Washington: Woodrow Wilson International Center, Working Paper Nr. 244, 2000, pp. 4; Jordaan, E. The concept of a middle power in international relations: distinguishing between emerging and traditional middle powers. In. Politikon, vol. 30, no. 2, 2003, pp. 166-171. 31 Lima, Maria R. S. e Hirst, M. Brazil as an intermediate state and regional power. In. International Affairs, vol. 82, no. 1, 2006; Lima, Maria R. S. Emergence on Global Stage Leaves Brazilians Divided. In. Spiegel Online, 8/10/2008, disponvel no endereo ww.spiegel.de/ international/world/0,1518,druck-582861,00.html, acessado em 10/10/2008.

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ltimos anos. Na segunda parte, ser traado um modelo para explicitar a dinmica atual do Conselho de Segurana no que concerne ao estabelecimento e conduo das operaes de manuteno da paz. Como elemento da segunda parte, ser analisada a atuao do Brasil no Conselho de Segurana desde a dcada de 1990, com particular ateno para o mandato eletivo no binio 2004-2005. Sero identificados os principais desafios da participao brasileira na rea de operaes de manuteno da paz e as estratgias empregadas para permitir que as perspectivas nacionais fossem contempladas. O trabalho est dividido em quatro Captulos: os Captulos I e III tratam da situao geral das Naes Unidas, das misses de paz e do Conselho de Segurana; os Captulos II e IV lidam com a atuao brasileira na Organizao, nas operaes de manuteno da paz e no mbito do CSNU. No Captulo I, o objetivo analisar historicamente a formao e evoluo do mecanismo de segurana coletiva e como as misses de paz gradativamente se tornaram um aspecto indissocivel dos esforos de manuteno da paz e segurana internacionais. O Captulo II tambm adota uma perspectiva histrica e busca explicitar as razes e circunstncias que levaram o Brasil a tomar parte no mecanismo de segurana coletiva das Naes Unidas e em vrias das misses de paz, bem como a, de modo geral, apoiar a implementao desse instrumento. O Captulo III prope-se a analisar o funcionamento do Conselho de Segurana, como principal foro na rea de paz e segurana, com especial nfase em seu processo decisrio e em suas prticas relativas s operaes de manuteno da paz. importante frisar que a ateno ao Conselho de Segurana no significa afirmar que todos os conflitos esto submetidos a sua considerao. Embora o rgo possa teoricamente tratar de qualquer ameaa paz ou rompimento da paz, h casos em que claramente o CSNU no pode agir. Mas tambm, em outros, o CSNU prefere muitas vezes acompanhar esforos alheios, sempre disposto a intervir se necessrio e se forem encontrados os acordos indispensveis entre seus membros. O Captulo IV busca compreender a atuao brasileira no Conselho de Segurana em seus mandatos mais recentes e, especificamente, a capacidade do pas de influir nas decises do rgo, sobretudo no que concerne a operaes de manuteno da paz. A Concluso deste trabalho procurar recapitular os principais temas, estrutur-los de modo a evidenciar a dinmica poltica do mecanismo de segurana coletiva e indicar como podem confluir para fortalecer a posio brasileira nas questes de paz e segurana nas Naes Unidas.

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I - As Naes Unidas, a Segurana Coletiva e as Operaes de Manuteno da Paz

I. 1. Introduo A deciso tomada pelas grandes potncias, ao final da Segunda Guerra Mundial, de dotar o sistema internacional de um mecanismo de segurana coletiva que prevenisse futuros enfrentamentos da mesma magnitude destruidora teve papel estruturante no cenrio mundial. A criao das Naes Unidas objetivou dar concretude a essa deciso. Pelas razes que sero discutidas adiante, porm, o mecanismo de segurana coletiva no se mostrou inteiramente funcional. Mas essa aparente falha explicitou uma importante qualidade da nova Organizao a de adaptar-se. Como explica Hans Morgenthau, as transformaes por que passaram as Naes Unidas na prtica, em contraste com a arquitetura da Carta, indicam no s uma mudana das funes polticas exercidas, mas tambm do prprio carter da Organizao:In order to understand the constitutional functions and actual operations of the United Nations, it is necessary to distinguish sharply between the constitutional provisions of the Charter and the manner in which the agencies of the United Nations, under the pressure of unforeseen political circumstances have actually performed their functions under the Charter32.Morghentau, H. Politics among Nations. Nova York: Alfred A. Knopf, 1973 (5a edio), pg. 455.32

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Inis Claude Jr., por sua vez, assinala que o processo de organizao uma caracterstica marcante do sistema internacional do sculo XX. Suas bases no so apenas os esquemas dispostos nas cartas fundadoras, mas antes o contexto poltico dos interesses de poder e a configurao do sistema. Seu maquinrio desenhado para manter uma ordem especfica, e sua capacidade adaptativa s mudanas do poder define sua habilidade de sobreviver33. Claude afirma:International organization is a product of international politics, which largely determines its shape and the course of its development. On the other hand, there is a mutuality of interaction, with international organization becoming a factor influencing the course of international politics (). Their actual operations can only be understood with reference to the world of politics, and their ultimate results can be properly evaluated only in terms of their impact upon the world34.

