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Page 1: Livres Pensares Atualizado
Page 2: Livres Pensares Atualizado

II

SUMÁRIO

Da (Im) Pessoalidade Científica 4

Considerações sobre a Hipótese da Interinfluência entre Pensamento, Cultura e

Linguagem 16

Vincti Spei: 32

Da Natureza do Significado e Suas Implicações 40

Considerações sobre a Alfabetização Brasileira 55

Considerações sobre a Arte no Brasil 66

Da Metáfora Funcional e Algumas Implicações 84

Da Filosofia 94

Page 3: Livres Pensares Atualizado

III

Pelo direito, divinamente

concedido, de pensar livre e

constantemente,

aos amigos Fabíola e Alberto e,

como em hipótese alguma poderia

deixar de ser, à Bia.

Page 4: Livres Pensares Atualizado

4

DA (IM) PESSOALIDADE CIENTÍFICA

ou

Uma Ensaio sobre a Hipocrisia na Ciência

“A demonstração (científica) baseia-se num

processo de reflexão, ou seja, baseia-se na articulação de

idéias de fatos, portadores de razões que comprovem

aquilo que se quer demonstrar.”

0. Introdução

A citação que introduz este ensaio provém de um dos mais

conceituados manuais de Metodologia Científica1

do Brasil. Assim como muitos

outros – na verdade, parece que todos os outros... - esse manual perece de uma

contradição filosófica muito interessante, cuja discussão não é nova, mas que acata

ainda algumas contribuições.

Os manuais de Metodologia Científica são construídos segundo uma

concepção axiomática que defende uma postura impessoal do pesquisador diante do

objeto. Uma espécie de Ciência como o processo de descobrimento do saber absoluto

e natural no qual não há interferência do pesquisador; de Ciência como um processo

capaz de desumanizar o ser que nele se insere, de forma que o texto científico deva

ser, também, desumanizado. Defende-se que uma postura realmente científica é uma

postura impessoal perante o universo.

O próprio texto do manual, porém, trai-se quando fala de “reflexões”,

“idéias” e “quereres”, que são, obviamente, atributos bem pessoais do pesquisador e

de sua ação individual. Ainda que fosse possível circunscrevermos a Ciência como

fruto exclusivamente da racionalidade humana, somente através desses mesmos

humanos se podem justificar atributos como “reflexões”, “idéias” e “quereres” em um

trabalho científico.

O fato mais científico de todos, porém, parece-nos que é o de que a

Ciência nunca foi impessoal e nunca o poderá ser enquanto fruto da ação humana,

assim como a Justiça não é cega e como a imparcialidade é uma abstração teórica mais

fácil de justificar epistemologicamente do que a partir dos efeitos práticos de sua

aplicação. Afinal de contas, desde que se tem notícia, suam quisque homo rem

memenit2

.

1. O mito da impessoalidade científica e nossos velhos manuais

1

A.J. Severino (1991). Metodologia do Trabalho Científico. 17 ed. São Paulo: Cortez.

2

Plauto. Trad.: “Cada um pensa naquilo que lhe interessa.”

Page 5: Livres Pensares Atualizado

5

O homem: um mamífero bípede, implume e crédulo por natureza.

Seja qual for a teoria aceita para sua origem e existência, haverá sempre na história do

homem a marca da crença e da confiança em algo que é superior a si mesmo.

Nas sociedades ditas primitivas, a relação do homem para com a

verdade, sempre intermediada por uma revelação, baseava-se na autoridade da

divindade que a revelou. O detentor da verdade sempre foi um alguém superior que,

mesmo utilizando-se de meios não tão sublimes – como os próprios homens ou a

vária natural -, ainda assim mantinha a autoridade de seu discurso e a

incontestabilidade de suas verdades com base em dois fatores primordiais: 1. a

capacidade de interferir na vida dos seres humanos, o que era uma demonstração

inequívoca de poder (ainda mais em se considerando que essa interferência nem

sempre se dava de forma amistosa) e 2. a capacidade de prever o futuro, o que era

uma demonstração inequívoca de sabedoria, uma vez que a descrição do presente

sempre foi considerada um ato típico da vil normalidade humana, assim como o

entendimento e a repetição do passado pretende-se ter sido desde sempre uma

característica igualmente humana.

Com base nesses dois fatores, as revelações permitiram fundamentar

as mais diferentes religiões, nas mais diversas culturas. A incontestabilidade da

verdade estava justamente no fato de que ela transcendia a compreensão humana,

porque oriunda de outra esfera de existência, uma esfera sobre-humana, mais

evoluída e, portanto, mais autorizada a proferir juízos.

O homem não demoraria, porém, a compreender3

que uma série

bastante grande dos fenômenos que o cercam pode ter uma explicação que

independa de uma autorização sobre-humana. Ainda mais, que essas explicações

poderiam fornecer meios de prever acontecimentos futuros e de interferir na

existência da humanidade. Já era possível prever uma seca, irrigar o solo e garantir a

colheita, subvertendo a ação divina tradicional das punições de controlar as chuvas,

castigar com a seca, provocar a fome como reprimenda pelos pecados de um povo.

Da mesma forma, era possível ao homem prever a existência de doenças e controlá-

las mesmo antes de se manifestarem, de promover o enriquecimento através de uma

ação planejada, de dominar muitos aspectos naturais de um mundo que antes

simplesmente o envolvia e o subjugava, não sendo mais este homem apenas um

objeto no meio da natureza, mas arrogando-se a senhoria dela.

Isso é apresentado de duas formas básicas nas mais diversas culturas:

1. o domínio sobre o mundo natural e a autorização de proferir verdades foram

roubados dos deuses, como em muitos mitos da cultura grega, por exemplo e 2. o

Criador concedeu ao homem o domínio sobre o mundo natural e a autorização de

proferir verdades, como na crença cristã. Dali em diante, não mais era o discurso

divino que autorizava a verdade, mas a própria humanidade criava um discurso com

suas verdades pessoais. E mais do que isso, paulatinamente a divindade se ia

afastando da humanidade, deixando-a à própria sorte, responsável por seu domínio,

prisioneira de suas próprias verdades4

.

3

Embora muitos ainda não o compreendam...

4

Um estudo extremamente interessante do afastamento da divindade pode ser lido em Richard E.

Friedman (1997). O Desaparecimento de Deus. Rio de Janeiro: Imago, 364 p.

Page 6: Livres Pensares Atualizado

6

Entretanto, o que mais impressionava nesse processo era a

possibilidade de sistematizar esses conhecimentos, de repeti-los e dominá-los,

reproduzindo e comprovando as mesmas asserções, que se tornavam axiomas, ou

seja, eixos sustinentes de uma nova era da humanidade, chamada a “da Luz”, “da

Razão”. Nada mais de sustos nos oráculos, nada mais de pesadelos proféticos: o

homem havia criado a Ciência.

A Ciência, a despeito do grande furor que causou na humanidade,

apresentava um grande problema e ele era o fato de que o conhecimento somente se

construía em função dos interesses de grupos específicos, de pessoas específicas e em

moldes muito específicos. E era inadmissível que um homem, por mais sábio que

fosse, usurpasse a divindade, que em sua condição sobre-humana asseverava, em

pronunciamento solene, que “a Ciência deste mundo é loucura diante de Deus. Como

está escrito: Ele enlaça os sábios na sua própria sabedoria”5

. O ser humano ainda era

apenas o mesmo ser crédulo de sempre, por natureza, e, como registra a Bíblia, parece

que o antigo proferimento “maldito o homem que confia no homem”6

ainda

continuava em vigor.

