livro didÁtico de literatura na parahyba em 1769 … · este trabalho sobre a circulação de...

12
LIVRO DIDÁTICO DE LITERATURA NA PARAHYBA EM 1769-1826 Hélcia Macedo De Carvalho Diniz e Silva/UFPB [email protected] Fabiana Sena/UFPB [email protected] Jorge Fernando Hermida Aveiro/UFPB [email protected] RESUMO Este trabalho sobre a circulação de livro didático no período de 1769-1826 é parte de pesquisa mais ampla, que pretende promover o debate sobre a circulação da obra As aventuras de Telêmaco: filho de Ulisses, de François de Salignac de La Mothe Fénelon. O objetivo geral é traçar a circulação da referida obra. Essa obra consolidou-se no Brasil como material escolar e foi utilizada na disciplina de Francês no Lyceo Parahybano. Base que justifica a presente pesquisa, assim como o fato de o referido livro ocupar, à época, o primeiro lugar da lista para “importação à Mesa do Desembargo do Paço tanto no período anterior à chegada da família real (1769-1807) quanto no imediatamente posterior (1808- 1826)”, conforme assegura Abreu (2003, p. 212), obra adaptada e publicada em várias línguas no mundo desde a sua primeira publicação em 1699. Na França, manteve-se no topo da lista de Best-sellers por cerca de um século, assegura a autora. Parte-se da hipótese de que são as orientações pedagógicas que a personagem Mentor transmite ao seu pupilo chamado Telêmaco, o filho de Ulisses, que promove a aceitação dessa obra, bem como a sua circulação pelo mundo. Para desenvolver a presente pesquisa algumas questões se estabelecem, a saber: quais caminhos foram percorridos pelo livro didático até aportar na Parahyba? Quais são as fontes que comprovam o ensino de francês na Parahyba por meio desse livro didático? PALAVRAS-CHAVE: Circulação de Livro didático. Literatura. História da Educação. INTRODUÇÃO Ao circular pelo mundo a obra As aventuras de Telêmaco: filho de Ulisses, publicada em 1699, torna-se um best-seller. Nesta, o protagonismo de “Mentor”, revela o papel de uma personagem que atua ao lado de Telêmaco como o “protetor”, “conselheiro sábio” e “professor/orientador” do filho de Ulisses. A partir de 1750 o termo mentor passa a constar nos dicionários de várias línguas com esses sinônimos. Não é direta a relação da publicação do livro com a adoção do termo, no entanto a circulação da obra pelo mundo contribuiu para consolidar tal entendimento, assim como os ensinamentos referentes à vida moral. Publicada na França, a referida obra circula por Portugal e Brasil, então colônia portuguesa. Nessa época, é adotada em Lyceos e Atheneus do país inteiro como livro de instrução, inclusive no Lyceo Parahybano, conforme consta na relação dos colégios que

Upload: lenga

Post on 12-Dec-2018

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

LIVRO DIDÁTICO DE LITERATURA NA PARAHYBA EM 1769-1826

Hélcia Macedo De Carvalho Diniz e Silva/UFPB

[email protected]

Fabiana Sena/UFPB

[email protected]

Jorge Fernando Hermida Aveiro/UFPB

[email protected]

RESUMO

Este trabalho sobre a circulação de livro didático no período de 1769-1826 é parte de

pesquisa mais ampla, que pretende promover o debate sobre a circulação da obra As

aventuras de Telêmaco: filho de Ulisses, de François de Salignac de La Mothe Fénelon. O

objetivo geral é traçar a circulação da referida obra. Essa obra consolidou-se no Brasil

como material escolar e foi utilizada na disciplina de Francês no Lyceo Parahybano. Base

que justifica a presente pesquisa, assim como o fato de o referido livro ocupar, à época, o

primeiro lugar da lista para “importação à Mesa do Desembargo do Paço tanto no período

anterior à chegada da família real (1769-1807) quanto no imediatamente posterior (1808-

1826)”, conforme assegura Abreu (2003, p. 212), obra adaptada e publicada em várias

línguas no mundo desde a sua primeira publicação em 1699. Na França, manteve-se no

topo da lista de Best-sellers por cerca de um século, assegura a autora. Parte-se da hipótese

de que são as orientações pedagógicas que a personagem Mentor transmite ao seu pupilo

chamado Telêmaco, o filho de Ulisses, que promove a aceitação dessa obra, bem como a

sua circulação pelo mundo. Para desenvolver a presente pesquisa algumas questões se

estabelecem, a saber: quais caminhos foram percorridos pelo livro didático até aportar na

Parahyba? Quais são as fontes que comprovam o ensino de francês na Parahyba por meio

desse livro didático?

