livreto do projeto juquery

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JUQUERY: PASSADO , PRESENTE E FUTURO DE UMA CIDADE. VINÍCIUS MIGUEL COSTA WWW.UNIVERSIDADENOJUQUERY.COM.BR

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Trabalho de pesquisa do jornalista Vinicius Miguel Costa, sob coordenação de Francisco Daniel Celeguim de Morais

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JuquerY:PAssAdo, Presente e

futuro de umA cidAde.vinÍcius miGuel costA

WWW.UNIVERSIDADENOJUQUERY.COM.BR

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AUTOR: COORDENAÇÃO:COLABORAÇÃO:

DIAGRAMAÇÃO:

vinÍcius miGuel costA

frAncisco dAniel celeGuim de morAis (KiKo)fernAndA Gomes de sá, Adenilson José duArte, ricArdo BArreto ferreirA filho e mArcus BrAndino celeGuim de morAis

fernAndo Bertolo

WWW.UNIVERSIDADENOJUQUERY.COM.BR

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Prefácio

Nossa cidade já foi um centro mundial de pesquisa e desenvolvimento cien-tífico. No final do século XIX e início do século XX, o Complexo Hospitalar do Juquery, concebido pelo dr. Francisco Franco da Rocha, reunia o que havia de mais moderno na ciência médica da época.

Essa instituição, de tão poderosa e importante, mudou a história da nossa cidade. Quantos de nós não ouviam a história de seus pais, avós ou bisavós começando com o dia no qual eles decidiram deixar suas terras natais para virem para cá, trabalhar no Juquery?

Assim como impulsionou nosso desenvolvimento, sua decadência repre-sentou um grande revés para a cidade. Durante as últimas décadas, assistimos o desmonte desse patrimônio, a chegada de equipamentos prisionais ao mesmo tempo em que o hospital ia encerrando serviços. O incêndio do prédio central, em 2005, foi o ponto mais baixo desse triste desmonte.

O Juquery, no século XIX, era um exemplo de como o Estado é capaz de transformar a realidade de uma região. E acreditamos que hoje ele pode voltar a ser. São inúmeros os exemplos de intervenções nas quais o governo, atuando em conjunto com todas as esferas, pode reorientar o crescimento de um povo e uma cidade.

Nesse sentido, perseguimos e confiamos na recuperação do Complexo Juquery, para que possa servir novamente ao progresso de seus verdadeiros donos, aqueles que certamente têm um pedacinho de si em cada canto do lugar: os franco-rochenses. Vamos em frente, vamos nos reencontrar com o nosso destino.

Kiko Celeguim

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Apresentação

Introdução

Franco da Rocha: onde loucura é cidadania

Vocação para cuidar

Juquery: ’Aos loucos, o hospício!’

Uma criação de Franco da Rocha e Ramos de Azevedo

Evolução e decadência populacional

Partindo e repartindo

Nosso sonho. Por que uma Universidade Federal?

Referências

Índice

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Nosso objetivo é apresentar a realidade do Complexo Hospitalar do Juquery, em Franco da Rocha, na Grande São Paulo, considerando que revitalizar espaços de convivência social histórica colabora para a criação de políticas públicas de crescimento regional e contribui para o desenvolvimento do país.

O texto está baseado principalmente em teses de pós-graduação e pesquisa de campo junto à população do município de Franco da Rocha, funcionários do hospital e sítios de insti-tuições e órgãos públicos na internet.

Os depoimentos recolhidos foram mesclados ao texto sem constar aspas ou identificar os entrevistados, para sugerir ao trabalho um caráter mais intenso de impar-cialidade, além de facilitar a leitura.

Os títulos de teses, livros e endereços eletrônicos pesquisados constam de um pequeno referencial no final do relatório para a conferência do leitor.

APresentAção

Complexo Hospitalar do Juquery, patrimônio histórico em Franco da Rocha

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Maluquice. Doideira. Esquisitice. Piração. Alucinação. Demência. Paranoia. Psicose. Esquizofrenia. Não importa a classi-ficação, a loucura é um fato da humanidade desde sempre. E o tratamento dado a ela também. Cada época criou um método para enfrentá-la. Hoje, com os avanços científicos, os medicamentos chamados de psicofárma-cos combatem vários transtornos mentais, praticamente sem efeitos colaterais - e com sucesso garantido. E facilitam o cotidiano de pacientes, familiares e profissionais de saúde - o que desmistificou anos, décadas e séculos de preconceito, rejeição e maus tratos aos doentes mentais, reintegrando--os ao sistema produtivo, permitindo-lhes contribuir com a sociedade.

Mas há apenas 20 anos este cená-rio era impensável. O ‘encarceramento’ de pessoas era uma prática comum, e os métodos terapêuticos utilizados nos surtos de agressividade causavam arrepio no mais frio dos humanos. A camisa de força e o choque elétrico talvez sejam os mais propalados no imaginário coletivo. Principalmente porque estes instrumen-tos médicos foram usados em práticas de tortura em regimes autoritários, tanto aqui quanto em outros países, causando náuseas

quando se pronunciavam palavras como hospício ou manicômio, instituições de saúde (públicas ou privadas) transformadas em verdadeiros locais de suplício.

No Brasil, entre estes órgãos públicos está o Complexo Hospitalar do Juquery, no município de Franco da Rocha, na Grande São Paulo - um lugar hoje praticamente abandonado (que guarda a memória de homens e mulheres especiais, já esquecidos no tempo), mas merecedor de um olhar atento por parte da sociedade civil e do poder público.

Primeiramente, porque a construção física do hospital e a sua manutenção sempre foram públicas (governo esta-dual), e assim todo e qualquer problema e/ou solução perpassa (ou deveria perpassar) por decisões de caráter público, de iniciativa coletiva; depois, porque a histórica decisão governamental de construí-lo teve como consequência a criação de um município, onde evidentemente vivem hoje cidadãos que merecem respeito e atenção; e por último, porque os prédios que compõem o complexo hospitalar formam um patrimô-nio cultural singular na história brasileira, sem que a maioria do povo do Brasil - incluindo parte dos moradores jovens de

introdução

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Franco da Rocha, tenha sequer noção de sua existência e importância.

Por isso, tornar pública sua história e sua realidade atual significa comprometimento político com o cidadão brasileiro, com os funcionários do hospital e com o povo de Franco da Rocha, que sofre as consequências da reorganização do hospital.

Para entender a dimensão do Juquery para a saúde pública do país - e sua rela-ção com o desenvolvimento do entorno, é imprescindível rever a história da institui-ção – desde sua fundação até a atualidade

- e então relacioná-la à forma como foi tratada com as transformações ocorridas no sistema de tratamento da saúde mental dos últimos 20 anos.