A humanidade estava não mais sob a égide plena do sobre-humano,

mas não aceitava apenas a verdade no âmbito do humano. E o que poderia autorizar

o discurso de um humano? Por que razão o discurso de um é melhor do que o do

outro? Por que razão devo permitir que alguém enfie em mim a agulha de uma

seringa com um líquido que não sei quem produziu, como foi produzido e que, na

verdade, não sei se me há de curar ou de matar? A Ciência carecia de autorização; as

verdades humanas careciam de autorização; em última instância, o próprio homem

carecia de autorização, como aquele filho inabilitado que recebe, inesperadamente, do

pai a chave do carro para namorar e desconfia de que se trata, na verdade, de uma

brincadeira de muito mau gosto. E essa autorização não era possível no homem.

Precisava ser sobre-humana. Foi encontrada, então, no mito da impessoalidade

científica.

O mito da impessoalidade científica pode ser resumido como sendo o

pensamento, reconhecidamente popular nas academias, de que o saber independe de

quem o produz e é tanto melhor quanto menos interferência houver do agente

humano sobre ele. É como se a natureza estivesse lá esperando ser descoberta e o

homem fosse dotado de um instrumento, novamente de natureza sobre-humana,

pois acima de todos e de seus interesses particulares (e, por isto mesmo, vis),

chamado Método Científico que lhe permitisse apreender esse conhecimento sem que

isso viesse a significar qualquer tipo de interferência desse agente humano sobre o

objeto de estudo. Claramente impossível. Mas, o fato é que não se tratava e nunca se

tratou, neste caso, de razão, tratava-se apenas e tão-somente, de novo, de fé. A

Ciência careceu, desde sua concepção, da autorização de seu discurso, autorização

que, ao ser humano, só é outorgada pelos olhos da fé, pela crença no que é sobre-

humano, logo mais desenvolvido que o humano e, portanto, como disse, por esta

razão, autorizado a proferir juízos.

A impessoalidade da Ciência outorgava-lhe um nível de credibilidade

do qual uma Ciência pessoalizada não poderia sequer usufruir um único quê. Não é

5

I Coríntios 3:19

6

Jeremias 17:5.

Page 7: Livres Pensares Atualizado

7

sem motivo que a impessoalidade7

característica das ciências ditas exatas e naturais

autorizou por muitas décadas a comunidade científica em geral a desconsiderar os

estudos chamados humanos e sociais – como a Psicologia, a Sociologia, a

Antropologia e a Lingüística entre outros – do rol da “ciências verdadeiras”. Isso pode

ter razão no fato de que a sistematização e a repetição de um procedimento científico

em uma ciência humana ou social não são tão simples e os resultados não são tão

previsíveis como nas ciências exatas e naturais. Por exemplo, posso teoricamente

colocar qualquer pessoa para ferver um litro de água ao nível do mar e os resultados

serão muito mais previsíveis do que no colocar qualquer pessoa para proceder uma

análise psicológica em cem indivíduos fóbicos. Mesmo hoje não é raro que

especialistas nas áreas humanas e sociais iniciem seus cursos e palestras pela tentativa

de provar que fazem “Ciência de verdade”, que dominam um método, etc. e tal.

Parece claro que essa aparente inferioridade das ciências humanas e

sociais reside justamente no fato, costumeiramente aceito como verdadeiro, de que

sua sistematização exige muito mais pessoalidade do cientista do que nas demais

ciências. Mas, efetivamente isso não é correto. A única diferença substancial está na

previsibilidade dos resultados obtidos a partir de cada processo de sistematização.

Os manuais de Metodologia Científica são pródigos em repetir o mito

da impessoalidade científica. Esta curta compreensão do processo científico remonta

aos primórdios da constituição da Ciência como artefato deificante do ente humano.

Vem de uma época em que houve uma necessidade existencial de substituição da

autorização concedida pela divindade pela autorização oriunda de um processo

sobre-humanamente sistemático8

que permitisse ao homem ultrapassar seus próprios

limites naturais, mas, principalmente adquirir as peculiaridades divinas de prever e

interferir na natureza. Certamente, essa fase foi um dos grandes lapsos da inteligência

humana. Temos muito claro, hoje, que a divindade e a Ciência não são concepções

excludentes e que os discursos oriundos de cada uma dessas partes também não o

são. Mais do que isso, que a autorização da verdade pode, inclusive, emanar de

nenhuma delas.

1.1. Frege e a ação das expressões indefinidas

Um dos níveis em que o mito da impessoalidade científica mais foi

sistematizado é o do chamado discurso científico. Se a autorização da Ciência estava

justamente no fato de que ela era concebida como um processo independente de

quem a praticava, cabia ao discurso científico, como parte final do processo

experimental9

revelar essa impessoalidade.

7

Traduzida de diversos modos na forma de termos como objetividade, afastamento, neutralidade ou

qualquer que se tenha ou que se queira usar.

8

Porque o ser humano, com efeito, não é cientificamente sistemático e, se o fosse, a Medicina teria as

mesmas bases que a mecânica de autos...

9

Que cientista ainda não se injuriou com os tais relatórios de pesquisa?

Page 8: Livres Pensares Atualizado

8

O lógico alemão Gottlob Frege, em um artigo10

no qual discute, entre

outras coisas, o valor de verdade de certas sentenças assertivas, aponta o efeito que

construções atemporais e impessoais – que ele chama indefinidas - têm sobre o

discurso. Ele diz que, quando usamos formas indefinidas, condicionamos a

interpretação do sentido das sentenças a uma circunstanciação que as torna

aparentemente verdadeiras a despeito de não exprimirem um pensamento completo

e de, sequer, serem obrigadas a ter uma referência.

Assim, quando se escreve “sabe-se”, “conclui-se” ou “vê-se”, que são

formas do presente indefinido do português, ao invés de “sei”, “concluo” ou “vejo”

(ou mesmo suas formas plurais “sabemos”, “concluímos” e “vemos”), obriga-se o

interlocutor-leitor do relato científico a circunstanciar de tal forma aquilo que foi

proferido que, não só o proferimento assume a característica de verdadeiro, mas

acaba sendo tomado como verdadeiro de alguma forma, em algum tempo, em um

cenário qualquer. Isso atribui ao discurso científico seu valor de verdade. Quando são

utilizadas as formas pessoais, porém, obriga-se a que o proferimento seja verdadeiro

no agora e no aqui, pois a verdade passa a ter como certificado de autorização

também o seu próprio proferidor e não somente o sentido ou o pensamento

intrínseco que esse proferimento possa conter. A verdade passa a ser definida como a

verdade de um e não mais como uma verdade universal que há de se realizar em

algum lugar do universo, um dia, em certas circunstâncias... Da mesma forma, os

objetivos e conceitos científicos, por se acreditar serem universais, devem, segundo a

tradição, ser construídos com infinitos verbais, de maneira a desvinculá-los de quem

os proferiu.