PALAVRAS-CHAVE: Circulação de Livro didático. Literatura. História da Educação.

INTRODUÇÃO

Ao circular pelo mundo a obra As aventuras de Telêmaco: filho de Ulisses,

publicada em 1699, torna-se um best-seller. Nesta, o protagonismo de “Mentor”, revela o

papel de uma personagem que atua ao lado de Telêmaco como o “protetor”, “conselheiro

sábio” e “professor/orientador” do filho de Ulisses. A partir de 1750 o termo mentor passa

a constar nos dicionários de várias línguas com esses sinônimos. Não é direta a relação da

publicação do livro com a adoção do termo, no entanto a circulação da obra pelo mundo

contribuiu para consolidar tal entendimento, assim como os ensinamentos referentes à vida

moral.

Publicada na França, a referida obra circula por Portugal e Brasil, então colônia

portuguesa. Nessa época, é adotada em Lyceos e Atheneus do país inteiro como livro de

instrução, inclusive no Lyceo Parahybano, conforme consta na relação dos colégios que

trabalhou esse livro nos estudos de Francês1. Outro fato relevante foram os recorrentes

registros de solicitação de exemplares registrados nos dados da Mesa do Desembargo do

Paço, de 1769-1826.

A fortuna crítica apresenta pesquisas que envolvem análise de livro didático que

circularam no Brasil, assim como apresenta a prática de uso deste material no âmbito da

História da Educação e da Literatura. Constitui-se no campo de estudos prioritários de

professores(as) e pesquisadores(as) como Magda Soares, Marisa Lajolo, Regina

Zilberman, Fabiana Sena, Ana Maria Galvão, Antônio Augusto Gomes Batista, Márcia de

Paula Gregório Razzini e Karina Klinke, Choppin, Bittencourt, entre outros.

É possível que tenham sido o protagonismo de Mentor o ponto de partida para a

adoção do referido best-seller no trabalho de tradução das aulas de francês no Lyceo

Parahybano, a literatura servindo de pretexto para o processo de ensino-aprendizagem da

tradução do francês para o português.

No Best seller em realce, Mentor é a representação de uma figura que associa a

seriedade com a alegria e faz isso com ponderação, sendo capaz de ensinar com humildade

e nunca demonstrar superioridade. Esta postura torna-se possível quando o conhecimento

abrangente sobre os temas mais difíceis são tratados com simplicidade.

Aquele cujo trabalho é construir conhecimento, aprimorar práticas e trabalhar a

atitude perante as adversidades em obediência à moral é o mentor do processo de ensino,

que não pode ser separado da aprendizagem.

Justamente, Mentor é uma personagem que trabalha para cumprir a sua missão de

educador. No enredo da obra escrita por Fénelon, a deusa Minerva está escondida na figura

de Mentor, ela é quem dirige os passos do mestre que orienta o jovem Telêmaco. É este o

tom valorativo emotivo (BAKHTIN, 1993) que serve de base para o desenvolvimento da

Literatura feneloniana, que circulou pelas salas de aula do Brasil Colônia e Império.

De acordo com Sena (2008, p. 11), faz-se mister dar visibilidade aos livros

didáticos que circularam no Brasil Império. Muitos deles

estão relacionados aos estudos sobre a leitura, o livro e o leitor na

contemporaneidade que aproximaram os pesquisadores da recuperação da

história da leitura no Brasil e na Paraíba. Esse interesse somente ocorreu

no final do século XX, sendo possível identificar livros e outros objetos

culturais que circularam no Brasil no Setecentos e no Oitocentos. No

movimento da restituição das práticas de leitura dessa época, os livros e a

1 “No Lyceo são ensinadas as seguintes disciplinas em 6 cadeiras: Latim, Francêz, Inglês-Geographia,

Chronologia e História, Retórica e Poetica, Arithmetica, Geometria, e Philosophia racional e moral”

(PARAHYBA DO NORTE, Relatório, 1852, p. 11).

leitura ganham centralidade, ocupando um lugar de destaque entre os

pesquisadores da História da Leitura e da História da Educação

interessados em saber o que se liam e como eram encaminhadas as

situações de leituras no cotidiano escolar e em outros espaços no passado.

