livro cristão deficiente - brenda darke

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I NTRODUÇÃO 13 Merecem um parágrafo especial os muitos testemunhos de pessoas com deficiência que, com simplicidade, mas de modo sincero, enriquecem o texto e lhe outorgam a autoridade da experiência da autora, adquirida em neste trabalho específico ao longo de muitos anos. Um livro desta magnitude não poderia ser escrito com base apenas na teoria. A prática pastoral, que adequa a fé à realidade vivencial dos homens e mulheres aos quais se dirige, tornou possível a veracidade apresentada neste livro pelas breves, mas vivas, experiências de muitas pessoas de várias partes da América Latina, que formaram o conheci- mento de Brenda e, de forma muito agradável, estão inseridas em seu texto. É surpreendente como uma pessoa que não nasceu na América Latina, possa nos entender com a competência que Brenda demonstra neste volume. Ela não apenas compreende e sistematiza o tema “deficiência”, mas demonstra ainda conheci- mento da cultura latino-americana e caribenha, da qual faz par- te não por nascimento, mas por sentimento de solidariedade. Nós que convivemos com alguma deficiência em geral so- mos muito sensíveis, atentos e reativos a qualquer intervenção em nossa interioridade por parte daqueles que não as têm. No entanto, quando alguém nos analisa, estuda e ensina da mesma forma com que Jesus agiu na estrada de Emaús, merece aplauso e reconhecimento, pois “anda em nosso mesmo caminhar”. Recomendo este texto não somente porque tenho deficiência física, mas também porque, em minha longa experiência como pastor, tenho lutado por quase toda a vida para que os que têm alguma deficiência não se tornem objeto de piedade e paterna- lismo, mas sejam considerados objeto do AMOR de Deus, com plenos poderes para ser parte indispensável da comunidade e da igreja.

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Page 1: Livro Cristão Deficiente - Brenda Darke

In t rodu ç ão 13

Merecem um parágrafo especial os muitos testemunhos de

pessoas com deficiência que, com simplicidade, mas de modo

sincero, enriquecem o texto e lhe outorgam a autoridade da

experiência da autora, adquirida em neste trabalho específico

ao longo de muitos anos. Um livro desta magnitude não poderia

ser escrito com base apenas na teoria. A prática pastoral, que

adequa a fé à realidade vivencial dos homens e mulheres aos

quais se dirige, tornou possível a veracidade apresentada neste

livro pelas breves, mas vivas, experiências de muitas pessoas

de várias partes da América Latina, que formaram o conheci-

mento de Brenda e, de forma muito agradável, estão inseridas

em seu texto.

É surpreendente como uma pessoa que não nasceu na

América Latina, possa nos entender com a competência que

Brenda demonstra neste volume. Ela não apenas compreende e

sistematiza o tema “deficiência”, mas demonstra ainda conheci-

mento da cultura latino-americana e caribenha, da qual faz par-

te não por nascimento, mas por sentimento de solidariedade.

Nós que convivemos com alguma deficiência em geral so-

mos muito sensíveis, atentos e reativos a qualquer intervenção

em nossa interioridade por parte daqueles que não as têm. No

entanto, quando alguém nos analisa, estuda e ensina da mesma

forma com que Jesus agiu na estrada de Emaús, merece aplauso

e reconhecimento, pois “anda em nosso mesmo caminhar”.

Recomendo este texto não somente porque tenho deficiência

física, mas também porque, em minha longa experiência como

pastor, tenho lutado por quase toda a vida para que os que têm

alguma deficiência não se tornem objeto de piedade e paterna-

lismo, mas sejam considerados objeto do AMOR de Deus, com

plenos poderes para ser parte indispensável da comunidade e

da igreja.