Ao asseverar que o cientista proceda seu relatório científico utilizando

uma forma indefinida, os manuais de Metodologia direcionam epistemológica e

filosoficamente a pesquisa científica para a crença inconfessável de que essa

impessoalidade forjada tem sido, no decorrer das últimas décadas, a única

autorização do valor de verdade do discurso da Ciência, sem o que, mesmo diante

dos fatos, os homens ainda veriam, em cada ocorrência natural ou provocada, a ação

divina e não a ação científica do homem e a teriam julgado com um simples isto foi

permitido.

Infelizmente, em um mundo em que a ação do homem sobre o meio

centraliza cada vez mais a atenção e em que a razão tem sido equiparada a outras

dimensões do pensamento humano, com a crescente valorização de aptidões

tipicamente humanas, como a criatividade artística e a complexidade lingüística,

nossos manuais de Metodologia Científica sobrevivem de passado.

2. Heisenberg e o Princípio da Incerteza

Físico e eminente pensador alemão deste século, Werner Heisenberg

(1901-76) notabilizou-se pela idealização e consolidação da Mecânica Quântica.

Embora sua teoria tivesse sido elaborada para aprimorar o nível de precisão com que

10

G. Frege (1978). “Sobre o sentido e a referência”. In: Lógica e Filosofia da Linguagem. Trad. Paulo

Alcoforado. São Paulo: Cultrix, pp. 59-86.

Page 9: Livres Pensares Atualizado

9

se mediam os movimentos das partículas subatômicas, Heisenberg acabou

descobrindo que

“é impossível, na descrição do mundo atômico, separar

completamente o observador do “resto da Natureza”, uma vez que o

distúrbio causado pela observação é comparado aos próprios

fenômenos que são observados.”(Fleming, 1978)11

Essa descoberta derivou de experimentos, como o descrito em

Fleming (1978)12

e que, embora longo, convém transcrever integralmente aqui:

“A visualização de um elétron se dá quando um fóton

emitido por este elétron é detectado (digamos, pela retina do

observador). Lance-se, por exemplo, um feixe de fótons de

comprimento de onda L em direção à região onde se encontra o

elétron. O fóton que com ele colidir será refletido (absorvido e

reemitido) e sua detecção nos informará sobre a posição do elétron.

Naturalmente, um fóton de comprimento de onda L não pode

determinar a posição de um elétron com precisão maior do que L. Seria

de se pensar, portanto, que a utilização de um fóton de comprimento

de onda menor fornecesse informações mais completas. Sabe-se,

porém, que a quantidade de movimento de um fóton é inversamente

proporcional ao seu comprimento de onda. Logo, para aprimorarmos a

medida da posição do elétron, estaremos automaticamente usando

fótons de maior quantidade de movimento que, ao serem refletidos

pelo elétron, transferirão a ele uma quantidade de movimento tanto

maior quanto menor for o comprimento de onda. Assim, ao

aprimorarmos a determinação da posição do elétron, estaremos

alterando o valor de sua quantidade de movimento por um valor que é

tanto maior quanto mais precisa for a determinação da posição. Uma

análise mais detalhada mostra que o valor desta transferência de

momento é incontrolável. Ora, a trajetória de uma partícula é

determinada pelo conhecimento, de um dado instante, da posição e da

velocidade da partícula. A impossibilidade desse duplo conhecimento

acarreta automaticamente a impossibilidade de determinação da

trajetória.”

“A impossibilidade desse duplo conhecimento”. Impossibilidade de

quem? Do método? Sim, do método; mas, sobretudo de seu criador, o observador. É

obvio que a partícula, por existir, tem uma posição e por movimentar-se, uma

trajetória. As (im)possibilidades humanas de identificar concomitantemente esses dois

valores, porém, interferem na consecução da verdade absoluta. O máximo que se

obtém é uma espécie de verdade parcial e pessoal, momentaneamente definida; nada,

enfim, que interesse a um ente sagrado e superior.

Mais do que por isso, a descoberta dessa impossibilidade por

Heisenberg, descoberta que passou a ser chamada de “princípio da incerteza”,

mostrava-se avassaladora em suas conseqüências epistemológicas para a Ciência

11

Henrique Fleming (1978). “O princípio da Incerteza de Heisenberg”. In: www.ciencia-cultura.com/

ciencia001.html.

12

Op.cit.

Page 10: Livres Pensares Atualizado

10

como foi tradicionalmente concebida, justamente porque não era uma mera

convicção filosófica, mas por ser, como apresenta Fleming (1978)13

, “a conseqüência

imprevista de uma teoria formulada para o estudo quantitativo em escala atômica”.

Em outras palavras: Heisenberg, assim como seus predecessores newtonianos,

acreditava na possibilidade imaginária de uma Ciência impessoal, em que o cientista

nada mais é do que um instrumento do sagrado que capta as verdades emanadas da

aplicação da Metodologia Científica, um tipo de “profeta da razão”. Mas, o físico

alemão deparou-se com uma impossibilidade natural, em experimentos no nível

subatômico, que demonstrava inequivocamente que esse distanciamento nunca

existiu: a Ciência não era nada mais do que uma forma de alguém ver o mundo e o

método nada mais era do que uma forma coletiva e comumente aceita de ver o

mundo.

Em ciências humanas e sociais, a impossibilidade da observação

impessoal é ainda mais acentuada e não precisa descer ao nível subatômico. É

inconcebível crer que adentramos uma sociedade e não somos notados, tampouco

que essa sociedade não mude seu comportamento por força da nossa presença, do

“distúrbio” que causamos. Da mesma forma, acreditar que um indivíduo tomado

como informante deixe de conceber formas e tipos de informação que considera mais

apropriadas ao relato científico – segundo o que ele entende do relato científico – é

pura fé.

Muito mais do que isso, porém, é que é inaceitável acreditar que o

observador não intuirá, inferirá, hipotetizará, concluirá, segundo os pressupostos

culturais que carrega consigo. E culturais, aqui, abrange “científicos”. A Ciência -

assim como a religião - faz parte da cultura de um povo. Assim como a religião

sistematiza aspectos da visão de mundo e das ocorrências naturais e não naturais do

mundo, a Ciência o faz. Muda o método; a crença permanece. Não há uma verdade

em religião, assim como não há uma verdade em Ciência, por mais que o pensamento

hegemônico e etnocêntrico ocidental insista em afirmar isso. Nossa forma “objetiva”

de ver o mundo nunca foi objetiva e o conhecimento empírico do objeto nada mais é

do que o resultado de uma equação muito simples que pode ser assim resumida:

CC + ME + CTE = RC

Em que:

CC - cultura do cientista

ME - método empregado

CTE – circunstância/tempo de emprego

RC – resultado científico.

Nesta equação de valores sempre variáveis, a menor mudança em

CC, ME ou CTE produzirá modificação em RC.

E o leitor pode perceber como a simples apresentação dessa asserção

em forma de equação dá ao saber que ela traduz uma feição de cientificidade. Alguns

estudantes já estarão se emprenhando em decorar o significado das siglas, por certo...

13

Idem.

