livro didático de matemática: reflexões em torno da ... · os gêneros textuais em livros...

17
Os Gêneros Textuais em Livros Didáticos de Matemática Thaís Ludmila da Silva Ranieri (Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco / Professora da Rede Pública de Ensino do Município do Cabo de Santo Agostinho, PE / [email protected]) Resumo Desde a década de 90 no Brasil, alguns trabalhos e documentos oficiais, tais como os PCN´s (Parâmetros Curriculares Nacionais) e o PNLD (Plano Nacional do Livro Didático), já evidenciavam a necessidade de uma relação entre a disciplina de Matemática e o cotidiano do aluno. Além disso, percebia-se a necessidade de uma maior integração entre as áreas da linguagem e a da Matemática (MACHADO, 1990). Tendo esses pontos como estímulos, surge, então, a proposta dessa pesquisa. O principal objetivo é fazer um levantamento e uma análise, através de uma coleção didática de Matemática do Ensino Fundamental, dos gêneros textuais que circulam no espaço discursivo da Matemática, uma vez que, entre um dos critérios de avaliação do PNLD de Matemática, há o da linguagem, em que se sugere o emprego de vários tipos de textos (PNLD, 2008). O presente trabalho procura, também, mostrar que o espaço de circulação e trabalho com gêneros na escola não são restritos às aulas de língua. Palavras-chaves: gêneros textuais, livro didático de Matemática, linguagem. Abstract Since the 90s in Brazil, some studies and official documents, such as the PCN’s (Parâmetros Curriculares Nacionais) and PNLD (Plano Nacional do Livro Didático) has highlighted the need for a relationship between the discipline of mathematics and the everyday student. Also, understand the need for greater integration between the areas of language and of mathematics

Upload: doannguyet

Post on 12-Jan-2019

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Os Gêneros Textuais em Livros Didáticos de Matemática

Thaís Ludmila da Silva Ranieri (Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de

Pernambuco / Professora da Rede Pública de Ensino do Município do Cabo de Santo Agostinho, PE / [email protected])

Resumo

Desde a década de 90 no Brasil, alguns trabalhos e documentos oficiais, tais como os PCN´s

(Parâmetros Curriculares Nacionais) e o PNLD (Plano Nacional do Livro Didático), já

evidenciavam a necessidade de uma relação entre a disciplina de Matemática e o cotidiano do

aluno. Além disso, percebia-se a necessidade de uma maior integração entre as áreas da

linguagem e a da Matemática (MACHADO, 1990). Tendo esses pontos como estímulos, surge,

então, a proposta dessa pesquisa. O principal objetivo é fazer um levantamento e uma análise,

através de uma coleção didática de Matemática do Ensino Fundamental, dos gêneros textuais que

circulam no espaço discursivo da Matemática, uma vez que, entre um dos critérios de avaliação

do PNLD de Matemática, há o da linguagem, em que se sugere o emprego de vários tipos de

textos (PNLD, 2008). O presente trabalho procura, também, mostrar que o espaço de circulação e

trabalho com gêneros na escola não são restritos às aulas de língua.

Palavras-chaves: gêneros textuais, livro didático de Matemática, linguagem. Abstract

Since the 90s in Brazil, some studies and official documents, such as the PCN’s (Parâmetros

Curriculares Nacionais) and PNLD (Plano Nacional do Livro Didático) has highlighted the need

for a relationship between the discipline of mathematics and the everyday student. Also,

understand the need for greater integration between the areas of language and of mathematics

(MACHADO, 1990). Taking these points as stimuli, it is then that the proposed research. The

main goal is to make a survey and analysis, through a collection of teaching mathematics in

elementary school, the textual genres that circulate in the discursive space of mathematics, since,

among one of the criteria for assessment of PNLD of Mathematics, there is of language, which

suggests the use of various types of texts (PNLD, 2008). This work aims also to show that the

area of movement and work with gender in school are not restricted to lessons in language.

Keywords: textual genres, textbook of mathematics, language.