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De f ic i e n t e: o De sa f io Da i nc lu são na igr e ja14

Por último, mas não menos relevante, a autora desta obra

destaca a diversidade da imago Dei, na qual o criador concebeu

a existência humana. Essa diversidade nos permite ver o quanto

é bela a vida sob quaisquer circunstâncias e, sob todas as condi-

ções, responder ao chamado de Deus para construir um mundo

mais justo, no qual não valem desculpas, como aquelas dadas

por Moisés, mas, sim, realizar a parte que nos toca na constru-

ção do reino de Deus, na certeza de que alguém que viva com

deficiência seja capaz de dizer posso todas as coisas naquele que

me fortalece.Rev. Noel FerNáNdez,

coordenador da EDAN

abril de 2012

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c a p í t u l o 1

um caminho diferente

pessoas com deficiência vivem entre nós, mas suspeito que

saibamos muito pouco sobre sua vida. Em junho de 2011, a

Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Banco Mundial (BM)

publicaram o Relatório Mundial sobre a Deficiência. Quantos

de nós, porém, dedicam algum tempo para ler documentos des-

se tipo? Muito poucos. No entanto, a deficiência, uma realidade

que não conhecemos ou não nos atrevemos a conhecer, é total-

mente surpreendente.

Calcula-se que mais de um bilhão de pessoas vivem no

mundo com algum tipo de deficiência, o que representa 15%

da população. Em 1970, os números já nos indicavam que 10%

da população mundial tinha alguma deficiência. Como é fácil

perceber, a realidade apresentada pelos números mostra um au-

mento significativo de pessoas com deficiência.

De acordo com o relatório citado, além de outros informes,

estas pessoas enfrentam discriminação em todos os ambien-

tes. Elas são os mais pobres, recebem menos educação, têm

menos acesso a serviços de saúde, e têm a menor participação

na sociedade.

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De f ic i e n t e: o De sa f io Da i nc lu são na igr e ja16

Os cristãos são a luz e o sal do mundo. Isto significa que nos-

so exemplo deve ser excelente. Há irmãos trabalhando duro

para melhorar a vida de pessoas com deficiência. Eles zelam

pelo seu bem-estar, ensinam como incluí-los na sociedade e

como valorizá-los. No entanto, na verdade, estes ainda são mi-

noria. Infelizmente encontramos nas igrejas muita confusão e

pouca informação sobre o assunto e, como resultado, a indife-

rença. É preciso ouvir as vozes daqueles que têm algum tipo de

deficiência para que possamos entender sua vida e o clamor de

seu coração.

Esta é uma história verídica:

Juan, um homem pobre que não podia andar, chegou a uma

igreja usando seus braços para movimentar-se pelo chão. Com

muita dificuldade, subiu a escadaria que dava acesso ao templo.

Quando estava prestes a entrar, alguns membros da igreja que

estavam parados à porta proibiram-no entrar. Disseram que não

era digno entrar no templo de Deus daquela maneira, arrastan-

do-se. Então, com grande tristeza, o homem foi embora e voltou

para sua casa. Pouco tempo depois, o pobre homem morreu. Ele

nunca teve a oportunidade de ouvir a boa nova da vida eterna

e do perdão de pecados. Os irmãos daquela igreja nunca chega-

ram a conhecê-lo.

Se não conhecermos pessoas com deficiência ou suas fa-

mílias, é provável que nunca consigamos entender sua vida.

Neste livro caminharemos ao lado de algumas pessoas que

convivem com deficiências, e que normalmente não chega-

ríamos a conhecer. Enquanto caminhamos, vamos ouvir suas

vozes, cada uma diferente da outra, e cada uma tão importante

quanto a outra.

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Um c a m i n ho di f e r e n t e 17

Todas essas vozes foram ouvidas em igrejas da América

Latina. Algumas são tristes, fruto de experiências de rejeição

ou crítica pela Igreja, como a de Susana, que vive no Equador:

“Tenho uma deficiência motora; alguns na igreja me atribuem a

culpa por isso. Outros dizem que devo ter fé e, assim, Jesus irá

me curar. Senti-me muito frustrada com Deus quando eu era

adolescente. No entanto, tenho mais facilidade para entender os

outros e tento ajudar outras pessoas”.

Outras vozes são mais positivas. Este é Juan, um jovem de El

Salvador: “Venho de uma família cristã e trago sequelas da po-

liomielite. Deus me reabilitou por meio da igreja. Ele me ajudou,

especialmente trabalhando em minha autoestima. Na igreja en-

contro muita aceitação por parte dos irmãos”.

Outro rapaz, Esteban, também de El Salvador, afirma: “Não

posso jogar futebol, pois tenho dificuldades para falar. Existem

pessoas na igreja que não gostam de mim, mas há muitas outras

que me apoiam. Sou feliz, pois meus irmãos me aceitam”.

