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LIVRO DIDÁTICO DE LITERATURA NA PARAHYBA EM 1769-1826
Hélcia Macedo De Carvalho Diniz e Silva/UFPB
Fabiana Sena/UFPB
Jorge Fernando Hermida Aveiro/UFPB
RESUMO
Este trabalho sobre a circulação de livro didático no período de 1769-1826 é parte de
pesquisa mais ampla, que pretende promover o debate sobre a circulação da obra As
aventuras de Telêmaco: filho de Ulisses, de François de Salignac de La Mothe Fénelon. O
objetivo geral é traçar a circulação da referida obra. Essa obra consolidou-se no Brasil
como material escolar e foi utilizada na disciplina de Francês no Lyceo Parahybano. Base
que justifica a presente pesquisa, assim como o fato de o referido livro ocupar, à época, o
primeiro lugar da lista para “importação à Mesa do Desembargo do Paço tanto no período
anterior à chegada da família real (1769-1807) quanto no imediatamente posterior (1808-
1826)”, conforme assegura Abreu (2003, p. 212), obra adaptada e publicada em várias
línguas no mundo desde a sua primeira publicação em 1699. Na França, manteve-se no
topo da lista de Best-sellers por cerca de um século, assegura a autora. Parte-se da hipótese
de que são as orientações pedagógicas que a personagem Mentor transmite ao seu pupilo
chamado Telêmaco, o filho de Ulisses, que promove a aceitação dessa obra, bem como a
sua circulação pelo mundo. Para desenvolver a presente pesquisa algumas questões se
estabelecem, a saber: quais caminhos foram percorridos pelo livro didático até aportar na
Parahyba? Quais são as fontes que comprovam o ensino de francês na Parahyba por meio
desse livro didático?
PALAVRAS-CHAVE: Circulação de Livro didático. Literatura. História da Educação.
INTRODUÇÃO
Ao circular pelo mundo a obra As aventuras de Telêmaco: filho de Ulisses,
publicada em 1699, torna-se um best-seller. Nesta, o protagonismo de “Mentor”, revela o
papel de uma personagem que atua ao lado de Telêmaco como o “protetor”, “conselheiro
sábio” e “professor/orientador” do filho de Ulisses. A partir de 1750 o termo mentor passa
a constar nos dicionários de várias línguas com esses sinônimos. Não é direta a relação da
publicação do livro com a adoção do termo, no entanto a circulação da obra pelo mundo
contribuiu para consolidar tal entendimento, assim como os ensinamentos referentes à vida
moral.
Publicada na França, a referida obra circula por Portugal e Brasil, então colônia
portuguesa. Nessa época, é adotada em Lyceos e Atheneus do país inteiro como livro de
instrução, inclusive no Lyceo Parahybano, conforme consta na relação dos colégios que
trabalhou esse livro nos estudos de Francês1. Outro fato relevante foram os recorrentes
registros de solicitação de exemplares registrados nos dados da Mesa do Desembargo do
Paço, de 1769-1826.
A fortuna crítica apresenta pesquisas que envolvem análise de livro didático que
circularam no Brasil, assim como apresenta a prática de uso deste material no âmbito da
História da Educação e da Literatura. Constitui-se no campo de estudos prioritários de
professores(as) e pesquisadores(as) como Magda Soares, Marisa Lajolo, Regina
Zilberman, Fabiana Sena, Ana Maria Galvão, Antônio Augusto Gomes Batista, Márcia de
Paula Gregório Razzini e Karina Klinke, Choppin, Bittencourt, entre outros.
É possível que tenham sido o protagonismo de Mentor o ponto de partida para a
adoção do referido best-seller no trabalho de tradução das aulas de francês no Lyceo
Parahybano, a literatura servindo de pretexto para o processo de ensino-aprendizagem da
tradução do francês para o português.
No Best seller em realce, Mentor é a representação de uma figura que associa a
seriedade com a alegria e faz isso com ponderação, sendo capaz de ensinar com humildade
e nunca demonstrar superioridade. Esta postura torna-se possível quando o conhecimento
abrangente sobre os temas mais difíceis são tratados com simplicidade.