Com efeito, as pesquisas que utilizam o livro didático como corpus tem se

intensificado a partir da década de 1990 do século 20, representando o crescente interesse

de pesquisadores pela problemática que toma o livro didático como fonte de pesquisa. Esse

crescimento é fruto do movimento École dos Annales2, liderado por Lucen Febvre e Marc

Bloch (1929), quando houve transformações metodológicas pelas quais os conhecimentos

em história se aproximam das ciências sociais. Esta perspectiva edificou o ofício do

historiador, que passa a considerar o fato de que toda vivência é portadora de uma história

e apresenta aspectos a serem investigados.

Febvre e Bloch inauguram estudos teóricos da História e retira do foco as datas e os

grandes nomes dos acontecimentos, como era uma prática da tradição. Ao invés disso, o

ponto de partida para as abordagens da História enquanto pesquisa é adotar o aspecto

interdisciplinar, uma pesquisa voltada para problematizações dos vários aspectos,

diferenças humanas (homem ou mulher) e sociais (ricos ou pobres), entre outros.

As discussões promovidas por essa tendência, denominada de “Nova História”,

proporcionaram mudanças profundas nos estudos em História da Educação e, desde então,

tem (re)construído e ampliado à produção intelectual da historiografia, tanto no tocante aos

temas como no que se refere à discussão teórica.

Isso diferencia e fertiliza os debates, propiciando aos estudiosos em Historia, sejam

historiadores, filósofos ou pedagogos, ampliar as perspectivas com novos olhares e novos

contornos, conforme afirma Burke (1992). Investigações dessa linha buscam identificar em

diferentes momentos históricos as transformações e permanências no processo de

escolarização (VIDAL, 1993). O uso do livro de Fénelon em sala de aula ocorreu por conta

do trabalho de Jacotot (1770-1840) e seu método de ensino universal a partir da referida

obra. Esse projeto de trabalho com o livro em sala de aula se espalhou para o mundo.

Nessa esteira, consideramos As aventuras de Telêmaco: filho de Ulisses um objeto

cultural, cujo objetivo é disseminar valores filosóficos (ética e moral), razões que

justificam tomarmos a referida obra como nosso objeto de estudo porque partimos de

nosso lugar social. Considerarmos que esse livro contribuiu didaticamente para a

2 “Escola historiográfica francesa fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre, que encontrou seu veículo

máximo de expressão na Revista dos Annales editada a partir de 1929” (BARROS, 2013, p. 198).

disseminação de valores para uma sociedade em formação, no período da Colônia e do

Império brasileiro, a partir de ideais político e moral da educação.

Há algum tempo optamos pelo estudo dessa obra, uma vez que em Letras o trabalho

realizado é com livro didático. Acrescenta-se a isso a formação em Filosofia, quando dos

trabalhos com os conceitos moral, ética e outros dessa área. Destacamos como peso maior

para esta escolha, a relevância das pesquisas em História da Educação, tendo em vista que

os estudos desenvolvidos nessa área podem contribuir para entendermos os fatores

determinantes na escolha do livro didático, a circulação no território nacional e suas

relações com os discursos social, econômico, cultural, político, entre outros.

Anunciamos, então, a seguinte problemática: como saber algumas pratica no

processo de ensino-aprendizagem ao longo do tempo se não for pesquisando e buscando

sinais dos acontecimentos? Algo que nos inquieta é a instrução no Setecentos e Oitocentos

na Paraíba e a descoberta de um Best-seller adotado em sala de aula abriu caminhos para a

presente investigação. A partir desse ponto algumas questões nortearam o desenvolvimento

deste trabalho: quais caminhos foram percorridos pelo livro de instrução no Setecentos e

Oitocentos, As aventuras de Telêmaco: filos de Ulisses, até aportar na Parahyba? Quais são

as fontes que comprovam o trabalho pedagógico por meio da referida obra na Parahyba?

Em quais estabelecimentos de ensino foi adotado? O que se pretendia trabalhar em sala de

aula com o uso da Literatura em sala de aula?