Em contraste, outros têm experimentado frustração, como

Olga, da Guatemala. Ela quer trabalhar na congregação, embora

seja cega: “Quando quero fazer alguma coisa, me dizem: ‘Fique

tranquila, você não precisa fazer nada’. Mas eu quero fazer algo”.

É certo alguém com deficiência não poder ou ser impedido

de ajudar na execução de alguma tarefa na igreja? Sem dúvida,

ela pode e deve ajudar. Uma criança com deficiência cognitiva,

neste caso com síndrome de Down, pode ter uma vida espiritu-

al. Ouçamos a voz de uma mãe:

Diana é uma menina com 12 anos de idade. Por ter síndrome

de Down, ela tem dificuldade para se expressar verbalmente.

No entanto, isso não a impede de conhecer o amor de Deus, ou

de repetir uma oração de aceitação ao Senhor Jesus Cristo em

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seu coração, nem de apreciar músicas que louvam e exaltam o

seu nome. Entretanto, existe algo maior que desejamos com-

partilhar. Certa ocasião, em uma reunião de oração em família

ouvimos Diana falar e interceder com ações de graças por cada

um dos membros da família. Ela o fez com uma oração coeren-

te, simples e direta. Temos certeza de que sua oração subiu ao

trono divino.

No camiNho O trabalho com deficientes é caminhar com eles. Se não esta-

mos habituados a caminhar todos os dias, isso vai nos custar

esforço, tempo e paciência. No entanto, quando Jesus nasceu,

caminhar era normal. Se lermos os textos bíblicos sobre Jesus,

perceberemos muitos aspectos culturais de seu tempo e de

como ele viveu. Homens, mulheres e crianças, todos andavam

de um lugar para outro. As pessoas importantes podiam montar

um cavalo, ou mesmo um jumento, ou então viajar em uma car-

ruagem puxada por animais. Mas o povo pobre tinha de andar.

Jesus caminhou, identificou-se com as multidões de homens

e mulheres pobres. Ele andou horas e dias com seus discípu-

los e amigos. Durante essas caminhadas, o mestre ensinou-os

diretamente e por meio de parábolas ou de ações. Podemos

imaginar tais viagens, os momentos tranquilos durante a ma-

nhã, antes do calor do meio-dia. Ou o cansaço ao final de uma

longa caminhada, quando procuravam um lugar para passar a

noite, o que poderia ser em uma casa humilde ou, simplesmen-

te, em um descampado sob as estrelas. A solidariedade durante

a caminhada conjunta, o cuidado de uns para com os outros, a

fim de que ninguém ficasse para trás, fazia parte da aprendi-

zagem. As conversas e as piadas em torno da mesa, quando fi-

nalmente chegavam a seu destino, faziam parte da aventura. As

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Um c a m i n ho di f e r e n t e 19

experiências compartilhadas faziam com que se conhecessem

melhor, especialmente se alguém estava em apuros. Quando ha-

via discussões entre os discípulos e Jesus precisava intervir, ele

os ensinava com sua palavra e exemplo.

A igreja evangélica, assim como a sociedade contemporânea de

forma geral, perdeu essa estratégia de aprendizagem. Quem tem

tempo para aprender assim, caminhando? Nós usamos o rádio, a

televisão, o vídeo e a internet para buscar novas informações. E

se queremos interagir com alguém, recorremos ao telefone, ao

correio eletrônico, ao Facebook ou ao Skype. Nosso estilo favorito

é o virtual e tecnológico, por causa da sua velocidade.

Podemos recuperar alguns dos benefícios da caminhada

compartilhada. O peregrino foi escrito pelo inglês John Bunyan

e publicado em 1678. É um livro clássico, faz parte de nossa

herança evangélica. O herói, o Peregrino, respondeu ao convi-

te para sair de sua casa e descobrir mais sobre Deus enquanto

caminhava para a cidade celestial. Ele enfrentou tentações pela

estrada e encontrou muitos outros peregrinos. Não andava sozi-

nho; sempre estava conversando com alguém. Diante da veloci-

dade da nossa vida atual, caminhar conversando e dispondo de

tempo para nos conhecer parece muito atraente. Em vez de nos

comunicarmos por telefone ou e-mail, isso nos daria a oportuni-

dade de dialogar face a face.