Aquele cujo trabalho é construir conhecimento, aprimorar práticas e trabalhar a
atitude perante as adversidades em obediência à moral é o mentor do processo de ensino,
que não pode ser separado da aprendizagem.
Justamente, Mentor é uma personagem que trabalha para cumprir a sua missão de
educador. No enredo da obra escrita por Fénelon, a deusa Minerva está escondida na figura
de Mentor, ela é quem dirige os passos do mestre que orienta o jovem Telêmaco. É este o
tom valorativo emotivo (BAKHTIN, 1993) que serve de base para o desenvolvimento da
Literatura feneloniana, que circulou pelas salas de aula do Brasil Colônia e Império.
De acordo com Sena (2008, p. 11), faz-se mister dar visibilidade aos livros
didáticos que circularam no Brasil Império. Muitos deles
estão relacionados aos estudos sobre a leitura, o livro e o leitor na
contemporaneidade que aproximaram os pesquisadores da recuperação da
história da leitura no Brasil e na Paraíba. Esse interesse somente ocorreu
no final do século XX, sendo possível identificar livros e outros objetos
culturais que circularam no Brasil no Setecentos e no Oitocentos. No
movimento da restituição das práticas de leitura dessa época, os livros e a
1 “No Lyceo são ensinadas as seguintes disciplinas em 6 cadeiras: Latim, Francêz, Inglês-Geographia,
Chronologia e História, Retórica e Poetica, Arithmetica, Geometria, e Philosophia racional e moral”
(PARAHYBA DO NORTE, Relatório, 1852, p. 11).
leitura ganham centralidade, ocupando um lugar de destaque entre os
pesquisadores da História da Leitura e da História da Educação
interessados em saber o que se liam e como eram encaminhadas as
situações de leituras no cotidiano escolar e em outros espaços no passado.
Com efeito, as pesquisas que utilizam o livro didático como corpus tem se
intensificado a partir da década de 1990 do século 20, representando o crescente interesse
de pesquisadores pela problemática que toma o livro didático como fonte de pesquisa. Esse
crescimento é fruto do movimento École dos Annales2, liderado por Lucen Febvre e Marc
Bloch (1929), quando houve transformações metodológicas pelas quais os conhecimentos
em história se aproximam das ciências sociais. Esta perspectiva edificou o ofício do
historiador, que passa a considerar o fato de que toda vivência é portadora de uma história
e apresenta aspectos a serem investigados.
Febvre e Bloch inauguram estudos teóricos da História e retira do foco as datas e os
grandes nomes dos acontecimentos, como era uma prática da tradição. Ao invés disso, o
ponto de partida para as abordagens da História enquanto pesquisa é adotar o aspecto
interdisciplinar, uma pesquisa voltada para problematizações dos vários aspectos,
diferenças humanas (homem ou mulher) e sociais (ricos ou pobres), entre outros.
As discussões promovidas por essa tendência, denominada de “Nova História”,
proporcionaram mudanças profundas nos estudos em História da Educação e, desde então,
tem (re)construído e ampliado à produção intelectual da historiografia, tanto no tocante aos
temas como no que se refere à discussão teórica.
Isso diferencia e fertiliza os debates, propiciando aos estudiosos em Historia, sejam
historiadores, filósofos ou pedagogos, ampliar as perspectivas com novos olhares e novos
contornos, conforme afirma Burke (1992). Investigações dessa linha buscam identificar em
diferentes momentos históricos as transformações e permanências no processo de
escolarização (VIDAL, 1993). O uso do livro de Fénelon em sala de aula ocorreu por conta
do trabalho de Jacotot (1770-1840) e seu método de ensino universal a partir da referida
obra. Esse projeto de trabalho com o livro em sala de aula se espalhou para o mundo.