1. Apresentação

Tal como acontece no ensino de Língua Portuguesa, os resultados obtidos através de avaliações

oficiais, como por exemplo, o Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica), não são muito

satisfatórios no que se refere ao ensino de Matemática nas escolas brasileiras. Entre os obstáculos

abordados no ensino da disciplina, estão os de origem epistemológica, os de origem didática e,

especialmente, os de origem lingüística (ALMOULOUD, MELLO s/d).

Em contra partida, há poucas pesquisas vindas da ciência da linguagem voltadas para atender

amenizar os problemas de ordem lingüística que surgem em outras áreas do conhecimento, em

especial no campo das Exatas. Dessa forma, embora, haja um avanço na busca por propostas e

soluções vindas da Matemática e da Educação, algumas lacunas tendem a perdurar, uma vez que

dependem de estudos que atendem aos aspectos lingüísticos do problema. Até os Parâmetros

Curriculares Nacionais (PCN’s) trazem a associação entre as áreas como ponto importante no

ensino de Matemática. Segundo os PCN’s (1998), “os conhecimentos lingüísticos devem ser

associados aos matemáticos para melhor desenvolver o objeto de estudo”.

Nesse espaço, o livro didático aparece como um dos protagonistas. Nas salas de aula das escolas

brasileiras, o professor o tem como suporte didático e, muitas vezes, como único material de

apoio e de consulta (BATISTA, 2003). Além de ser um norteador na seleção dos conteúdos que

serão ensinados na escola. Sendo assim, o presente trabalho busca fazer um reconhecimento dos

gêneros textuais presentes no livro didático de Matemática através de uma seqüência de

conteúdos trabalhados ao longo dos anos do Ensino Fundamental, Conceberemos gênero como

prática sócio-comunicativa e nossas realizações lingüísticas se dão através dessas estruturas

(MARCUSCHI, 2004; KOCH, 2006) .

2. Acerca da Teoria A partir da década de 90, houve uma grande corrida em busca de novas propostas para o trabalho

com língua em sala de aula. A velha fórmula do ensino através de uma abordagem

metalingüística em que predominavam análises de estruturas soltas desvinculadas de um contexto

real de uso da língua não dava mais resultados. O trabalho com os textos era pouco produtivo e

muitas vezes aparecia como pretexto para o ensino de estruturas. Se não se podia ensinar a

estrutura da língua, então o que iria para sala de aula? O ensino de língua estava posto em

cheque.

Se pensarmos um pouco, veremos que esse ensino de cunho extremamente estruturalista, de uma

maneira ou de outra, acabava também por trazer resultados negativos em outras disciplinas.

Embora seja responsabilidade do professor de língua o ensino de leitura e produção de texto,

essas atividades não ficam restritas ao universo do ensino de língua materna. Logo, os resultados

negativos não se restringiam a disciplina de Língua Portuguesa.

Reflexões como estas já apareciam na área da Matemática, em destaque para a Educação

Matemática. “Ainda na década de 70, vários projetos de investigação identificaram o texto dos

problemas matemáticos como um locus de distúrbio lingüístico que podia causar efeitos sobre o

raciocínio matemático” (MOREIRA, 1996: 83). No Brasil, influenciado por lançamentos de

vários livros1, a necessidade de uma integração entre língua e matemática começava também a

ser sentida (MACHADO, 1998). “Por isso, a solução para essa falha técnica é trabalhar essas

duas disciplinas juntas e, assim, promover um aprendizado da matemática e do português com a

mesma facilidade” 2.

1 Nesse contexto destaca-se “Matemática e Língua Materna: análise de uma impregnação mútua” de Nilson José Machado lançado em 1990. 2 Entrevista dada pelo autor em 11 de fevereiro de 2008 e disponível no site www. e-educador.com.

Essa virada passa a dar um novo direcionamento no ensino de língua, com repercussões nas

outras disciplinas. Aquela fórmula antiga dava seu lugar a propostas mais pragmáticas. O ensino

de estruturas cedia espaço ao texto, que passava a lugar de destaque. Paralelamente começava a

circular a noção de gênero (discursivo ou textual), uma vez que esta é a materialização de um

texto (MARCUSCHI, 2003).