Page 11: Livres Pensares Atualizado

11

Isto ocorre porque até um padrão estético14

próprio foi criado para dar ao que temos

chamado Ciência um aspecto peculiar. Assim como intuímos estar diante de um culto

religioso pela estética que ele apresenta, mesmo que sua temática não seja lá muito

apropriada para um culto, também temos a ilusão de estar diante da Ciência, quando

sentimos sua estética própria, sua forma metodologicamente definida. E se, por um

lado, sempre há aqueles que estão de plantão para lembrar as muitas atrocidades

cometidas em nome da religião, deve-se aceitar, também historicamente, as muitas

estupidezes que já foram inscritas debaixo das asas da Ciência, com tintas que

imitavam as cores de suas penas....

2.1. A pessoa do investigador

O cientista nunca passará de um ser humano. Esta obviedade

aparente tem grande ressonância epistemológica na concepção da moderna Ciência.

Como ser humano, carregado de cultura e, por ela, de parcialidades, o cientista

somente é capaz de criar ou aplicar um método de forma a atingir seu próprio nível

de compreensão do objeto. O método não supera seu criador ou aplicador em

abrangência e acuidade; simplesmente não pode fazê-lo. As deficiências naturais do

autor e do método criado ressoam inelutavelmente no procedimento científico, que

será sempre parcial e tendencioso. Não que essa parcialidade e essa tendencialidade

sejam concebidas propositadamente como partes do método. Pelo contrário, até

acabo achando que há cientistas que realmente acreditam que são imparciais... A

parcialidade e a tendencialidade residem nas deficiências naturais impostas pelo

humano fisiológico e pela carga cultural residente no humano. Citemos um exemplo:

O homem foi capaz de perceber, a certa altura de sua história, que os

cães ouviam sons que o próprio homem não ouvia. Isto tornou-se testável, porém,

apenas quando o homem foi capaz de criar uma tecnologia que se agregasse à sua

capacidade de percepção. O homem criou aparelhos que permitiam a produção

sistemática, a captação e a medição de ondas de som por ele imperceptíveis dentro de

seus limiares naturais. Esses aparelhos agregaram-se à capacidade perceptiva do

homem e ele foi capaz de “experimentar o que era ter a audição de um cão”. Seus

limiares estavam dilatados pela ação da tecnologia por ele mesmo criada, mas suas

restrições não estavam superadas e sua compreensão do objeto não podia ser

superada pela “compreensão que o aparelho e o método tinham do objeto”. O

método foi concebido a partir de uma concepção inicial da possibilidade de existência

de um espectro diferente de freqüência de onda e essa concepção não passou de uma

idéia humana sobre o objeto. Em outras palavras: intuição. Se, ao invés de conceber

um espectro diferente de freqüência de onda, o homem tivesse imaginado a ação de

espíritos animais ancestrais atuando na mente dos cães para predizer-lhes a chegada

longínqua de um estranho, provavelmente teria desenvolvido uma tecnologia que

acabaria “provando” que esses espíritos existem, nem que levasse mil anos para isso.

14

A estética da Ciência não é tema novo na Academia. Muito já se publicou nessa área, mas não caberia

aqui uma descrição detalhada de sua epistemologia peculiar. Retomarei o tema adiante com outra

finalidade.

Page 12: Livres Pensares Atualizado

12

E em que situação estaria a verdade científica nesse caso? Parece até que, no fundo,

em muitos aspectos da vida científica, o homem prova o que quer provar e se

convence do que quer convencer-se. Atribui causas aos efeitos, recria o fato

empiricamente, e reatribui as mesmas causas erradas aos efeitos que se repetem. É

mais ou menos como o cientista que aplica o método de medição do carbono 14 no

solo que envolve um fóssil e atribui a este a idade daquele. Se ele moer o fóssil para

aplicar o método, fica sem o material de estudo e terá de anunciar: “Ei pessoal, aquele

fóssil que nós possuíamos tinha cinco mil anos...”. Então é mais fácil acreditar que o

solo e o fóssil nele inserido têm a mesma idade. Todo mundo fica feliz e o fóssil é

preservado. Infelizmente não estávamos lá para saber quando aquele animal “virou

fóssil”. Nossas limitações de percepção, de tempo de existência, enfim, nossas

limitações humanas impõem-nos travas muito duras de romper.

Muito do que se descobriu em Ciência decorreu dessa busca

incessante em aumentar os limiares de ação e percepção que a fisiologia do homem

lhe impõem. Os microscópios, os telescópios, os espectrógrafos, o telefone, os meios

de transporte são exemplos dos resultados obtidos nessa luta pela auto-superação.

Mas, em nenhum momento, esses meios superam autoctonemente o criador. São

apenas meios. Não passam de agregados do homem. Nenhum desses meios é capaz

de compreender por si só o mundo e expor uma verdade de “per si”. Sem o homem,

não funcionam, não geram resultados. Logo, estão incondicionalmente atados às

limitações de quem os criou ou os aplica.

3. A pessoalidade na pesquisa científica

Essas limitações fazem de todo trabalho humano algo definitivamente

pessoal. A Ciência, como atividade concebida e praticada pelos homens, não é

exceção. Não há pesquisa científica impessoal. Cada cientista chega a resultados

diferentes a partir de um mesmo objeto. Claro que, depois de aceito um resultado

como o mais correto, depois de concebida a verdade científica, por assim dizer, outros

cientistas são capazes de reproduzir as idéias de outros. Seus experimentos repetitivos

e enfadonhamente imitados passo a passo com base nos procedimentos alheios

tornam-se a comprovação final de que aquilo é verdade e sentencial. Mas, verdade de

quem? Com base em quê? Com qual finalidade de proferimento?

A Ciência humana não é capaz de produzir mais do que “verdades de

um tempo” e “verdades de alguns”. Todos os procedimentos científicos são marcados

pela pessoalidade. De um modo geral – embora haja diferenças de uma ciência para

outra -, esses passos podem ser assim descritos:

O primeiro passo de uma pesquisa científica é o contato com o objeto.

Nesse contato a mente humana já divaga em uma infinidade de hipóteses e

explicações. É nesse momento que o verbo “achar” assume sua mais divina conotação.

Nessa fase, os cientistas incipientes acham que vão salvar o mundo de seus males; os

cientistas experientes acham somente que há uma resposta, mas têm certeza de que

vai dar muito trabalho para formulá-la em termos científicos, ou seja, construir essa

resposta humana e pessoal segundo a estética científica e impessoal. Nesse contato

Page 13: Livres Pensares Atualizado

13

com o objeto uma grande parte de nossas decisões “cientificamente calculadas” é

tomada.

Uma dessas decisões refere-se ao tamanho de nossas pernas. Este é

um momento ímpar da pesquisa científica, pois nele o cientista é obrigado a assumir

que não poderá, por mais que assim o deseje, dar um passo maior do que suas

possibilidades pessoais, tecnológicas – e até financeiras – permitem. A delimitação do

objeto, porém, também é revestida da estética científica. Justifica-se pela necessidade

de uma abordagem adequada do objeto.

A delimitação do objeto é seguida da escolha do melhor método para

uma análise. E se tenho que escolher um método, admito que com outro minhas

verdades poderiam ser, também, outras. Admito tacitamente que a Ciência não

produz “a verdade”, mas a minha verdade, que é apenas e tão-somente a permitida

pelas minhas restrições e pelo método que adoto.

