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  • 7/26/2019 Livro Cerrado

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    Carlos Eduardo Mazzetto Silva

    O CERRADO EM DISPUTA

    Apropriao global e resistncias locais

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    Carlos Eduardo Mazzetto Silva

    O CERRADO EM DISPUTA

    Apropriao global e resistncias locais

    Maro de 2009

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    Clvis Nascimento

    Csar Benjamin

    Confea - Superintendncia de

    Comunicao e Marketing

    Dialog Comunicao e Eventos

    Igor Barros Cavalcante

    Coronrio Editora Grfica Ltda

    Coordenao

    Edio

    Produo Executiva

    Arte da capa

    Editorao e diagramao

    Impresso

    Carlos Eduardo Mazzetto S i lva , 2009

    D i r e i t o s a d q u i r i d o s p e l o C o n s e l h o F e d e r a l d e E n g e n h a r i a ,

    A r q u i t e t u r a e A g r o n o m i a - C o n f e a

    www.confea.org.br

    Srie Pensar o Brasi l e Construir o Futuro da Nao

    1 a edio, maro de 2009

    Tiragem: 5 .000 exemplares

    S586 S i lva , Carlos Eduardo Mazzetto

    O cerrado em disputa : apropriao global e res istncias locais . - Bras l ia : Confea , 2009.

    264p. (Pensar o Brasil Construir o Futuro daNao)

    1 . Cerrado vegetao . 2 . Cerrado populao . I .Ttulo. I I . Srie .

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    Sumrio

    Apresentao

    Sobre o Autor

    Introduo

    I. O Cerrado brasileiro: formao, caractersticas ecolgicas e

    histrico de ocupao...Os grandes domnios paisagsticos do Brasil A formao do Cerrado

    brasileiro Populao e distribuio estadual do Cerrado Biodiversidade

    e gua: a importncia e a riqueza ecolgica do Cerrado Sobre o que resta

    de Cerrado / Ocupao originria: os povos dos cerrados e seus saberes

    Camponeses: os herdeiros dos saberes O Cerrado-mercadoria: a lgica

    da expanso espacial do agronegcio global

    II. Geraizeiros encurralados: a luta pela reapropriao territorialno Alto Rio Pardo...

    A regio norte de Minas: o serto dos Gerais O municpio de Rio

    Pardo de Minas A comunidade de Vereda Funda: a luta dos geraizeiros

    encurralados O conito por gua e terra em Vereda Funda - a voz

    geraizeira Finalizando: monocultura de eucalipto e (falta de) gua no

    Cerrado

    III. Cerrados do sul do Maranho: O (des)encontro entre oagronegcio da soja e os camponeses dos vos...

    A regio em foco A realidade agrria e ambiental O primeiro

    impulso da soja na regio de Balsas: o Prodecer III O avano da soja

    no Gerais de Balsas / A regio do Parque Estadual do Mirador (PEM)

    Finalizando

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    IV. A riqueza do primo pobre: (des)envolvimento dos de fora ouconvivncia e sustentabilidade para os de dentro?...

    Sintetizando e atualizando a situao de apropriao global do Cerrado

    A riqueza do primo pobre: a matria-prima de novos modelos Para

    uma outra perspectiva de sustentabilidade

    Anexo 1 Carta do Maranho...

    Anexo 2 A sobrevivncia dos Cerrados e de seus povos...

    Bibliografia...

    Pginas eletrnicas consultadas...

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    Relao de mapas

    Mapa 1.Domnios naturais do Brasil, 12 mil a 18 mil anos atrs...

    Mapa 2.Domnio do Cerrado e suas reas de transio...

    Mapa 3. Cerrado Contnuo e as grandes bacias hidrogrficas

    brasileiras...

    Mapa 4. Distribuio geogrfica original do tronco Macro J...

    Mapa 5. Territrios indgenas no domnio do Cerrado e suas

    transies...Mapa 6. reas de remanescentes de quilombos no domnio do

    Cerrado e suas transies...

    Mapa 7. Avano da produo de soja no Brasil com recorte do

    Cerrado e suas transies 1992 e 2002...

    Mapa 8.Regies de planejamento de Minas Gerais...Mapa 9.Domnios biogeogrficos de Minas Gerais...

    Mapa 10.Localizao do municpio de Rio Pardo de Minas e muni-

    cpios vizinhos na regio norte de Minas Gerais...Mapa 11.Vegetao original do Maranho...Mapa 12.Localizao dos municpios em foco...

    Relao de tabelas

    Tabela 1.Populao da rea de domnio do Cerrado Contnuo no

    Brasil, 1996...Tabela 2.Percentuais de Cerrados e suas transies nos Estados

    brasileiros...

    Tabela 3. Quantidade de espcies animais e vegetais do Cerrado

    brasileiro...

    Tabela 4. Distribuio espacial primitiva dos diferentes tipos de

    ecossistemas do domnio do Cerrado (includo o Pantanal)...

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    Pen s ar o B r as i l : Cer r ado

    Tabela 5.Taxas de transpirao para diferentes tipos de coberturavegetal...

    Tabela 6.Principais usos da terra no Cerrado...

    Tabela 7.Caracterizao do bioma Cerrado por regio fitoecol-

    gica agrupada...

    Tabela 8. Dimenso das reas protegidas nos principais biomas

    brasileiros...

    Tabela 9. Peso da agricultura familiar nos principais estados do

    domnio do Cerrado 1995/96...Tabela 10.Programas governamentais de desenvolvimento agrcola

    do Cerrado...

    Tabela 11.Tipos de ocupao nos estabelecimentos rurais e pro-

    jeo no domnio do Cerrado (milhes de hectares) de 1970 a

    2000...

    Tabela 12.Extenso da superfcie das gramneas forrageiras mais

    cultivadas no Cerrado em 1995...

    Tabela 13.Contribuio crescente dos Cerrados produo de sojano Brasil, de 1970 a 2003...

    Tabela 14.Populao rural e urbana, Rio Pardo de Minas, 1991 e2000...

    Tabela 15.Cobertura vegetal e uso da terra de Rio Pardo de Minasem 1994...

    Tabela 16.Cobertura vegetal e uso da terra de Rio Pardo de Minasem 2005...

    Tabela 17.Nmero de estabelecimentos, rea e valor bruto da pro-duo... Categorias familiares por tipo de renda e patronal. RioPardo de Minas/MG - 1995/1996...

    Tabela 18.Benefcios sociais recebidos pelos moradores da comu-

    nidade de Vereda Funda...Tabela 19.Total da renda anual no oriunda das atividades agrco-

    las locais da comunidade de Vereda Funda...

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    Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a

    Tabela 20.Estabelecimento por estrato de rea na comunidade deVereda Funda...Tabela 21. Condio de posse e uso da terra na comunidade de

    Vereda Funda...Tabela 22.Dados hidrolgicos e de produo de biomassa compa-

    rativos entre monoculturas de eucalipto e pinus e o Cerrado nativo

    de Gro Mogol/MG...

    Tabela 23.Vegetao natural do Maranho e sua extenso...

    Tabela 24.Populao e extenso territorial dos municpios visita-dos na pesquisa de campo...

    Tabela 25. Classes de vegetao do municpio de Balsas 1998...

    Tabela 26. Classes de vegetao do Municpio de S. R. dasMangabeiras 1998...

    Tabela 27. Nmero e percentual dos estabelecimentos agrcolas

    familiares nos municpios visitados 1995/1996...

    Tabela 28.Distribuio do tamanho dos estabelecimentos agrcolas

    (ha) nos municpios da pesquisa de campo (n estabelecimentos e%) 1995/1996...

    Tabela 29. Estabelecimentos e condio do produtor no Maranho

    entre 1970 e 1995/96...

    Tabela 30.reas ocupadas e produo das principais lavouras tempo-

    rrias do Maranho entre os Censos Agropecurios de 1970 e 1996...

    Tabela 31. rea de produo de soja em alguns municpios da

    regio de Balsas e S. R. das Mangabeiras 2001 e 2006...

    Tabela 32.Dez Estados do Brasil com maior superfcie de terras deestrangeiros novembro de 2007...

    Tabela 33.Preo do hectare no Brasil...

    Tabela 34. Preo do hectare por regio nov-dez/07...

    Tabela 35.Dez estados com maior ndice de violncia no campo no

    Brasil em 2005...

    Tabela 36.Propostas apoiadas pelo PPP-Ecos entre 1995 e 2008...

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    Apresentao

    Depois de tratar da Matriz de Transportes, o Projeto Pensar o Brasil

    retoma a reexo sobre o territrio brasileiro, dando continuidade srie que foi iniciada com estudos sobre a Amaznia e o Semi-rido.

    Neste quarto volume, Carlos Eduardo Mazzetto Silva resume a adapta a

    tese de doutoramento que defendeu no Departamento de Geografia da

    Universidade Federal Fluminense sobre o Cerrado.

    O Cerrado Contnuo corresponde a 193 milhes de hectares, quase23% do nosso territrio, predomina em dez estados e abriga cerca de

    22 milhes de pessoas. Se considerarmos todas as reas de transio e

    as ilhas de Cerrado na Amaznia, esses nmeros aumentam para 315

    milhes de hectares e 37% do territrio. Por sua posio central, a

    grande regio de contato com os outros biomas: a Floresta Amaznica, a

    Mata Atlntica, a Floresta de Araucria, a Caatinga, o Pantanal e as Matas

    de Cocais do Maranho e do Piau. Abriga uma biodiversidade ainda

    bastante desconhecida, com a ora mais rica entre as savanas do mundo.Encontram-se ali mais de 10 mil espcies vegetais, das quais 4.400 end-micas (exclusivas).

    Mais de 80% da rea do Cerrado Contnuo so ocupados por ecos-

    sistemas de chapada, reas de recarga hdrica do bioma. Carlos Eduardo

    Mazzetto Silva mostra que essas extensas chapadas planas, de solos pro-

    fundos, geologicamente velhos e permeveis, fazem da regio a verda-

    deira caixa dgua do territrio brasileiro, aquela que capta e distribui

    as guas que alimentam a maior parte das bacias do So Francisco e doAraguaia/Tocantins, toda a parte alta da bacia do Paran e partes impor-

    tantes das bacias do Atlntico Norte-Nordeste, do Amazonas (auentesda margem direita) e do Atlntico Leste. Alm disso, as chapadas de tran-

    sio com a Mata Atlntica e a Caatinga so responsveis pelas cabecei-

    ras de outras bacias, como as dos rios Pardo e Jequitinhonha, em Minas

    Gerais.

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    A rpida alterao da cobertura vegetal da regio, com a expansodas monoculturas de espcies exticas (especialmente a soja e o euca-

    lipto), devoradoras de gua, multiplica problemas. A vegetao nativa

    produz entre 10 e 40 toneladas de biomassa por hectare, enquanto o

    eucalipto produz mais de 300. Como 2/3 da biomassa so compostos

    de gua, a disseminao dessas plantaes artificiais altera todo o ciclo

    hidrolgico regional, afetando a recarga hdrica que abastece o lenol

    fretico, as nascentes e os cursos dgua. Alm disso, a formao de gran-

    des latifndios em terras que h pouco tempo eram devolutas, de usocomum pelas populaes locais, agrava problemas sociais. Os povos do

    Cerrado so herdeiros das antigas culturas indgenas que aprenderam a

    conviver com o ecossistema. Sua relao com o meio segue outra racio-

    nalidade, que nos recusamos a valorizar. Para destac-la, este livro d voz

    aos sertanejos.