Contudo, abrimos este documento com um panorama histórico, social e econô-mico de Franco da Rocha, com o objetivo de colocar o leitor em meio à realidade da região onde se encontra hoje o hospital, até para melhor entender porque a instituição pode e deve cumprir uma missão social, econômica e política mais incisiva com a população local.

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A cidade de Franco da Rocha é um dos 39 municípios que formam a região metro-politana de São Paulo. Está localizada na sub-região norte que, em sua totalidade, possui cerca de 518 mil habitantes, ou seja, 2,6% da população metropolitana. A soma dos habi-tantes dos municípios de Franco da Rocha e

frAnco dA rochA: onde loucurA é cidAdAniA

O Edifício Central do Juquery, atingido por incêndio em 2005

Francisco Morato, os mais populosos, atinge pouco mais de 286 mil pessoas, demonstrando sua alta concentração demográfica.

Faz parte da sub-bacia hidrográfica Juqueri-Cantareira, responsável por 56,70% do abastecimento de água da Grande São Paulo, e compõe a bacia do Alto Tietê.

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O clima é úmido, sem estação seca e com verão quente e temperatura anual em torno de 20ºC. O relevo é de mar de morros, que caracteriza toda a região, formando uma espécie de ‘meia laranja’.

Franco da Rocha faz divisa com os muni-cípios de Caieiras, Francisco Morato, Cajamar, Mairiporã, Campo Limpo Paulista, Jundiaí e Atibaia. Segundo o IBGE, são 131.604 habi-tantes em 134 km², perdendo em população somente para Francisco Morato, com 154.472 habitantes, espalhados em 49,345 km². Em relação a território, Franco da Rocha perde para Mairiporã, que detém 320,930 km² de terreno, mas que registrava uma população de 80.956 habitantes em 2010.

O PIB per capita de Franco da Rocha, ainda segundo o IBGE, é de R$ 13.022,47 (valor intermediário na comparação com os municípios da região – Cajamar tem o maior da região e Francisco Morato o menor).

Franco da Rocha está a 45 km do centro da capital paulista (25 km pela linha férrea). Mas estas rodovias não oferecem acesso direto à cidade, sendo sempre necessário, por isso, utilizar estradas secundárias. O acesso ao município melhorou nos últimos anos com a construção do trecho oeste do Rodoanel, que, no entanto, é pedagiado.

Historicamente, o principal meio de acesso à região são os trens da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, que utiliza a malha da antiga Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, que serve para o transporte da população entre vários municípios e a capital paulista.

Os municípios vizinhos de Francisco Morato e Caieiras foram, no passado, distri-tos de Franco da Rocha. Caieiras sofreu um tipo de desenvolvimento diferenciado devido à implantação da empresa Melhoramentos em seu território; na verdade, assim como Franco da Rocha se desenvolveu do hospital, Caieiras cresceu deste empreendimento.

O município de Franco da Rocha é pobre, com uma economia baseada no comér-cio e nas remunerações e aposentadorias dos funcionários de órgãos públicos, como do próprio Juquery - além da economia gerada com a condição de ‘dormitório’, com a maio-ria da população saindo de dia para trabalhar em outras localidades, principalmente na capital paulista.

É importante ressaltar que, ainda, em toda a região de Franco da Rocha, o fato de grande parte do território pertencer ao Estado ou a grandes empresas contribuiu para restringir o desenvolvimento deste local. Grandes áreas particulares, em espe-cial os terrenos da Cia Melhoramentos em Caieiras e a propriedade da família Abdalla em Cajamar, grandes extensões de terra protegidas pela legislação ambiental, como a Área de Proteção aos Mananciais que, em Mairiporã por exemplo repre-senta 80% de seu território, o Parque do Juquery, onde está o Complexo Hospitalar do Juquery em Franco da Rocha; e a Área de Proteção Ambiental (APA) de Cajamar impediram que as áreas urbanas pudes-sem ser expandidas.

Franco da Rocha detém um dos mais baixos números do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado – 0,778. A cidade não tem nem mesmo espaços de lazer que aten-dam às comunidades, com a população jovem sendo obrigada a buscar nas outras cidades da região alguma forma de recreação.

Na cidade existem 27 escolas estaduais e 38 municipais, além de creches e uma escola de ensino técnico, a ETEC, inaugurada em 2005. Somente na rede municipal estudam cerca de 10 mil crianças e adolescentes. Saúde é um ponto frágil: não há hospitais públicos na cidade a não ser o recém-inaugurado Hospital Estadual que, entretanto, atua com somente 10% de sua capacidade, além de ser um hospital de ‘portas fechadas’.

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O município sempre foi dependente do atendimento oferecido pelo Juquery, e sofre com o encerramento das atividades do hospital geral, ocorrido em 2010.

O planejamento regional de saúde da última década apontou a necessidade de leitos especializados que servissem de referência aos municípios da região que não dispunham desses recursos. Foi então criado o Hospital Estadual de Francisco Morato e, posteriormente, o Hospital Estadual de Franco da Rocha, que se cons-tituem como referências secundárias e terciárias às redes de saúde municipais. Ainda foi criado o Hospital Estadual de Caieiras, que serve de referência em obstetrícia, também para o município de Franco da Rocha.

Por outro lado, não houve um inves-timento, por parte dos municípios, no desenvolvimento da assistência à atenção básica, ponto vital de toda a rede de atenção à saúde. Em Franco da Rocha, entretanto, há somente um pronto atendimento, e os casos graves são atendidos em hospitais da região ou na capital. Há alguns anos, por exemplo, não são realizados partos, devido à falta de maternidade, o que nos força a constatar que não nascem mais franco--rochenses (nascidas em outros municípios, as crianças são registradas nestes locais). A cidade, que era referência em saúde, passou a depender de outros municípios, certamente um duro golpe na já frágil auto-estima do franco-rochense.

A reorganização do Juquery, entretanto, foi consequência direta da mudança do modelo de assistência em saúde mental, que passou da fase de isolamento, segregação e anulação dos direi-tos do indivíduo como membro da sociedade para a fase do desenvolvimento de ações de base comunitária e de intervenções de reabilitação psicossocial, mudando a concepção até então vigente da internação de longa permanência.

Neste contexto, um dos antigos pavilhões do Juquery foi inteiramente reformado e trans-formado no Centro de Atenção Integral em Saúde Mental, CAISM, que oferece atualmente serviços de atenção em saúde mental, nos novos moldes preconizados de assistência.