O propsito deste captulo analisar o desenvolvimento de uma das principais funes das Naes Unidas a manuteno da paz e da segurana internacionais por meio da segurana coletiva e de como tal funo se adaptou s realidades da poltica internacional. As operaes de manuteno da paz, estabelecidas de maneira criativa a partir dos anos 1950, so fundamentais nessa anlise. Representaram um novo meio de atuao coletiva e no conflitiva, permitiram o encapsulamento de disputas entre EUA e URSS, atraram a ateno de pequenos e mdios Estados para a Organizao e, a partir dos anos 1990, tornaram-se o principal instrumento de atuao prtica do Conselho de Segurana. Nesse processo, as misses de paz interagiram com a estrutura da Organizao e permitiram atuao destacada do Secretariado e de diversos Estados. I. 2. Da Carta Resoluo Uniting for Peace Dois fatores relativos percepo poltica e s estratgias de atuao internacionais so indispensveis para o entendimento das instituies

Claude Jr., I. Swords into Plowshares. The problems and progress of international organization. Nova York: Random House, 1964, pp. 41-45. 34 Idem, pp. 6-7.33

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corporificadas na Carta das Naes Unidas. O primeiro fator foi a crena de EUA, Reino Unido e URSS de que a cooperao estabelecida durante a Segunda Guerra poderia ser mantida e mesmo ampliada no ps-guerra. No estava claro para os Trs Grandes que suas polticas levariam ao tipo de confrontao que passaria a ser chamada de Guerra Fria. Havia conscincia de que a promoo dos interesses dos Estados poderia levar a atritos; mas no havia a perspectiva de enfrentamentos sistemticos que bloqueassem a colaborao. Ainda sob Roosevelt, o Governo dos EUA apostava na colaborao com a URSS para manter a nova ordem global. Aps a assuno de Harry Truman (abril de 1945), no momento em que a Carta foi assinada (26/6/1945), avanava a deteriorao das relaes sovitico-estadunidenses, mas a Guerra Fria no estava efetivamente iniciada; as grandes potncias ainda tinham expectativa de cooperar dentro da nova moldura institucional35. O segundo fator a ser considerado a opo estratgica dos EUA de, ao sair da guerra com mais poder do que os vitoriosos em qualquer conflito anterior, construir uma ordem constitucional36, materializada em uma srie de arranjos institucionais (Naes Unidas, GATT, Banco Mundial, Fundo Monetrio Internacional, entre outros). Com essa deciso, os EUA retiravam o nus de sua sociedade de sustentar o que poderia ser um eventual conflito com a URSS e investiam na criao de legitimidade que lhes poderia ser muito til quando o diferencial de poder se reduzisse. A contrapartida era ceder parte do poder decisrio a outros Estados, tanto os do bloco sovitico quanto as potncias menores, por meio de regras estveis, como a Carta das Naes Unidas, que serviriam para reduzir o impacto da predominncia estadunidense. importante notar que o acordo alcanado no momento do estabelecimento das Naes Unidas no poderia assegurar o mesmo tipo de

35 Droz, B. e Rowley, A. Histoire gnrale du XXe sicle. Paris: ditions du Seuil, 1987, vol. 2, pp. 232-247. Ver tambm: Gaddis, J. L. We Now Know. Rethinking the Cold War History. Oxford: Clarendon Press, 1998, pp. 15-23. 36 A definio dada para ordem constitucional por Ikenberry a seguinte: Constitutional orders are political orders organized around agreed-upon legal and political institutions that operate to allocate rights and limit the exercise of power. In a constitutional order power is tamed by making it less consequential. The stakes in political struggles are reduced by the creation of institutionalized processes of participation and decision making that specify rules, rights and limits on power holders, in. Ikenberry, G. J. After Victory. Princeton: Princeton University Press, 2001, pg. 29. Ver tambm: Fonseca, Jr. G. O interesse e a regra ensaios sobre o multilateralismo. So Paulo: Paz e Terra, 2008, pp. 75-90.

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concordncia sobre as estratgias a serem seguidas pela Organizao, ou sobre a diviso de benefcios dessas aes em casos concretos. Isso significa que a estrutura institucional dava um mnimo de previsibilidade s disputas, sem determinar ex ante seu resultado. Na conferncia de Dumbarton Oaks, encarregada de fazer um primeiro rascunho da Carta que pudesse contar com apoio de EUA, URSS, Reino Unido e China, predominou uma dinmica de transigncia e concesses mtuas, e foi possvel chegar a acordos sobre quase todos os temas de paz e segurana. Enquanto EUA e Reino Unido defendiam uma Organizao de composio ampliada e com competncias que se estendessem alm da segurana coletiva, os soviticos preferiam limitar o nmero de membros aos signatrios da Declarao das Naes Unidas (firmada pelos Quatro Grandes em 1o/1/1942, qual logo aderiram 26 pases37) e acreditavam ser desperdcio de energia dedicar ateno a matrias sociais, legais e de outra natureza. A preocupao principal dos soviticos era, j naquele momento, a de que estariam em minoria permanente na nova Organizao; os EUA tinham a viso decididamente contrria, imaginavam que disporiam sempre uma maioria confortvel e efetivamente no se importavam de atribuir competncias de paz e segurana Assembleia Geral. Em Dumbarton Oaks foram acordados pontos centrais do texto que depois seria a Carta: composio do Conselho; poderes residuais da Assembleia na rea de paz e segurana; o conceito de igualdade soberana dos Estados; capacidade de determinar ameaas paz; criao de um Comit de Estado Maior; e medidas interinas de segurana. O ponto que no pde ser resolvido foi a insistncia da URSS em um veto absoluto, que pudesse ser utilizado mesmo para questes de procedimento. A ausncia de consenso fez que o tema fosse transferido para considerao dos Chefes de Estado e Governo em Yalta. Naquela conferncia, em troca da entrada da Bielorssia e da Ucrnia na Organizao, Stalin concordou com o veto limitado a assuntos substantivos e com a obrigao de abster-se em casos em que um membro do rgo fosse parte na disputa (artigo 27.3 da Carta). Com base no projeto de Dumbarton Oaks, complementado pela frmula de Yalta, a Conferncia das Naes Unidas sobre a Organizao Internacional (UNCIO) se reuniu entre abril e junho de 1945, em So Francisco, a convite37 United Nations Declaration, http://www.un.org/aboutun/charter/history/declaration.shtml, acessado em 24/8/2008.