Assim, as reflexões caminharão para uma visão de língua como atividade social, histórica e

discursiva (MARCUSCHI, 2003, 2004; KOCH, 2004), não negando, no entanto seus aspectos

formais, realizada através de texto, que são materializados em gêneros e que pertencem a um

domínio discursivo. Portanto, as discussões abaixo buscarão atender os conceitos de texto,

detendo-se, no entanto, principalmente, no conceito de gênero.

2.1 Gênero (textual ou discursivo)

A partir da década de 60, com contribuições vindas de outros campos das ciências humanas, a

ciência lingüística passa a se preocupar com fatores que são externos ao sistema. O contexto de

produção, os sujeitos e nossas escolhas no processo de interação passam a ser levados em conta

nas pesquisas lingüísticas. (...) “ já não se trata de pesquisar a língua como sistema autônomo,

mas sim o seu funcionamento nos processos comunicativos de uma sociedade concreta (KOCH,

2004: 14). Ou como traz Weedwood (2003:144):

“Para retomar a metáfora saussuriana, em vez de se preocupar em conhecer a

partitura seguida por diferentes músicos na execução de uma mesma peça

musical, o lingüista quer conhecer precisamente em quê e por quê [grifo nosso]

houve diferenças na execução, de que forma elas se manifestam e que efeito

tiveram sobre o público ouvinte.”

Este novo momento dentro da Lingüística passa a ser conhecido como Virada Pragmática. Até

então os trabalhos com textos restringiam-se ao nível da frase. Contudo, já não era suficiente, se

deter apenas nos elementos internos da unidade textual. Assim, com a Virada, as pesquisas

ganharam uma nova direção.

Primeiramente, passaram a conceber a unidade textual como um conjunto de frases ampliadas.

Aparecia a necessidade de pesquisas que fossem além dos limites da frase. Neste momento, sob

influência da corrente gerativa, procurou-se criar as chamadas gramáticas textuais. “Tais

gramáticas constituíram, portanto, uma tentativa de descrição do texto como entidade uniforme,

estável e abstrata, procurando-se detectar o sistema gerador subjacente como um sistema

imanente” (KOCH, 2001:73).

A tentativa de postular uma gramática textual tal como acontecia com a gramática gerativa não

deu muito certo. Percebeu-se que o projeto de elaboração das gramáticas não era viável e muito

pouco produtivo.

Com o abandono do projeto e a percepção de que os estudos tinham de deixar de ver a unidade

textual como um conjunto de frases, passaram, então, a explorá-la, indo além da estrutura. O

funcionamento, a produção e a compreensão textual se tornaram os objetos de investigação

dentro da Lingüística Textual. Dessa forma, o texto passou a ser considerado “o próprio lugar

da interação e da constituição dos interlocutores” (KOCH, 2004), “um evento comunicativo em

que convergem ações lingüísticas, sociais e cognitivas” (BEAUGRAND apud MARCUSCHI,

2004), visto que as realizações lingüísticas dos falantes se dão através de unidades de sentidos,

os textos, e não por meio de unidades isoladas. Ou como afirma Bezerra (2001:36), trata-se de

uma “unidade lingüístico-pragmática, organizada com base em critérios de coerência, coesão,

situacionalidade, informatividade, aceitabilidade e outros, podendo ser oral ou escrita e possível

de várias interpretações”.

Além das definições acima, hoje com contribuições vindas da Teoria Semiótica Social fortemente

influenciadas pela Gramática Sistêmico-funcional de Halliday reforçam o conceito de texto com

outro critério comentado por Dionísio (2005): a multimodalidade. Para a autora, “a

multimodalidade é traço constitutivo a todos os textos e gêneros textuais”. Ou seja, “quando

falamos ou escrevemos um texto, estamos usando no mínimo dois modos de representação:

palavras e gestos, palavras e entonações, palavras e imagens, palavras e tipográficas, palavras e

sorrisos, palavras e animações etc” (DIONÍSIO, 2005:161). Independente de a unidade textual se

apresentar na modalidade escrita ou falada necessitará, como já comentado, de outra

representação para que se concretize. Posto assim, acompanhando a definição de texto, as

concepções de gênero passam a ser discutidas.