Parte-se da hipótese de que são as orientações pedagógicas que a personagem

Mentor transmite ao seu pupilo chamado Telêmaco, o filho de Ulisses, que promove a

aceitação dessa obra, bem como a sua circulação pelo mundo. Desenvolve-se esta em dois

momentos, a circulação e os aspectos da mesma de modo amplo e a presença da obra na

Paraíba, o nosso lugar social.

CIRCULAÇÃO E OUTROS ASPECTOS

Entre os textos analisados por Abreu (2003) em Os caminhos dos livros esta autora

destaca a obra de Fénelon, As aventuras de Telêmaco, como uma das mais impressas e que,

no mundo, recebeu atenção de muitos comentadores, foi bastante imitada e traduzida entre

os séculos XVIII e XIX, tanto na Europa como fora dela, tendo chegado ao Brasil e servido

de livro de instrução3, adotado em Lyceos e no Atheneus de todo Brasil.

3 Livro de instrução é uma expressão que aqui é um sinônimo de Livro didático.

Esse fato coloca essa obra em posição de destaque quando se pretende desenvolver

estudos na perspectiva da História da Educação, tendo em vista o momento histórico em

que foi adotada em toda educação brasileira.

Faz-se mister buscar entender a circulação do texto e as razões de se trabalhar a

tradução do francês para o português com base no texto, que Cândido (1972, p. 6)

classificou como romance escolar por ser uma narrativa, um tipo textual, por excelência,

que permite esse tipo de trabalho.

Para realização desse trabalho a metodologia aplicada norteia-se pela circulação da

obra As aventuras de Telêmaco: filho de Ulisses. Esta pesquisa percorreu caminhos que

por vezes se apoiaram na teoria de Bakhtin (1997), sobretudo, na categorização de gêneros

de discurso e seu suporte, e em outros momentos no conceito de circulação a partir dos

estudos da história, das relações e da percepção que os humanos fazem a respeito da

Literatura.

Seguimos em busca de saber como o corpus ganhou Lyceos e Ateneus de todo

Brasil. Além disso, entender como a Literatura e seus registros históricos, os quais marcam

um determinado tempo, no caso específico, o período de 1769-1826. Nesse sentido, a partir

dos estudos desenvolvidos por Chartier (1991, p. 178):

O meu [espaço de trabalho] organiza-se em três polos, geralmente

separados pelas tradições acadêmicas: de um lado, o estudo crítico dos

textos, literários ou não, canônicos ou esquecidos, decifrados nos seus

agenciamentos e estratégias; de outro lado, a história dos livros e, para

além, de todos os objetos que contém a comunicação do escrito; por fim, a

análise das práticas que, diversamente, se apreendem dos bens simbólicos,

produzindo assim usos e significações diferençadas [grifos nossos].

Nesse sentido, ao procurar compreender como nas sociedades do Antigo Regime se

dava a circulação dos escritos impressos, que modificou as formas de sociabilidade, o

trabalho de Chartier (1991) abre o pensamento para novas perspectivas e transformam

formas possíveis de se ver as relações de poder de uma época.

Chartier (1999, p. 18) retoma as expressões de Michel de Certeau sobre as

variações da relação entre „espaço legível‟ e „efetuação‟, como “um texto estável, dado a

ler em formas expressas que, estas sim, sofrem mudanças”.

Com base em Certeau (1982, p. 66), “A escrita da história se constrói em função de

uma instituição”, uma vez que é do interesse da instituição que surge a História enquanto

disciplina. A tensão fundamental da história é uma prática científica e produtora de

saberes. Esse autor evidencia as variações e os procedimentos técnicos da pesquisa,

observa as restrições impostas pelo lugar social e a instituição do historiador, não se pode

esquecer as regras que comandam a sua escrita.

Nessa pesquisa, portanto, seguimos a orientação de Chartier (2002, p. 100), a

história enquanto “um discurso que coloca em ação construções, composições, figuras que

são aquelas de toda escritura narrativa, logo, também da fábula, mas que, ao mesmo tempo,

produz um corpo de enunciados „científicos‟”, isto é, a história consiste em conhecimento

verificável e controlado com pretensão de verdade fundante.