Os peregrinos com quem vamos caminhar são como Elena,

uma jovem que nasceu surda, e como Julia, que tem uma in-

capacidade físico-motora. Conheceremos também Rodolfo,

que começou sua caminhada sem nenhuma deficiência, mas

que, depois de um acidente, apresenta agora uma deficiência.

Conversaremos com os pais de crianças que não se dão conta

de seu estado de deficiência complexa, mas que lutam para vi-

ver e desfrutar a vida. Como declara o livro de Hebreus, é uma

multidão caminhando na fé.

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Pelo caminho, entabularemos diálogo com outras pessoas

que representam os ministérios da igreja e as organizações não

governamentais. Esta é uma caminhada em comunidade: a co-

munidade da nossa fé.

DeficiêNcia: perDa ou pluraliDaDe? Um dos conceitos que associamos à deficiência é o de “perda”,

uma vez que muitas pessoas com deficiência perderam sua

habilidade de falar, mover-se, ouvir ou ver o mundo em tor-

no delas. Acreditamos também que o nascimento com alguma

dessas deficiências torna a pessoa diminuída, como no caso de

alguém com síndrome de Down. Provavelmente esse indivíduo

não chegará a frequentar uma universidade, “perdendo” assim

a oportunidade de se tornar um profissional. Ou, recorrendo à

figura da caminhada, como alguns não podem andar, estarão

perdendo uma experiência agradável. Não é óbvio que essas

pessoas vivem experiências de perda? Podemos imaginar que

sua vida deve ser triste ou frustrante.

No livro Uma igreja de todos e para todos, a Rede Ecumênica

para a Defesa da Pessoa com Deficiência (Ecumenical Disability

Advocates Network, ou EDAN) discute a seguinte questão: é

pertinente usar em nossa linguagem o termo “deficiência” as-

sociado à perda, apesar de ser essa uma etapa da peregrinação

das próprias pessoas com deficiência? Não seria mais adequado

associá-lo ao conceito de pluralidade?

Pluralidade é, na verdade, parte da realidade em que todos

vivemos. Ninguém é igual a ninguém; cada pessoa é única. Deus

nos criou individualmente. A diversidade é nossa experiência

comum. O que pesa para nós é a amplitude da diversidade. A

compreensão de que alguns nascem sem braços, ou que falam

por sinais e gestos, em vez de usar palavras, deve ser parte da

nossa formação como cidadãos do reino de Deus.

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Um c a m i n ho di f e r e n t e 21

Desde muito jovens, ficamos fascinados por nossa aparência

e pela moda, e temos dificuldade em aceitar diferenças corpo-

rais. Especialmente quando somos adolescentes, nosso desejo é

nos mostrar exatamente como os nossos heróis da televisão ou

do cinema, ou iguais a nossos amigos. Durante a juventude, tal-

vez não gostemos de ser diferentes, mas na maturidade é mais

provável dar valor à diversidade.

A particularidade de conviver com uma deficiência não está

tanto no sentimento de perda, mas na possibilidade de uma pe-

regrinação diferente, que envolve uma caminhada e um cami-

nho diferenciados. Nessa peregrinação, teremos tempo para o

diálogo, espaços para uma boa conversa e momentos de com-

partilhar experiências diversas. Encontraremos mais oportu-

nidades para conhecer outras pessoas do que em uma viagem

rápida de trem ou de avião. Teremos mais tempo para nos co-

nhecer a nós mesmos e a Deus, nosso criador.

o propósito Da camiNhaDa Este livro serve para todos aqueles que querem ser peregrinos

junto a pessoas que apresentam alguma deficiência. O objetivo

não é apenas atingir essas pessoas para ajudá-las (ainda que às

vezes elas precisem de ajuda), mas, sim, andar com elas em di-

reção a Deus e ao seu reino. Bunyan narra que, em seu caminho,

o Peregrino queria chegar à cidade celestial: nada menos do que

alcançar a plenitude da vida eterna com Deus. Esse é também o

nosso objetivo: começando aqui e agora, terminar por alcançar

tudo aquilo que Deus tem guardado para nós. Mas, como está

escrito: As coisas que olhos não viram, nem ouvidos ouviram, nem

penetraram o coração humano, são as que Deus preparou para os

que o amam (1Co 2.9).