Bastante em discussão hoje, os estudos de gênero, no entanto, são datados de pelo menos vinte e

cinco séculos. As primeiras discussões surgiram na Grécia Antiga, desenvolvidos dentro da área

da Retórica e da Poética, seguindo pela Idade Média, e, por fim, chegando a Modernidade.

Durante esse tempo, o termo gênero ficou bastante associado aos estudos literários e diretamente

ligado a poesia (MARCUSCHI, 2003, 2004). Chegou ao século XX, no entanto, precisando de

reformulações. A teoria só atendia aos textos poéticos e pouco contribuía para os textos em prosa,

bem mais presentes e corriqueiros em sociedade. Surgiu, portanto, a necessidade de outros

parâmetros de análise.

Saindo da Literatura, hoje os estudos de gênero fazem parte de outras áreas das ciências como a

Etnografia, a Sociologia, a Antropologia e a Linguística. Em Lingüística, adota uma posição bem

focada na relação língua – sociedade. Representa uma área dos estudos lingüísticos com fartas

contribuições além de estar em bastante desenvolvimento. No caso da Linguística, as principais

fundamentações teórico-reflexivas para o tratamento e estudos dos gêneros partem

principalmente das contribuições vindas de Bakhtin (KOCH, 2006), conforme será observado

abaixo.

De origem soviética, as reflexões desenvolvidas por Bakhtin só chegaram ao “mundo europeu”

na década 70. Em oposição a um tipo de fazer linguístico com base estruturalista, a perspectiva

por ele adotada concebe língua como “uma atividade social” marcada pelas relações dialógicas.

“Só existe língua onde houver possibilidade de interação social, dialogal” (WEEDWOOD, 2003:

152).

Dentro da Teoria dos Gêneros, o autor desenvolveu um conceito pautado na dialogicidade da

linguagem, voltando-se mais para o uso e menos preocupado em uma classificação “ .... Bakhtin

concebe os gêneros do discurso como tipos de enunciados criados dentro dos vários campos da

atividade humana” (PINTO, 2003:48). Salienta-se que essa concepção agrega critérios não-

linguísticos, tais como “o conteúdo temático, o estilo de língua e a estruturação composicional”

em sua definição.

Ainda dentro da perspectiva bahktiniana, por sua identidade dialógica, os gêneros podem ser

enquadrados sob duas formas: primário e secundário. Não haveria aqui uma relação de

superioridade, mas uma relação de complementação. O primeiro seriam gêneros da comunicação

cotidiana e o segundo, de uma esfera comunicacional com características mais elaboradas.

Entretanto, essa “tipologia” proposta por Bakhtin não deve ser vista como uma forma

modeladora, visto que um gênero primário pode migrar para a esfera do gênero secundário.

No Brasil, os estudos sobre gênero ganharam impulso na década passada. Com resultados não

muito satisfatórios e uma prática há muito deficitária, como já comentado anteriormente,

necessitava-se de novas sugestões para o ensino de língua. Esse contexto foi bastante propício

para a entrada de teorias que trouxessem contribuições para combater os efeitos negativos da

antiga prática além de apresentar propostas novas.

A valorização de um ensino que buscava atender as necessidades de uso efetivo da língua deixava

de lado o ensino de estruturas para então trabalhar com textos em sala. Segundo Rojo (2007: 11),

“(...) passam a ter importância considerável tanto as situações de produção e de circulação dos

textos como a significação que nelas é forjada e, naturalmente, convoca-se a noção de gêneros

(discursivos ou textuais) (...)”.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) representam para esse momento um dos

principais divulgadores da Teoria dos Gêneros, sobretudo nos espaços escolares. Influenciado

pelo grupo de Genebra, a perspectiva adotada pelos PCN’s vê o gênero como objeto de ensino de

língua. “(...) o gênero não é mais um instrumento de comunicação somente, mas é ao mesmo

tempo, objeto de ensino – aprendizagem” (SHNEUWLY, DOLZ; 2004). Essa concepção fica

bem clara no próprio documento, como pode ser observada.

A noção de gênero refere-se, assim, a famílias de textos que compartilham

características comuns, embora heterogêneas, como visão geral da ação à qual o

texto se articula, tipo de suporte comunicativo, extensão, grau de literariedade, por

exemplo, existindo em número quase ilimitado. (PCN’s, 1998: 22).