Nessa esteira, consideramos As aventuras de Telêmaco: filho de Ulisses um objeto
cultural, cujo objetivo é disseminar valores filosóficos (ética e moral), razões que
justificam tomarmos a referida obra como nosso objeto de estudo porque partimos de
nosso lugar social. Considerarmos que esse livro contribuiu didaticamente para a
2 “Escola historiográfica francesa fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre, que encontrou seu veículo
máximo de expressão na Revista dos Annales editada a partir de 1929” (BARROS, 2013, p. 198).
disseminação de valores para uma sociedade em formação, no período da Colônia e do
Império brasileiro, a partir de ideais político e moral da educação.
Há algum tempo optamos pelo estudo dessa obra, uma vez que em Letras o trabalho
realizado é com livro didático. Acrescenta-se a isso a formação em Filosofia, quando dos
trabalhos com os conceitos moral, ética e outros dessa área. Destacamos como peso maior
para esta escolha, a relevância das pesquisas em História da Educação, tendo em vista que
os estudos desenvolvidos nessa área podem contribuir para entendermos os fatores
determinantes na escolha do livro didático, a circulação no território nacional e suas
relações com os discursos social, econômico, cultural, político, entre outros.
Anunciamos, então, a seguinte problemática: como saber algumas pratica no
processo de ensino-aprendizagem ao longo do tempo se não for pesquisando e buscando
sinais dos acontecimentos? Algo que nos inquieta é a instrução no Setecentos e Oitocentos
na Paraíba e a descoberta de um Best-seller adotado em sala de aula abriu caminhos para a
presente investigação. A partir desse ponto algumas questões nortearam o desenvolvimento
deste trabalho: quais caminhos foram percorridos pelo livro de instrução no Setecentos e
Oitocentos, As aventuras de Telêmaco: filos de Ulisses, até aportar na Parahyba? Quais são
as fontes que comprovam o trabalho pedagógico por meio da referida obra na Parahyba?
Em quais estabelecimentos de ensino foi adotado? O que se pretendia trabalhar em sala de
aula com o uso da Literatura em sala de aula?
Parte-se da hipótese de que são as orientações pedagógicas que a personagem
Mentor transmite ao seu pupilo chamado Telêmaco, o filho de Ulisses, que promove a
aceitação dessa obra, bem como a sua circulação pelo mundo. Desenvolve-se esta em dois
momentos, a circulação e os aspectos da mesma de modo amplo e a presença da obra na
Paraíba, o nosso lugar social.
CIRCULAÇÃO E OUTROS ASPECTOS
Entre os textos analisados por Abreu (2003) em Os caminhos dos livros esta autora
destaca a obra de Fénelon, As aventuras de Telêmaco, como uma das mais impressas e que,
no mundo, recebeu atenção de muitos comentadores, foi bastante imitada e traduzida entre
os séculos XVIII e XIX, tanto na Europa como fora dela, tendo chegado ao Brasil e servido
de livro de instrução3, adotado em Lyceos e no Atheneus de todo Brasil.
3 Livro de instrução é uma expressão que aqui é um sinônimo de Livro didático.
Esse fato coloca essa obra em posição de destaque quando se pretende desenvolver
estudos na perspectiva da História da Educação, tendo em vista o momento histórico em
que foi adotada em toda educação brasileira.
Faz-se mister buscar entender a circulação do texto e as razões de se trabalhar a
tradução do francês para o português com base no texto, que Cândido (1972, p. 6)
classificou como romance escolar por ser uma narrativa, um tipo textual, por excelência,
que permite esse tipo de trabalho.
Para realização desse trabalho a metodologia aplicada norteia-se pela circulação da
obra As aventuras de Telêmaco: filho de Ulisses. Esta pesquisa percorreu caminhos que
por vezes se apoiaram na teoria de Bakhtin (1997), sobretudo, na categorização de gêneros
de discurso e seu suporte, e em outros momentos no conceito de circulação a partir dos
estudos da história, das relações e da percepção que os humanos fazem a respeito da
Literatura.