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de EUA, URSS, China e Reino Unido (a Frana somente assumiria como quinto grande durante a Conferncia). Uma primeira caracterstica da UNCIO foi o grande ativismo dos pequenos e mdios Estados. Embora os anfitries tivessem acordado o projeto de documento, estabelecido procedimentos que lhes concediam direito de veto sobre emendas e levado a cabo os trabalhos em ritmo que desafiava as pequenas delegaes38, os demais pases procuraram contribuir construtivamente para o documento e limitar os poderes dos grandes. Foram responsveis por incluir, manter ou reforar importantes aspectos do texto, tais como: a igualdade soberana dos Estados; expanso das competncias do Conselho Econmico e Social (ECOSOC); introduo do princpio da legtima defesa individual ou coletiva; estruturao do sistema de tutela; e a reafirmao dos poderes subsidirios da AGNU na rea de paz e segurana39. Esses casos demonstraram o que seria uma caracterstica marcante da Organizao: a capacitao de pequenos e mdios Estados para atuar alm de seus fatores materiais de poder. A segunda caracterstica da Conferncia, porm, foi verso especular da primeira: onde os grandes insistiam em proteger de modo absoluto seus interesses, no houve espao real para negociaes. Os pequenos e mdios pases procuraram de vrias maneiras mitigar o poder contido no veto e propuseram quantidade significativa de emendas. As discusses chegaram ao ponto em que ficou claro que, sem o veto, no haveria Organizao. Os demais Estados tiveram que ceder. Ao final da Conferncia, o princpio da liderana dos Cinco Grandes foi reconhecido, pela primeira vez, como uma regra do jogo clara na diplomacia. Mas seu poder legtimo tambm foi limitado pelo que acabou constando da Carta, cujo arcabouo constitucional foi aceito pelos Grandes como disse Claude, the Charter registered power, it did not confer it40. A Carta e as Naes Unidas guardavam muitas semelhanas com o Pacto e a Liga das Naes (LDN)41. Mas eram suas diferenas que produziamHoopes, T. e Brinkley, D. FDR and the Creation of the U.N. New Haven: Yale University Press, 1997, pg. 186. 39 Ruth Russell dedica os captulos XXVI, XXVII, XXVIII e XIX Conferncia de So Francisco. Russell, R. History of the United Nations Charter. Washington: Brookings Institution, 1958. 40 Claude Jr., I. Swords into Plowshares. The problems and progress of international organization. Nova York: Random House, 1964, pg. 66. 41 Morghentau, H. Politics among Nations. Nova York: Alfred A. Knopf, 1973 (5a edio), pp. 455-458.38

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vitalidade. As inovaes faziam que a Organizao se mostrasse mais tendente a perdurar do que a LDN: I) o veto era condio fundamental para funcionamento do CSNU, e as concesses feitas no limitavam a preponderncia dos Cinco Grandes; II) os EUA, ao contrrio do que ocorrera no caso da LDN, eram os artfices da Organizao e, nela, os principais interessados; III) as Naes Unidas obtiveram considerveis competncias em reas sociais e econmicas, em parte como concesso aos Estados pequenos e mdios; IV) o sistema decisrio em todos os rgos era mais realista, expungindo parte da contradio entre igualdade soberana e distribuio real de poder; V) as Naes Unidas abriam a possibilidade para os Estados promoverem diversos aspectos de suas agendas (anticolonialismo, direitos humanos, cooperao, entre outros)42. Como ocorre com frequncia ao final reunies diplomticas, cada participante acreditava obter um resultado. A Carta criou diversas percepes sobre a Organizao cujo futuro no se podia prever. Como afirma Claude:As in the case of the League of Nations, the United Nations reflected the influence of a variety of formative factors. It was not simply the brainchild of idealists, a contrivance of nationally-oriented statesmen, a flowering of historically planted seeds, or an excrescence upon the surface of contemporary world politics. It was all these things and more43.

Cabe indagar qual o mecanismo de manuteno da paz e da segurana criado em So Francisco. A Carta regulamenta o CSNU em seus Captulos V, VI e VII. O primeiro estabelece composio, regras de votao e procedimentos. No artigo 27.3 est consagrada a regra da unanimidade dos membros permanentes, a frmula de Yalta a que se faz referncia sempre como direito de veto. A combinao com o artigo 25, que prev o cumprimento das decises do Conselho por todos os Estados membros, e com o artigo 24.2, que estabelece que o rgo age em nome da Organizao, faz que o sistema esteja baseado na unanimidade e na ao coordenada dos

Armstrong, D.; Lloyd, L.; e Redmond, J. From Versailles to Maastricht. Nova York: St. Martins Press, 1996, pp. 62-63. 43 Claude Jr., I. Swords into Plowshares. The problems and progress of international organization. Nova York: Random House, 1964, pg. 54.42

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Cinco Grandes. A criao de um Comit de Estado Maior (artigo 47) corrobora a percepo de que a Organizao deveria dar seguimento s aes das foras armadas nos tempos da Segunda Guerra. E o artigo 43 explicita que foras militares seriam colocadas disposio das Naes Unidas por meio de acordos entre a Organizao e os Estados. Quanto ao mtodo para determinao das ameaas paz ou de rupturas da paz, o Captulo VI prope escala gradativa de aes investigativas, negociadoras e implementadoras do CSNU. Fica especificado que qualquer Estado (membro ou no da Organizao) pode trazer um tema ateno do Conselho. Tambm decorre do texto que o CSNU no tem itinerrio obrigatrio a seguir se as condies para uma medida estiverem dadas na forma de acordo de seus membros, o rgo pode agir imediatamente. O Captulo VII, afinal, trata das medidas mais assertivas de combate a agresses, ameaas paz ou ruptura da paz, situaes que podem levar autorizao do uso da fora. Seus artigos iniciais compreendem o uso de sanes como modalidade de desencorajamento de atitude belicosa. O artigo 42 trata do uso da fora, o qual dependeria dos acordos do artigo 43 e do Comit de Estado Maior para implementao. Morgenthau e Nicholas afirmam que os poderes atribudos ao CSNU so sem precedente e que o rgo poderia funcionar como um conselho de guerra. Ernest Haas nota que, no consenso de 1945, no havia competncias para lidar com as causas profundas das guerras. Aduz que o gerenciamento coletivo de conflitos por esse mtodo somente ir to longe quanto for o consentimento dos Estados mais poderosos44. O mecanismo de manuteno da paz e da segurana, nos termos do artigo 14 da Carta, tambm compreende a competncia subsidiria da Assembleia Geral, mesmo que essa esteja restrita a recomendaes. Essa arquitetura fica completa com a garantia de que as obrigaes para com as Naes Unidas no podero vulnerar o direito de legtima defesa (artigo 51) com a ressalva de que qualquer atitude tomada com esse objetivo deve ser trazida imediatamente ao conhecimento e considerao do CSNU. Essas dimenses foram includas a contragosto dos Cinco Grandes, mas tiveram consequncias duradouras na histria da Organizao.44 Morghentau, H. Politics among Nations. Nova York: Alfred A. Knopf, 1973 (5a edio), pg. 458; Nicholas, H. G. The United Nations as a political institution. Londres: Oxford University Press, 1962, pp. 65 e 86; Haas, E. The Collective Management of International Conflicts, 1945-1984. In. UNITAR. The United Nations and the Maintenance of International Peace and Security. Dordrecht: Martinus Nijhoff, 1987.