A proposta concebida nos Parâmetros busca subsidiar a prática docente, por isso adota uma

definição mais didática. Não é negado, no entanto, que as reflexões de Bakhtin não contribuam

para o trabalho em sala de aula,

Ainda que o grupo suíço tenha objetivos distintos, há alguns pontos em comum nas duas

tendências.

Em primeiro lugar, tanto um como o outro pensam língua 3como prática social e sua realização

não se daria através de unidades isoladas, mas de textos organizados em enunciados padrões, os

gêneros. Embora fique mais evidente nas definições do grupo suíço a preocupação quanto à

forma, fica implícito que a concepção bakhtiniana de gênero não abandona a ideia de língua

enquanto sistema e, conseqüentemente, os gêneros teriam sua concretização através de uma

estrutura determinada pelo seu uso em sociedade. “(...) todos os nossos enunciados se baseiam

em formas padrões e relativamente estáveis de estruturação de um todo” (BAKHTIN apud

KOCH, 2004).

Já, em segundo lugar, a teoria desenvolvida pelo grupo de Genebra abraça a proposta bakhtiniana

de abordar os gêneros em primários e em secundários. Para Shneuwly (2007: 30), “os gêneros e,

mais particularmente, os gêneros primários são o nível real com o qual a criança é confrontada

nas múltiplas práticas de linguagem”. Assim, inicialmente, as crianças em processo de

escolarização teriam um primeiro contato com os gêneros do cotidiano, os primários, para depois

ganharem uma instrumentalização e passarem a usar os gêneros mais complexos, os secundários,

já que um pode se desdobrar em outro.

Complementando a discussão, finalizaremos com outra concepção bastante trabalhada e aceita,

que não chega a formar exatamente um grupo, mas traz um outro ponto de vista com

características mais gerais.

3 Dentro do quadro teórico de Bakhtin, o objeto de estudo é a linguagem e não língua, indo além da estrutura verbal (Cunha, 2003). Assim, será trabalhada dentro das discussões a palavra língua, mas atendendo a concepção mais abrangente proposta pelo autor.

Também influenciado por Bakhtin, o grupo, formado principalmente pelos norte-americanos

Miller Bazerman e Bronckart, estabelece uma definição de gêneros buscando uma espécie de

equilíbrio teórico. As ações lingüísticas são mais evidenciadas dentro dessa concepção, sem

descartar, no entanto, a forma, a organização composicional do gênero, retomando aqui a visão

bakhtiniana. “Quando denominamos um gênero textual não denominamos uma forma lingüística

e sim uma forma de realizar linguisticamente objetivos específicos em situações sociais

particulares” (MILLER apud MARCUSCHI, 2004:93). Tal como o pensador soviético, a língua

aqui é vista como prática social e os gêneros também apresentam uma forma para sua realização.

Há ainda dentro da Lingüística outras abordagens teóricas para o trabalho com gêneros. Algumas

voltadas mais para os aspectos formais, outras mais preocupadas com o contexto de produção. A

bibliografia é vasta e atende a diversos interesses e objetivos do trabalho. Entretanto não há como

deixar de abordar as contribuições de Bahktin para os estudos de gêneros, como afirma

Marcuschi (2004: 92), “Bahktin aparece como um bom senso teórico”.

3. Metodologia

O corpus construído para o presente trabalho adota uma visão de língua como prática social, não

negando, no entanto, a sua organização sistêmica. Visão que se refletirá ao longo das análises e

no decorrer das discussões. Como bem enfatiza Marcuschi (2001), “é somente na relação com

uma concepção de língua que se dá a explicitação da análise de fatos lingüísticos.”

A pesquisa de cunho quantitativo - qualitativo se prestará a uma análise crítico - reflexiva, tendo

como suporte a teria dos gêneros, como já discutido.

Um dos objetivos principais é fazer um levantamento e um mapeamento dos gêneros presentes

nos livros didáticos de Matemática através de uma seleção de conteúdos que são trabalhados de

modo sequenciado ao longo do Ensino Fundamental. O conteúdo selecionado refere-se à Teoria

dos Conjuntos que engloba o conjunto dos números naturais, inteiros, racionais e reais. Segue-se,

na tabela abaixo, o volume, capítulo e páginas do livro e o assunto selecionado.