Seguimos em busca de saber como o corpus ganhou Lyceos e Ateneus de todo
Brasil. Além disso, entender como a Literatura e seus registros históricos, os quais marcam
um determinado tempo, no caso específico, o período de 1769-1826. Nesse sentido, a partir
dos estudos desenvolvidos por Chartier (1991, p. 178):
O meu [espaço de trabalho] organiza-se em três polos, geralmente
separados pelas tradições acadêmicas: de um lado, o estudo crítico dos
textos, literários ou não, canônicos ou esquecidos, decifrados nos seus
agenciamentos e estratégias; de outro lado, a história dos livros e, para
além, de todos os objetos que contém a comunicação do escrito; por fim, a
análise das práticas que, diversamente, se apreendem dos bens simbólicos,
produzindo assim usos e significações diferençadas [grifos nossos].
Nesse sentido, ao procurar compreender como nas sociedades do Antigo Regime se
dava a circulação dos escritos impressos, que modificou as formas de sociabilidade, o
trabalho de Chartier (1991) abre o pensamento para novas perspectivas e transformam
formas possíveis de se ver as relações de poder de uma época.
Chartier (1999, p. 18) retoma as expressões de Michel de Certeau sobre as
variações da relação entre „espaço legível‟ e „efetuação‟, como “um texto estável, dado a
ler em formas expressas que, estas sim, sofrem mudanças”.
Com base em Certeau (1982, p. 66), “A escrita da história se constrói em função de
uma instituição”, uma vez que é do interesse da instituição que surge a História enquanto
disciplina. A tensão fundamental da história é uma prática científica e produtora de
saberes. Esse autor evidencia as variações e os procedimentos técnicos da pesquisa,
observa as restrições impostas pelo lugar social e a instituição do historiador, não se pode
esquecer as regras que comandam a sua escrita.
Nessa pesquisa, portanto, seguimos a orientação de Chartier (2002, p. 100), a
história enquanto “um discurso que coloca em ação construções, composições, figuras que
são aquelas de toda escritura narrativa, logo, também da fábula, mas que, ao mesmo tempo,
produz um corpo de enunciados „científicos‟”, isto é, a história consiste em conhecimento
verificável e controlado com pretensão de verdade fundante.
Certeau, por sua vez, mostra que cabe ao historiador interrogar a sua operação
historiográfica. Conforme no ensina:
Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira
necessariamente limitada, compreendê-la como a relação entre um lugar
(um recrutamento, um meio, uma profissão et.), procedimentos de análise
(uma disciplina) e a construção de um texto (literatura). É admitir que ela
faz parte da „realidade‟ da qual trata, e que essa realidade pode ser
apropriada „enquanto atividade humana‟, „enquanto prática‟. Nessa
perspectiva, gostaria de mostrar que a operação historiográfica se refere à
combinação de um lugar social, de práticas „científicas‟ e de uma escrita
(CERTEAU, 1982, p. 66).
Essas palavras guiam a metodologia da presente pesquisa, caracteriza a operação
historiográfica que ora está sendo traçado, haja vista o nosso lugar social que é a nossa profissão
de professores e pesquisadores.
De modo geral, o tempo em que o livro didático contribuiu significativamente para
as discussões sobre a construção de componentes curriculares coincide com a circulação
em escolas brasileiras. Basicamente, esta pesquisa procura inter-relacionar os aspectos
sociais com os saberes construídos nos processos educacionais. Valdermarin e Sousa
(2000) afirmam que muitas pesquisas voltadas para o livro didático contribuem, entre
outros aspectos, para as peculiaridades da instituição escolar, o que tem possibilitado
resultados capazes de explicar, pelo menos em parte, as complexidades e subjetividades do
processo de escolarização e de escolha da base teórica a ser trabalhada em sala de aula.
Pelo menos três grupos se dividem quando se fala em investigações do livro
didático, a saber, os estudos de Batista, Rojo e Mink (2005) com as análises de conteúdo
ideológico nos manuais escolares. As pesquisas de Chartier (1991) e Certeau (1982) com
investigações do livro didático a partir de práticas escolares e representação social e suas
relações com a formação do Estado nacional. Ainda na França, os estudos se destacam a
partir das pesquisas de Choppin (2002). Esses pesquisadores toma como base o livro
didático.