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Em abstrato, as instituies estabelecidas pela Carta pareciam aderir segurana coletiva imperfeita postulada por Wolfers e Claude (vide Introduo), que anistiaria previamente os Cinco Grandes, mas dependeria da dinmica entre as superpotncias. A atmosfera do incio dos trabalhos das Naes Unidas, em janeiro de 1946, era otimista em relao ao potencial da nova Organizao; mesmo ao longo do ano que se seguiu, a maioria dos diplomatas no se desencorajou pelo contraste entre a realidade da poltica e a letra da Carta45. Do Conselho de Segurana, esperava-se que usasse, de modo criterioso e assertivo, os poderes de que dispunha para promover a paz e, se preciso, obrigar as partes nos conflitos a cumprir suas decises. Poucos dias depois da abertura dos trabalhos, quando s duas resolues haviam sido adotadas, em 16/2, sobreveio o primeiro veto sovitico. O veto surpreendeu porque lidava com um tema (A Questo Srio-Libanesa) que no parecia de interesse direto para a URSS e porque a objeo sovitica era menos de substncia e mais de forma. Nas palavras de Lie:Why was this first veto cast? Not because Mr. Vyshinsky opposed the substance of the resolution, but because its language was not strong enough to please him. This first, almost lighthearted use of the veto that I hope would rarely be exercised by any of the great powers disturbed me as much as the violence of the debate on the Greek question46.

Esse primeiro gesto da URSS foi visto como um capricho e no como poltica sistemtica que poderia romper a unidade das grandes potncias e bloquear o CSNU. As evidncias favoreciam essa interpretao: quando houve o segundo veto, em 18/6/1946, quatro outras resolues haviam sido adotadas. Mesmo quando, em 26/6/1946, a URSS vetou trs propostas consecutivamente, a Resoluo 7 (1946) foi afinal adotada, sobre a questo espanhola. No ano de 1946, adotaram-se 15 resolues sobre 8 diferentes temas; os 12 vetos concentraram-se quase todos em dois temas: ingressos de novos Estados (3) e a questo espanhola (7). Como nota Paul Kennedy, o exerccio do veto naquele momento deu aos soviticos alguma tranquilidade o sistema da Carta realmente impedia que decises contrrias a seus45 46

Entrevista com diplomata brasileiro. Lie, T. In the Cause of Peace. Nova York: MacMillan, 1954, pg. 34.

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interesses diretos fossem tomadas pelo CSNU47. Mas tambm concedeu aos EUA e a seus aliados uma poderosa arma de propaganda. Comeou-se, porm, a criar uma cultura de desconfiana na qual era difcil tomar qualquer deciso positiva. Rompia-se a convivncia relativamente harmnica entre os membros permanentes. Naquele ano e nos dez primeiros de seu funcionamento, o Conselho de Segurana tomou muitas decises (111 resolues at 31/12/1956) sobre assuntos controversos e de relevncia para a paz e segurana internacionais48. Basta alinhar alguns: Palestina, Ir, Espanha, Grcia, Indonsia, ndiaPaquisto e Coreia. Os vetos soviticos, 80 nesse perodo, no eram um obstculo intransponvel, visto que os Estados encontraram meios de contornlos por mtodos de procedimento ou pela superao dos fatos no terreno. O prprio CSNU tendeu a reduzir o significado da falta de unanimidade prevista na Carta ao decidir que a absteno de um membro permanente no implicaria um veto49. Os EUA tambm tinham sua quota de responsabilidade ao utilizar sua maioria automtica para demonstrar a mesma intransigncia que a URSS. Mas as decises do Conselho e sua implementao tenderam a ficar com a exceo da relativa Coreia na esfera da soluo pacfica de controvrsias, no envio de misses de investigao e bons ofcios, na observao militar, como nos casos da Palestina (UNTSO) e de ndia-Paquisto (UNMOGIP). Esse modo de proceder, fruto da Guerra Fria, criou grande frustrao a respeito da Organizao, que muitos, a cada crise, consideravam moribunda50. Mesmo nos casos em que o interesse convergente dos membros permanentes permitiu uma deciso, no foi possvel acordar uma implementao condizente com a ideia de segurana coletiva. Com a falta da concertao poltica necessria para materializar aes militares da Organizao, o Comit deKennedy, P. The Parliament of Man. Nova York: Random House, 2006, pg. 57. Embora esse total seja reduzido em relao ao atual ritmo do CSNU cerca de 80 resolues por ano na poca no havia a expectativa de um nmero to significativo de decises. Evidncia disso que, nas sesses pblicas, esperava-se que estivessem presentes chanceleres e chefes de Estado e Governo (o que no se confirmou). 49 Delon, F. Le rle jou par les membres permanents dans laction du Conseil de scurit. In. Dupuy, R-J. Le Dveloppement du Rle du Conseil de Scurit. Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, 1993, 351. 50 Goodrich, L. The UN Security Council. In. International Organization, vol. 12, no. 3, 1958, pp. 281-282: Clearly the Security Council has failed to discharge its Charter responsibilities in the manner and with the degree of effectiveness which the authors of the Charter envisaged. Furthermore, there can be little doubt that the Council has declined greatly in prestige and has seemed to most Members of the UN less useful than in the beginning.47 48