Coleção “Tudo é Matemática”

Assunto

Número

naturais e sistemas de numeração

Números Inteiros

Números Racionais

Conjuntos Numéricos: dos naturais

aos reais

Números

Reais: potências e

radicais

Volume

1

2

2

3

4

Capítulo

1

2

3

2

2

Página

7-30

22-54

55 -78

25-47

18-45

Pretende-se, também, catalogar os gêneros presentes, observar se há uma relação entre a presença

de determinado gênero e o conteúdo vivenciado, verificando se há uma progressão dos gêneros

no decorrer das séries.

Optou – se por uma coleção previamente analisada pelo PNLD (2008), já que entre um dos

critérios (os aspectos teórico-metodológicos) adotados pelo Plano, faz-se presente o critério da

linguagem, como observado abaixo, ressaltando o sub-critério 6.3, em que fica evidenciada a

preocupação com a oferta de textos para o aluno:

6. Linguagem A linguagem utilizada na coleção é adequada ao aluno a que se destina quanto: 6.1 – ao vocabulário; 6.2 – à clareza na apresentação dos conteúdos e na formulação das instruções; 6.3 – ao emprego de vários tipos de texto. (grifo nosso)

(GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS PNLD: MATEMÁTICA, 2008: 24)

Assim, o corpus é constituído pela coleção “Tudo é matemática” que foi aprovada no último

PNLD e escolhida pela rede municipal de ensino da Prefeitura do Cabo de Santo Agostinho entre

as oferecidas pelo catálogo do Plano. Logo, é uma coleção que já foi devidamente avaliada dentro

da perspectiva da Educação Matemática, tendo sua qualidade comprovada além do que se faz

presente na rede pública de ensino.

4. Análise do corpus

A análise se dará a partir de três momentos supracitados: o levantamento quantitativo, a

catalogação dos tipos de gêneros presentes e a identificação de uma relação entre o gênero e o

conteúdo trabalhado, atentando para a existência de uma progressão no decorrer das séries.

Ao todo foram identificadas, nos capítulos analisados, 339 unidades textuais distribuídas em 16

tipos de gêneros distintos. No levantamento, foram levados em consideração alguns aspectos

referentes ao espaço discursivo didático. Assim, não foi considerado para a contagem o texto

explanativo dos conteúdos e nem os exercícios propostos. O trabalho levou em consideração os

gêneros didáticos ou já didatizados e gêneros autênticos que são de outra instância discursiva.

Seguindo essa divisão, passa-se então para a segunda parte da análise.

Entre os gêneros didáticos, houve uma maior quantidade de unidades textuais, entretanto

agrupados em apenas cinco tipos de gêneros, como por exemplo, ilustração, tabela, foto, gráfico,

você sabia4, box informativo e legenda, de acordo com a quantidade. Ressaltaremos, nesse

momento, o gênero ilustração que foi o mais recorrente nos capítulos.

Além do critério da Linguagem, outra ressalva feita pelo PNLD é com relação aos aspectos

editoriais, particularmente a presença de ilustrações.

Ilustrações

3.1 – Estão isentas de erros; 3.2 – Enriquecem a leitura dos textos, auxiliando a compreensão.

(idem, 2008: 24)

Posto assim, fica claro o porquê do grande número de ilustrações presentes no livro. No

levantamento, correspondem a aproximadamente 55% dos textos presentes.

Indo para a os gêneros autênticos, estes representam bem menos da metade dos textos presentes e

alguns estão diretamente associados a momentos bem particulares do livro. Aparecem como

suporte para exercícios e como contextualizadores dos conteúdos, como será discutido mais

adiante.

4 Uma das dificuldades encontradas dentro dos estudos dos gêneros e a nomeação dos gêneros, dificuldade que foi encontrada da pesquisa, em particular, com o gênero catalogado com “você sabia”. Por exemplo, “Você sabia que... / ...um ano-luz é a distancia que a luz percorre em um ano?” (5ª série, 23).