Certeau, por sua vez, mostra que cabe ao historiador interrogar a sua operação

historiográfica. Conforme no ensina:

Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira

necessariamente limitada, compreendê-la como a relação entre um lugar

(um recrutamento, um meio, uma profissão et.), procedimentos de análise

(uma disciplina) e a construção de um texto (literatura). É admitir que ela

faz parte da „realidade‟ da qual trata, e que essa realidade pode ser

apropriada „enquanto atividade humana‟, „enquanto prática‟. Nessa

perspectiva, gostaria de mostrar que a operação historiográfica se refere à

combinação de um lugar social, de práticas „científicas‟ e de uma escrita

(CERTEAU, 1982, p. 66).

Essas palavras guiam a metodologia da presente pesquisa, caracteriza a operação

historiográfica que ora está sendo traçado, haja vista o nosso lugar social que é a nossa profissão

de professores e pesquisadores.

De modo geral, o tempo em que o livro didático contribuiu significativamente para

as discussões sobre a construção de componentes curriculares coincide com a circulação

em escolas brasileiras. Basicamente, esta pesquisa procura inter-relacionar os aspectos

sociais com os saberes construídos nos processos educacionais. Valdermarin e Sousa

(2000) afirmam que muitas pesquisas voltadas para o livro didático contribuem, entre

outros aspectos, para as peculiaridades da instituição escolar, o que tem possibilitado

resultados capazes de explicar, pelo menos em parte, as complexidades e subjetividades do

processo de escolarização e de escolha da base teórica a ser trabalhada em sala de aula.

Pelo menos três grupos se dividem quando se fala em investigações do livro

didático, a saber, os estudos de Batista, Rojo e Mink (2005) com as análises de conteúdo

ideológico nos manuais escolares. As pesquisas de Chartier (1991) e Certeau (1982) com

investigações do livro didático a partir de práticas escolares e representação social e suas

relações com a formação do Estado nacional. Ainda na França, os estudos se destacam a

partir das pesquisas de Choppin (2002). Esses pesquisadores toma como base o livro

didático.

A circulação do livro didático no Brasil propiciou a Bittencourt (1993, 2004, 2008)

enfatizar preocupações referentes à compreensão de problemas acerca dos constituintes ou

o processo de constituição de componentes curriculares, escolarização de saberes, práticas

educativas e construção de cultura e saber escolares. Além deste autor, destacam-se

Munakata (1997), Corrêa (2006), Peres e Tambara (2003), Frade; Marciel (2006), Texeira

(2008), Gatti Jr. (2005) e Albuquerque (2010).

A presença da Literatura no Brasil no Setecentos e Oitocentos estava pautada no

modelo francês e clássico de ensino. A partir do Segundo Reinado, as primeiras histórias

literárias brasileiras estão organizadas basicamente conforme critério cronológico e

político, ligadas a projetos de afirmação de nossa identidade nacional. Segundo Lajolo

(1982, p. 15): “[...] a literatura converte-se em instrumento pedagógico” [...] “Sua

identidade se oblitera e o texto literário torna-se privilegiado, não pela sua natureza

estética, mas pela sua dimensão retórica e persuasiva, de veículo convincente de certos

valores que cumpre à escola transmitir, fortalecer, gerar”. Decorre que o livro literário

adentra a sala de aula por conta dessa dimensão persuasiva, assim como práticas exitosas

com o livro de literatura gera a circulação do mesmo nos lugares mais longínquos.

Nessa perspectiva, foi no período entre 1769 e 1864 que o livro de Literatura em

realce tomou a cena no âmbito didático, se prestando aos estudos escolares junto a

compêndios e cartilhas. De modo mais evidente, o As aventuras de Telêmaco: filho de

Ulisses serviu como objeto de tradução, mas não se limitava a isso. O conteúdo propiciava

aos estudantes reflexões sobre os mais variados assuntos, entre tantos destacamos a

virtude, a moral e a ética.

No estudo da circulação dessa obra encontra o dado de que a metodologia aplicada

ao estudo de tradução do francês para o português era perpassada pelas mensagens de

Mentor a Telêmaco, as quais ensinavam, entre outros assuntos, a prudência e o bom senso.

Para além dos ensinamentos, identifica-se que a narrativa preocupa-se com duas

esferas da vida, a cidadania e a questão religiosa, isso porque questões mitológicas e

acontecimentos historicamente grandiosos e dramáticos implicam em mudanças históricas

refletidas nas ações heroicas.