    H pouco debate sobre essa vasta regio, frequentemente subesti-

    mada e considerada quase naturalmente como um espao de expanso

    do agronegcio. Mas o Cerrado tem histria, tem gente, tem uma fun-o nica no territrio brasileiro e tem grandes potencialidades. o que

    Carlos Eduardo Mazzetto Silva nos mostra. Quando terminamos a lei-

    tura, o nosso conceito de desenvolvimento est na berlinda.

    Marcos Tlio de Melo

    Presidente do Confea

    Clvis NascimentoCoordenador do Projeto Pensar o Brasil

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    Sobre o Autor

    Carlos Eduardo Mazzetto Silva formado em engenharia agron-

    mica pela Universidade Federal de Viosa. Fez mestrado em organiza-o humana do espao no Departamento de Geografia do Instituto de

    Geocincias da UFMG (1999) e doutorado em ordenamento territorial

    e ambiental no Departamento de Geografia da UFF (2006).

    Entre 1987 e 1994 foi tcnico, fundador e coordenador executivo

    do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas, entidadeagroecolgica de apoio aos movimentos camponeses da regio. Foi

    assessor da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte entre 1995 e 1996,

    atuando em programas de autoabastecimento e comercializao direta

    da Secretaria Municipal de Abastecimento.

    Foi colaborador da Assessoria e Servios em Projetos de Agricultura

    Alternativa (AS-PTA) no mbito do Projeto Brasil Sustentvel e

    Democrtico entre 1999 e 2000, quando elaborou o texto do Caderno

    Temtico 4 da srie de publicaes desse projeto: Democracia e sus-tentabilidade na agricultura: subsdios para construo de um novo

    modelo de desenvolvimento rural. Com esse texto, obteve o segundo

    lugar do Prmio Ncleo de Estudos Agrrios e de Desenvolvimento

    Rural (NEAD) na categoria prossional em novembro de 2001.Trabalhou nas polticas pblicas vinculadas reforma agrria,

    tendo sido consultor de meio ambiente no Incra-MG, atravs do con-

    vnio Incra-IICA, entre 1999 e 2002, e diretor de Desenvolvimento

    Rural Sustentvel do Instituto de Terras de Minas Gerais, entre 2003e 2004.Foi professor do curso de geografia do Projeto Parceladas da

    Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat), tendo sido res-

    ponsvel pelas disciplinas agricultura e desenvolvimento regional em

    julho/1999 e uso e manejo do solo em fevereiro/2001 e pela orientao

    de trs monografias (Luciara/MT).

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    Foi professor do curso de geografia e anlise ambiental do CentroUniversitrio de Belo Horizonte (Uni-BH), onde criou e ministrou a

    disciplina ecologia e desenvolvimento rural entre 2002 e 2006. Foi tam-

    bm instrutor-colaborador da Coordenao de Educao Ambiental do

    Ibama desde setembro de 2001, participando de cursos de introduo

    educao no Processo de Gesto Ambiental e de cursos de formao

    para analistas ambientais em vrios lugares do Brasil.

    Tem prestado diversos trabalhos de consultoria a diversos rgos e

    entidades no campo agroambiental como: Ministrio do Meio Ambiente,Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio), Pr-Manejo/Ibama,

    Fundao Trocaire, Central de Cooperativas Agroextrativistas do

    Maranho, Rede Cerrado, Cemig (projeto de reassentamento das fam-lias atingidas pela Usina Hidroeltrica de Irap).

    Entre julho e dezembro de 2005, atuou como consultor territorial

    no Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentvel dos Territrios

    Rurais da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT) do Ministrio

    de Desenvolvimento Agrrio (MDA).Em 2007 e 2008 elaborou para o Ministrio do Meio Ambiente

    os estudos socioeconmicos relativos a sete reas em anlise para se

    tornarem reservas extrativistas no Cerrado mineiro. Nesse perodo foi

    tambm pesquisador de ps-doutorado do CNPq, desenvolvendo a pes-

    quisa A dinmica dos projetos de assentamento de reforma agrria na

    Regio Metropolitana de Belo Horizonte no IGC/UFMG. pesquisador de ps-doutorado da Fapemig, desenvolvendo a pes-

    quisa Unidades de Conservao de Uso Sustentvel no Cerrado: con-itos socioambientais e perspectivas de sustentabilidade na FAFICH/UFMG.

    autor de diversos artigos publicados sobre temas como: agroeco-

    logia, reforma agrria e meio ambiente, desenvolvimento rural, campe-

    sinato e agricultura familiar, sustentabilidade do Cerrado etc.

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    H um silncio sobre o Cerrado brasileiro. Apesar de ser a mais

    rica savana do planeta, a regio apresentada quase sempre comoo espao a ser incorporado pela grande produo agropecuria de

    exportao do pas. No imaginrio da sociedade brasileira predo-

    mina a imagem de uma vegetao rala, de rvores tortas, sem beleza,

    sem utilidade e sem valor intrnseco seja social, econmico ou eco-

    lgico. Por isso, alguns estudiosos, jornalistas e militantes da defesa

    do Cerrado o chamam, provocativamente, de o primo pobre dos

    biomas brasileiros. No tem a exuberncia nem o status ecolgico

    das Florestas Amaznica e Atlntica, nem os atrativos tursticosdo Pantanal as trs grandes regies naturais brasileiras reconhe-

    cidas como Patrimnio Nacional. Entretanto, para quem passa a

    conhec-lo mais profundamente, o encantamento se impe, junto

    com o desvendamento de sutis estratgias de sobrevivncia que pro-

    piciam riqueza a quem o habita. um hbitat acolhedor, agradvel

    e generoso.

    Introduo

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    Pen s ar o B r as i l : Cer r ado

    O presente texto procura combater a viso depreciativa hegem-nica e mostrar a riqueza e importncia do Cerrado e dos povos que o

    habitam, invisveis para um determinado tipo de racionalidade moderna

    que importamos e para boa parte da sociedade urbana brasileira. Sem

    falar dos setores ruralistas e do agronegcio exportador, que nunca con-

    seguem v-lo como hbitat, mas apenas como mercadoria (Mazzetto

    Silva, 2005a).

    O mergulho na realidade profunda dos cerrados (pois so mui-

    tos e diversos) que ocupam a poro central do territrio brasileiro nosfaz compreender, pouco a pouco, tanto o funcionamento e a fascinante

    dinmica ecolgica do Cerrado, como as lgicas adaptativas que as

    diversas racionalidades indgenas e camponesas foram desenvolvendo

    para habitar e sobreviver nesses lugares. Entretanto hoje, em pratica-

    mente todos os lugares dessa grande regio ecolgica, essas formas tra-

    dicionais se encontram ameaadas, pressionadas, encurraladas pelas

    expresses modernas das monoculturas vinculadas a cadeias e redes de

    exportao. No perodo mais recente, de globalizao neoliberal e depropaganda ufanista da ideologia do agronegcio, essa presso se inten-

    sificou dramaticamente, assim como comearam a se tornar mais vis-

    veis e mais articuladas as resistncias locais. Por causa desse processo,

    que o que marca o cho do Cerrado brasileiro hoje, escolhi o ttulo

    deste trabalho.

    Grande parte do presente texto baseia-se na minha tese de dou-

    torado1 (Mazzetto Silva, 2006), defendida em maro de 2006 no

    Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense.Longe de se constituir em uma pesquisa neutra, ela cheia de envol-

    vimento com as lutas pelo Cerrado e seus povos, tendo, em grande

    parte, ganho um formato etnogrfico (no que se refere pesquisa de

    1 Tive o privilgio de, no meu doutorado, ter a orientao do Professor Carlos WalterPorto Gonalves.

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    Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a

    campo) articulado a uma observao participante. Esse envolvimentotambm inuenciou na escolha dos locais para a execuo da pesquisade campo. Essa escolha (Gerais de Balsas e regio do Parque Estadual

    do Mirador, no sul do Maranho, e Alto Rio Pardo, no norte de MinasGerais) se deu em funo das articulaes sociais a existentes, de

    processos de resistncia ao avano do agronegcio e das caractersti-

    cas diferenciadas de dois tipos de complexos agroindustriais ligados a

    duas cadeias distintas: o complexo da produo de gros (que envolve

    produo de leo, rao animal etc.) e o complexo da monocultura doeucalipto ligado produo do carvo vegetal e indstria siderr-

    gica. So dois complexos e duas redes que operam a partir do plan-

    tio de grandes monoculturas (soja/milho, eucalipto), mas que partem

    de uma apropriao e incidem sobre o territrio de maneira diferen-

    ciada e especfica. Outra diferena das duas regies pesquisadas sua

    dinmica no tempo. O sul do Maranho uma regio de avano rela-

    tivamente recente da monocultura de gros, cujos efeitos tambm so

    percebidos mais recentemente, assim como as respectivas reaes. J oAlto Rio Pardo uma regio onde as chapadas foram apropriadas pelasempresas reorestadoras no nal da dcada de 1970 e no incio da de1980. Seus efeitos j so sentidos h mais tempo e as reaes esto mais

    organizadas, incluindo aes concretas de reapropriao das chapadas

    pela populao local.

    Essa pesquisa de campo est retratada nos Captulos II (Alto

    Rio Pardo) e III (sul do Maranho) do presente trabalho. Eles docu-

    mentam e analisam o encontro e o embate territorial entre a formacamponesa/tradicional e a forma moderna/empresarial de apropriao

    do espao e suas repercusses para a sustentabilidade dos ecossistemas

    em questo. Pela caracterstica ecolgica do Cerrado e pela forma de

    ocupao das chapadas pelas monoculturas, a questo da gua, insisten-

    temente colocada pelos camponeses e camponesas, acabou sendo um

    tema norteador/organizador do trabalho de campo.

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    Pen s ar o B r as i l : Cer r ado

    Os captulos II e III esto precedidos, naturalmente, do Captulo I, noqual trao um quadro geogrfico e ecolgico do domnio biogeogrfico

    do Cerrado, apresento sua histria de ocupao e algumas amostras

    dos saberes tradicionais que se desenvolveram durante pelo menos

    11 mil anos de presena humana nessa grande regio e que foram

    incorporados, de uma forma ou de outra, pela sociedade sertaneja.

    Termino esse captulo com a anlise da incorporao do Cerrado

    dinmica de desenvolvimento nacional e sua insero no circuito

    mundial de produo de mercadorias, via Revoluo Verde patrocinadapelo Estado, num primeiro momento, e via apropriao e regulao

    privada pelo agronegcio global, num segundo momento.

    No ltimo captulo, apresento um resumo das concluses e atu-

    alizo a situao de apropriao global do Cerrado. Em seguida, apre-

    sento um painel da evoluo recente das polticas pblicas para o bioma

    e das iniciativas alternativas e articulaes que vm sendo desenvolvi-

    das pelos povos e as entidades defensoras do Cerrado e que mostram o

    potencial de outros modelos de convivncia sustentvel com os diversosecossistemas que o compem. Termino procurando articular a necessi-

    dade de mudana da realidade atual do Cerrado com um debate con-

    ceitual e poltico-ideolgico sobre a sustentabilidade e o termo que se

    consagrou, ao mesmo tempo se esvaziou, no perodo recente: o desen-

    volvimento sustentvel. Nesse sentido, procuro realar noes como

    racionalidade ambiental, ecologismo de sobrevivncia e campesinidade,

    que podem constituir idias-fora capazes de embasar uma perspectiva

    de sustentabilidade includente e dialgica para o Cerrado brasileirocom toda sua riqueza e diversidade.