Os gêneros são bem variados e, na maioria das vezes, só há uma recorrência ao longo dos

capítulos. Foram levantados os seguintes: mapa, desafio, tirinha, frase, enigma, notícia, receita

culinária, planta de cidade e cheque.

O gráfico abaixo apresenta os comentários firmados.

0

20

40

60

80

100

120

140

160

180

200

quantidade

ilustração 

tabela

foto

gráfico

você sabia

box informativo 

mapa

desafio

legenda

tirinha

frase

cheque

receita culinária 

planta

enigma

Depois do levantamento quantitativo e da catalogação dos gêneros, passaremos para o tratamento

dos gêneros dentro do livro didático, seguiremos, agora, com a última parte.

Uma das propostas da Educação Matemática é fazer com que a disciplina passa a ser mais

representativa para os alunos e que as situações do cotidiano sejam exploradas. Nesse contexto, o

trabalho com os gêneros representa um passo importante para alcançar tais propostas. Entretanto,

deve ficar claro que não é feito um trabalho em que se explorem os aspectos lingüísticos dos

gêneros, mas um trabalho que explore o conteúdo matemático através de contato com textos

reais, criando simulações para um contexto concreto. Sendo assim, pode-se observar a tentativa

de contextualização dos assuntos, tendo como suporte os gêneros tanto na apresentação do

conteúdo como também nos exercícios propostos, pontos anteriormente ressaltados.

No primeiro caso, os autores explorem os gêneros textuais, trazendo-os como exemplos, ao

buscarem associar o assunto do capítulo com a realidade do aluno. Na coleção observada,

primeiro se exploram os contextos reais, as possibilidades concretas em que serão indispensáveis

os conhecimentos matemáticos para, em seguida, se chegar ao assunto propriamente dito. Ao

longo da coleção, os gêneros aparecem como uma ponte entre a disciplina e o mundo real,

justificando, de uma maneira ou de outra, a necessidade de se estudar o assunto. Também, fica

evidente a preocupação dos autores de atender às exigências tanto do PNLD como dos resultados

da pesquisas desenvolvidas dentro da área da Educação Matemática.

A figura abaixo exemplifica bem isso. O assunto é Número racionais. Com esse conteúdo

pretende-se que os alunos tenham contato com um tipo de número que pode ser escrito na foram

de fração ou na forma de números decimais. Logo, o livro busca exemplos bem concretos para

isso. Observe a figura 1:

Neste capítulo você verá que muitas dessas situações podem também envolver números escritos na forma de fração,

na forma mista ou na forma decimal.

Veja os exemplos:

6ª série, p. 55.

Outra maneira de explorar os gêneros dentro dos livros é através dos exercícios, ressaltando o

aparecimento, em maior número, dos gêneros autênticos. Os exercícios representam a práxis, a

concretização do assunto estudado e uma representação de uma possível situação de uso dos

assuntos estudados. Os exemplos abaixo representam muito bem a observação. O autor buscou

dois gêneros com funções bem distintas para a realização dos exercícios. O primeiro seria um

gênero bem do cotidiano do aluno, uma receita culinária, já o outro, a tirinha, pertence a um

domínio discursivo bem característico, ao domínio do humor. Em ambos, necessita-se dos

conteúdos estudados para realizar a atividade e para compreender o texto. O primeiro necessitará

do conteúdo Números inteiros e o aluno precisará saber operar com números fracionários e o

segundo, com os Números naturais e, neste caso, o aluno terá de saber transformar números

naturais em algarismos romanos. Observe:

Figura 2

6ª série, p. 52.

Figura 3

5ª série, p. 18.

5. Conclusão

O presente trabalho, embora abarque uma dimensão pequena, foi extremamente

contribuidor para se dar um novo olhar para o trabalho com gêneros em sala de aula, visto

que um trabalho bem feito repercutirá positivamente em outras disciplinas. Como já

frisado, atividades de leitura e produção textual não são restritas às aulas de língua. Dessa

forma, pode-se afirmar que os textos não são unidades apenas encontradas em aulas de

língua, nem muito menos o trabalho com eles se restringe a elas.

Além disso, há um vasto campo a ser percorrido nessa relação linguagem –matemática, no

intuito de trazer contribuições tanto para a área da Matemática quanto para a Linguística.