Nos últimos cinco anos, muitos pacien-tes crônicos do Juquery foram transferidos para outros hospitais, seguindo a linha da nova política de saúde mental, segundo a qual o paciente deve ficar o mais próximo possível de suas referências familiares, em Instituições que oferecem cuidados compa-tíveis com os diagnósticos apresentados com, no máximo, 40 pacientes cada, o que possibilita um cuidado mais específico e adequado para cada caso. Por outro lado alguns foram devolvidos para serem cuida-dos por suas famílias, após trabalho técnico multidisciplinar realizado com ambas as partes (pacientes e famílias).

Curiosamente, as gerações de franco-rochen-ses dos últimos 20 anos praticamente desconhecem a relação da cidade com o Juquery.

Nos últimos anos, a cidade assumiu a imagem de um município violento, devido principalmente à instalação de penitenciárias e cadeias em seu perímetro urbano, com suas rebeliões tornando-se espetáculos midiáticos escandalosos. A presença destes estabeleci-mentos de correção também atraíram famílias de detentos para a região, completando o processo migratório que surgiu nos anos 1970, que fez a cidade inchar e explodir a especula-ção imobiliária – efeito que também atingiu outros municípios da Grande São Paulo.

Na verdade, em Franco da Rocha, sempre houve abertura de loteamentos populares para atender à população de baixo poder aquisitivo, ação que ocorreu de forma desordenada, seja à margem de rios ou nas encostas dos morros da cidade e também à margem da ferrovia, além do fenômeno ocorrer também em áreas invadidas e de risco, tanto privadas quanto públicas.

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São construções precárias depositadas nos morros do entorno da linha férrea que marcaram a estética da cidade desde os anos 1970/1980, e que também caracterizam a maioria dos municípios da região.

Vocação para cuidar

Não há como conhecer o Hospital do Juquery sem entender Franco da Rocha, assim como é impossível conhecer a cidade sem entender o hospício. O segundo nasceu das necessidades do primeiro, mas, com o tempo, os dois se complementaram e construíram um destino único – que perpassava pela total dependência histórica da cidade, sem estru-tura, pelos serviços do hospital. Concebido para ser autosuficiente, produzindo desde as roupas dos pacientes e até gerando a própria energia, alguns funcionários iam além do uso da estrutura de atendimento médico aos recursos de alimentação e até alvena-ria para construção de moradias. Para estes moradores, descendentes das famílias que se instalaram ali para trabalhar no Juquery, a cidade ainda tem uma forte ligação com o Hospital, que não deve ser esquecida.

A região onde está Franco da Rocha era apenas um local de passagem de tropei-ros até o início do século XIX. Quando a ferrovia Santos-Jundiaí chegou à região, em 1889, o local era praticamente inabitado, com pequenas fazendas e olarias. O núcleo urbano firmou-se somente com a instalação do Hospital Psiquiátrico do Juquery, a partir de 1898. O município se desenvolveu em decorrência da expansão do hospital (que crescia no atendimento aos doentes mentais no estado de São Paulo) e a partir da chegada dos funcionários do Juquery, que se instala-ram na região, inicialmente no entorno da estação de trem.

Havia também um pequeno núcleo de moradores (funcionários do empreendimento) no entorno da indústria de extração de pedras Camboja & Sestini, que ficou em atividade até 1917, quando o governo do estado comprou a propriedade, com todas as benfeitorias, para a ampliação do hospital.

Ao todo, o Complexo Hospitalar do Juquery foi implantado em terras adquiri-das pelo Estado de São Paulo entre 1895 e 1917, compradas à medida da necessidade de investimento e ampliação do órgão, formando uma enorme fazenda pública, a Fazenda Juquery.

Com a aquisição da Camboja & Sestini, o território do Juquery totalizou 2.983,425 ha. – perímetro que ficaria intacto até 1955, quando começou o parcelamento do Juquery, processo que se estendeu até 1993. Os limites da instituição ficaram definidos então pela ferrovia, o curso de rios, cercas e valas, e propriedades particulares, como as terras da Companhia Melhoramentos, no distrito de Caieiras.

Juquery: ’Aos loucos, o hospício!’

O Complexo Hospitalar do Juquery é uma criação da reinvenção do Brasil no século XIX. Na época, éramos uma nação exótica aos olhos do mundo desenvolvido: um enorme território ainda escravocrata, com um imperador descendente da aristocracia europeia que não detinha um império como as grandes nações - Inglaterra ou França, e que estava em meio a um sem número de colônias conquistando sua independência.

As pressões políticas internas clama-vam por uma modernização do país, por um controle político maior da nação, que deveria aproximar sua realidade dos

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regimes republicanos que se instituíam na Europa do período, com uma rigorosa legislação, com medidas de saneamento urbano e moral – em que se criariam instituições como o hospício, a peniten-ciária e as casas de correção para proteger as cidades dos desordeiros, como loucos, prostitutas, bêbados, entre outros, cons-truindo uma prática disciplinar com interesses políticos e econômicos por toda uma época.

A realidade dos doentes mentais das camadas pobres, que perambulavam livremente pelas ruas do Brasil, ou viviam trancafiados nos porões das Santas Casas de Misericórdia, logo estaria na mira destes interesses internos. Ao contrário dos loucos ricos, sempre escondidos por suas famílias em seus enormes casarões, longe dos olhares de curiosos.

Ao mesmo tempo, era fundada a Socie-dade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1829, que inspirada nos ideais revolucio-nários de médicos franceses como Pinel ou Esquirol, propôs novas formas de assistência aos doentes mentais, em que o tratamento estava baseado na instituição dos manicô-mios, um local apropriado para o cuidado destes pacientes (‘aos loucos, o hospício!’, era o lema da sociedade de medicina).

Como consequência da mobilização de médicos como Teixeira Brandão e Ulysses Pernambucano, entre outros, o imperador assina o decreto de criação do primeiro hospí-cio do Brasil em 1841, o Hospital D. Pedro II, no Rio de Janeiro, inaugurado em 1852 (até o início do século XX, foram criados mais de 10 hospitais psiquiátricos no país, entre eles o Juquery. A crônica jornalística da época desta-cava que o imperador se sensibilizou com os gritos dos loucos que ouvia do palácio, vindos da Santa Casa, e assinou o decreto).

Uma criação de Franco da Rocha e Ramos de Azevedo

O Complexo Hospitalar do Juquery não foi o primeiro hospício de São Paulo. Havia o Asilo dos Alienados, inaugurado em 1852, no centro da capital paulista, depois transferido para a Chácara Taba-tinguera.

As más condições de funcionamento do hospital, a influência do desenvolvimento da medicina na Europa – com a psiquiatria moral, e a superlotação forçaram a criação de outro espaço para atender aos doentes mentais.