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    Os grandes domnios paisagsticos do BrasilO Brasil um pas que guarda uma rica diversidade de paisagens e de

    tipologias vegetais. AbSaber vem, h muitas dcadas, estudando, dimen-

    sionando e classificando as grandes formaes paisagsticas e macroeco-lgicas do pas (AbSaber, 1971, 1995, 2003). Para tanto, o autor utiliza-se

    do conceito de domnio morfoclimtico, que se materializa tambm num

    domnio fitogeogrfico.1Ele define um domnio morfoclimtico e fitoge-

    ogrfico da seguinte maneira:

    1 Morfose refere forma efitose refere vegetao.

    I

    O Cerrado brasileiro: formao, caractersticasecolgicas e histrico de ocupao

    Os primeiros agrupamentos humanos assistiram s variaes

    climticas e ecolgicas desse utuante universo paisagstico e hidro-

    lgico dos tempos quaternrios e foram profundamente inuenciados

    por eles. (...) Mais do que simples espaos territoriais, os povos herda-

    ram paisagens e ecologias, pelas quais certamente so responsveis, oudeveriam ser responsveis. (AbSaber, 2003: 10)

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    Pen s ar o B r as i l : Cer r ado

    Um conjunto espacial de certa ordem de grandeza territorial de centenas de milhares a milhes de quilmetros quadrados

    de rea onde haja um esquema coerente de feies de relevo,

    tipos de solos, formas de vegetao e condies climtico-

    hidrolgicas. Tais domnios espaciais, de feies paisagsti-

    cas e ecolgicas integradas, ocorrem em uma espcie de rea

    principal de certa dimenso e arranjo, em que as condies

    fisiogrficas e biogeogrficas formam um complexo relativa-

    mente homogneo e extensivo. A essa rea mais tpica e con-tnua via de regra, de arranjo poligonal aplicamos o nome

    de rea core, logo traduzida por rea nuclear termos indife-

    rentemente empregados, segundo o gosto e as preferncias de

    cada pesquisador. [Entre as reas nucleares] existe sempre um

    interespao de transio e de contato, que afeta de modo mais

    sensvel os componentes da vegetao, os tipos de solos e sua

    forma de distribuio e, at certo ponto, as prprias feies de

    detalhe do relevo regional. (AbSaber, 2003: 11 e 12)

    Segundo AbSaber, o Brasil abriga seis grandes domnios mor-

    foclimticos ou paisagsticos, que so: (a) terras baixas orestadas daAmaznia ocupando uma extenso territorial de aproximadamente 2,8

    milhes de km2; (b) chapades recobertos por Cerrados e penetrados

    por orestas-galerias se estendendo por entre 1,7 e 1,9 milho de km2;

    (c) depresses interplanlticas semiridas do Nordeste ocupando umarea entre 700 e 850 mil km2(predominncia de caatinga); (d) mares de

    morros orestados abrangendo, na sua rea nuclear, cerca de 650 milkm2 (predominncia de Mata Atlntica); (e) planaltos das Araucrias

    com uma extenso de cerca de 400 mil km2; (f) pradarias mistas do

    sudeste do Rio Grande do Sul com cerca de 80 mil km2(AbSaber, 1971,1995 e 2003).

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    Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a

    importante, para ajudar no entendimento das categorias queusaremos no decorrer deste captulo, diferenciar o que chamamos de

    domnios morfoclimticos que corresponde aos domnios fitogeogr-

    ficos e as noes de biomae de ecossistema. Este ltimo se refere aos

    sistemas ecolgicos, com seus componentes biticos (fauna, ora) eabiticos (rocha, solo, gua, clima) presentes num determinado local

    ou regio, no tendo, portanto, o carter de domnio de uma grande

    faixa territorial como requer o conceito de bioma. AbSaber afirma que,

    no Brasil, os ecossistemas bsicos so os Cerrados, as Caatingas, asFlorestas Amaznicas, as Florestas Atlnticas, as Araucrias e Bosques

    Subtropicais e as Pradarias Mistas (AbSaber, 1995). Entretanto, exis-

    tem enclaves de Cerrados na Amaznia, no Nordeste e no Brasil tro-

    pical atlntico, o que quer dizer que os diversos ecossistemas podem

    ser encontrados dentro de domnios fitogeogrficos cujo ecossistema

    predominante diverso. J a categoria bioma se refere a um conjunto

    vegetacional que apresenta certa uniformidade fisionmica.

    Ribeiro e Walter (1998) entendem a noo de bioma de maneiraprxima ao conceito de domnio fitogeogrfico que adoto aqui.

    Em cada bioma h um tipo de vegetao ou fitofisionomia

    predominante, que ocupa a maior parte da rea, determinada

    primariamente pelo clima. Outras fitofisionomias tambm so

    encontradas, e a sua ocorrncia est associada a eventos tem-

    porais e a variaes locais, como aspectos fsicos e qumicos,geomorfologia e topograa. (Ribeiro e Walter, 1998: 93)

    Para fins deste trabalho, o bioma Cerrado o conjunto vegetacio-

    nal que predomina no (e caracteriza o) domnio morfoclimtico e fito-

    geogrfico dos chapades recobertos de Cerrado.

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    Pen s ar o B r as i l : Cer r ado

    A formao do Cerrado brasileiroOs Cerrados brasileiros constituem uma fisionomia de savana nicano planeta. As savanas africanas e australianas so significativamente

    diversas em relao ao nosso Cerrado, que representa hoje cerca de 5%

    da biodiversidade planetria. De acordo com AbSaber,

    na frica, predomina um arranjo transicional gradativo para os

    diversos tipos de savanas, enquanto no Brasil, cerrados e cer-rades se repetem por toda parte, no interior e nas margens da

    rea nuclear dos domnios morfoclimticos regionais. As varia-

    es orsticas esto mais relacionadas com as orestas de gale-

    ria do que propriamente com os nossos padres de cerrados e

    cerrades. (AbSaber, 2003: 37)

    Os Cerrados j ocupavam no Pleistoceno2

    importantes exten-ses do Brasil Central, assim como dominavam a maior parte da rea

    atual do domnio da Floresta Amaznica (Mapa 1). Devido ao clima

    mais frio e seco que vigorou at no ltimo perodo do Pleistoceno (12

    mil a 18 mil anos A.P.),3as formaes semiridas ocupavam parte do

    Brasil Central, e a formao savnica ocupava a maior parte da RegioAmaznica. Com a ltima glaciao, que deu incio ao Holoceno (12

    mil anos A.P.) ocorreu a tropicalizao do ambiente.

    2 Pleistoceno a era geolgica compreendida entre 1.860.000 e 12.000 anos. Elesucede a poca Pliocena e antecede a poca Holocena (atual).

    3 A. P. abreviao de antes do presente.

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    Mapa 1. Domnios naturais do Brasil, 12 mil a 18 mil anos atrs

    Fonte: LEMTO/UFF, a partir de AbSaber (1977).4

    4 LEMTO o Laboratrio de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades doDepartamento de Geografia da UFF, coordenado pelo professor Carlos Walter Porto Gon-alves. Trabalharam na confeco deste mapa os gegrafos Hugo Fioravante e Andressa Lac-erda. O gegrafo Sandro Heleno Laje converteu a figura para o preto e branco.

    N

    500 250 0 500 1.000

    km

    0

    10S

    20S

    30S

    0

    10S

    20S

    30S

    70W 60W 50W 40W

    70W 60W 50W 40W

    DOMNIO

    REAS DE ESTEPE SUBDESRTICAS

    REAS SEMI-RIDAS COM CAATINGAS E FLORAS SIMILARES (CACTCEAS)

    FLORESTAS TROPICAIS, REFGIOS DE MATAS E BREJOSDE ENCOSTAS E SERRAS MIDAS

    GRANDES NCLEOS DE CERRADO COM ENCLAVES DE CAATINGAS

    NCLEO DE ARAUCRIA

    REAS DE TRANSIO

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    Pen s ar o B r as i l : Cer r ado

    O final do Pleistoceno (18 mil 12 mil anos A. P.) foi rigoro-

    samente frio e seco, e o nvel do mar estava ao menos 100mabaixo do atual; o perodo anterior (30 mil 20 mil anos A.P.) apresentava, ao menos parcialmente, condies climticasmais amenas e o nvel do mar era mais alto; o Holoceno, final-mente, trouxe consigo o calor e a umidade, juntamente comum nvel de mar alto, que redundaram na tropicalizao doBrasil e, a partir do incio da era atual, numa certa estabilidadedessas condies. (Schmitz, 1993: 109)

    Com esse aquecimento e umedecimento dos ambientes, o Cerrado

    avanou sobre a caatinga. As orestas avanaram sobre o Cerrado (for-mando a oresta amaznica) e tambm sobre a caatinga (formando aoresta atlntica). Depois de milhares de anos consolidou-se o desenhofinal dos domnios citados acima, e o desenho do domnio do Cerrado

    se configurou da forma como est representado no Mapa 2, restando

    ainda algumas ilhas remanescentes na Regio Amaznica.

    Nessa definio final, o clima foi e um fator preponderante. Aregio de domnio do Cerrado caracteriza-se pela presena de invernos

    secos e veres chuvosos, um clima classificado como Aw de Kppen ou

    tropical chuvoso (Ribeiro e Walter, 1998). Possui mdia anual de pre-cipitao da ordem de 1.500mm, variando de 750mm a 2.000mm. As

    chuvas so concentradas de outubro a maro, e a temperatura mdia do

    ms mais frio superior a 18 C. O contraste entre as superfcies mais

    baixas (inferiores a 300m), as longas chapadas (entre 900m e 1600m) e

    a extensa distribuio em latitude conferem ao Cerrado uma diversifi-cao trmica bastante grande (Ribeiro e Walter, 1998). Eiten, porm,afirma que:

    O efeito do clima sobre o Cerrado, entretanto, direto somente

    no sentido de que o Cerrado s ocorre onde no h geadas ou,

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    como na borda sul da provncia, somente geadas infrequen-tes, quase sempre leves e de pouca durao. [...] Dentro desses

    limites, o efeito do clima sobre o Cerrado indireto, atravs

    de sua ao sobre o solo. O mesmo clima no Brasil Central

    sustenta a oresta mesoftica de intervio, em solos su-

    cientemente profundos, bem drenados, relativamente ricos

    em ons que as plantas requerem e com pouco ou nenhum

    alumnio disponvel, e sustenta vrias densidades de Cerrado

    onde o solo mais pobre, seja arenoso ou argiloso, e com apre-civel alumnio disponvel. [...] Mas esta prpria condio foi

    causada pelo clima tropical e mido, pelo menos em parte do

    ano, agindo por tempos longos nas partculas de solo perto

    da superfcie, lixiviando-as e mudando os minerais de argila

    do tipo montmorilonita, que retm bastante ons, para o tipo

    caulinita e sesquixidos de ferro e alumnio, que retm poucos

    ons. (Eiten, 1993: 19)

    A interao dos fatores clima e solo na constituio do Cerrado vem

    sendo objeto de uma longa e antiga polmica. Nas dcadas de 1960 e 1970

    foram publicadas diversas pesquisas que sustentavam que a propalada

    pobreza dos solos dos Cerrados (acidez/alto teor de alumnio,5distro-

    fismo/baixos teores de nutrientes) estaria na base da explicao da sua

    fisionomia tortuosa, de cascas espessas e folhas coriceas.6A teoria do

    escleromorfismo oligotrficoligado deficincia de nutrientes e toxidez doalumnio, presente em alto teor nos solos dos Cerrados, foi tida, nessa

    5 A acidez do solo est vinculada ao PH baixo e, em geral, est associada ao elevadoteor de alumnio no solo que, em altas concentraes, txico s plantas.