Entretanto, deve ficar claro que não há como, de uma hora para outra, entramos de cabeça

em um campo que até pouco tempo parecia ser bem distante do nosso. Faz-se necessário

cautela para que surjam propostas sérias e proveitosas na esperança de ajudar a amenizar os

problemas de linguagem que aparecem no processo de ensino – aprendizagem da

Matemática.

Referências Bibliográficas ALMOULOUD, Saddo Ag; MELLO, Elizabeth Gervazoni Silva de. Iniciação à Demonstração Apreendendo Conceitos Geométricos. mimeo BATISTA, Antônio Augusto Gomes. A avaliação dos livros didáticos: para entender o Programa Nacional do Livro Didático. In BATISTA, Antônio Augusto Gomes, ROJO, Roxane. Livro Didático de Língua Portuguesa, Letramento e Cultura da Escrita. São Paulo: Mercado de Letras, 2003. BEZERRA, Maria Auxiliadora. Textos: Seleção variada e atual. In: BEZERRA, Maria Auxiliadora; DIONÍSIO, Ângela Paiva (org.). O livro didático de Português. 2 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. CUNHA, Doris de Arruda Carneiro da. O funcionamento dialógico em noticias e artigos de opinião. In: BEZERRA, Maria Auxiliadora; DIONÍSIO, Ângela Paiva; MACHADO, Anna Rachel. Gêneros Textuais e Ensino. Rio de Janeiro: Lucena, 2003. DANTE, Luís Roberto. Tudo é matemática. São Paulo: Ática, 2007. DIONÍSIO, Ângela Paiva. Multimodalidade discursiva na atividade oral e escrita. In: DIONÍSIO, Ângela Paiva; MARCUSCHI, Luiz Antônio. Fala e escrita. Belo horizonte: Autêntica, 2005.

DOLZ, Joaquim; SCHEUWLY, Bernard. Os gêneros escolares – das práticas de linguagem aos objetos de ensino. In: Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. Guia de livros didáticos PNLD 2008 : Matemática / Ministério da Educação. — Brasília : MEC, 2007. 148 p. (Anos Finais do Ensino Fundamental). KOCH, Ingedore Vilaça. Introdução à lingüística textual. São Paulo: Martins Fontes, 2004. KOCH, Ingedore Vilaça. Lingüística Textual: retrospecto e perspectivas. In: BRAIT, Beth (org.). Estudos Enunciativos do Brasil. Campinas, SP: Pontes: São Paulo: Fapesp, 2001. MACHADO, Irene. Gêneros Discursivos. In: BRAIT, Beth. Bakhtin Conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. MACHADO, Nilson José. Matemática e Língua Materna: uma análise de uma impregnação mútua. São Paulo: Cortez, 1998. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: BEZERRA, Maria Auxiliadora; DIONÍSIO, Ângela Paiva; MACHADO, Anna Rachel. Gêneros Textuais e Ensino. Rio de Janeiro: Lucena, 2003. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção Textual, Análise de Gêneros e Compreensão. Recife: Departamento de Letras, UFPE. 2ª versão, 2004, mimeo.

MARCUSCHI, Luís Antônio. Um corpus lingüístico para análise de processos na relação fala e escrita. Simpósio Corpus Lingüístico, 2001, mimeo.

MOREIRA, Darlinda. Educação, Matemática e Linguagem Natural. Revista da Língua Portuguesa: 1996, jul, nº 15. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: matemática/Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: português /Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998. PINTO, Abuêndia Padilha. Gêneros discursivos e ensino de língua inglesa. In: BEZERRA, Maria Auxiliadora; DIONÍSIO, Ângela Paiva; MACHADO, Anna Rachel. Gêneros Textuais e Ensino. Rio de Janeiro: Lucena, 2003. ROJO, Roxane; CORDEIRO, Glaís Sales. Apresentação: gêneros orais e escritos como objetos de ensino: modo de pensar, modo de fazer. In: Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004.

SCHEUWLY, Bernard. Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e ontogenéticas. In: Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. WEEDWOOD, Barbara. História Concisa da Lingüística. São Paulo: Parábola, 2003.