A circulação do livro didático no Brasil propiciou a Bittencourt (1993, 2004, 2008)
enfatizar preocupações referentes à compreensão de problemas acerca dos constituintes ou
o processo de constituição de componentes curriculares, escolarização de saberes, práticas
educativas e construção de cultura e saber escolares. Além deste autor, destacam-se
Munakata (1997), Corrêa (2006), Peres e Tambara (2003), Frade; Marciel (2006), Texeira
(2008), Gatti Jr. (2005) e Albuquerque (2010).
A presença da Literatura no Brasil no Setecentos e Oitocentos estava pautada no
modelo francês e clássico de ensino. A partir do Segundo Reinado, as primeiras histórias
literárias brasileiras estão organizadas basicamente conforme critério cronológico e
político, ligadas a projetos de afirmação de nossa identidade nacional. Segundo Lajolo
(1982, p. 15): “[...] a literatura converte-se em instrumento pedagógico” [...] “Sua
identidade se oblitera e o texto literário torna-se privilegiado, não pela sua natureza
estética, mas pela sua dimensão retórica e persuasiva, de veículo convincente de certos
valores que cumpre à escola transmitir, fortalecer, gerar”. Decorre que o livro literário
adentra a sala de aula por conta dessa dimensão persuasiva, assim como práticas exitosas
com o livro de literatura gera a circulação do mesmo nos lugares mais longínquos.
Nessa perspectiva, foi no período entre 1769 e 1864 que o livro de Literatura em
realce tomou a cena no âmbito didático, se prestando aos estudos escolares junto a
compêndios e cartilhas. De modo mais evidente, o As aventuras de Telêmaco: filho de
Ulisses serviu como objeto de tradução, mas não se limitava a isso. O conteúdo propiciava
aos estudantes reflexões sobre os mais variados assuntos, entre tantos destacamos a
virtude, a moral e a ética.
No estudo da circulação dessa obra encontra o dado de que a metodologia aplicada
ao estudo de tradução do francês para o português era perpassada pelas mensagens de
Mentor a Telêmaco, as quais ensinavam, entre outros assuntos, a prudência e o bom senso.
Para além dos ensinamentos, identifica-se que a narrativa preocupa-se com duas
esferas da vida, a cidadania e a questão religiosa, isso porque questões mitológicas e
acontecimentos historicamente grandiosos e dramáticos implicam em mudanças históricas
refletidas nas ações heroicas.
Investigar o passado por meio de livros didáticos implica em reconhecê-lo como
uma “poderosa fonte de conhecimento da história de uma nação que, por intermédio de sua
trajetória de publicações e leituras, dá a entender que rumos seus governantes escolheram
para a educação [...]” (LAJOLO e ZILBERMAN, 1998, p. 121). Ainda que não seja
explícito, pode-se tentar ordenar o mundo da leitura na Parahyba.
Assim, a prática do historiador está centrada em transformar um objeto em
histórico, em historicizar um elemento, tal como um operário que trabalha sobre um
material a fim de transformá-lo em história. Devemos considerar, portanto, que o “próprio
recorte da documentação está sujeito às ações do lugar social onde o indivíduo está
inserido” (CERTEAU, 1982, p. 81-82), pensamento que este autor ratifica afirmando que
para: “Moscovici, a história seria mediatizada pela técnica”.
A PRESENÇA DA OBRA NA PARAHYBA
Há séculos que a educação é um processo de ensino-aprendizagem, inclusive, não
conseguimos enxergar o ensino separado da aprendizagem, ou vice-versa. No que tange à
educação formal, o entendimento de dialogismo bakhtiniano aplica-se perfeitamente a essa
dinâmica, uma vez que a interação verbal propicia aos agentes da educação o
estabelecimento das relações entre os sujeitos falantes, cada um segue tomando a palavra
que não é sua, o já dito, para se expressar.