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Estado Maior e os acordos previstos no artigo 43 gradativamente perderam o sentido e colocaram em desuso os artigos 42 a 47 da Carta. Privadas de poder e influncia, as Naes Unidas comearam a desenvolver, porm, caractersticas que seriam magnificadas nos anos seguintes, sobretudo aps 1950. Procuravam deter-se em conflitos menos controversos para as grandes potncias e encontrar linhas de menor resistncia, como explica Marcos Azambuja. O CSNU, sobretudo, assumiu uma funo de cmara de descompresso em alguns casos em que aes no eram praticveis. Mas muito relevante que as grandes potncias no tenham proposto deixar o rgo ou elimin-lo, com exceo do boicote sovitico de 1950, cujo fracasso demonstrou sua futilidade51. Os debates e os vetos relativos adeso de novos membros evidenciavam que estava em disputa a prpria natureza da Organizao. Em 1945, fora presumida sua vocao universal, condizente com a ideia de segurana coletiva, mas no foram estabelecidos acordos polticos que pudessem lidar com os novos membros e com o desequilbrio que causariam. Como resultado, a entrada de nmero significativo de pases ficaria bloqueada at 1955. Durante esses dez primeiros anos, os EUA cogitaram de transformar as Naes Unidas em sua aliana de defesa, o que implicaria antagonizar crescentemente a URSS e, talvez, expuls-la e a seus aliados. Os soviticos e muitos Estados pequenos e mdios ocidentais viam mais valor, entretanto, numa Organizao universal. Nesse contexto, a Resoluo 377 (V) Uniting for Peace foi um marco na histria das Naes Unidas. O cenrio da adoo dessa Resoluo foi criado pelos soviticos. A URSS iniciou, em 13/1/1950, um boicote ao Conselho por no concordar com a ocupao do assento da China pelos representantes do Kuomitang. Na ausncia do delegado sovitico e tendo eclodido o conflito na Pennsula Coreana, o CSNU pde adotar as Resolues 82 (1950), 83 (1950), 84 (1950), 85 (1950) sobre a guerra. A segunda delas autorizava os Estados a fornecerem o auxlio militar necessrio para que a Repblica do Coreia repelisse o ataque de que era vtima. Com o retorno da URSS, em 1o/8, porm, o CSNU no pde mais adotar medidas semelhantes. Os desenvolvimentos iniciais haviam conduzido ao menos no bloco ocidental a uma renovao das esperanas de que as Naes Unidas51 Azambuja, M. As Naes Unidas e o conceito de segurana coletiva. In. Estudos Avanados, vol. 25, 1995, pp. 140-142.

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poderiam finalmente desempenhar as funes para que haviam sido criadas. No era um caso de segurana coletiva no sentido previsto pela Carta, dado o processo decisrio descentralizado de contribuio de tropas (comandadas por um Estado e no pela Organizao), mas essa ideia foi propagada pelos EUA. Nesse contexto, foi includo item na agenda da AGNU intitulado United Action for Peace, a pedido da delegao estadunidense52. Sob esse ttulo foram considerados projetos de resoluo que lidavam com a transferncia de competncias do Conselho para a Assembleia. O texto adotado, em 3/11/1950, continha disposio segundo a qual, em caso de bloqueio do CSNU por falta de unanimidade dos membros permanentes, a AGNU poderia ser chamada, por meio de uma votao de procedimento no Conselho, a fazer recomendaes. As demais lidavam com uma Comisso de Observao da Paz, disponibilizao de tropas para as Naes Unidas e um Comit de Medidas Coletivas. No processo de debate da resoluo ficou claro que o texto, embora motivado pelo conflito coreano, tinha impacto muito mais relevante. A URSS e seus aliados apressaram-se em afirmar que se tratava de tentativa de contornar o veto, por meio de manobra contrria Carta. notvel que pases pequenos e mdios tenham no s co-patrocinado o texto, mas tambm se apresentado como seus principais defensores. Argumentaram que as competncias de paz e segurana eram atribudas AGNU pela Carta e que esse rgo deveria utiliz-las, uma vez que o Conselho de Segurana estava bloqueado desde o incio de seu funcionamento. Como ocorria na Coreia, as Naes Unidas deveriam ser capazes de continuar a promover a segurana coletiva. A primeira inteno dos EUA foi, sem dvida, usar a Assembleia Geral como rgo de segurana coletiva, na ausncia de margem de manobra no CSNU. Pode-se dizer que tentaram associar a segurana coletiva e a defesa coletiva por meio das Naes Unidas; na prtica, dar o primeiro passo na transformao da Organizao numa aliana de defesa contra os soviticos. Essa transferncia de prestgio e competncia, pelos EUA, do Conselho para a AGNU, era prtica comum naquele momento de domnio parlamentar estadunidense. As virtudes da Assembleia continuariam a ser propaladas enquanto perdurasse essa situao, at final da dcada de 1950.52 A Resoluo 377 (V), que ficaria conhecida como Uniting for Peace, foi inicialmente apelidada de Acheson Plan, em referncia ao Secretrio de Estado Dean Acheson.