    6 O termo coriceasvem de couro. Quer dizer que as folhas tem uma textura espessa,endurecida.

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    poca, como a grande descoberta para a explicao do seu xeromorfismo,7

    ao contrrio do entendimento anterior de que esse xeromorfismo estaria

    ligado ao dficit hdrico (Goodland, 1971, Ferri, 1977, Ferri e Goodland,

    1979). Segundo esses autores, o dficit hdrico no existiria, pelo fato de

    no haver essa deficincia nos solos de Cerrado (esses solos teriam uma

    grande capacidade de guardar gua e as razes, de busc-la) e, tambm,

    por no se constatar restries na abertura dos estmatos8das plantas do

    Cerrado, no sentido de diminuir sua transpirao.

    Entretanto, estudos posteriores vieram contestar essa teoria. Alvime Silva (1980), por exemplo, pesquisaram o balano hdrico de diversas

    plantas arbreas do Cerrado, tomando por base o crescimento do tronco,

    parmetro considerado como dos mais precisos para o estudo da econo-

    mia de gua de plantas tropicais. Os resultados desses estudos demons-

    tram claramente que as rvores tpicas do Cerrado tm seu crescimento

    fortemente reduzido nos perodos secos (em geral de maio a agosto),

    no se podendo, portanto, dizer que tais plantas sejam fisiologicamente

    insensveis s condies de aridez sazonal que caracterizam as zonas deCerrado, ou que o chamado xeromorfismo da grande maioria das esp-

    cies no seja uma manifestao de real xerofitismo, ou adaptao anat-

    mica e fisiolgica carncia de gua durante a seca (Alvim, 1996). Por

    outro lado, Miranda e Miranda (1996), em estudos realizados no Distrito

    Federal, apontam que as taxas de transpirao de um Cerrado estrito

    senso so bastante baixas e se reduzem ainda mais na seca. Veremos estesdados mais frente na Tabela 5.

    J pesquisadores da rea da pedologia, como Ker e Resende(1996: 17), afirmam que a presena de Cerrado em solos praticamente

    7 Xeromorfismo tem a ver com uma fisionomia (forma) de plantas de ambiente seco(xerfitas

    8 Estmatos so estruturas celulares na folha que tm as funes de realizar trocasgasosas entre a planta e o meio ambiente e viabilizar sua transpirao.

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    sem alumnio (Resende et al., 1988)9

    indica no ser este elemento oresponsvel pelos aspectos xeromrficos da plantas do Cerrado. Eles

    afirmam que as plantas de Cerrado, pelo menos em grande parte, devero

    manter as caractersticas de tortuosidade e aspecto xeromrfico quando

    as sementes so plantadas em solo eutrfico,10ou seja, a tortuosidade e

    xeromorfismo so de origem gentica e no ambiental. Arrisco afirmar,

    ento, que essas caractersticas seriam o resultado de um longo processo

    de adaptao (gentica), inclusive a fatores como o fogo, um componente

    ambiental sempre presente na histria de constituio do Cerrado. Afinal,a constituio gentica se d a partir da seleo natural que se opera

    na relao adaptativa das espcies com as caractersticas e limitaes

    ambientais, como mostrou Charles Darwin.

    De acordo ainda com Ker e Resende (1996), a pobreza qumica e adeficincia de gua atuais no so as causas do Cerrado, apenas o man-

    tm em relao s ocupaes competitivas da oresta11e da caatinga. OCerrado, uma vez estabelecido, tende a se manter com mais tenacidade

    do que outras formaes e , de certa forma, favorecido pelas limitaesambientais, desde que no sejam extremas. Uma deficincia de gua mais

    pronunciada leva caatinga; deficincia de oxignio leva aos campos

    higrfilos e hidrfilos. J a deficincia de fertilidade, de acordo com estes

    autores, , por ora, o nico extremo que favorece o Cerrado,12talvez numa

    expresso mais campestre. Assim, o Cerrado teria na plasticidade s limi-

    taes de deficincia de gua e nutrientes, um ponto forte e na propagao

    por sementes, a maior dificuldade no seu estabelecimento e manuteno.

    9 RESENDE, M.; SANTANA, D. P.; CURI, N. (1988). Pedologia e Fertilidade doSolo; interao e aplicaes. Lavras: ESAL, 81 p.

    10 Eutrfico se refere boa disponibilidade de nutrientes (o contrrio distrfico).

    11 A pobreza qumica do solo, no caso da oresta amaznica, um fator comum como Cerrado. O que diferencia o regime de chuvas que permite a constituio da oresta.

    12 Mas, s o favorece nas condies climticas especficas, pois uma maior umidadepode gerar a constituio de um ecossistema orestal no lugar da savana.

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    Importante salientar aqui que esse conceito de pobreza ou deficin-cia de fertilidade do solo oriundo da agronomia moderna que definiu

    os macro e microelementos qumicos (nutrientes) que fazem um solo ser

    considerado rico ou pobre em nutrientes. Certamente, esta definio tem

    a ver com as exigncias das principais culturas alimentares do mundo, que

    no so iguais, por exemplo, s das plantas frutferas do Cerrado como

    pequi, buriti, araticum, mangaba, cagaita, cajuzinho, bacuri etc., que so

    ricas em nutrientes e sempre fizeram parte da dieta dos povos do Cerrado.

    Essas plantas nascem, crescem e produzem, com um nvel razovel defartura, em condies chamadas por essa agronomia de baixa fertilidadeealta acidezdos solos, inclusive com nveis de alumnio considerados txi-

    cos. Isso demonstra um processo histrico de adaptao (inclusive ao fogo)

    que relativiza esses conceitos um tanto reducionistas do que seja riqueza

    ou pobreza. Esses solos, teoricamente pobres, sustentam uma das maiores e

    mais ricas biodiversidades do planeta, como veremos.

    Enfim, a concluso de Alvim (1996), num artigo especfico sobre

    este tema, parece ser a mais certeira e sinttica no tocante aos fatores deformao do Cerrado.

    Com base na reviso anterior, [...] conclui-se que o fator

    ambiental mais diretamente relacionado com a formao des-

    ses ecossistemas , indubitavelmente, a carncia de gua para

    o crescimento das plantas durante determinados perodos do

    ano (estresse hdrico). Tal carncia tanto pode ser uma con-seqncia direta do regime pluviomtrico da regio (longa

    estao seca), a exemplo do que acontece no Brasil Central,

    ou indiretamente, uma resultante de limitaes fsicas ou

    mesmo qumicas do solo que prejudicam o crescimento das

    razes, conseqentemente reduzindo a capacidade de absor-

    o de gua das plantas, como ocorre nas manchas podzlicas

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    da regio amaznica. As queimadas freqentes indubitavel-mente modicam a ora e as caractersticas sionmicas dos

    Cerrados, porm nada tm a ver com os processos evoluti-

    vos que deram origem ao aparecimento das plantas tpicas do

    ecossistema. (Alvim, 1996: 58)

    Essa concluso vai no sentido de afirmar o Cerrado como uma vege-

    tao/fisionomia clmax, podendo esta fisionomia ser modificada pelaao do fogo. Mas a ausncia deste no modifica a natureza savnica desse

    conjunto vegetacional que o Cerrado brasileiro.

    Populao e distribuio estadual do CerradoOs dados que apresentaremos a seguir se basearam num levanta-

    mento realizado pelo Laboratrio de Estudos de Movimentos Sociais

    e Territorialidades (LEMTO, Geografia/UFF), a partir do documentoEcossistemas brasileiros,13 que dividiu o territrio brasileiro em 49

    ecorregies. Este levantamento indicou que o domnio do Cerrado se

    estende no Brasil por 192,8 milhes de hectares, abrangendo treze esta-

    dos da federao, o que corresponde a 22,65% do territrio brasileiro,

    onde vivem mais de 22 milhes de pessoas (Tabela 1). Esse total corres-

    ponde ao chamado Cerrado Contnuo, ou rea nuclear do Cerrado bra-

    sileiro. Como se pode observar na Tabela 2, h estados que tm a tota-

    lidade ou a maior parte de seu territrio dentro do Cerrado Contnuocomo: Distrito Federal (100,0%), Gois (96,6%), Tocantins (75,6%) e

    Mato Grosso do Sul (59,3%). H estados em que, mesmo no sendo

    majoritrio, o percentual pertencente rea do Cerrado Contnuo

    bastante significativo: Mato Grosso (48,3%), Minas Gerais (46,7%),

    13 Organizado por Moacir Bueno Arruda, 2001, edies IBAMA.

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    Maranho (42,1%), Piau (38,6%), So Paulo (30,6%) e Bahia (21,4%).Finalmente, h estados com um pequeno percentual de seu territrio

    dentro do Cerrado Contnuo, como: Rondnia (6,7%), Paran (2,7%)e Par (0,1%).

    Tabela 1. Populao da rea de domniodo Cerrado Contnuo no Brasil, 1996

    Estados Populao Totaldo Cerrado

    PopulaoUrbana do

    CerradoPopulao Ruraldo Cerrado

    Bahia 141.682 50.367 91.315

    Distrito Federal 1.821.946 1.692.248 129.698

    Gois 4.388.809 3.765.836 622.973

    Maranho 984.805 513.068 471.736

    Mato Grosso 1.638.620 1.334.006 304.613

    M. Grosso doSul 1.236.006 1.072.476 163.530

    Minas Gerais 5.531.652 4.642.139 889.514

    Par 3.609 1.884 1.725

    Paran 174.964 146.831 28.133

    Piau 414.982 211.552 203.429

    So Paulo 5.042.005 4.589.621 452.384

    Tocantins 532.979 340.701 192.278

    Total Brasil 21.912.059 18.360.729 3.551.328Total Brasil 100,00% 83,79% 16,21%

    Fonte: LEMTO, a partir de: Arruda (2001 - Ecossistemas Brasileiros) e IBGE, contagempopulacional, 1996.

    Por se constituir em um bioma de localizao central, o domnio do

    Cerrado brasileiro se caracteriza por ser uma grande regio de contato

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    com os outros biomas e seus domnios (Mapa 2) a Floresta Amaznica,a Mata Atlntica, a Floresta de Araucria, a Caatinga, o Pantanal, as Matas

    de Cocais do Maranho e Piau. Se considerarmos todas essas reas de

    transio e ainda as ilhas de Cerrado na Amaznia (AP, RR, AM e PA),chegamos a um total de 315,0 milhes de hectares, ou 37% da superfcie

    de nosso pas, onde vivem mais de 37 milhes de pessoas, de acordo com

    os dados da contagem populacional do IBGE de 1996.14

    A Tabela 1 revela ainda que a populao da rea do Cerrado

    Contnuo est localizada nas sedes municipais (83,79%), ao contrriodo que acontecia em 1960, ano da inaugurao de Braslia, quando

    dos 11 milhes de habitantes da regio, aproximadamente 7 milhes

    viviam nas reas rurais (63,6% do total), de acordo com Brito (1980:

    275). Houve ento, nesse perodo, uma forte migrao das reas

    rurais para as sedes municipais (critrio usado pelo IBGE para definir

    urbanizao).