Se quisermos caminhar ao lado de pessoas com deficiência,

teremos de alterar nossos passos. Isso significa que devemos

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começar fazendo uma revisão de nossa vida, valores e práticas.

Precisamos avaliar os valores que formam a base de nossa vida.

Essa revisão é relevante porque afeta nossas atitudes pastorais e

a dinâmica da nossa igreja. Nossa visão deste mundo, bem como

a visão do mundo que está por vir, devem ser testadas. Elas es-

tão realmente afinadas com a Palavra de Deus?

É urgente reconhecer que todos nós, se fazemos parte do

corpo de Cristo, somos iguais. Todos nós somos “peregrinos” —

com ou sem deficiência. O que varia é apenas a forma, o ritmo

ou o estilo da progressão. O caminho da deficiência nos levará

por rotas diferentes, talvez de maneira mais lenta, mas nos dará

a oportunidade de desfrutar de novas companhia e de uma ou-

tra paisagem.

Ao longo da história, existiram no mundo pessoas com de-

ficiência que, como nós, buscaram a Deus e queriam transitar

por seus caminhos. Moisés foi um deles, Jacó foi outro; ambos

serviram fielmente ao Senhor. Podemos imaginar os milhares

de servos de Deus que, com alguma deficiência, viveram essa

realidade ao longo dos séculos e até hoje.

O difícil para nós que não vivenciamos nenhuma deficiência

é abraçar a pluralidade de pessoas e suas experiências de vida.

É compreender que todos somos criação de Deus. Para incluir

a criança ou o adulto com deficiência, devemos expandir nossa

imagem restrita de ser humano e mostrar-lhes o amor de Deus,

genuíno e sem exceção. Caso contrário, sua exclusão pode ser

um triste sinal de que a igreja não está seguindo os autênticos

passos de Jesus.

peregriNação pessoal Da autora

Muitos anos atrás, na Inglaterra, quando comecei meus estudos

em educação para crianças com necessidades especiais, nunca

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imaginei que um dia fosse trabalhar com essa população na

América Latina, em um contexto tão diferente do ambiente de

meu próprio país.

Tudo o que aprendi na universidade, e muito mais nas esco-

las onde trabalhei, impactou imensamente a minha vida e mu-

dou minhas prioridades. Apreciei meus anos como professora;

no entanto, não cheguei a fazer nenhuma reflexão profunda e

bíblica sobre a vida das pessoas com deficiência.

Como cristã, interessava-me por todos, mas, além de ape-

nas trabalhar, queria ainda ganhar dinheiro ou adquirir bens,

e ver minha família crescer. Em razão da minha formação na

Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos (CIEE),

aprendi os princípios e valores bíblicos, e então me preocupei

em seguir os passos de Jesus. Cristo fez tudo por nós e agora de-

vemos aceitar seu sacrifício na cruz e viver por ele, mostrando

nosso amor e gratidão por meio de nossas ações e obediência.

Minha motivação pessoal sempre foi o amor de Cristo por mim

e seu chamado para sair em busca de outros, a fim de lhes falar

sobre Deus e seu reino. A missão integral, na qual se contem-

plam todos os aspectos de uma pessoa — o espírito, o corpo, a

mente e as emoções — o que, repetidas vezes encontramos nos

ensinamentos de Jesus, foi a meta que me empurrou para fora

do meu contexto e cultura.

Apesar disso, não conseguia entender que a população de

pessoas com deficiência é um “povo não alcançado” pelo evan-

gelho. Essas pessoas vivem hoje em nossos bairros, geralmente

com suas famílias, como um “subgrupo” ou uma “subcultura”

de nossa sociedade, e somente um pequeno número delas fre-

quenta a igreja. Poucas igrejas buscam-nas com o evangelho

ou com o apoio pastoral. Em certo sentido, elas são invisí-

veis, subsistem na mesma comunidade, mas são esquecidas e

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excluídas. Provavelmente sabem muito pouco do evangelho,

como se fossem membros de algum povo distante, para o qual

se enviam “missionários”. Eu mesma não me dava conta dessa

realidade.