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Cedo, porm, os EUA descobriram que a AGNU no era o rgo ideal de gesto da segurana coletiva, em grande parte porque Washington teria que lidar com uma pluralidade de pequenas e mdias potncias as quais relutavam em atuar como fantoches e tinham interesse em fortalecer a Assembleia. Brasil, Argentina, Canad, ndia, Chile e Iugoslvia so apenas alguns dos Estados que se destacaram nos debates e que favoreciam, desde 1946, a tendncia de , transferi competncias e poderes para o rgo plenrio. O bloqueio criado no CSNU teve como consequncia a maior vitalidade da Assembleia e do Secretariado, e at mesmo o nmero de reunies do Conselho diminuiu53. Goodrich e Morgenthau questionam a validade legal da Resoluo 377 (V), baseada em interpretaes liberais e criativas da Carta. Claude e Azambuja falam de encroachment e usurpao de poderes. No negam, entretanto, o interesse da grande maioria dos Estados membros em apoiar a medida. Nicholas afirma que o texto se baseava no fato de que (...) though the failure to equip the sheriff in advance robs him of his right to compel his posses service, it does not rob him of his inherent right to draw citzens attention to their duty and urge them to assist54. Hans Kelsen conclui que a Carta permite vrias interpretaes sobre a Uniting for Peace, algumas contraditrias. Haveria no uma violao da letra da Carta, mas de seu esprito. Em qualquer caso, a Assembleia era o nico rgo legitimado para decidir sobre o tema55. Apesar do entusiasmo inicial, vrios dispositivos da Resoluo 377 (V) no produziram quaisquer resultados alm de relatrios, como no caso da Comisso de Observao da Paz e do Comit de Medidas Coletivas. No que concerne convocao de sesses de emergncia e da transferncia de atribuies de paz e segurana, ficariam em relativo desuso at as crises de 1956 no Egito e na Hungria.Armstrong, D.; Lloyd, L.; e Redmond, J. From Versailles to Maastricht. Nova York: St. Martins Press, 1996, pg. 73. Stoessinger, J. The United Nations and he Superpowers. Nova York: Random House, 1966, pp. 17-18. 54 Nicholas, H. G. The United Nations as a political institution. Londres: Oxford University Press, 1962, pg. 72. Goodrich, L. The UN Security Council. In. International Organization, vol. 12, no. 3, 1958, pg. 280; Morghentau, H. Politics among Nations. Nova York: Alfred A. Knopf, 1973 (5a edio), pg. 462; Azambuja, M. As Naes Unidas e o conceito de segurana coletiva. In. Estudos Avanados, vol. 25, 1995, pg. 142; e Claude Jr., I. Swords into Plowshares. The problems and progress of international organization. Nova York: Random House, 1964, pg 161. 55 Kelsen, H. Is the Acheson Plan Constitutional?. In. The Western Political Quarterly, vol. 3, no. 4, 1950, pp. 512-527.53

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I. 3. A Criao da UNEF e a Inovao Representada pelas Misses de Paz O estabelecimento da Fora de Emergncia das Naes Unidas (UNEF56), em 1956, foi sem dvida um produto das circunstncias da Crise de Suez. Mas o mecanismo institucional criado decorreu da confluncia de fatores estruturais presentes na Organizao e no cenrio internacional e alou as operaes de manuteno da paz funo de mais relevante instrumento disposio das Naes Unidas na tentativa de atuar concretamente na manteno da paz e da segurana internacionais. Trs processos convergiam naquele momento, mas eventualmente viriam a divergir: A) Ao longo dos primeiros anos de existncia das Naes Unidas (que coincidiram com a fase mais confrontacionista da Guerra Fria), os EUA cultivaram a ideia de transformar a Organizao em uma manifestao de suas alianas defensivas. Para contornar o veto no CSNU, patrocinaram a resoluo Uniting for Peace, contando com a formao de uma maioria automtica na AGNU. Quando sobreveio a crise de Suez, apoiaram a transferncia do tema para a Assembleia e foram vocais na condenao da aventura de Israel, Frana e Reino Unido. Embora nesse caso especfico no discordassem substantivamente de Moscou, contavam obter da AGNU uma condenao dos atos de agresso e diretrizes de cessar-fogo que mantivessem os soviticos longe de Suez, do Egito e do Oriente Mdio. Arriscaram sua relao prxima com Paris e Londres na esperana de cortejar os novos Estados presentes na Organizao. Nesse contexto, os EUA atuaram muito mais para obter endosso para sua oposio invaso do que para criar uma fora internacional que monitorasse a cessao de hostilidades57. B) Os Estados pequenos e mdios tinham participao ativa nas Naes Unidas desde So Francisco, mas no formavam um bloco coeso, sem desenvolver aes coordenadas. As potncias mdias europeias e os pases latino-americanos haviam dado o tom dessa participao aliada dos EUA,56 A Fora de Emergncia foi inicialmente denominada de UNEF. Somente em 1973, aps a criao de uma segunda fora de mesmo nome (UNEF II), a original foi renomeada retrospectivamente UNEF I. 57 Stoessinger, J. The United Nations and the Superpowers. Nova York: Random House, 1966, pp. 66-74; sobre a Resoluo 997 (ES-I), ver Naes Unidas. Yearbook of the United Nations 1956. Nova York: Department of Public Information, 1957, pp. 28-29.