    Tabela 2. Percentuais de Cerrados e suastransies nos estados brasileiros

    UF - Tipo de Cerrado % de Cerrado % de CerradoTotal

    Amap - Cerrados Amaznicos-AP

    6,7 6,7

    Amazonas - Transio Cerrado-Floresta Amaznica

    0,4 0,4

    Bahia - Cerrado Contnuo 21,4Bahia - Transio Cerrado-

    Caatinga3,8

    14 Esses dados foram organizados no LEMTO (Laboratrio de Estudos de Movimen-tos Sociais e Territorialidades) do Departamento de Geografia da UFF, utilizando a malhamunicipal de 1996, ressaltando que outros municpios foram criados depois desse ano.

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    Bahia - Transio Mata Atlntica-Cerrado 0,0 25,2

    Distrito Federal - CerradoContnuo

    100,0 100,0

    Gois - Cerrado Contnuo 96,6

    Gois - Transio Cerrado-MataAtlntica

    3,5 100,0

    Maranho - Cerrado Contnuo 42,1

    Maranho - Transio Cerrado-Floresta Amaznica

    0,0

    Maranho - Zona dos Cocais 32,2 74,3

    Mato Grosso - rea Cerrado-Pantanal

    5,9

    Mato Grosso - Cerrado Contnuo 48,3

    Mato Grosso - Transio Cerrado-Floresta Amaznica

    27,7 81,9

    Mato Grosso do Sul - reaCerrado-Pantanal

    26,0

    Mato Grosso do Sul - CerradoContnuo

    59,3

    Mato Grosso do Sul - TransioCerrado-Mata Atlntica

    14,8 100,0

    Minas Gerais - Cerrado Contnuo 46,7

    Minas Gerais - TransioCerrado-Caatinga

    2,6

    Minas Gerais - TransioCerrado-Mata Atlntica

    1,9

    Minas Gerais - Transio MataAtlntica-Cerrado

    8,9 60,2

    Par - Cerrado Contnuo 0,1

    Par Cerrados Amaznicos-PA 1,2

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    3 3

    Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a

    Par - Transio Cerrado-FlorestaAmaznica 12,8 14,1

    Paran - Cerrado Contnuo 2,7

    Paran - Transio Cerrado-MataAtlntica

    41,2 44,0

    Piau Cerrado Contnuo 38,6

    Piau - Transio Cerrado-Caatinga

    6,7

    Piau Zona dos Cocais 19,0 64,3

    Rondnia - Cerrado Contnuo 6,1

    Rondnia - Transio Cerrado-Floresta Amaznica

    2,2 8,3

    Roraima - Cerrados Amaznicos-RR

    23,8 23,8

    So Paulo - Cerrado Contnuo 30,6

    So Paulo - Transio Cerrado-Mata Atlntica

    37,7 68,3

    Tocantins - Cerrado Contnuo 75,6

    Tocantins - Transio Cerrado-Floresta Amaznica

    21,7 97,3

    Fonte: LEMTO, a partir de Arruda, 2001 - Ecossistemas Brasileiros.

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    Pen s ar o B r as i l : Cer r ado

    Mapa 2. Domnio do Cerrado e suas reas de transio

    Autor: LEMTO, a partir de Arruda, 2001; layoutdo gegrafo Sandro Heleno Laje da Silva.

    Biodiversidade e gua: a importncia ea riqueza ecolgica do CerradoA dimenso da biodiversidade dos Cerrados ainda no est completa-

    mente conhecida. Segundo Dias (1996), so mais de 2 mil espcies de

    N

    0

    10S

    20S

    30S

    0

    10S

    20S

    30S

    70W 60W 50W 40W

    70W 60W 50W 40W

    DOMNIO CERRADO E TRANSIES

    REA CERRADO PANTANAL

    CERRADO CONTNUO

    CERRADOS AMAZNICOS - AP

    CERRADOS AMAZNICOS - PA

    CERRADOS AMAZNICOS - RR

    TRANSIO CERRADO AMAZNIA

    TRANSIO CERRADO CAATINGA

    TRANSIO CERRADO MATA ATLNTICA

    TRANSIO MATA ATLNTICA CERRADO

    ZONA DOS COCAIS500 250 0 500 1.000

    kmm

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    Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a

    plantas lenhosas, um nmero ainda maior de espcies herbceas (entreelas mais de 233 espcies de orqudeas s no Distrito Federal) e um

    nmero ainda desconhecido de animais; s no Distrito Federal esto

    registradas mais de 430 espcies de aves (Dias, 1996). De acordo com

    Arruda (2001) a ora do Cerrado comporta mais de 10 mil espcies,com 4.400 endmicas (exclusivas) dessa rea.

    Klink (1996) arma que o Cerrado possui a ora mais rica dentreas savanas do mundo. Partindo de um nmero bem mais modesto do

    que o de Dias, de 429 espcies de rvores e arbustos, mostra que essevalor muito superior ao nmero de espcies de rvores e arbustos das

    savanas do Suriname (15) ou da Venezuela (43).O documento recente do Ministrio do Meio Ambiente sobre a

    biodiversidade brasileira aponta os nmeros de espcies para o Cerrado

    brasileiro expostos na Tabela 3.

    Tabela 3. Quantidade de espcies animais

    e vegetais do Cerrado brasileiro

    Discriminao Cerrado

    rvores 6.000

    Aves 837

    Mamferos 195

    Peixes 78015

    Anfbios 113

    Mamferos 195

    Fonte: Ministrio do Meio Ambiente, 2004. 15

    15 Esse nmero inclui Cerrado e Pantanal, os outros so referentes ao Cerrado contnuo.

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    Pen s ar o B r as i l : Cer r ado

    Dias ressalta no universo vegetal dos Cerrados quatorze grupos deplantas teis:

    Plantas forrageiras: um percentual expressivo1. 16da rea do bioma

    dos Cerrados utilizada como pastagens nativas que ajudam a

    suportar cerca de 40% do rebanho nacional. Filgueiras e Wechsler

    (1996) j identificavam, nessa poca, 270 espcies de gramneas

    e 548 de leguminosas forrageiras nos Cerrados, alm de 83 esp-

    cies de rvores, arbustos e ervas consumidas pelo gado;

    Plantas madeireiras: segundo Silva Jr. e Felfili (1996), um2.hectare de Cerrado estrito senso (Cerrado tpico) produz at

    27,24 toneladas de material lenhoso, comportando espcies

    de madeira de alto valor comercial como aroeira Astronium

    urundeuva, sucupira Bowdichia virgilioides, landim, pau-preto,

    vinhtico Platymenia reticulata, perobaAspidosperma dasycar-

    pon, jatob Hymenaea stignocarpa, pau dleo Copaifera langs-

    dorfi, gonalo-alvesAstronium fraxinifoliume outras;

    Plantas alimentcias: cerca de oitenta espcies dos Cerrados for-3.necem frutos, sementes ou palmitos saborosos e nutritivos ao

    homem. Pequi Caryocar brasiliense, araticum Annona crassi-

    flora, mangaba Hancornia speciosa, guariroba Syagrus oleracea,

    cagaita Eugenia dysenterica, coquinho-azedo Syagrus flexuosa,

    baru Dypterix alata, jatob, cajuzinhoAnacardum athonianum,

    murici Byrsonima coccolobifolia, mama cadela Brasimum gandi-

    chandie o buritiMauritia viniferaso alguns exemplos;

    Plantas condimentares, aromatizantes e corantes: as pimen-4.

    16 Esse percentual era cerca de 40% ao final da dcada de 1990. Hoje, as estimativasso variadas, mas certamente, o valor menor, em funo do avano do desmate para im-plantao de monoculturas e pastagens homogneas. Um trabalho da EMBRAPA-Cerradosestimava para o ano 2001, em apenas 13%, o percentual de pastagem nativa na rea do CerradoContnuo. Ver: SANO, E. E.; JESUS, E. T.; BEZERRA, H. S. Uso de um Sistema de InformaesGeogrficas para quantificao de reas remanescentes do Cerrado. Planaltina, DF: EmbrapaCerrados, 2001 (Comunicado Tcnico).

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    Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a

    tas-de-macacoXylopia sspe Piper tuberculatum, a canela-ba-talha Cryptocaria sp, a baunilha Vanilla sp, o arcassu Croton

    adenodontuse o aafro do Cerrado Escobedia grandiflora;

    Plantas txteis (fibras);5.

    Plantas corticeiras: cerca de vinte espcies conhecidas;6.

    Plantas tanferas (alto teor de tanino no lenho, na casca ou nos7.

    frutos) como o barba-timo Stryphnodrendron adstringens, o

    angicoAnadenanthera spp, o carvoeiro Sclerolobium panicula-

    tum, a favela Dimorphandra mollis(fava danta ou faveira);Plantas com exsudatos no tronco (resina, goma, blsamo e8.

    ltex): os jatobs, o breu Protium brasiliense, a laranjinha do

    campo Styrax ferrugineus, as gomeiras Vochysia ssp, o angico

    vermelhoAnadenanthera macrocarpa, a aroeira, o pau dleo,

    a mangaba e outras;

    Plantas produtoras de leo e gordura como o babau9. Orbygnia

    oleifera, a macabaAcrocomia sclerocarpae o pequi;

    Plantas medicinais: mais de cem espcies dos Cerrados so10.empregadas neste sentido;

    Plantas ornamentais: cerca de duzentas espcies;11.

    Plantas empregadas no artesanato: cerca de cem espcies12.

    conhecidas;

    Plantas apcolas: um levantamento no Distrito Federal13.

    levantou 220 espcies;

    Plantas aparentadas de cultivos comerciais: essas pertencem a14.

    gneros nos quais se encontram importantes espcies comer-ciais e que mereceriam estudos para possvel uso e melhora-

    mento. So exemplos: os gneros da mandioca (Manihot), do

    caju (Anacardium), do abacaxi (Ananas), da pinha (Anona),

    do car (Dioscorea), do caqui (Dispyrus), da goiaba (Psidium),

    do maracuj (Passiflora), do amendoim (Arachis), do guaran

    (Paullinea) (Dias, 1996).

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    Pen s ar o B r as i l : Cer r ado

    A grande biodiversidade presente no domnio dos Cerrados sereete nas diferentes sionomias/ecossistemas que a se abrigam. Nadescrio de Dias:

    A regio dos Cerrados constitui um grande mosaico de paisa-

    gens naturais dominado por diferentes fisionomias de savanas

    estacionais sobre solos profundos e bem drenados das chapadas

    (os cerrados), ocupando mais de 2/3 das terras, que so recor-tadas por estreitos corredores de orestas mesofticas perenif-

    lias ao longo dos rios (as matas de galeria) ladeados por savanas

    hiperestacionais de encosta (os campos midos) ou substitudos

    por brejos permanentes (as veredas). Esse padro interrompido

    por encraves de outras tipologias vegetais: savanas estacionais

    de altitude (os campos rupestres), savanas estacionais em solos

    rasos (os campos litlicos), orestas xeromrcas semidecduas

    (os cerrades), orestas mesofticas dos aoramentos calcrios(as matas secas), orestas mesofticas de planalto (as matas de

    intervio), savanas hiperestacionais aluviais com murunduns

    (os pantanais), orestas baixas xeromrcas decduas em solos

    arenosos (os carrascos), alm dos ambientes diferenciados asso-

    ciados s cavernas, lajedos, cachoeiras e lagoas.17(Dias, 1996:17)

    17 Nesta descrio, Dias identifica 11 ecossistemas ou tipos de vegetao que podemser separados em dois grandes tipos: as formaes orestais (matas de galeria, cerrades, ma-tas secas, carrascos e matas de intervio), as formaes savnicas (Cerrados, pantanais, cam-pos midos, campos rupestres, campos litlicos, veredas). Ribeiro e Walter (1998) descrevemtambm 11 tipos fisionmicos dentro do domnio do Cerrado, mas de forma diferente: forma-es orestais (mata ciliar, mata de galeria, mata seca e cerrado), savnicas (Cerrado sentidorestrito, parque de Cerrado, palmeiral e vereda) e campestre (campo sujo, campo rupestre ecampo limpo). Particularmente, prefiro a descrio de Dias por ser mais integradora do pontode vista ecolgico.