O mé d i c o Fr a nc o d a R o c h a , diretor clínico do asilo, foi designado para a criação de um novo hospital, já idealizado como modelo de tratamento.

Um dos jardins internos, tendo ao fundo o prédio da antiga padaria

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Seria implantado um novo modelo de asilo, inspirado no chamado alienismo científico, em que a loucura passaria a ser tratada cientificamente e não mais sob os auspícios de religiosos, e tendo a psiquiatria como uma especialidade médica necessária, diferentemente do período anterior, em que o doente mental era encarcerado em cadeias e prisões - como um delinquente comum.

A implantação do Juquery foi base-ada nas propostas elaboradas durante o Congresso Internacional de Paris, em 1889, que estabelecia o sistema asilar open door em colônias agrícolas como novo modelo de atendimento a doentes mentais – um prédio central, rodeado com grandes áreas destinadas ao trabalho com agricultura, a chamada laborterapia (que atendia à reali-dade do Brasil da época, ainda de economia agrária), oferecendo liberdade e trabalho.

Além disso, o novo hospital possibilitaria a transformação do próprio sistema de trata-mento psiquiátrico - de micro à macro escala, do aposento à unidade pavilhonar, separada por áreas ajardinadas, de aspecto alegre e sadio, ao contrário dos velhos conventos que atendiam a muitos destes pacientes.

Os prédios do Juquery seriam então pensados à luz das prescrições médicas que se desenvolviam na Europa, para atender ao novo sistema de tratamento aos doentes mentais.

Dois projetos foram desenvolvidos inicialmente. O primeiro elaborado por um arquiteto e engenheiro, em 1892, e outro pela Superintendência de Obras Públicas do Estado de São Paulo, que não foram aceitos por não atenderem às neces-sidades do Dr. Franco da Rocha.

Mas, em 1895, começou a construção do novo asilo psiquiátrico do estado de São Paulo, em uma área montanhosa na periferia da capital paulista, entre a Serra da Cantareira e a Serra do Botujuru - entre São Paulo e Jundiaí.

A região, com clima agradável e abun-dância de água e com rio para escoar o esgoto, foi imprescindível para o hospital devido à presença, desde 1867, da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, a primeira ferrovia paulista, que permitia a fácil locomoção entre a região e São Paulo.

O terreno satisfazia as necessidades da obra, com excelente condição topográfica, território pouco acidentado, com preço baixo e pratica-mente prescindia de terraplanagem, além do espaço abundante para a instalação da colônia agrícola que tanto caracterizaria o Juquery.

À frente do projeto e da obra estava o arqui-teto/engenheiro Ramos de Azevedo, um dos maiores profissionais da área na época, respon-sável pela construção do Teatro Municipal de São Paulo, e que faria do Asilo de Tratamento e da Colônia Agrícola pérolas arquitetônicas incomparáveis no Brasil e na América Latina.

Preocupado com a higiene e a disciplina dos asilados, Ramos de Azevedo se inspi-rou em projetos de instituições hospitalares europeias, como o Asilo Saint-Anne, em Paris, e o Asilo-Colônia de Alt-Scherbitz, perto de Leipzig, na Alemanha.

O hospital central do Juquery muito se assemelha ao asilo francês, com sua simetria de blocos centrais administrativos e de serviços, na concepção dos pavilhões em semicírculos, com distribuição de celas fortes para apri-sionamento de ‘agitados’, com a presença de uma torre central para vigiá-los. E a colônia--agrícola foi criada nos princípios do sistema asilar do modelo alemão, próximo ao hospício, sem luxo e com muito espaço para o desen-volvimento da agricultura.

A diferença entre eles está no uso do espaço e no requinte do detalhe arquite-tônico no estilo do ecletismo do século XIX, uma proeza de Ramos de Azevedo, que captou de forma profunda as ideias de Franco da Rocha, como também recorda a arquiteta Iná Rosa.

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Ele criou um projeto de qualidade e o desenvolveu também de forma excepcio-nal, com os espaços externos dos edifícios recebendo um tratamento de fachada especial, com uma vegetação exuberante, arborização e jardim, dando uma visível harmonia ao conjunto do hospital central.

Os espaços internos dos pavilhões são simples, mas foram construídos com certa acuidade, principalmente os setores adminis-trativos. O sistema rígido assistencial estava presente nestes locais, seja nas grandes enfer-marias, para facilitar a vigilância, ou nos pátios internos, murados para o confinamento, além das janelas gradeadas dos pavilhões. Assim, o caráter de prisão está presente, que fazia parte do regulamento do lugar.

Por isso, até a localização espacial do asilo de tratamento e da colônia-agrícola foram

pensadas a partir de sua função, colocados nas terras altas, de frente para a ferrovia.

O primeiro era formado por um conjunto de blocos simétricos, com duas alas de edifícios: uma masculina, à direita, outra feminina, à esquerda – distribuídos nas laterais, com quatro pavilhões-dormitórios de cada lado, ligados por galerias entremea-dos por jardins.

Além disso, havia dois pavilhões para ‘agitados’, em forma semicircular, e também foram construídos anexos aos pavilhões-dormitórios, com celas e salas para hidroterapia. Este conjunto se destacou como a fachada principal do Juquery e foi implantado perto da estação de trem, devido às suas atribuições administrativas - inclusive porque aquele era o lugar em que o doente estabelecia seu contato inicial com a reali-

A casa do Dr. Franco da Rocha, hoje transformada em museu, que está fechado desde a década de 80

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dade hospitalar, permanecendo ali somente os pacientes que necessitavam de cuidados e vigilância especiais.

Neste espaço, seguindo o projeto de Franco da Rocha, foram iniciadas as planta-ções de cereais e hortaliças, além da criação de galinhas e gado – a fim de colaborar com o tratamento e diminuir os gastos públicos com a instituição.

Já a colônia, de características arquite-tônicas mais simples, estava ligada a outro estágio do tratamento, com sua terapia de trabalhos agrícolas para pacientes do sexo masculino em estado crônico (que até teve como meta a produção de gêneros agrícolas para consumo interno do hospital), por isso foi implantado até perto do asilo, mas longe da estação ferroviária.

A mesma organização espacial de pavi-lhões foi adotada também nas outras cinco colônias construídas durante a adminis-tração de Franco da Rocha, que tinha o objetivo de separar os pacientes por casos clínicos e também por sexo.

Em 1898, preparado para atender 800 doentes (a previsão de Franco da Rocha é de que o local estaria superlotado em pouquís-simos anos), a 1ª colônia do Juquery, a masculina, foi implantada com 80 pacientes – esta é considerada a data inaugural do Complexo Hospitalar do Juquery.