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mas com interesses e estratgias prprios, como, na rea de paz e segurana, o de fortalecer a AGNU como foro poltico. A partir de 1955-56, comea a surgir o que seria o bloco afro-asitico (eventualmente o Movimento dos Pases No Alinhados, MNA58), mas que no tinha ainda uma agenda definida e votava disperso. Recorde-se que, em 1955, o nmero de membros subiu de 60 para 76 e que, em 1962, alcanaria 110. Percebe-se que se tratava, porm, de focalizar o combate ao colonialismo, o que fica claro nas resolues da AGNU de condenao s aes franco-britnicas. Como um conjunto, os pases pequenos e mdios (com exceo dos pertencentes ao bloco sovitico) apoiaram a criao da UNEF, concebida pelo Canad e pelo Secretariado, e, maneira dos liliputianos, procuraram usar a Fora para amarrar as grandes potncias. Consolidava-se para as potncias mdias tradicionais a oportunidade de participar ativamente da manuteno da paz; para os afro-asiticos, ganhava fora a possibilidade de construir uma cultura poltica internacional que favorecesse suas aspiraes (com realce para o combate ao colonialismo)59. C) O cargo de Secretrio-Geral, que parecia menos importante em 1946, vinha ganhando relevncia desde ento, por suas funes de informar os rgos intergovernamentais, organizar as entidades e rgos criados e mediar tratativas entre os Estados em alguns casos; o SGNU era apoiado tambm por uma burocracia crescente e relativamente autnoma. Dag Hammarskjld demonstrava mais desembarao poltico que Trygve Lie, alm de desfrutar de mais prestgio naquele momento60. A crise de Suez e a solicitao de estabelecer uma fora internacional criaram para Hammarskjld a possibilidade de dar contedo poltico real ao cargo. Abandonou a diplomacia silenciosa e pde aproveitar as diferenas entre as grandes potncias para advogar uma soluo prpria, baseada em uma doutrina, na burocracia da Organizao e em alianas com os Estados. As mesmas condies que permitiram tal desenvoltura

Ferro, M. Suez. Bruxelas: ditions Complexe, 1995, pg. 105. Keohane compara os pequenos e mdios Estados ao liliputianos do livro de Jonathan Swift. No mbito das organizaes internacionais, ganham o arcabouo intitucional necessrio para compensar, em parte, sua fraqueza material e assegurar igualdade, ainda que formal; aceitao como membros; e restrio s aes das grandes potncias. A organizao permite a formao de uma cultura poltica e um conjunto de normas e procedimentos que os tornam menos vulnerveis. Keohane, R. Lilliputians Dilemmas: Small States in International Politics. In. International Organization, vol. 23, no. 2, 1969, pp. 291-297. 60 Scott, A. e Thant, Myint-U. The UN Secretariat. A Brief History. Nova York: International Peace Academy, 2007, pp. 24-37.58 59

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em 1956 levariam a uma disjuntiva nos anos seguintes entre as possibilidades de falar autonomamente pela Organizao e manter o favor dos poderosos61. A crise de Suez propriamente dita comeou com a nacionalizao da companhia administradora do Canal, em 26/7/1956, pelo Governo de Nasser. Apesar da realizao de vrias conferncias internacionais para tentar conciliar o Egito, a Frana, o Reino Unido e os demais usurios do Canal, no se pde divisar soluo para o tema. Em 13/10, o CSNU adotou a Resoluo 118 (1956), que delineava um plano para as negociaes, mas que no foi obedecida. Em 29/10, tropas israelenses invadiram o Egito e marcharam em direo ao Canal de Suez. Em conluio com Israel, Frana e Reino Unido desembarcam suas prprias tropas a partir de 6/11, alegadamente para impedir a continuao das hostilidades. Frente condenao internacional, inclusive das Naes Unidas, dos EUA e da URSS, e criao da UNEF pela Assembleia Geral, um cessar-fogo foi acertado em 7/1162. O Conselho de Segurana reuniu-se nos dias 30 e 31/10, a pedido dos EUA, que propunham condenao das aes israelenses, no que foi apoiado pela URSS e pela maioria dos membros do rgo. Os dois projetos de resoluo propostos sucessivamente por EUA e URSS foram vetados por Frana e Reino Unido (com abstenes de Austrlia e Blgica). Nesse contexto, decidiu-se, por meio do mecanismo da resoluo Uniting for Peace, transferir a considerao do tema para a Assembleia Geral. Os debates no CSNU deixaram claras as posies quanto dinmica do tratamento do tema pelas Naes Unidas: a) as duas superpotncias foram vocais na questo substantiva, mas no exerceram papel protagnico na deciso de enviar a matria AGNU; b) Reino Unido e Frana isolaram-se e recorreram a chicanas de procedimento, para tentar conter a situao; c) coube a alguns membros eletivos (sobretudo Iugoslvia, Ir e Peru) tomar a iniciativa de advogar o uso da Resoluo 377 (V)63.61 Hammarskjld revelou tanto seu interesse em obter autonomia quanto sua conscincia dos riscos inerentes a essa estratgia em sua histrica alocuo ao CSNU, em 31/10/1956. Security Council Official Records eleventh year. 751st Meeting: 31 October 1956 (S/PV.751). Nova York: Naes Unidas, 1956, pp. 1-2. 62 Neste trabalho, somente se procurou dar noo muito geral dos acontecimentos. Pormenores e anlise podem ser encontrados em Ferro, M. Suez. Bruxelas: ditions Complexe, 1995. 63 Security Council Official Records eleventh year. 750th Meeting: 30 October 1956 (S/PV.750). Nova York: Naes Unidas, 1956, pp. 1-14; Security Council Official Records eleventh year. 751st Meeting: 31 October 1956 (S/PV.751). Nova York: Naes Unidas, 1956, pp. 1-22; e Naes Unidas.Yearbook of the United Nations 1956. Nova York: Department of Public Information, 1957, pp. 25-28.