Investigar o passado por meio de livros didáticos implica em reconhecê-lo como

uma “poderosa fonte de conhecimento da história de uma nação que, por intermédio de sua

trajetória de publicações e leituras, dá a entender que rumos seus governantes escolheram

para a educação [...]” (LAJOLO e ZILBERMAN, 1998, p. 121). Ainda que não seja

explícito, pode-se tentar ordenar o mundo da leitura na Parahyba.

Assim, a prática do historiador está centrada em transformar um objeto em

histórico, em historicizar um elemento, tal como um operário que trabalha sobre um

material a fim de transformá-lo em história. Devemos considerar, portanto, que o “próprio

recorte da documentação está sujeito às ações do lugar social onde o indivíduo está

inserido” (CERTEAU, 1982, p. 81-82), pensamento que este autor ratifica afirmando que

para: “Moscovici, a história seria mediatizada pela técnica”.

A PRESENÇA DA OBRA NA PARAHYBA

Há séculos que a educação é um processo de ensino-aprendizagem, inclusive, não

conseguimos enxergar o ensino separado da aprendizagem, ou vice-versa. No que tange à

educação formal, o entendimento de dialogismo bakhtiniano aplica-se perfeitamente a essa

dinâmica, uma vez que a interação verbal propicia aos agentes da educação o

estabelecimento das relações entre os sujeitos falantes, cada um segue tomando a palavra

que não é sua, o já dito, para se expressar.

O trabalho em sala de aula realiza-se por meio de textos de Literatura no Brasil

Setecentos e Oitocentos. Com efeito, a Literatura como pretexto fortalece a prática

pedagógica, esta exerce, desde sempre, a função de meio para o fim último da prática

escolar realizada nas escolas de todo território nacional. Trabalho que muitas vezes não é

notado. Como nos ensina Sena (2008, p. 174): “tornar visíveis os conteúdos e as estratégias

de aprendizagem dos livros de leitura que foram utilizados pelos professores e alunos no

passado nos faz perceber onde repousam as práticas atuais de ensino e aprendizagem”.

Aa aventuras de Telêmaco: filho de Ulisses é um exemplo da Literatura em sala de

aula, que na Parahyba foi explorado como estratégia de aprendizagem no ensino de

Tradução do Francês. Essa obra circulava pelas escolas e livrarias. Nesta última encontra-

se o anúncio em jornal de 14 de abril de 1864 (Cf. Anexo), na seção de livros “A venda na

pequena estante de Antonio Thomaz C. da Cunha”, entre livros de advocacia e medicina

está tanto a versão em francês como em português.

“No Lyceo são ensinadas as seguintes disciplinas em 6 cadeiras: Latim, Francêz,

Inglês-Geographia, Chronologia e História, Retórica e Poetica, Arithmetica, Geometria, e

Philosophia racional e moral” (PARAHYBA DO NORTE, Relatório, 1852, p. 11).

Alguns pensadores do século XVIII publicaram comentários sobre o livro em

realce, a saber, D‟Alembert elogia o livro sobre Telêmaco como um livro que ensina

princípios acerca da felicidade do Estado, explica Kapp (1982, p. 202). Para Voltaire, a

obra não era um poema e sim um romance com estilo próprio, afirma Bury (2004, p. 541).

Na história do ensino, a formação por meio de textos literários é bem aceita, uma

vez que a “escrita acaba por fazer a história, como também por contar histórias, sendo

assim de interesse ao caráter de ensinamento, para a sociedade” (CERTEAU, 1982, p. 95).

Com isso, História e Literatura se fundem em nome do profícuo processo de ensino-

aprendizagem, uma vez que este não pode ser visto separado daquele. Outra referência da

presença do livro As aventuras de Telêmaco: filho de Ulisses na Parahyba é o Relatório

apresentado à assembleia provincial (1852). Essas fontes possibilitam compreender o

processo de circulação dessa obra, bem como de identificar o ensino de Francês e da

Literatura na província.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do ponto de vista teórico-metodológico este trabalho dá algumas contribuições aos

estudos em História da Educação ao evidenciar a Parahyba, principalmente por fazer

referência a uma época apagada, bem como a prática pedagógica instrucional com o uso de

livro didático.