No total, existiram oito colônias no Juquery. A 1ª colônia feminina só seria construída em 1939, junto ao hospital central. Composta por dez pequenos pavilhões, dois deles foram destinados à administração, situados nas extremidades, e os demais serviram de dormitórios para pacientes, com quatro distribuídos em cada lado do conjunto.

A 2ª colônia foi construída em 1907, a 3ª em 1912 e as 4ª e 5ª colônias masculinas, de 1916, seguiram o padrão arquitetônico da obra de Ramos de Azevedo, com sistema

pavilhonar e elementos decorativos, apesar de não serem projetos do arquiteto.

A 6ª colônia é de 1932. E, em 1942, foram inauguradas a 8ª colônia masculina, a colônia feminina e o 8º pavilhão feminino.

Desde o início, o hospício foi desenvol-vido para ser autossuficiente, e suprir a maior parte de suas necessidades, podendo fabricar de colchões a sapatos, roupas, e até medica-mentos – que foram deixados de lado com a implantação dos laboratórios multinacionais no país. O hospital gerava inclusive a própria energia elétrica, por meio de um gerador cons-truído em um dos afluentes do Rio Juquery, cuja estrutura ainda existe.

A produção ficava nas mãos de pacien-tes e funcionários, e era possível encontrar profissionais como pedreiros, alfaiates, carpinteiros, chumbadores, mecânicos, serralheiros, pintores, soldadores etc. entre seus funcionários, além de, evidentemente, médicos e enfermeiros.

Até pelo menos os anos de 1940, o Juquery foi o maior hospício da América do Sul, e servia de modelo para a implan-tação de muitos outros na região. Era uma verdadeira cidadela por onde circulavam quase 16 mil pessoas diariamente na virada dos anos 1960/1970, com uma dimensão de organização que sempre esteve à frente de sua invenção, o município de Franco da Rocha, criado para abrigar as famílias de funcionários e de familiares de doentes que acabavam se mudando para a região para ficarem perto dos internos.

Este período foi marcado pelas duas principais administrações dos tempos áureos do Juquery, a do próprio médico Franco da Rocha e a de seu substituto, a partir de 1924, o também psiquiatra Antônio Carlos Pacheco e Silva, que continuou o trabalho do antecessor – com a ampliação das unida-des e a modernização dos equipamentos; na verdade, foi nestas administrações que

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o Juquery se tornou um canteiro de obras, determinando toda sua organização espacial.

Quando Franco da Rocha se aposentou, em 1923, o hospício contava com cinco colô-nias, a moradia do diretor, um laboratório de anatomia-patológica, escola de enfermagem e o pavilhão asilo. E o cultivo agrícola, a olaria, a criação de animais e o matadouro se desen-volviam vertiginosamente.

Foi Pacheco e Silva que adquiriu novos equipamentos e tornou possível a abertura do hospital para pesquisa a respeito das doenças nervosas. Além de criar a seção de ergoterapia, o departamento de realização de obras, serviços de conservação, abas-tecimento de energia e água, transportes e oficinas, deixando o Juquery indepen-dente do departamento de obras públicas do estado (DOP).

Sob a direção do engenheiro Ralph Pompeu de Toledo, que trabalhou no hospi-tal até o final dos anos 1950, a seção ficou responsável por projetos e obras da insti-tuição, como a construção do manicômio judiciário, inaugurado em 1933.

Também foi Pacheco e Silva o responsável pela instalação de uma biblioteca no hospi-tal central, onde foram reunidos tratados, monografias, revistas médicas e livros sobre psiquiatria. Além disto, investiu no laboratório de anatomia, contratando o anátomo-pato-logista russo Constantino Tretákoff, que encaminhou pesquisas em neuropsiquiatria. O laboratório produziu inúmeros traba-lhos científicos, que resultaram na criação da revista interna Memórias do Hospital de Juquery, publicada até o fim dos anos 1980.

Pacheco e Silva também implantou outras clínicas especializadas no local, inovando o atendimento, seja para os pacientes, seja para a população da cidade, que começou a usufruir destes serviços. Foi crítico do atendimento a doentes de outros estados, como Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais, e também da centra-

lização do sistema de atendimento a doentes mentais, propondo a criação de hospitais regionais, dando aos pacientes a oportuni-dade de ficarem perto de suas famílias, além de facilitar o tratamento preventivo.

Mas o cenário foi se alterando devido à superpopulação, à inadequação das práticas de atendimento médico durante o século XX, a escassez de verba e a falta de manu-tenção dos prédios.

Outro médico que marcou a história do hospital e da cidade foi o Dr. Osório César. Figura ímpar, César era, além de psiquiatra, músico e pintor. Ligado ao movimento moder-nista (foi casado com Tarsila do Amaral), ele criou e estimulou tratamentos baseados na arte, dando origem a um supreendente acervo de obras criadas pelos pacientes.

Militante do Partido Comunista, Osório César esteve em Moscou nos anos 50 e chegou a se corresponder com o próprio Dr. Freud sobre os resultados de suas experiências de arte terapia. O museu do Hospital (fechado para visitação há quase 20 anos) fica na casa que foi do Dr. Franco da Rocha, mas leva seu nome. Quando morreu, doou sua vasta biblioteca para o município, formando a base da atual Biblioteca Municipal, na qual ainda podem ser encontrados livros com dedicatórias, anotações e cartões postais que lhe foram enviados por Tarsila do Amaral. A ligação do Dr. Osório com a cidade é tão forte que sua sepultura permanece até hoje em Franco da Rocha.

Evolução e decadência populacional

Em 1901, já eram 871 pacientes inter-nados no Juquery, quando foi inaugurado o hospital central. Em 1911, registravam-se

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1.250 pacientes, e, em 1916, um total de 1.500 doentes – forçando a ampliação do hospital.

Dez anos depois, o Juquery já registrava a internação de 2.029 pacientes. De 1938 para 1939, a população do hospital saltou de 1.847 para 3.325 pacientes – processo de superlotação que se estenderia até 1966, registrando 5.353 pacientes internados em 1947 e, no ano de 1950, um total de 13.019 doentes, e cerca de 16 mil nos anos 1960, causando decadência e construindo a imagem que muitos brasileiros obtiveram do hospital, com sua falta de alimentos e higiene, insuficiência de profissionais de saúde, um verdadeiro campo de concen-tração! Nessa época, o Juquery já registrava 2.500 funcionários e também já atendia crianças, inclusive cuidava dos filhos dos internos, que nasciam em seus leitos – filhos destes com outros internos ou com funcio-nários do hospital.