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    Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a

    Alm dessas diversas formaes especficas que ocorrem no inte-rior do Cerrado Contnuo, importante ressaltar a diversidade de ecos-

    sistemas e espcies especficas das reas de transio, onde se formaram

    fisionomias tambm especficas como a mata de cocais18no Maranho,

    Piau e Tocantins e diversas outras formaes que propiciaram, inclu-

    sive, nichos favorveis sobrevivncia de diversos povos que a se esta-

    beleceram, explorando a riqueza ofertada pela natureza. Tambm

    importante destacar que no domnio do Cerrado se encontram as duas

    maiores plancies alagadas do planeta: o Pantanal e a plancie do Araguaia(Tabela 4). Esse fato refora a relevncia hdrica do domnio do Cerrado,

    como veremos.

    As diferentes formaes/ecossistemas descritas por Dias esto

    organizadas a partir das grandes unidades de paisagem presentes na

    rea do Cerrado Contnuo, conforme a Tabela 4.

    Tabela 4. Distribuio espacial primitiva dos diferentes tipos deecossistemas do domnio do Cerrado (includo o Pantanal)

    Tipo de ecossistemarea estimada1000 ha %

    Ecossistemas de serra(2,5%)

    Campo rupestre 5.100 2,5

    Ecossistemas de chapada

    (80,4%)

    Cerrados (estritosenso)

    108.000 53,0

    Campos de cerrado 23.600 11,6

    Cerrades 16.900 8,3

    Matas de intervio 10.200 5,0

    18 A mata de cocais, caracterizada pela presena dominante do coco babau, , naverdade, uma formao de transio entre 3 grandes biomas: Cerrado, Floresta Amaznica eCaatinga.

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    Ecossistemas de transiochapada/encosta (2,5%) Campo litlico 5.100 2,5

    Ecossistemas de planciealagada (5,5%)

    Campo mido/pantanal

    11.200 5,5

    Ecossistemas de encosta efundo de vale (5,0%)

    Matas de galeria 10.200 5,0

    Vereda e brejo 5.100 2,5

    Outros (4,0%) Carrascos e outros 8.200 4,0

    Total 203.600 100,0

    Elaborado pelo autor a partir de Dias, 1996.

    Pela sua extenso territorial (25% do pas), pela sua posio

    central (que propicia compartilhar espcies com quatro outras

    regies), pela sua diversidade de tipologias vegetais (que

    abrigam cerca de onze biotas distintas), e por conter trechos

    importantes das trs maiores bacias hidrogrficas brasileiras

    e sul-americanas, a regio do Cerrado potencialmente abrigaaproximadamente um tero da biota brasileira, ou seja, cerca

    de 5% da fauna mundial. (Dias, 1996: 20)

    Nota-se, a partir da Tabela 4, que os ecossistemas de chapada repre-

    sentam 80,4% da rea do Cerrado Contnuo. Esse dado extremamente

    relevante, pois as chapadas so reas de recarga hdrica do biomae, como

    veremos, nessa unidade da paisagem que se d a disputa entre o agro-negcio e o agroextrativismo campons pelo modelo de ocupao, produ-

    o e desenvolvimento no mbito do domnio do Cerrado. A localizao

    central do domnio do Cerrado e as caractersticas dessas extensas cha-

    padas planas, de solos profundos, geologicamente velhos e permeveis,

    fazem dessa regio a verdadeira caixa dgua do territrio brasileiro, fato

    ilustrado e comprovado pelo Mapa 3 que mostra como a regio central

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    Car los Edu ar do Mazzetto Si lv a

    do domnio do Cerrado capta e distribui as guas que vo alimentar amaior parte da bacia do So Francisco e do Araguaia/Tocantins, toda

    parte alta da bacia do Paran e partes importantes das bacias Atlntico

    Norte-Nordeste, Amazonas (parte dos auentes da margem direita) eAtlntico Leste (Pimentel et al, 1977). Alm disso, uma parte importante

    das chapadas da transio Cerrado-Mata Atlntica e Cerrado-Caatinga

    responsvel pelas cabeceiras de bacias importantes como as dos rios

    Pardo e Jequitinhonha em Minas Gerais.

    Na verdade, a funo de caixa dgua do Cerrado, exercida pri-mordialmente pelas suas chapadas, reforada pela prpria fisiologia

    e ecologia da vegetao do Cerrado, que se manifesta nas seguintes

    caractersticas:

    Baixa produo de biomassa, que condiciona baixo consumo1.

    de gua. Enquanto a Floresta Amaznica produz entre 350 e

    550 toneladas de biomassa por hectare, o Cerrado produz entre

    10 e 40 toneladas. Como 2/3 da biomassa constituda de gua,

    conclui-se que a vegetao do Cerrado retm menos gua nasua biomassa do que as formaes orestais. A monoculturado eucalipto em reas de Cerrado, por exemplo, produz mais

    de 300 toneladas de biomassa por hectare, retendo muito mais

    gua na sua estrutura (Lima, 1996).

    As caractersticas fisionmicas de possuir casca grossa e folhas2.

    coriceas fazem com que a vegetao do Cerrado transpire

    pouco, transpirao essa que ainda mais restrita na poca da

    seca: o Cerrado transpira 2,6mm no perodo das guas e 1,5mmpor dia na seca. A monocultura da soja transpira 8,4mm e a do

    eucalipto 6,0mm por dia, como mostra a Tabela 5. Naturalmente,

    a substituio do Cerrado por essas monoculturas altera o ciclo

    hidrolgico local, afetando a recarga hdrica que abastece o len-

    ol fretico e, por conseqncia, as nascentes e cursos dgua

    do bioma.

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    Pen s ar o B r as i l : Cer r ado

    A capacidade de reserva hdrica e de nutrientes do sistema radi-3.cular da vegetao do Cerrado muito superior das formaes

    orestais, o que lhe confere tambm uma maior capacidade derebrota aps possveis perturbaes (fogo, corte raso etc.).19

    Mapa 3. Cerrado Contnuo e as grandesbacias hidrogrficas brasileiras20

    19 Devido a esta caractersticas, muitos dizem que o Cerrado uma oresta de cabeapara baixo, pois a maior parte de sua biomassa estaria dentro da terra.

    20 Este mapa foi elaborado pelo autor e pelo gegrafo Sandro Heleno Laje da Silva, apartir do banco de dados do LEMTO.

    N

    0

    10S

    20S

    30S

    0

    10S

    20S

    30S

    70W 60W 50W 40W

    70W 60W 50W 40W

    DOMNIO CERRADO E TRANSIES

    BACIAS HIDROGFICAS

    CERRADO CONTNUO

    Bacia do Rio Amazonas

    Bacia do Atlntico - Trecho N/NE

    Bacia do Atlntico - Trecho Leste

    Bacia do Rio So Francisco

    Bacia do Rio Paran

    Bacia do Rio Tocantins

    Bacia do Atlntico Trecho SE

    Bacia do Rio Uruguai

    1

    2

    3

    4

    5

    6

    7

    8

    500 250 0 500 1.000kmm

    1 2

    6

    4

    3

    5

    8

    7

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    Alm desses fatores fisionmicos, a funo de caixa dgua (reade recarga) exercida pelas chapadas do domnio do Cerrado tam-

    bm condicionada por sua topografia plana ou suave-ondulada e pelas

    caractersticas dos latossolos profundos e porosos que a predominam,

    fazendo com que funcionem como uma esponja absorvedora de gua

    que alimenta o lenol fretico.

    Os latossolos sob Cerrado tendem, ao contrrio da maioriados latossolos amaznicos, a ser ricos em gibbsita,21 apre-

    sentando uma estrutura granular bem desenvolvida, p de

    caf, que facilita: a infiltrao de gua, a eroso em sulcos e

    a baixa condutividade capilar, quando o solo deixa de estar

    saturado. Alm desses aspectos, os latossolos gibbsticos tm

    grande poder tamponante sobre o ciclo da gua: os cursos

    de gua tendem a ser mais perenes que os de outros ecossiste-

    mas (amaznico, inclusive); mas em compensao, no raro,encontram-se a mais de 20km um do outro.22(Ker e Resende,

    1996: 15)

    Tabela 5. Taxas de transpirao paradiferentes tipos de cobertura vegetal

    Cobertura vegetal Taxa de transpirao (mm/dia)Cerrado (chuva) 2,6

    Cerrado (seca) 1,5

    21 Gibbsita um xido de alumnio.

    22 Grifos meus.

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    Arroz 4,3Girassol 5,6

    Milho 2,8

    Soja 8,4

    Trigo 4,4

    Campo 2,6

    Pinus elliotis 4,7

    Eucalipto 6,0

    Fonte: Miranda e Miranda, 1996.

    Sobre o que resta de CerradoH vrios estudos sobre a situao do uso da terra no domnio do

    Cerrado e sobre os seus remanescentes, com diferentes metodologias e

    nomenclaturas e alguma divergncia entre eles.

    Um estudo importante foi realizado nos ltimos anos pelaConservao Internacional do Brasil (Machado et al, 2004), com base

    em imagens de satlite de agosto de 2002. Esse estudo mostra que a

    rea desmatada j atingia 55% da rea de domnio do Cerrado (cerca

    de 87 milhes de hectares), numa taxa mdia anual de desmatamento

    de 1,1%. O estudo mostra que entre as regies mais conservadas esto

    o Oeste da Bahia e Sul do Piau e Maranho, que so hoje, junto com

    as reas do Estado do Mato Grosso, as principais reas de expanso das

    monoculturas de soja, fato que confirma a preferncia do agronegcio porreas novas. O estudo mostra ainda que as unidades de conservao

    no Cerrado somavam 2,2% sendo modestas as perspectivas de sua

    expanso e as terras indgenas representavam 2,3% da rea original do

    domnio do Cerrado.

    Numa publicao posterior, Klink e Machado (2005) apresentam

    os resultados sistematizados, segundo a tabela abaixo (Tabela 6), ressal-

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    vando que a rea pesquisada (158 milhes de hectares) menor do quea rea considerada como Cerrado Contnuo ou rea nuclear do Cerrado

    (cerca de 200 milhes de hectares).

    Tabela 6. Principais usos da terra no Cerrado

    Uso da terra rea (ha) % rea central dobioma

    reas nativas* 70.581.162 44,53

    Pastagens plantadas 65.874.145 41,56Agricultura 17.984.719 11,35

    Florestas plantadas 116.760 0,07

    reas urbanas 3.006.830 1,90

    Outros 930.304 0,59

    Total 158.493.921

    Fonte: KLINK e MACHADO, 2005. * Estimativas sem aferio em campo e incluindo reasnativas em qualquer estado de conservao.