Em já tendo escolhido um método - ou, em alguns casos, uma mera

técnica de trabalho – posso partir para a coleta e para seleção dos dados coletados.

Como vimos pela experiência de Heisenberg, por mais precisos que sejam meus

dados, eles serão sempre viciados pelas minhas próprias deficiências. Em pesquisa

social, a quantidade e a qualidade das variantes que interferem na coleta de dados é

simplesmente imprevisível. O mesmo vale para as ciências da linguagem. A seleção

de dados também obedece a critérios metodológicos muito bem definidos: escolho

aqueles que compreendo, aqueles que meu método dá conta de explicar, aqueles que

parecem responder aos meus anseios como pesquisador. Bem, embora não seja

politicamente correto admitir isso, nunca vi em algum trabalho científico o

reconhecimento explícito da ignorância do autor ou de sua inabilidade para explicar

um aspecto aparentemente simples de seu objeto. O que se vê sempre é “tenho

convicção de este trabalho contribui para a evolução da teoria”, “a pesquisa está

apenas no começo” ou “a Ciência ainda não consegue explicar esse fato”. Bem, parece

claro que, por mais imbecil que seja um trabalho ele permitirá o desenvolvimento do

pensamento de outros sobre o objeto, mesmo que para provar o quanto o autor

estava enganado sobre o que escreveu. Que a pesquisa está apenas no começo é

óbvio: o conhecimento que o homem tem de seu mundo e de si mesmo está - todo ele

- apenas no começo. Como alguém que se diz cientista pode ter a pretensão de

considerar que esgotou o conhecimento sobre um tema qualquer?! Agora, dizer “que

a Ciência não tem como explicar isso ainda” é como perguntar “por que Deus fez isso

comigo?”, pergunta clássica de quem sabe que falhou em algum ponto, mas não

admite seu estado culposo.

Partimos para a análise dos dados e sua interpretação. Tudo se dá nos

mesmos moldes em que se dá a escolha do método, a delimitação do objeto, a coleta

de dados, enfim, tudo se dá eivado das mesmas deficiências que acompanham o

cientista e seu método desde o princípio do trabalho. Não é por outra razão que

cientistas diferentes alcançam uma diferente compreensão de um mesmo objeto

quando usam métodos diferentes e, até, quando usam um mesmo método. É

totalmente cabível que a verdade de um não seja a verdade do outro.

Page 14: Livres Pensares Atualizado

14

4. A divulgação dos resultados

Este é apenas o último passo do trabalho científico, mas merece um

subtítulo separado. Existem muitos manuais de Metodologia Científica que já

conseguiram criar a falsa concepção de que a Ciência se confunde, de que ela mesma

é a escritura de monografias15

. Manuais chamados de “Metodologia Científica”, mas

que abordam exclusivamente a escritura científica, ou seja, o último passo dessa

metodologia. Há para essa modalidade de escritura toda uma descrição,

extremamente minuciosa, da estética científica. Aspectos relevantes como a editoração

do texto, que permite uma leitura clara e objetiva, referências bibliográficas, que

permitem a localização inequívoca de uma fonte, padrões de citação, que

resguardam os direitos intelectuais das idéias alheias, enfim, uma parafernália de

técnicas e padrões que são extremamente úteis na escritura científica e que lhe dão

aquela aura de sacralidade típica das revelações da verdade. E, sinceramente, acho

tudo isso muito interessante e produtivo. Acho mesmo que deve ser adotado, com

algumas ressalvas. Uma delas é a de que a vírgula não pode ser considerada mais

importante do que as palavras que ela separa.

Mas, há um aspecto muito mais grave sobre essa estética científica e

que me incomoda sobremaneira. É a impessoalidade que se exige do autor. Embora

toda a concepção do trabalho tenha sido cabalmente pessoal e que, desde o primeiro

contato com o objeto, o cientista tenha deixado suas marcas inequívocas no resultado

obtido, agora, ele é obrigado, por mera força consuetudinária, a desvestir sua

pesquisa de suas roupas originais, tirar-lhe a identificação pessoal, e vestir-lhe com as

vestes sagradas e transparentes que os verbos impessoais e as afirmações atemporais

conferem ao texto. Nada de “eus” e de “minhas verdades”. De fato, a verdade de um

homem é convertida simplesmente em “a Verdade”. E isso é, no mínimo, pernicioso.

Ao deparar-se com a verdade de um homem travestida de verdade

científica, o aprendiz fica obviamente intimidado. O instrumento de divulgação

científica assume o mesmo caráter que tem uma hóstia: precisa ser engolido, mas não

pode ser mordido! E o caso é que, muitas vezes, essa “hóstia” precisa ser mordida e

deve ser cuspida! O aprendiz de cientista acaba cristalizando essa concepção

divinizante da Ciência e a submissão tipicamente decorrente de toda concepção

divinizante faz com que esse aprendiz não se identifique como interlocutor do

relatório científico, porque não vê neste um diálogo, mas uma sentença.

Discordar do relato científico impessoalizado é como discordar de

Júpiter. Com quem discutir? A quem perguntar? Contra quem proferir? Quem me

responderá? Ou, muito mais do que isso: será que tenho direito de perguntar? O

direito de perguntar e retorquir, aliás, acaba sendo um direito de uns poucos

privilegiados que alcançam as elevadas esferas dos títulos acadêmicos, pessoas que

sempre proferem coisas inteligentes quando abrem suas sacratíssimas bocas.

É imprescindível que a Ciência seja pessoalizada. Temos que

entender que o formato dos continentes mudou nos mapas no decorrer dos tempos,

porque os homens e suas máquinas enxergaram os continentes de formas diferentes;

15

Ou também artigos, ensaios, dissertações e teses, que igual forma são, eventualmente, monografias,

isto é, quando escritos por um só autor.

Page 15: Livres Pensares Atualizado

15

que o tratamento da úlcera mudou no transcorrer da história da medicina, porque os

cientistas entenderam essa patologia de diferentes formas; que a concepção de

linguagem mudou no decorrer do tempo, porque os lingüistas enxergaram esse

objeto de maneiras díspares. Enfim, que a Ciência só é capaz de produzir verdades de

homens e de seus tempos, que precisam ser assim enxergadas. O que claramente

defendo é que o cientista precisa ter o direito de mostrar sua cara na escritura que

produz, pois o eu científico não transformará a Ciência em algo execrável, como,

mutatis mutandis, o eu poético não transformou a poesia em algo pernicioso.

Mas, porque há tanta resistência em pessoalizar a Ciência e sua

escritura? Certamente, porque isso retirará delas sua aura de divindade e isso

significaria retirar dos modernos fiéis seguidores da santa mãe Ciência os esteios que

sustentam sua concepção de mundo, da mesma forma que a desilusão com seu deus

pode levar um fiel deísta à loucura. E é possível indicar, pelo menos, uma só boa

razão para insistir nessa pessoalização?

5. Conclusão

A Ciência é o resultado da ação do homem e do método por ele criado

e adotado sobre seu objeto de estudo, numa circunstância e num tempo dados. Essas

peculiaridades dessacralizam a Ciência como concebida, por exemplo, na tradição

newtoniana, e a pessoalizam. Essa dessacralização é relevante ou mero desejo

oriundo de uma concepção acadêmica equivocada?