O cemitério da instituição realizou o funeral de quase 15 mil pessoas durante os pouco mais de 100 anos de existência da instituição (desde os anos 1990, o local está fechado por ordem judicial devido às suspeitas de servir como local de desova de corpos de perseguidos políticos do regime autoritário brasileiro de 1964-1985), segundo informações da direção do hospital.

O quadro de abandono e tragédia humana que caracterizou a história do Juquery foi denunciado já nos anos 1950 na imprensa brasileira, principalmente devido aos casos de maus tratos a pacientes, seja pelo despreparo de muitos funcionários, seja pelas péssimas condições de trabalho destes para atender à população do hospício.

Ou seja, o Juquery foi, como a maio-ria dos hospícios, apenas um local de depósito de excluídos do sistema produ-tivo, até, pelo menos, às mudanças de política social e de saúde mental nos anos

de 1970 e 1980, que caracterizaram outro tipo de omissão do estado.

No início dos anos 1980, durante o governo Franco Montoro, começa o processo de desmantelamento do Juquery, quando começam as mudanças, inclusive na dimi-nuição do modelo da equipe de atendimento aos pacientes no sistema de saúde, e não só no Juquery. Segundo o coordenador de saúde mental da época, o psiquiatra Marco Ferraz, em declaração pública ao site do Conselho Regional de Medicina do estado de São Paulo, o Cremesp, a situação do Juquery era calamitosa, e os recursos assistenciais – quando chegavam, eram mal utilizados.

Ainda segundo ele, o hospital permane-ceu refém de gestores que criaram cabides de emprego e de políticos que aproveitaram sua estrutura para ganhar votos. E que os pacien-tes sofriam com o abandono das famílias, as infrações médicas e os maus tratos dos funcio-nários. Ou seja, o Juquery estava na contramão da psiquiatria há muito tempo.

Foi esta realidade e os ventos da mudança no modelo de tratamento das doenças mentais no mundo, como reflexo da luta antimanicomial, que determina-ram os anos de decadência profunda do hospício. Primeiro, porque o hospício em si era o atraso no tratamento dos transtor-nos mentais, e não cabia mais ao modelo econômico que se desenvolvia nas grandes nações no final do século XX, com sua onda de privatizações dos serviços públicos que também atingiu o Brasil.

É a partir do governo Mário Covas, nos anos 1990, que se intensifica o processo de desmantelamento iniciado no governo Franco Montoro, com a visita do próprio governador ao hospital em 1995, determi-nando a transformação da instituição.

É criado um plano diretor para o Juquery, onde se constatava o abandono do hospital e pensava-se o uso do solo

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e ocupação das edificações da fazenda Juquery em conjunto com as várias secre-tarias de estado e município envolvidos no processo local, sob o comando da diretora técnica do departamento DIR IV-DPII, Maria Tereza Gianerini Freire, que foi diretora do Juquery por mais de uma década (a movimentação acontecia devido às comemorações do centenário da instituição, em 1998).

A ideia era instituir uma parceria entre organizações sociais e ONGs, governos do estado e do município de Franco da Rocha,

profissionais das Secretarias de Saúde e Cultura do estado na busca de recursos para contemplar a efetiva restauração do Juquery, tanto dos prédios quanto do meio ambiente do entorno das construções.

O projeto não alcançou o objetivo, e o Juquery continuou no seu processo de degradação física e institucional, com o esvaziamento dos leitos ocorrendo durante os anos seguintes. Contudo, um grupo de arquitetos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) está há alguns anos

Destinação de áreas de acordo com o atual plano diretor do complexo hospitalar

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desenvolvendo um segundo plano de restauração do Juquery, contemplando as diretrizes básicas do plano diretor inicial do governo Covas, considerando o resgate da memória do lugar, respeitando seu objetivo primeiro de ser um local dedicado à saúde, e envolvendo a instituição em um grande projeto cultural de utilização de espaços para desenvolvimento de conhecimento, com a instalação de escolas e museus. Segundo informações da direção atual do hospital, seriam utilizados para o projeto 30 prédios da instituição, um total de 14.215, 61 m² de área construída, em um terreno de 41.981,05 m², conforme o gráfico abaixo.

Hoje, a imagem é de desolação quando se caminha pelas alamedas de árvores centenárias e prédios semidestruídos do Juquery, como o do hospital central, que sofreu um incêndio em 2005, acabando com o acervo de fichas de pacientes e a

biblioteca montada por Pacheco e Silva, o substituto de Franco da Rocha na direção do hospital – um tesouro informacional, que poderia servir de embasamento para inúmeras pesquisas se não fosse o incidente.

A realidade é de prédios fechados a cade-ados, e que se encontram neste estado porque não obtiveram por parte dos sucessivos governos nenhum tipo de planejamento maior de utiliza-ção, após mudanças no sistema de tratamento dados aos doentes mentais no Brasil a partir dos anos 1980/1990, que determinaram a desativa-ção gradativa dos hospitais psiquiátricos no país.

Atualmente, são utilizados somente alguns prédios para funções administra-tivas, e a 1ª colônia que atende cerca de 200 pacientes, a maioria de idosos e rema-nescentes do período áureo do Juquery. Em poucos anos, centenas de pacientes foram distribuídos em hospitais públicos e/ou privados espalhados pelo estado, ou

Abaixo, o antigo centro cirúrgico, fechado

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simplesmente levados para serem cuida-dos por suas famílias - tudo realizado de forma brusca, sem respeitar pessoas que viveram durante décadas no hospital, e que só conheciam aquela realidade.

Com o desmantelamento do hospital, os funcionários do Juquery também amar-guram as incertezas sobre suas funções no estado, que os distribuiu em órgãos de saúde na região. Atualmente, são pouco mais de mil funcionários para atender aos pacientes que ainda estão no local.

Partindo e repartindo

A lenta decadência do Hospital refle-tiu-se em um parcelamento de de suas terras, caracterizada em três tipos dife-rentes: doação, transferências de terras e concessão de uso.

Primeiro, houve a instalação de dois clubes sob a concessão de uso, nos anos 1950. Nos anos 1960, parte da área adquirida em 1908 foi transferida para a Secretaria de Educação do estado, para a construção de escolas, e para a Secretaria de Segurança Pública, para a construção da delegacia de Franco da Rocha.

No mesmo período, também sob o regime de concessão de uso, o Clube Atlético Expedicionários recebeu terreno para a construção de sua sede, e até o Tribunal de Justiça adquiriu espaço para a instalação do fórum.

A barragem Paiva Castro, na divisa de Franco da Rocha com Mairiporã, e que abastece 50% da grande São Paulo, teve suas obras iniciadas também no fim dos anos 1960, alagando parte do terreno do Juquery.