    Pela tabela, podemos inferir que mais de 55% das reas com

    vegetao nativa do Cerrado j estavam antropizadas, ou seja, t ive-

    ram a vegetao nativa erradicada para dar lugar a outras paisa-

    gens: agricultura, pastagem, monocultura de rvores, reas urbanas

    e outras.

    Ribeiro (2007), que catalogou estes estudos recentemente para

    um programa do Ministrio do Meio Ambiente (MMA), observa queos pesquisadores afirmam que essa destruio atinge nmeros supe-

    riores ao observado na Amaznia, pois os 880.000km j desmatados

    no Cerrado representam quase trs vezes a rea desmatada naquele

    bioma. No apenas esse quadro preocupante, mas tambm o ritmo de

    destruio do Cerrado adquire propores alarmantes e superiores ao

    observado, historicamente, em outras paisagens brasileiras.

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    As taxas anuais de desmatamento tambm so mais elevadasno Cerrado: entre os anos de 1970 e 1975, o desmatamento

    mdio no Cerrado foi de 40.000km2por ano 1,8 vezes a taxa

    de desmatamento da Amaznia durante o perodo 1978-1988

    (Klink & Moreira, 2002). As taxas atuais de desmatamento

    variam entre 22.000km2 e 30.000km2 por ano (Machado et

    al., 2004a), superiores quelas da Amaznia. Estas diferenas

    se devem em parte ao modo que o Cdigo Florestal trata os

    diferentes biomas brasileiros: enquanto exigido que apenas20% da rea dos estabelecimentos agrcolas sejam preserva-

    das como reserva legal no Cerrado, nas reas de oresta tro-

    pical na Amaznia esse percentual sobe para 80%. (Klink e

    Machado, 2005: 148, citados por Ribeiro, 2007)

    Outro estudo, realizado mais recentemente pela Embrapa-

    Cerrados, a Universidade Federal de Uberlndia (UFU), a UniversidadeFederal de Gois (UFG) e a Fundao de Apoio Pesquisa e ao

    Agronegcio (Fagro), por encomenda do MMA, revelou um quadro

    um pouco diferente, apresentando uma cobertura vegetal nativa de

    Cerrado maior do que os dados analisados acima. Tal diferena pode

    ser explicada pelas resolues espaciais dos satlites utilizados, mas

    resulta principalmente da incluso, nesse estudo, de aproximadamente

    28 milhes de hectares de pastagens nativas na categoria de vegetao

    nativa. Caso esse montante fosse considerado como rea antrpica,como em estudos anteriores, a porcentagem de reas com vegetao

    nativa obtida nesse trabalho seria reduzida para 46,74%. A Tabela 7

    mostra os dados ali apresentados.

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    Tabela 7. Caracterizao do bioma Cerrado

    por regio fitoecolgica agrupada

    Regio Fitoecolgica Agrupada rea (Km2) %

    Vegetao Nativa Florestal 751.943,49 36,73

    Vegetao Nativa No-Florestal 484.827,26 23,68

    reas Antrpicas 23 797.991,72 38,98

    gua 12.383,88 0,6

    Total 2.047.146,35 100,00

    Fonte: Mapas de Cobertura Vegetal dos Biomas Brasileiros (Brasil, 2006).23

    possvel constatar, independentemente do estudo analisado, uma

    situao de desmatamento acelerado do Cerrado, uma regio que con-

    siderada um Hotspot de biodiversidade,24 contribuindo para acender

    um alerta vermelho entre os ambientalistas. Na atualidade, o Cerrado

    apresenta-se, comparado com outros biomas brasileiros, em segundolugar no que se refere ao percentual de seu territrio includo em uni-

    dades de conservao de proteo integral, de uso sustentvel e terras

    indgenas, como mostra a Tabela 8.

    23 Nos 38,98% de rea antrpica, a categoria predominante a de pastagens cultiva-das, com 26,45% da rea de domnio do Cerrado.

    24 O conceito Hotspot foi criado em 1988 pelo eclogo ingls Norman Myers paraajudar os conservacionistas a definir quais as reas mais importantes para preservar a bio-diversidade na Terra. Hotspot toda rea prioritria para conservao por possuir uma ricabiodiversidade (com pelo menos 1.500 espcies endmicas de plantas) e ameaada no maisalto grau (que tenha perdido mais de 3/4 de sua vegetao original).

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    Tabela 8. Dimenso das reas protegidas

    nos principais biomas brasileiros

    Bioma rea(km2)

    Unidadesde proteointegral a,b

    Unidades deuso sustent-

    vel a,b

    Terrasindgenasa

    Cerrado 2.116.000 2,20 1,90 4,10

    FlorestaAmaznica

    (incluindoectonos24)

    4.239.000 5,70 7,70 17,70

    MataAtlntica

    1.076.000 1,90 0,11 0,15

    Pantanal 142.500 1,10 0,00 2,40

    Caatinga 736.800 0,80 0,11 0,15

    Brasil 8.534.000 3,50 3,40 8.80aValores apresentados em porcentagens da rea original do bioma.

    b

    Unidades de conservao estaduais e federais combinadas.Fonte: Ribeiro, 2007, a partir de Klink e Machado, 2005.25

    Entretanto, essa situao, quando analisada em mais detalhes, apre-

    senta aspectos menos confortveis. A maior parte dessas unidades de

    conservao (UCs) bastante recente e pouco estruturada. 75,8% dessas

    UCs se referem a unidades de conservao criadas nos ltimos dez anos,

    como esforo para compensar o quadro assustador de rpida destruio

    desse bioma (Ribeiro, 2007). Cerca de 70% da rea dessas UCs pertence categoria das UCs de proteo integral, que no admitem populaestradicionais no seu interior. Outra grande parte so reas de Proteo

    Ambiental (APAs); esta categoria, embora defina unidades de uso sus-

    25 Ectonos se referem a ecossistemas inseridos em zonas de transio entre dois oumais biomas.

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    tentvel (que mantm as propriedades privadas da rea), no se caracte-riza pela presena de populaes tradicionais, como se observa nas o-restas nacionais, reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentvel,

    que, juntas, somam apenas 0,8% das reas de unidades de conservao

    do Cerrado. Conclui-se que predomina uma estratgia de conservao

    restritiva, que separa as comunidades de seus lugares. Como o Cerrado

    possui uma trajetria histrica de ocupao humana muito mais inten-

    siva que a Amaznia, se torna mais difcil encontrar reas ainda preser-

    vadas sem a presena comunidades tradicionais, que ali habitam e usamos seus recursos por vrias geraes (iremos ver isso mais frente). Por

    isso, ganha fora a idia de que uma estratgia de expanso de criao de

    novas reas protegidas nesse bioma dever contemplar a presena dessas

    populaes, priorizando as UCs de uso sustentvel (Ribeiro, 2007).Outra constatao importante que os estudos nos levam a con-

    siderar que uma das chaves para a conservao da biodiversidade dos

    Cerrados est na poro chamada por Dias (1993) de paisagens natu-

    rais manejadas e que foram estimadas, para o ano de 1985, em 56%da rea de Cerrado Contnuo, mais de 100 milhes de hectares. Essa

    categoria corresponde ocupao tradicional do Cerrado (pastos natu-

    rais e rea de extrativismo), que vem sendo substituda ou encurralada

    pelas monoculturas modernas. Esse percentual j tinha diminudo para

    40% ao final da dcada de 1990. Hoje, as estimativas da extenso dessa

    tipologia so variadas, mas certamente o valor bem menor, em fun-

    o do avano do desmate para implantao de monoculturas e pasta-

    gens homogneas. Um trabalho da Embrapa-Cerrados estimava parao ano 2001 em apenas13% o percentual de pastagem nativa na rea do

    Cerrado Contnuo (Sano et al, 2001).

    Tanto a biodiversidade quanto a funo hidrolgica das chapadas

    vm sendo ameaadas, cada vez mais intensamente, por um modelo

    de ocupao moderno, predatrio e excludente, ancorado em enormes

    monoculturas produtoras de commodities. um processo progressivo

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    de apropriao transnacional do territrio, caracterstico dos temposde globalizao econmica, que Milton Santos chamou de globalita-

    rismo os Cerrados so o exemplo mais vivo desse fenmeno no Brasil

    (Santos, 2003 e Carvalho et al., 2000). Esse processo anda junto com

    uma expropriao camponesa sem precedentes, gerando, junto com a

    eroso gentica oriunda da perda de biodiversidade, uma eroso cultu-

    ral, de modos de vida e de apropriao da natureza, que poderiam ser a

    base para a construo de modelos sustentveis de ocupao, produo

    e gerao de riquezas na regio de domnio do Cerrado, nos quais asociobiodiversidade seria o principal trunfo e valor.

    Ocupao originria: os povos dos cerrados e seus saberesEstudos arqueolgicos registram a mais antiga ocupao no Cerrado h

    cerca de 11 mil anos, ligada ao que esses estudiosos chamam de tradi-

    o Itaparica(Barbosa e Nascimento, 1993): povos caadores e coleto-

    res que se aproveitavam da diversidade de ecossistemas e espcies teisque o Cerrado oferecia. A tradio Itaparica teve seu clmax ao redor

    de 10.000 A.P. e parece ter terminado bruscamente a partir de 8.500

    A. P. quando se iniciou uma nova tendncia para a especializao

    caa de animais de pequeno porte e coleta de moluscos (Barbosa e

    Nascimento, 1993: 168). Esta tradio, juntamente com outras duas

    (Una e Aratu/Sapuca), est associada aos grupos indgenas do grupo

    lingstico Macro J, herdeiros de uma longa tradio de povos origin-

    rios habitantes dos Cerrados (Ribeiro, 2005a).Segundo Urban (1992), existem no Brasil quatro grandes gruposlingusticos com numerosos membros espalhados por diversas reas:

    Arawak, Karib, Tupi e J. O autor esclarece que hoje se faz uma distino

    entre a famlia J propriamente dita e o chamado Macro J. Os primeiros

    representam um ramo relativamente recente, que se separou h cerca de

    3 mil anos ou mais do tronco maior dos Macro J. Este guarda relaes

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    mais distantes, datando provavelmente de uns 5 mil ou 6 mil anos, pelomenos. Com o Mapa 4, o autor mostra claramente a ligao do tronco

    Macro J com o Cerrado brasileiro.

    Toda a rede de lnguas geneticamente filiadas ao tronco

    Macro-J est concentrada na parte oriental e central do pla-

    nalto brasileiro. O grupo central dos J, cuja radiao supo-

    mos ter-se iniciado h uns 3 mil anos, est localizado entrepopulaes com relaes mais afastadas a leste e a oeste. Da

    distribuio depreende-se que esse grupo de J propriamente

    dito teria se originado em algum lugar entre as nascentes dos

    rios So Francisco e Araguaia, possivelmente nas proximida-

    des do grupo J Central, atualmente extinto, conhecido como

    Xakriab.26(Urban, 1992: 90)

    No mapeamento de Urban se destacam, dentro da famlia J, os

    grupos: Timbira (Canela, Krinkati, Pukoby, Krenj, Gavio, Krah),

    Kayap (Kubenkranken, Kubenkraoti, Mekraoti, Kokraimoro,

    Gorotire, Xikrin, Txukahame), Xerente, Karaj, Xavante, Xakriab,

    Apinay (hoje tido como do grupo Timbira), Suy, Kreen-Akarre,

    Kaingang e Xokleng. O tronco maior Macro J incluiria ainda os

    Patax, Bororo, Maxakali, Botocudo, Kamak, Kariri, Puri, Ofai, Jeik,

    Rikbats, Guat e Fulni.