Respondendo a essa pergunta e à última do item anterior, creio que

há, pelo menos, uma e suficiente razão para insistir na dessacralização e na

conseqüente pessoalização da Ciência. A autorização da verdade, como se presta às

coisas práticas e cotidianas não precisa e não deve emanar de algo divino. É

imperativo que o homem seja capaz de separar o que tem origem natural do que foge

a sua compreensão, o que é efeito da própria ação humana, do que não lhe é peculiar,

as verdades que são meramente humanas, das que não são. Essa é a única maneira

que enxergo de fazer o homem simples entender quando é a mão de outro – ou a

ausência dessa mão - que lhe faz sofrer ou ser feliz. A única forma que consigo

conceber de fazê-lo entender, por exemplo, que não são as leis econômicas de

mercado, inquestionáveis em suas origens e alcance, que o fazem miserável, mas sim

a ganância de outro homem. É a única maneira realmente científica de tirar das costas

da divindade, do destino, da Ciência e dos princípios inelutáveis da nova ordem

social o dolo que cabe ao próprio homem.

Guajará-Mirim, 29 de agosto de 2000.

Page 16: Livres Pensares Atualizado

16

CONSIDERAÇÕES SOBRE A HIPÓTESE DA

INTERINFLUÊNCIA ENTRE PENSAMENTO, CULTURA E

LINGUAGEM

0. Introdução

O objetivo deste trabalho é revisitar a idéia whorfiana de que a

linguagem determina o pensamento, idéia esta que pode ser considerada uma

ampliação dos postulados anteriormente lançados por Boas e Sapir. Conhecida

posteriormente como hipótese Sapir-Whorf, ou como hipótese do relativismo

lingüístico, esta idéia de determinação encontra sérias restrições, mesmo se nos

baseamos nos exemplos dados nos estudos do próprio Whorf. O resultado desta

revisita é uma ampliação da proposta de Whorf, postulando-se uma hipótese de

interinfluência cíclica entre pensamento, cultura e linguagem. A comprovação

empírica desta hipótese, pretende-se, deve ser possível em qualquer língua. Utilizo

neste estudo, porém, a língua moré, da família Chapakura, da Amazônia, cujas

características estruturais se configuram especialmente adequadas ao que se propõe.

1. A Hipótese Sapir-Whorf

É conveniente, para abordar a hipótese Sapir-Whorf, retroceder um

pouco no tempo até Boas. Este autor afirmava1

que, uma vez que o conjunto de

experiências humanas difere de povo para povo, as línguas se constituem como

sistemas classificatórios diversos, em função das necessidades de expressão

virtualmente criadas em cada comunidade lingüística. Assim, para Boas, as línguas

possuem embutido em si um princípio de classificação da realidade, mas, a despeito

disso, são as diferentes experiências de uma comunidade que acabam por gerar

diferentes formas lingüísticas. Embora levasse em conta esta diferença entre as formas

de expressão e de classificação, Boas considerava que apenas uma fração do que o

falante constrói mentalmente, como sendo seu conceito global do objeto, é expresso

na fala. Dessa forma, além de classificatórias, as línguas eram consideradas por Boas

como sistemas altamente seletivos e econômicos, que determinam escolhas a uma

comunidade lingüística.

As idéias de Boas foram aprofundadas por Sapir, seu discípulo mais

ilustre. Assim como seu mestre, Sapir cria2

que as línguas são realmente sistemas

classificatórios, mas deu mais ênfase ao fato de que esses sistemas são construídos

1

Cf. F. Boas (1911).

2

Cf. E. Sapir (1921, 24)

Page 17: Livres Pensares Atualizado

17

segundo determinações coletivas. Além disso, Sapir acrescentou às idéias de Boas o

postulado de que cada língua possui uma estrutura sistêmica diferente que

determina, em função de sua completude formal, que tipos de classificações serão por

ela realizadas. Então, se uma língua é uma forma de atuação social, os padrões

estabelecidos em sociedade nela são repetidos, mas vinculados à própria estrutura

orgânica do sistema. Em uma passagem memorável, Sapir argumenta:

“the instrument makes possible the product, the product

refines the instrument.3” (Sapir, 1921)

Este asserto expressa um dos mais significativos progressos de Sapir

em relação à teoria de Boas: o fato de que a influência entre o pensamento (social) e a

linguagem (sistema lingüístico) ocorre, não em uma via de mão única, mas

mutuamente.

Whorf, aluno de Sapir, abandona esta última parte da doutrina

sapiriana e estabelece4

que a linguagem atua determinantemente sobre o pensamento

e, conseqüentemente sobre as ações humanas. Ele mantém, porém, a idéia de que é

através da completude formal aludida por Sapir, completude esta que reflete as

peculiaridades orgânicas da língua, que esta influência se dá. Embora ele mesmo não

o tivesse dito claramente, a obra de Whorf sugere que cada língua cria um padrão

distinto de pensamento no povo que a fala.

Essa proposição, chamada de hipótese Sapir-Whorf, embora tenha

tido sua maior defesa apenas em Whorf, claramente é o desenvolvimento de uma

idéia mais ampla e genérica de que a linguagem, mais especificamente, os sistemas

lingüísticos, foram os elementos primordiais no processo evolutivo humano e

responsáveis pela distinção entre o homem e os símios. O raciocínio pilar é bastante

simples: uma vez que o sistema lingüístico é capaz de determinar o comportamento

do ser que o usa, a criação do primeiro sistema lingüístico teria sido o marco inicial em

uma longérrima mudança comportamental dos antepassados humanos e o primeiro e

decisivo passo na separação das raças e na determinação de seus comportamentos tão

distintos.

Muitas objeções podem ser levantadas à essa proposição de explicar a

capacidade humana de linguagem e a evolução da espécie. Creio que três dessas

objeções, entretanto, merecem uma atenção especial. Destaco-as e comento-as a

seguir:

a. a hipótese Sapir-Whorf não apresenta resposta clara para o fato de

que línguas com padrões formais semelhantes não geram, obrigatoriamente, padrões

culturais semelhantes entre os povos que as falam. Se houvesse uma determinação

tão forte como Whorf postula, uma semelhança mais estreita de padrões culturais

seria esperada, por exemplo, entre os habitantes das diversas comunidades falantes

do português ou do inglês. Entretanto, não se constata haver tanta sintonia cultural

assim entre os falantes do Brasil e de Goa, ou entre os falantes norte-americanos de

Nova Iorque e os falantes da Guiana;

3

“O instrumento permite criar o produto, o produto refina o instrumento.”