Nos anos 1970, a Prefeitura de Franco da Rocha recebe área destinada à constru-

ção do parque industrial. Também nesta década, foi definida a área de proteção aos mananciais da região metropolitana de São Paulo, e o município de Franco da Rocha recebeu parte da fazenda Juquery.

Nos anos 1980, várias áreas do Juquery também foram doadas à Prefei-tura, que as utilizou para a construção do Paço Municipal. Neste mesmo perí-odo, começa a doação de terras para o município de Caieiras, para a instala-ção de núcleos habitacionais de baixa renda, além de mais divisão de terras para Franco da Rocha devido à expansão do município em direção ao hospital. Durante o governo Quércia discutiu-se o malfadado “Projeto Juquery”, que previa a construção de conjuntos habitacionais para 100 mil pessoas nas terras do hospi-tal. O projeto foi abandonado devido à mobilização dos franco-rochenses.

No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, a Secretaria de Saúde transferiu para outras secretarias terras incluindo edifícios pela primeira vez, como as áreas pertencentes ao manicô-mio judiciário e a 5ª colônia masculina.

Já na década de 1990, surge a cria-ção do Parque Estadual do Juquery, que incluiu algumas áreas como o campo de aviação sob o regime de concessão de uso pelo Aeroclube de São Paulo – época de transferência da antiga 6ª colônia para o 26º Batalhão da Polícia Militar, e a região chamada de Matão para o Insti-tuto Adolfo Lutz. Esta área foi ocupada de forma irregular até o final de 1995, pois serviu de local de desabrigados de enchentes na região desde 1987.

Este cenário da divisão das terras do Juquery colabora na compreensão do desenvolvimento da cidade de Franco da Rocha, que pertenceu ao grande municí-pio de Juquery – que deu nome à estação

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de trem, juntamente com outras cidades da região, e se tornou município autô-nomo em 1944.

Segundo informações das teses de mestrado e doutorado pela FAU/USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) da arquiteta franco-rochense Iná Rosa, o desenvolvi-mento do núcleo urbano de Franco da Rocha pode ser divido em três períodos: a) a partir da instalação do hospital, em 1898, em que a cidade cresce ao redor da estação de trem, com o surgimento dos

primeiros lotes urbanos; b) com a expansão da cidade entre 1917 e 1955, quando todas as terras do Juquery tinham sido adqui-ridas e se mantiveram sob o controle do governo do estado de São Paulo; e c) de 1955 a 1993, quando a cidade vai perdendo suas características interioranas e se torna uma cidade-dormitório, em que grande parte da população retorna à cidade no início da noite para dormir, depois do dia de traba-lho em qualquer outro município da região metropolitana – efeito mesmo do próprio processo de metropolização de São Paulo.

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Com este relatório, apresentamos à realidade do Complexo Hospitalar do Juquery, do município de Franco da Rocha e da população franco-rochense e sua inserção na região metropolitana norte de São Paulo.

Para o município de Franco da Rocha e seus mais de 130 mil habitantes, a revi-talização dessa instituição é o ponto de partida e a grande chance de retomada do desenvolvimento e melhorar, de maneira definitiva e real, a vida das pessoas.

Apesar de sua proximidade com o município de São Paulo e de outras cida-des em franco desenvolvimento – como é o caso de Jundiaí – Franco da Rocha está há anos, depois da decadência da importância do Juquery, sem quaisquer intervenções que consigam, de fato, torná-la independente.

A autoestima da população, já obrigada a conviver com o estigma da loucura pelo fato do município ter sido criado a partir de um hospício, sofre com a ausência de um motivo de orgulho.

A degradação e a consequente perda da importância do hospital deixou para o município uma imagem triste – passou de ‘hospício’ à cidade-dormitório – isso somado à exploração imobiliária, ao

inchaço populacional e à instalação de grande número de equipamentos prisionais.

Com este cenário, percebe-se como a cidade necessita de políticas públicas como única saída para impulsionar o desenvolvi-mento local.

O grande sonho daquela população é que sua dedicação à história do hospital e aos seus pacientes seja retribuída com a utilização de seus prédios históricos e jardins centenários, hoje abandonados, para algo verdadeiramente transformado, como a instalação de um equipamento de educação.

Pessoas acostumadas com inúmeras anedotas sobre os loucos e suas atitudes ‘anormais’ e que cresceram e viveram cultivando carinho especial pelos doentes mentais, sendo reconhecidas as histórias de famílias que acabavam ‘adotando’ os internados.

Na verdade, a cidadania do povo de Franco da Rocha foi forjada historicamente nesta relação com a loucura, e pode ser rede-finida como parte de um plano mobilizador de gerações que entendam cientificamente suas nuances e consequências.

Uma proposta de revitalização do Juquery, e consequentemente de Franco da Rocha, perpassa pela avaliação e visão

nosso sonho. Por que umA universidAde federAl?

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política das necessidades da população, tendo os pilares históricos da educação e da saúde como norte, mesclando-se e tornando-se o eixo de um plano político e administrativo consistente (por exemplo, a implantação de uma universidade federal), que consiga suprir as necessidades informacionais e de mercado de trabalho das novas gerações, dando vazão às perspectivas de futuro de jovens e adolescentes daquele município e dos outros à volta, além de trazer um fator de inovação, pesquisa e formulação para a realidade da cidade e da região, tendo condições de contribuir e intervir de maneira diferenciada em seu desenvolvimento.

A revitalização de espaços públicos é uma realidade, tanto no Brasil como no exterior. E esse é o grande momento para a realização desta intervenção em virtude do momento especial pelo qual passa nosso país, em franco desenvolvimento, precisando de cada vez mais profissionais qualificados. Os governos Lula e Dilma já têm priorizado a expansão do ensino técnico e superior e o Brasil não pode, simplesmente se dar ao luxo de deixar um espaço com a história, os recursos e o potencial que tem o Juquery, abandonado, sem função.

A redefinição do papel do centro de São Paulo na construção da cultura da cidade é um exemplo. Fachadas de prédios históricos e praças públicas foram reconstruídas à luz do passado que pode (e deve) estar presente para o reconhecimento das novas gerações.

Mais um exemplo brasileiro de revitali-zação excelente para ser citado é o das Docas de Belém, recuperadas a partir da década de 90. Ao todo, quatro galpões de ferro inglês que eram tombados foram restaurados. Hoje, as estruturas abrigam bares, restaurantes e espaços para feiras.