    26 Na poca que o autor escreveu, imaginava esse grupo extinto. Entretanto, ele rena-sceu das cinzas e se constitui hoje, mesmo com um grau importante de mestiagem, no prin-cipal representante deste tronco nos Cerrados mineiros e detentor da maior reserva indgenado estado no municpio de Misses, na regio norte de Minas Gerais.

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    Mapa 4. Distribuio geogrfica original do tronco Macro J

    Fonte: Urban, 1992.

    N

    K3

    KREEN-AKARRE

    BORORO

    GUAT

    S.KAY

    AP*

    XAVANTE

    KAIGANG

    XOKLENG

    SUY

    RIKBAKTS

    KAYAP

    KARAJ

    APINAY

    TIMBIRA

    XERENTE

    JAIK * FULNI

    KARIRI *

    XAKIAB

    R

    MAX

    AKALI

    B

    OTOCUD

    O*

    PUR *

    PATA

    X

    KAMAK

    *

    K4K5

    K6

    K1

    K7

    T5T4 T1

    T2T3

    T6

    XERENTE

    KARAJ

    BORORO

    *

    J

    Macro-J

    possivelmente Macro-J

    extinta ou praticamente extinta

    famlia de lnguas

    classificao ainda duvidosa

    Dialetos Kayap

    K1

    K2

    K3

    K4

    K5

    K6

    K7

    Kubenkraken

    Kubenkraoti

    Mekraoti

    Kokraimoro

    Gorotire

    Xikrin

    Txukahame

    Dialetos Timbira

    T1

    T2

    T3

    T4

    T5

    T6

    Canela

    Krinkat

    Pukoby

    krenj

    Gavio

    Krah

    Lnguas Macro-J

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    Ainda segundo Ribeiro (2005a), os principais povos indgenasque habitaram os Cerrados mineiros se distribuem em trs famlias

    desse tronco lingstico: Bororo, Cariri e J (lnguas Akuen, Kayap e

    Kaingang).

    A riqueza do conhecimento desses povos no manejo dos ecossiste-

    mas exemplarmente ilustrada pela pesquisa realizada por Darrel Posey

    e Anthony Anderson (1987) com os Kayap no sul do Par regio de

    transio entre os Cerrados e a Floresta Amaznica. Esses pesquisadores

    registraram, na aldeia de Gorotire, roas com alto nvel de agrobiodi-versidade, com mdia de 58 espcies de plantas por roa. Identificaram,

    por exemplo, 17 variedades de mandioca e 33 de batata-doce, inhame

    e taioba que se distribuam no espao, de acordo com pequenas varia-

    es microclimticas. Observaram que o modo como os ndios alteram

    a estrutura das roas ao longo do tempo parece seguir um modelo que se

    baseia na prpria sucesso natural dos tipos de vegetao: das espcies de

    baixo porte e vida curta, at as espcies orestais de grande porte (hoje

    esse mtodo chamado de agroorestao). Eles distinguem e nomeiamos tipos diferentes de Cerrados: desde os campos limpos (kapt kein)at os cerrades (kapt kumernx). Nos campos de Cerrado prximos

    aldeia Gorotire aparecem ilhas (apt) de vegetao lenhosa (nos

    Cerrados, em geral a vegetao lenhosa aparece dispersa). Os pesquisa-

    dores registraram e inventariaram 120 espcies em um desses campos de

    Cerrado adensados, sendo 90 delas plantadas. Os usos eram diversos

    como: medicinal, atrativo para caa, alimento, lenha, adubo, sombra etc.

    Os pesquisadores procuraram demonstrar que, ao contrrio do que oscientistas vinham afirmando at ento, o fogo no era a nica forma de

    manejo praticada em reas de Cerrado por grupos indgenas. Os Kayap

    tm papel ativo na formao de ilhas de vegetao no Cerrado, formao

    que engloba vrios processos e etapas: preparao de pilhas de adubo

    composto com material vegetal, macerao do material aps seu apodre-

    cimento, escolha de local com alguma depresso para colocar o adubo

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    (s vezes misturado com pedaos de ninho de formiga [mrum kudj]para que no haja ataque de cupins aos plantios), plantio das primeiras

    espcies na estao seca (junho a novembro). Os Kayap reconhecem

    vrios tipos de aptconforme o tamanho, a configurao e a compo-

    sio que apresentam. Reconhecem, ainda, vrias zonas ecolgicas nosapt maiores, relacionadas com a maior ou menor incidncia da luz

    solar. A pesquisa detectou ainda que o uso do fogo nos campos Cerrados

    apresenta uma srie de sutilezas relacionadas observao, por exemplo,

    da poca em que os botes orais dos pequizeiros j esto desenvolvidose proteo dos aptcom aceiros. Ela revelou ainda que os Kayap tm

    profunda inuncia sobre a estrutura e a composio dos Cerrados quecercam a aldeia de Gorotire. Os autores afirmam:

    H indcios de antigas aldeias Kayap espalhadas por toda

    imensa rea entre os rios Araguaia e Tapajs, e provvel

    que outros povos como os Xavante, Canela, Gavio, Xifrine Apinaj tenham praticado formas semelhantes de manejo

    em reas de Cerrado, aumentando assim a inuncia indgena

    nesse ambiente. [...] Tal constatao nos leva a uma conclu-

    so: muitos dos ecossistemas tropicais at agora considerados

    naturais podem ter sido, de fato, profundamente moldados

    por populaes indgenas. (Anderson e Posey, 1987: 50)

    O conhecimento tradicional dos Khra, outro povo do tronco

    Macro J, sobre o Cerrado tem sido pesquisado. Este povo vive hoje

    numa reserva de 350.000ha no estado de Tocantins, a maior rea de

    Cerrado contnuo conservado do Brasil. Levantamento recente, reali-

    zado por um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de So

    Paulo (Unifesf), identificou 138 plantas medicinais utilizadas pelos

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    Khra. De acordo com matria publicada na Folha de S. Paulo, em 13 deagosto de 2002, o estudo, iniciado em 1999, estava sendo considerado

    modelo por contemplar o pagamento de royalties ao povo indgena.

    Entretanto, ele foi paralisado em 2001, pela dificuldade de definir quem

    poderia atuar como representante legal dos ndios e pela existncia de

    um conito legal entre o funcionrio da Funai e a equipe de pesquisa-dores. O episdio demonstra o potencial de conito que permeia hoje aquesto da biodiversidade, propulsora de um confronto entre o conhe-

    cimento tradicional e os chamados direitos de propriedade intelectual.

    Camponeses: os herdeiros dos saberesO conhecimento dos povos indgenas do tronco Macro J foi transmi-

    tido, em grande parte, para a sociedade sertaneja27que se alojou nos

    Cerrados. Ribeiro (1997) realizou uma pesquisa sobe o relato dos via-jantes pelo serto mineiro28na primeira metade do sculo XIX e afirma

    no final de seu texto:

    Esses estudos arqueolgicos apontam, assim, uma linha de

    transmisso de traos culturais entre antigas populaes

    27 Sobre a adoo de conhecimentos indgenas e sua mistura com os oriundos da Eu-ropa nos sertes da capitania de So Paulo por volta do Sculo XVII, nos fala Srgio Buarquede Holanda: Prticas indgenas, que tinham todos os requisitos para alarmar ou escandalizaros europeus, encontraram, por outro lado, acolhida inesperadamente favorvel... No faltam,

    finalmente, aspectos de nossa medicina rstica e caseira que dificilmente se poderiam filiar, seja atradies europias, seja a hbitos indgenas. Aspectos surgidos mais provavelmente das prpriascircunstncias que presidiram ao amlgama desses hbitos e tradies(Buarque de Holanda,1994: 78).

    28 O serto, marcante na obra de Guimares Rosa, no tem uma denio precisa,estando relacionado noo de interior, desconhecido, pouco habitado, locais distantes.O serto mineiro inclui predominantemente reas de Cerrado, mas tambm pores de caat-inga e as transies entre um e outro presentes na regio norte de Minas Gerais (Ribeiro,1997).

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    do Cerrado e os povos indgenas ali encontrados pelosportugueses, principalmente no que se refere ao uso dos

    recursos naturais daquele bioma. Nesse processo, no s

    se adaptaram quele meio ambiente, como tambm atuam

    sobre ele, transformando-o por meio de diversas tcnicas

    de manejo. Conforme procurei ressaltar, parte desse patri-

    mnio cultural foi incorporado pelos sertanejos, sucesso-

    res daqueles povos indgenas na rea do Cerrado. (Ribeiro,

    1997: 31)

    Esse patrimnio cultural sertanejo, apontado por Ribeiro, foiabsorvido, de uma forma ou de outra, pelos dois principais protagonis-

    tas do perodo moderno-colonial de ocupao do serto: o latifndio

    do gado e as comunidades camponesas. Estas ltimas, em funo da

    necessidade e de uma relao menos mercantil com os Cerrados (sis-

    temas baseados na subsistncia), conseguiram manter e talvez ampliaro conhecimento indgena de uso de plantas e animais do Cerrado, con-

    servando e ao mesmo tempo recriando as prticas extrativistas oriun-

    das dos povos originrios. Diversos modos de apropriao camponesa

    da natureza foram sendo criados e recriados ao longo dos sculos, for-

    jando identidades camponesas tambm diferenciadas no mbito do

    Cerrado como: geraizeiros (Norte de Minas), geraizenses (Gerais de

    Balsas/MA), retireiros (reas alagadas do Araguaia/MT), barranquei-

    ros e vazanteiros da beira e das ilhas do So Francisco (MG), quebra-deiras de coco (Zona dos Cocais/MA, PI e TO), pantaneiros (MT e

    MS), camponeses dos vos (sul do MA) e outras denominaes mais

    gerais apontadas por Arruda e Diegues (2001), como: varjeiros e ribei-

    rinhos (ao longo dos rios So Francisco, Grande e Paran), caipiras

    (Tringulo Mineiro e So Paulo) e sertanejos (Norte de Minas, Bahia,

    Maranho e Piau).

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    Essas populaes desenvolveram, ao longo dos sculos, modos devida com uma relao orgnica com os ecossistemas,29baseados na sua

    produo biolgica primria (extrativismo, caa, pesca) e em estratgias

    agropecurias que otimizavam as potencialidades do ambiente de trans-

    formar energia solar em alimentos, carnes e fibras, utilizando de forma

    heterognea e diversificada (Toledo, 1996) as diferentes unidades da pai-

    sagem do Cerrado: agricultura de encosta e fundo de vale, solta de gado

    e extrativismo na chapada. Nas reas alagadas, como a plancie do rio

    Araguaia, se desenvolveu um sistema que articula caa, extrativismo emanejo do gado que, como no Pantanal, se reveza entre as reas baixa

    (plancie alagada) e alta (chapadas intermedirias), aproveitando o movi-

    mento das guas que fertilizam a plancie e esverdecem o capim, para

    ser pastejado na estao seca, quando se mantm verde, ao contrrio do

    capim da chapada. Um uxo produtivo e de sustentao econmica quese ancora no prprio uxo temporal-espacial-ecolgico da natureza.

    Como bem ressalta Escobar (2000), no chamado Terceiro Mundo,

    em especial no seu espao rural, o povo segue construindo e readaptandoseus modelos locais, que carregam conhecimentos e vises de mundo

    diferenciados da ideologia desenvolvimentist