4

Cf. B. L. Whorf (1939)

Page 18: Livres Pensares Atualizado

18

b. embora seja clara a questão de que cada língua funciona como um

depósito cultural sine qua non na construção do inconsciente coletivo e da visão de

mundo de uma comunidade, a percepção que os homens têm do mundo pode ser

igualmente explicada por fatores que vão do biológico ao puramente social. Isso

merece explicação mais apurada. Vejamos:

Um índio moré aprende, em sua cultura, que a árvore do tipo X tem

como nome , “o pacu come”. Este nome, na verdade uma metáfora

funcional5

, leva a criança moré, desde a primeira vez em que o ouve, a formular uma

questão inicial acerca do objeto, que poderíamos definir como sendo “por que esse

objeto leva esse nome?” e, a partir dessa questão, a entronizar um conhecimento

prático bastante importante para sua nação, porque referente à sobrevivência, que é a

busca e a consecução de alimento. Assim, se o pacu se alimenta dos frutos desse tipo

de árvore, e se os moré alimentam-se de pacus, a presença de tal planta na beira de

um rio ou lago pode indicar a presença de pacus, e isso está implícito na metáfora que

nomeia a própria árvore. Entretanto, a língua moré tem sido substituída pelo

espanhol nos últimos cem anos, e essa mesma árvore passou a ser conhecida entre os

morés como “canduru”, o nome espanhol. O fato é que os morés não perderam o

conhecimento de que os pacus se alimentam dos frutos do canduru, porque a prática

cotidiana da pesca induz à necessidade desse tipo de conhecimento, mas tal

informação perdeu seu registro lingüístico e, agora, são necessários outros meios que

conduzam à indagação inicial que levava ao conhecimento da serventia do objeto

determinado. É por essa razão que qualquer empréstimo lingüístico constitui-se, a

despeito da aparência de “ganho”, em uma perda incalculável para a cultura e a

identidade de uma comunidade qualquer.

Isso induz à conclusão seguinte: não há provas claras de que cabe

exclusivamente à linguagem determinar ou sequer ordenar a percepção que temos do

mundo, embora ela possa ajudar nesse processo de construção mental;

c. a hipótese whorfiana não explica o fato de ser possível, a qualquer

ser humano normal, aprender uma nova língua natural sem modificar

substancialmente seus padrões culturais ou de pensamento. Se a linguagem é

determinativa, uma nova língua deveria determinar novos padrões de

comportamento. Não parece ser o caso. E isso também merece atenção especial.

Whorf, como qualquer outro autor de enfoque materialista histórico, implicitava em

seu texto que o desenvolvimento da linguagem e, mais especificamente, do sistema

lingüístico pelos seres humanos teria sido o passo decisivo na bifurcação evolutiva

que conduziu o homem para um lado e os demais símios para outro lado da

evolução, uma vez que as conformidades biológicas e mesmo a postura não seriam

suficientes para tal modificação. Entretanto, essa proposição teórica, pretensamente

explicativa da atual condição humana, contém uma contradição interna ainda

intransposta e que merece ser destacada em dois pontos básicos:

1. a ciência moderna já comprovou sobejamente6

que o aprendizado

de uma língua constitui-se em uma incrível acutização na utilização da estrutura

5

Introduzi o termo metáfora funcional em C. Ferrarezi Jr. (1997). Refiro-me ao tipo de metáforas

criadas em uma comunidade de fala com uma função social, cultural ou mesmo lingüística específica,

além da função de nomear um objeto determinado.

6

Sobre isso cf. D.I. Slobin (1980).

Page 19: Livres Pensares Atualizado

19

biológica humana disponível de que resulta a capacidade de comunicação. Assim é

que uma criança utiliza, nos primeiros meses de sua vida, uma gama muito maior de

sons do que aqueles que virá usar quando, efetivamente, tiver incorporado o sistema

fonético e o fonológico de sua(s) língua(s) materna(s). Da mesma forma, o espectro

gestual de uma criança é muito maior nos primeiros anos de vida do que após a

lapidação dos gestos e posturas imposta pela sociedade a ela. O aprendizado de uma

língua, portanto, é uma ação que fere aos princípios básicos da teoria da evolução,

porque constitui-se em uma “involução”, no sentido em que restringe o uso das

capacidades naturais presentes no ser humano, principalmente se acreditamos que a

filogênese repete a ontogênese. Parece claro que aceitar o desenvolvimento dos

sistemas lingüísticos como um passo decisivo na evolução é ferir a idéia de

“progresso” no desenvolvimento, ou ainda, pode consistir em aceitar que o homem

tenha evoluído até um limite brutalmente superior ao atual e, depois, acutizado suas

capacidades, o que cria altos e baixos inconcebíveis no processo de seleção natural da

maneira como é apresentado pelos evolucionistas.

2. o segundo aspecto refere-se aos efeitos do aprendizado de outras

línguas sobre o homem. Sabe-se que o aprendizado de outras línguas interfere no

quociente intelectual dos indivíduos em ordens bastante significativas. Neste aspecto

é que considero possível uma comparação, grosso modo, entre o computador e a

mente humana - e basicamente só nesse aspecto: um computador que tenha uma

capacidade y instalada, somente poderá dela fazer uso através da instalação dos

programas adequados e utilização da linguagem artificial que permita o

aproveitamento de tal capacidade y. Da mesma forma, a mente humana apresenta-se

com um potencial surpreendente e sua utilização é otimizada com o aprendizado de

novos sistemas lingüísticos. Ora, à luz dessas considerações, analisemos o que seriam

duas das crenças centrais acerca da evolução do homem, segundo Farias (1971):

a. o desenvolvimento dos sistemas lingüísticos é parte de um

processo evolutivo da humanidade;

b. a evolução das espécies resulta de um processo de adaptação que

consiste basicamente no aprimoramento de uma capacidade biológica para sua

utilização em determinada função vital.

Com base nesses dois fundamentos, poder-nos-íamos convencer de

que a uma provável monogênese lingüística7

permitiu, em função da evolução dos

sistemas lingüísticos independentes, que esses mesmos sistemas viessem a tornar-se

intercambiáveis. Que espécie de evolução biológica teria permitido, porém, a

adaptação do conglomerado neurológico cerebral dos homens de forma a permitir a

manutenção das estruturas arcaicas e o intercâmbio lingüístico dos sistemas recém-

desenvolvidos? E faz sentido essa pergunta na medida em que se constata que as

estruturas de linguagem que teriam pretensamente sido desenvolvidas por outras

espécies, como das abelhas, formigas, cães, gatos, símios inferiores, etc., são

simplesmente inintercambiáveis. Somente o ser humano é capaz de intercambiar

diferentes sistemas lingüísticos. E isto está de tal forma previsto em sua estrutura

neurológica que amplia as funções intelectivas inatas. Não parece haver resposta para

isso se levamos em conta o fato de que o processo evolutivo deveria alterar as

estruturas anteriores, promovendo uma adaptação progressiva do organismo e

7

Cf. M. Ruhlen (1991).

Page 20: Livres Pensares Atualizado

20

aprimorando as atividades intelectivas em uma direção única que deveria ser

exatamente a direção da evolução do sistema lingüístico. Mesmo porque já se sabe, há

muito, que o aprendizado de um sistema lingüístico interfere no desenvolvimento

biológico do ser humano. Entretanto, a estrutura neurológica mental,

independentemente do sistema lingüístico adotado, é hoje a mesma em todos os seres

humanos. Mais do que isso, todos nós mantemos a capacidade de aprender sistemas

lingüísticos rudimentares e de intercambiá-los, embora não tenhamos mais a

capacidade de correr eficazmente a quatro pés, como acredita-se que fizemos no

período pré-“erectus”, respirar debaixo d’água, como no período pré-pulmonar, etc.

Tal contradição poderia desfazer-se se pensarmos existir um derradeiro contra-

argumento evolucionista neste tema.