Mais tarde, quando fui com minha família trabalhar no Peru,

nunca havia me ocorrido que estava indo para a América Latina

a fim de fazer uso das minhas experiências de trabalho com

pessoas com deficiência. Depois de colaborar com os grupos da

Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos no Peru e

na Costa Rica por alguns anos, decidi mudar minha abordagem.

Nossa organização missionária — Latin Link — ofereceu-me a

oportunidade de dedicar um período sabático ao estudo da teo-

logia da deficiência.

Foi um novo chamado para mim. Durante os anos em que

estive envolvida em outras questões, o mundo formado por

pessoas com deficiência tinha se alterado completamente. A

linguagem mudara, assim com as políticas, e novas leis foram

criadas. Em muitos lugares a infraestrutura estava melhor e, o

mais importante, as atitudes começaram a se transformar. Além

disso, descobri algo surpreendente: alguns cristãos que escre-

viam sobre o assunto utilizavam a Bíblia para defender suas

teses. Já não se tratava de um estudo acadêmico ou secular; tor-

nara-se um campo missionário.

Pela primeira vez, encontrava livros e artigos teológicos so-

bre pessoas com deficiência. Por mais que minha motivação se

ancorasse em minha fé, eu nunca havia estudado a Bíblia com

essa abordagem. Comecei a perceber alguns textos na Palavra de

Deus que nunca antes tinha notado. Minha aventura começava!

O Senhor usou meu tempo de ano sabático para convencer-me

de que meu trabalho na América Latina devia ser realizado sob

o enfoque da inclusão da pessoa com deficiência.

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meNsagem De esperaNça Desejo compartilhar com vocês aquilo que encontrei. É uma

mensagem de esperança e de amor, que objetiva a inclusão da

pessoa com deficiência e de sua família. Essa mensagem reco-

nhece o direito a uma vida plena dos que são obrigados a viver

com alguma deficiência; busca a participação ativa dessas pessoas

na sociedade. Elas têm estado tão negligenciadas que, em muitos

casos, é preciso começar do zero. Este é o caminho a seguir.

Entendemos que a pessoa que traz alguma deficiência tam-

bém possui dons e talentos. Ela tem também um caminho e

um processo diferentes, o que exige que aceitemos o desafio

de pensar para além da atenção assistencial. Somos instigados a

nos comprometer com o desenvolvimento dessa pessoa e a lhe

oferecer o espaço a mais como discípulo de Jesus.

Veremos novos paradigmas que podem mudar as atitu-

des. Devemos permitir que a Palavra de Deus fale conosco.

Historicamente, as pessoas com deficiência têm sido discrimi-

nadas em todas as áreas da vida. Embora seja muito difícil, pre-

cisamos reconhecer que nós, a igreja, não estamos fazendo todo

o possível para incluí-los em nosso campo de ação. Muitas vezes

agimos de forma discriminatória, sem perceber e sem pensar

nas possíveis consequências disso. Como igreja, pouco temos

refletido teologicamente, e essa falha é percebida na ausência

de pregações que abordem o tema “deficiência”. Como o assun-

to geralmente não é inserido no currículo dos seminários e fa-

culdades teológicas do continente, não é de se estranhar que

os pastores não saibam como pregar sobre o assunto. Portanto,

estamos falhando mais por omissão ou negligência do que pro-

positadamente. Eu mesma falhei, apesar de minha formação

acadêmica e da experiência adquirida. Eu não conseguia enten-

der que o reino de Deus também se destina a todas as pessoas

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com deficiência e que elas podem atuar nele. De qualquer for-

ma, elas não precisam e não querem nossa comiseração; dese-

jam, sim, nossa colaboração.

Ninguém que ame verdadeiramente a Deus age de forma

deliberada para prejudicar ou magoar um indivíduo com de-

ficiência, mas faz isso por desconhecimento da existência de

um caminho melhor. Em nossa cultura, a marginalização e a ex-

clusão têm sido tão normais que, até recentemente, ninguém

questionava a falta de envolvimento deste grupo, quando então

a própria sociedade começou a se tornar consciente do fato. A

igreja pode agora se aproveitar das muitas normas, dos acor-

dos internacionais e das legislações nacionais sobre o tema para

agir com mais empenho e garantir um tratamento mais justo e

inclusivo. Espero que o leitor esteja pronto para uma aventura

diferente, para percorrer um caminho desconhecido. Mas vale-

rá a pena.