O trabalho em sala de aula realiza-se por meio de textos de Literatura no Brasil
Setecentos e Oitocentos. Com efeito, a Literatura como pretexto fortalece a prática
pedagógica, esta exerce, desde sempre, a função de meio para o fim último da prática
escolar realizada nas escolas de todo território nacional. Trabalho que muitas vezes não é
notado. Como nos ensina Sena (2008, p. 174): “tornar visíveis os conteúdos e as estratégias
de aprendizagem dos livros de leitura que foram utilizados pelos professores e alunos no
passado nos faz perceber onde repousam as práticas atuais de ensino e aprendizagem”.
Aa aventuras de Telêmaco: filho de Ulisses é um exemplo da Literatura em sala de
aula, que na Parahyba foi explorado como estratégia de aprendizagem no ensino de
Tradução do Francês. Essa obra circulava pelas escolas e livrarias. Nesta última encontra-
se o anúncio em jornal de 14 de abril de 1864 (Cf. Anexo), na seção de livros “A venda na
pequena estante de Antonio Thomaz C. da Cunha”, entre livros de advocacia e medicina
está tanto a versão em francês como em português.
“No Lyceo são ensinadas as seguintes disciplinas em 6 cadeiras: Latim, Francêz,
Inglês-Geographia, Chronologia e História, Retórica e Poetica, Arithmetica, Geometria, e
Philosophia racional e moral” (PARAHYBA DO NORTE, Relatório, 1852, p. 11).
Alguns pensadores do século XVIII publicaram comentários sobre o livro em
realce, a saber, D‟Alembert elogia o livro sobre Telêmaco como um livro que ensina
princípios acerca da felicidade do Estado, explica Kapp (1982, p. 202). Para Voltaire, a
obra não era um poema e sim um romance com estilo próprio, afirma Bury (2004, p. 541).
Na história do ensino, a formação por meio de textos literários é bem aceita, uma
vez que a “escrita acaba por fazer a história, como também por contar histórias, sendo
assim de interesse ao caráter de ensinamento, para a sociedade” (CERTEAU, 1982, p. 95).
Com isso, História e Literatura se fundem em nome do profícuo processo de ensino-
aprendizagem, uma vez que este não pode ser visto separado daquele. Outra referência da
presença do livro As aventuras de Telêmaco: filho de Ulisses na Parahyba é o Relatório
apresentado à assembleia provincial (1852). Essas fontes possibilitam compreender o
processo de circulação dessa obra, bem como de identificar o ensino de Francês e da
Literatura na província.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Do ponto de vista teórico-metodológico este trabalho dá algumas contribuições aos
estudos em História da Educação ao evidenciar a Parahyba, principalmente por fazer
referência a uma época apagada, bem como a prática pedagógica instrucional com o uso de
livro didático.
Nesse campo de pesquisa, tal relevância é consistente para o campo social e
histórico, apresenta a circulação do livro didático como instrumento de formação no
período do Brasil Colônia e Império e, com isso, revela que os educadores nas escolas
paraibanas estavam sintonizados com as práticas realizadas no Brasil. O livro escrito no
final do século XVII, As aventuras de Telêmaco: filho de Ulisses, segundo Fénelon, é uma
narração fabulosa em forma de poema heroico igualmente aos textos de Homero e Virgílio,
para educar o neto do Rei e potencial sucessor do trono a obra circulou pelo mundo.
Esta obra se tornou um Best-seller, chegando à Portugal e, por conseguinte, ao
Brasil aportou, entre outros lugares, na Parahyba para consumo escolar. A grande
circulação justifica-se não apenas pela adoção da obra por professores, mas também por
encantar leitores da época que buscavam conhecimentos a mais sobre as narrativas épicas.
Na Parahyba, o Lyceo foi a instituição que acolheu o referido impresso escolar. Curioso é
perceber que além da leitura, dos ensinamentos, a obra servia de base para aprender o
francês.
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