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Na Assembleia Geral, em sesso de emergncia, antes do cessar-fogo, foram adotadas as Resolues 997 (ES-I), 998 (ES-I), 999 (ES-I), 1000 (ES-I), 1001 (ES-I) e 1002 (ES-I). As Resolues 997 (ES-I), 999 (ES-I) e 1002 (ES-I) trataram da questo poltica ampla, inclusive a necessidade de retirada de todas as partes da rea de conflito (depois especificada para referir-se s tropas israelenses, francesas e britnicas).As demais derivaram da iniciativa canadense (concertada previamente com o Secretrio-Geral) de sugerir a criao de uma fora internacional de emergncia que seria estruturada a partir de sugestes e esclarecimentos contidos em sucessivos relatrios do SGNU. Os EUA, que chegaram a tabular dois projetos sobre o tratamento a longo prazo da questo de Suez, retiraram seus textos e apoiaram a iniciativa canadense. Tambm possvel traar quadro das posies em relao ao encaminhamento da matria: a) EUA recuaram de sua iniciativa original, mas foram protagnicos nos aspectos substantivos e apoiaram a UNEF; b) URSS e seus aliados mantiveram as crticas veementes s aes franco-britnicas, mas abstiveram-se no que concerne UNEF por acreditar que qualquer ao executiva caberia ao CSNU; c) os pases do Terceiro Mundo concentraram-se nas crticas a Israel, Reino Unido e Frana, mas cedo reconheceram o valor da proposta canadense; d) Reino Unido e Frana contaram sobretudo com apoio de membros do Commonwealth e de baluartes do colonialismo, como Portugal e Blgica64. Nas semanas seguintes, o Secretariado, com grande dose de improvisao, conseguiu organizar o embrio de uma Fora para supervisionar o cessar-fogo e obteve acordo do Egito para que fosse estacionada em seu territrio. Selecionou tambm os Estados membros que contribuiriam com tropas sem incluir membros permanentes do CSNU e com a inteno de obter equilbrio: Brasil, Canad, Colmbia, Dinamarca, Finlndia, ndia, Indonsia, Iugoslvia, Noruega e Sucia. Foi tambm constitudo o Comit Consultivo criado de acordo com a Resoluo 1001 (ES-I) Brasil, Canad, Ceilo, Colmbia, ndia, Noruega e Paquisto para assessorar o SGNU. A UNEF resultou de um conjunto de fatores distintos. Foi, antes de tudo, uma opo (entre as vrias disponveis, inclusive nos relatrios de Hammarskjld65), que serviu convenincia dos atores. Como fenmeno de poltica internacional, a Fora demonstrou possuir certas caractersticas que a transformaram em possvel modeloGeneral Assembly Official Records First Emergency Special Session. 563rd Plenary Meeting: 3 November 1956 (A/PV.563). Nova York: Naes Unidas, 1956, pp. 45-78; General Assembly Official Records First Emergency Special Session. 565rd Plenary Meeting: 4 November 1956 (A/PV.565). Nova York: Naes Unidas, 1956, pp. 159-194. 65 Naes Unidas. Yearbook of the United Nations 1956. Nova York: Department of Public Information, 1957, pp. 24-34.64

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para futuras crises. Sugeriu que algum tipo de ao coletiva organizada pelas Naes Unidas era realmente possvel, ainda que de modo matizado em relao ao ideal da Carta. A ideia de fora internacional permitiu que a Guerra Fria fosse mantida razoavelmente distante do Oriente Mdio, o que agradava maioria dos Estados e, naquele momento, tambm aos EUA. A necessidade de consentimento das partes, salientada desde o incio por Hammarskjld, resguardou os interesses dos pequenos pases, temerosos de intervenes, e garantiu uma desculpa para salvar a honra dos invasores. Ao depender de tropas de Estados que no eram membros permanentes do CSNU e ao criar Comit Consultivo dos contribuintes de tropas, a deciso valorizou pequenos e mdios pases na rea de manuteno da paz e segurana e estabeleceu uma inverso dos preceitos da Carta, que tornava a possibilidade de usar esse novo mecanismo dependente da excluso das grandes potncias66. A mesma conjuno de fatores que tornou a UNEF atrativa como modelo tambm expunha suas fragilidades. Em primeiro lugar, decorria justamente do fracasso de tentativas anteriores de operacionalizar mecanismos de segurana coletiva e no havia garantia de que a mesma conjuno de fatores se repetiria. A atuao do canadense Lester Pearson e de Hammarskjld fora puramente pragmtica e poderia no ser articulvel novamente no futuro. Ademais, a disjuno entre processo poltico de paz e manuteno do cessar-fogo servia ao caso do Oriente Mdio, mas poderia no ser til em outras reas. Acrescente-se que o fortalecimento do Secretariado no agradava a todos os Estados a longo prazo e seria objeto de duras crticas poucos anos depois67. Em textos publicados em 1957 e 1958, Pearson e Hammarskjld tentaram fazer um balano da experincia da UNEF e de seu significado. Propuseram, com perspectivas diferentes, que parte significativa dos acontecimentos no voltaria a acontecer, mas que os princpios de estruturao da Fora (excluso das grandes potncias, consentimento das partes, disjuno entre monitoramento e negociao poltica e ausncia de funes executivas ou que implicassem uso da fora) poderiam ser utilizados no futuro68. No incio da dcada de 1960, no Congo, a nova ideia de misses de paz e a coeso das Naes Unidas seriam, porm, postas prova.66 Goodrich, L. e Rosner, G. The United Nations Emergency Force. In. International Organization, vol. 11, no. 3, 1957, pp. 417-419. 67 Morrison, A. Pearsonian Peacekeeping: Does It Have a Future or Only a Past?. In. The Journal of Conflict Studies, vol. XXIII, no. 1, 2003, pp. 8-9; Hoffmann, S. Sisyphus and the Avalanche: the United Nations, Egypt and Hungary. In. International Organization, vol. 11, no. 3, 1957, pp. 447-456. 68 Pearson, L. Force for U.N.. In. Foreign Affairs, vol. 35, no. 3, 1957, pp. 395-404 e United Nations Emergency Force. Summary Study of the Experience derived from the Establishment and Operation of the Force (A/3943). Nova York: Naes Unidas, 1958.

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EDUARDO UZIEL

I. 4. As Crises da Dcada de 1960 e as Misses de Paz at o fim da Guerra Fria Aps o xito da UNEF, as Naes Unidas enfrentaram, a partir de julho de 1960, a crise do Congo, que resultou na criao da Operao das Naes Unidas no Congo (ONUC) e levou a Organizao e o conceito de misses de paz a serem testados. Com a independncia do Congo, a continuada presena de tropas belgas no pas e as ameaas existentes prpria integridade territorial do novo Estado, o Conselho de Segurana estabeleceu, pelas Resolu