Nesse campo de pesquisa, tal relevância é consistente para o campo social e

histórico, apresenta a circulação do livro didático como instrumento de formação no

período do Brasil Colônia e Império e, com isso, revela que os educadores nas escolas

paraibanas estavam sintonizados com as práticas realizadas no Brasil. O livro escrito no

final do século XVII, As aventuras de Telêmaco: filho de Ulisses, segundo Fénelon, é uma

narração fabulosa em forma de poema heroico igualmente aos textos de Homero e Virgílio,

para educar o neto do Rei e potencial sucessor do trono a obra circulou pelo mundo.

Esta obra se tornou um Best-seller, chegando à Portugal e, por conseguinte, ao

Brasil aportou, entre outros lugares, na Parahyba para consumo escolar. A grande

circulação justifica-se não apenas pela adoção da obra por professores, mas também por

encantar leitores da época que buscavam conhecimentos a mais sobre as narrativas épicas.

Na Parahyba, o Lyceo foi a instituição que acolheu o referido impresso escolar. Curioso é

perceber que além da leitura, dos ensinamentos, a obra servia de base para aprender o

francês.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Márcia (Org.). Trajetória do Romance: circulação, leitura e escrita nos séculos

XVIII e XIX. Campinas: Mercado das Letras, 2008.

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins

Fontes, 1992.

_____.Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.

_____. Questões de literatura e estética (a teoria do romance). São Paulo: Hucitec /

Unesp, 1993.

BARROS, José D„Assunção. O projeto de pesquisa em história: da escolha do tema ao

quadro teórico. Petrópolis: Vozes, 2013.

BITTENCOURT, Circe. Livro didático e conhecimento histórico: Uma história do saber

escolar. Tese de doutoramento, FFLCH, Universidade de São Paulo, 1993.

BURKE, Peter (org.) A escrita da história: novas perspectivas. 2ªed. São Paulo: UNESP,

1992.

BURY, E. Situation du Télémaque: du projet pédagogique à la fortune littéraire. In:

CUCHE, François-Xavier; le brun, Jacques. Mystique et politique (1699-1999). Paris:

Honoré Champion Éditeur, 2004.

CHARTIER, Roger. O mundo da compreensão. São Paulo, v. 5, n. 11, abril 1991.

_____. A ordem dos livros. Brasília: UnB, 1999.

CERTEAU, M. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária,1982.

CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. São

Paulo: Revista Educação e Pesquisa, set-dez, vol. 30, n. 3. Universidade de /são Paulo, 2004,

pp. 549-566.

GALVÃO, Ana Maria de Oliveira e BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Manuais

escolares e pesquisa em história. In: VEIGA, Cynthia Greive e FONSECA, Thais de L.

(org.) História e Historiografia da Educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica,

2003.

KAPP, Volker. Télémaque de Fénelon. La signification d’une oeuvre littéraire à la fin

du siècle classique. Tübingen: Gunter Narr Verlag/ Paris: Éditions Jean-Michel Place,

1982.

LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. A Formação da Leitura no Brasil. 2. ed. São

Paulo: Ática, 1998.

PARAHYBA DO NORTE. Relatório apresentado a Assembléa Legislativa Provincial da

Parahyba do Norte pelo Excelentíssimo Presidente da Província o Dr. Antonio Coêlho de

Sá e Albuquerque em 3 de maio de 1852. Disponível em:

<http://www.crl.edu/brazil/provinciaparaiba>. Acesso em: 30/11/2015.

SENA, F. A tradição da civilidade nos livros de leitura no império e na primeira

república. (Tese de Doutorado). CCHLA. João Pessoa, 2008.

SOARES, Magda. O livro didático como fonte para a história da leitura e da formação do

professor-leitor. In: MARINHO, Marildes (org.). Ler e navegar: espaços e percursos da

leitura. Campinas: Mercado das Letras, 2001.

VIDAL, Diana Gonçalves. Cultura e prática escolares: uma reflexão sobre documentos e

arquivos escolares. In: SOUZA, Rosa Fátima de e VALDEMARIN, Vera Tereza (orgs.). A

cultura escolar em debate: questões conceituais, metodológicas e desafios para a pesquisa.

Campinas – SP: Autores Associados, 2005.

ANEXOS