Os exemplos que surgiram no exterior também são inúmeros. Um deles é o do porto de Baltimore, nos Estados Unidos,

que ajudou a cidade a se desenvolver a partir do século XVII se tornou exemplo de degra-dação a partir da segunda metade do século XX, quando grandes áreas para descarga de navios começaram a se tornar desneces-sárias. A área no entorno foi revitalizada a partir de uma pareceria público privada. O projeto começou por uma pequena área em 1957. Após 50 anos, o local é um exemplo nos EUA de área bem sucedida, com shoppings, escritórios, hotéis e um estádio de futebol.

Na década de 80, a preocupação com a história de Buenos Aires, na Argentina, influiu na preservação dos imóveis antigos no processo de revitalização de Puerto Madero.

Em Rotterdam, nos Países Baixos, o projeto de recuperação lançado em 1987, foi planejado de forma a permitir ajustes que garantissem sua viabilidade econômica. A revitalização incluiu a construção de novos bairros residenciais, onde vivem atualmente 15 mil pessoas.

Em Hong Kong, o plano de revitaliza-ção se iniciou com a construção de um novo aeroporto e o fim das atividades portuárias em um dos bairros; autoestradas, pontes e túneis integraram a antiga região do porto ao resto da cidade.

Os exemplos de revitalização descritos acima servem de parâmetro para olhar as possibilidades envolvidas na revitaliza-ção do Juquery e possuem um ponto em comum: a atuação do Estado. Todos eles são exemplos de como a ação dos governos pode atuar para recuperar, economicamente e urbanisticamente áreas que perderam sua função ao longo da história, conceder-lhes um novo papel, reinserindo-as na realidade atual e garantido que possam, mais uma vez, impulsionar o desenvolvimento de toda uma região.

O Hospital do Juquery foi um exemplo de instituição pública no início de suas ativi-dades, viabilizando uma nova proposta de

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vida para muitos brasileiros - historicamente abandonados pelo poder público. A institui-ção, assim, pode novamente cumprir uma função social, política, econômica e cultu-ral para as populações da região, servindo de ponto de desenvolvimento regional e colaborando para o crescimento do país, tornando-se até, com o tempo, exemplo de planejamento político e administrativo para outros municípios brasileiros.

O esforço conjunto do poder público, do setor privado, dos moradores de Franco da Rocha e da região metropolitana de São Paulo é capaz de redesenhar os prognósticos sociais e políticos estabelecidos nos últimos anos, que deram ao município uma imagem deturpada sob o ponto de vista ético e o moral. Um ambiente universitário ajuda a fortalecer a ideia de termos uma sociedade exigente para cobrar uma conduta mais ética, republicana, democrática e desenvolvimen-tista de seus atores, além de contribuir, como já nos referimos, para a própria formulação.

Os moradores de Franco da Rocha ganhariam com a revitalização do Hospital do Juquery. A região metropolitana também seria beneficiada, e o estado de São Paulo enxer-garia Franco da Rocha e região com outros olhos, por meio de uma parceria praticamente inédita entre Estado e União. O Brasil sairia mais forte e vencedor com a implantação de um projeto que mesclasse educação e saúde para parte dos habitantes mais carentes da maior concentração populacional do país.

O papel do governo federal na colabora-ção deste encontro da cidade com suas raízes históricas será de importância capital na elabo-ração de políticas de crescimento regional, que determinem também a aceleração do desen-volvimento do país, impulsionando inclusive as outras cidades da região metropolitana de São Paulo de se redescobrirem diante da forte influência da capital paulista nas suas relações políticas, econômicas e culturais.

O potencial histórico do local, aliado às possibilidades de crescimento da região vinculada à cidade de Jundiaí (que, aliás, deve receber em breve um investimento bilionário em um parque industrial de alta tecnologia), além da própria proximidade com a capi-tal paulista – o maior centro financeiro e industrial da América Latina - permite se acreditar que um projeto educacional bem idealizado e desenvolvido por profissionais de excelente formação, com investimentos provenientes do poder público (e quem sabe também provenientes do setor privado), que considere o caráter histórico da instituição em relação à saúde, possa alterar drastica-mente a realidade do município de Franco da Rocha e da própria região metropolitana de São Paulo.

Importante lembrar que Franco da Rocha é servida pelo trem metropolitano da CPTM, já em processo de modernização, com previ-são de um trem expresso São Paulo-Jundiaí, que poderia ter uma parada na nova univer-sidade, reeditando, no século XXI, o processo desenvolvimentista que povoou a região no século XIX. Do ponto de vista da mobili-dade urbana, poderíamos assim inverter a perversa lógica da “cidade-dormitório”, na qual a população da região se desloca diaria-mente para São Paulo de manhã e retorna à noite, forçando a criação de uma nova centra-lidade urbana, fundamental para dinamizar a circulação na região metropolitana.

Os benefícios diretos e indiretos seriam incalculáveis, ao se considerar que a implan-tação de uma universidade, ou de um projeto mais amplo - que inclua o estabelecimento de centros de pesquisa ou museus (além de considerar espaços como o Parque Estadual do Juquery e a Represa Paiva Castro) - redefi-niria, por exemplo, o caráter de violenta que a cidade assumiu nos últimos anos.

O impacto no mercado de trabalho, no mercado imobiliário, entre outros,

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estabeleceria novos paradigmas para todos os moradores de Franco da Rocha e da região. O nível de vida destas populações daria um salto de qualidade sem precedentes, remodelando a história social dos habitantes destes municípios, e indo de encontro às transformações econômicas que o Brasil atravessa nos últimos oito anos, com o estabelecimento de uma classe média mais

forte e decidida a redefinir seu futuro.Apesar da degradação do Juquery, o

hospital pode ter ainda um papel de consi-derável importância no desenvolvimento de Franco da Rocha, uma cidade que nasceu com o intuito de cuidar e que agora precisa de atenção e cuidados - basta a união entre todos que amam a cidade do hospício e o hospício da cidade.

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referênciAs

6.1. Bibliografia

1. SILVA, Iná Rosa – “Franco da Rocha nas terras de Juquery: um hospício, uma cidade”. Tese de Mestrado/FAU-USP.1995.

2.LANCMAN, Selma – “Loucura e Espaço Urbano: um estudo sobre as relações Franco da Rocha-Juqueri”. Tese de Doutorado/UNICAMP.1995.

3.Hospital do Juquery. O Complexo Juquery: Bases para o Plano Diretor. 1998.

6.2.Sítios

1.www.francodarocha.sp.gov.br2.www.sp.gov.br3.www.saude.gov.br4.www.cremesp.org.br5.www.ccs.saude.gov.br

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orGAniZAção e moBiliZAção

E MILHARES DE FRANCO-ROCHENSES QUE ACREDITAM E APOIAM ESSA LUTA