Chomsky (1997) argumenta que a aparente diversidade dos sistemas

lingüísticos parece estar-se desvendando em uma incrível simplicidade funcional,

comum a todos esses sistemas e biologicamente determinada pelas estruturas

neurológicas humanas. Assim, os sistemas gramaticais do português e do chinês, por

exemplo, são, na verdade, muito mais parecidos do que se possa pensar, bastando,

para tal constatação, apenas uma análise funcional mais acurada. Eu mesmo tenho

trabalhado no intuito de demonstrar isso. Argumento alhures8

que todos os sistemas

lingüísticos conhecidos utilizam uma mesma estrutura subjacente de traços

semânticos para superficializar as mais variadas construções gramaticais possíveis.

Esse argumento pode levar a pensar que, na verdade, a estrutura biológica já

desenvolvida pelo homem é que poderia ter diferentes utilizações no

desenvolvimento dos sistemas lingüísticos. Em outras palavras: da mesma forma que

o homem teria desenvolvido suas mãos com polegares opostos para manusear

artefatos rústicos e, depois, acutizado suas potencialidades na lapidação de jóias ou

na confecção de obras-primas da pintura, poderia ter desenvolvido o cérebro e,

depois, acutizado suas funções. Mas, a pergunta que remanesce é: e com que

finalidade se teria desenvolvido o cérebro de tal forma? Ou mais propriamente: com

que finalidade a estrutura cerebral destinada à linguagem ter-se-ia desenvolvido, uma

vez que os motes da evolução, deve crer-se, são manter-se e perpetuar-se? Às mãos, a

teoria evolucionista atribui a necessidade de manusear objetos rústicos, e isso teria a

ver com manter-se. Além do mais, nessa hipótese, os objetos já estariam lá presentes

como motivos para o desenvolvimento e, aludindo novamente Sapir, ter-se-ia um

caso típico em que o objeto refinou a ferramenta. E quanto ao cérebro, se a linguagem

lhe é uma acutização como a lapidação de jóias o é para a as mãos, com que finalidade

ter-se-ia desenvolvido? Os símios inferiores e as demais espécies animais mantêm-se e

perpetuam-se sem que para isso se lhes exija capacidade lingüística sequer

assemelhada à do homem. Ademais, os diferentes sistemas lingüísticos - como

instrumentos rústicos aprimorados no decorrer do tempo - deveriam ter gerado, em

função da diversificação das línguas, diferentes evoluções neurológicas mentais nas

diferentes raças, já então espalhadas pelo globo. Mas, isso não ocorreu.

Decididamente, ainda não há resposta para isso e, sinceramente, creio

que não haverá, por uma simples razão: a estrutura neurológica cerebral humana

responsável pela linguagem somente se pode justificar pela necessidade de

comunicação lingüística entre esses seres, isto é, pela necessidade de aprender uma

8

C. Ferrarezi Jr. (1998b)

Page 21: Livres Pensares Atualizado

21

língua, o que pressupõe a existência dessa língua. E a acutização promovida pelo

aprendizado de uma língua, como disse anteriormente, constrói um paradoxo

evolucionista para a existência de uma estrutura tão mais complexa do que a

necessária. A possibilidade de intercambiar os sistemas lingüísticos, por sua vez,

demonstra que a estrutura neurológica presente não foi desenvolvida apenas com

finalidades funcionais imediatas, mas prevista para uma utilização muito mais

complexa e diversificada. Finalmente, as pesquisas de monitoramento

computadorizado do córtex cerebral, há muito, apontam para uma utilização

progressiva da área cerebral com o aprendizado de novas línguas - donde a

substantiva otimização cognitiva verificada -, o que ratifica a idéia de que há muito

mais potencial do que utilização do cérebro humano nessa área, o que é, a meu ver, o

maior paradoxo existente na teoria evolucionista sobre o desenvolvimento da

linguagem como fator decisivo na bifurcação evolutiva homem/símios, sobretudo se

levamos em consideração a então inexistência do “instrumento língua” para motivar

uma pretensa evolução. Creio que, embora não a tenhamos esgotado, para as

finalidades desse artigo basta-nos a argumentação até aqui desenvolvida. Retornemos

à hipótese whorfiana.

Desde seu estabelecimento, a hipótese de Whorf, portanto, talvez

por sua vaguidade, possivelmente derivada do fato de a obra de Whorf não

apresentar formulações mais esclarecedoras quanto aos fundamentos de suas idéias,

tem sido abordada de forma igualmente vaga. Mas, creio que, como proposição

teórica, ela nos fornece pistas interessantes que podem ser juntadas às idéias originais

de Boas e Sapir para a montagem de uma hipótese mais abrangente, descartado, é

claro, o determinismo evolucionista que combati acima. Vejamos:

a. parece consensual que há um tipo qualquer de influência da língua,

como sistema classificatório, sobre os atos praticados pela comunidade que a fala;

b. por outro lado, pode-se também notar que os atos praticados pela

comunidade chegam a influenciar a língua dessa mesma comunidade;

Juntemos a estas duas idéias, postulados mais recentes, como os de

Franchi (1977), baseado em Humboldt (1836), ratificados em Coudry (1988) e em

Geraldi (1993):

“Não há nada imanente na linguagem, salvo sua força

criadora e constitutiva...Não há nada universal, salvo o processo - a

forma, a estrutura dessa atividade. (Trata-se de) um sistema simbólico

mediante o qual se opera sobre a realidade e constitui referências em

que aquele se torna significativo.”(op.cit. p.55)

Esta idéia de constitutividade, de processamento contínuo, criativo,

dinâmico, histórico, quase-estruturante, somada aos postulados de Whorf e seus

antecessores, pode conduzir a uma nova hipótese, mais consistente, sobre o

relativismo lingüístico.

Page 22: Livres Pensares Atualizado

22

2. A Hipótese da Interinfluência Cíclica entre Pensamento, Cultura e

Linguagem

Neste ponto, já posso expor com mais detalhes a hipótese central

deste trabalho e, baseado nas conclusões colhidas até aqui, elaborar seus argumentos

básicos, partindo para testá-los nos títulos subseqüentes:

Hipótese da interinfluência entre pensamento, cultura e linguagem:

pensamento, cultura e linguagem interagem, interinfluenciando-se de forma cíclica.

São os argumentos básicos desta hipótese:

a. a cultura de uma comunidade é o conjunto de todos os

instrumentos desenvolvidos por essa mesma comunidade, para conduzir

controladamente as ações da própria comunidade. Cultura é, pois, toda a produção

intelectiva externalizada de uma comunidade humana qualquer (Geertz, 1970);

b. a cultura de uma comunidade é o reflexo do pensamento dessa

comunidade, da visão que esta comunidade tem de seu mundo e de sua realidade

nesse mundo (Lévi-Strauss, 1968);

c. a língua é o principal instrumento de que dispõe essa comunidade

para expressar os valores de seu pensamento, sendo portanto o principal instrumento

de estabelecimento da cultura (Lévi-Strauss , 1968, Posey, 1984, Hymes, 1966);

d. como instrumento de estabelecimento dos valores da cultura, a

língua atua sobre a própria cultura, na medida em que a estabelece ou em que pode

ser utilizada para refutá-la. Assim, a língua atua sobre o pensamento, por

conseqüência;

e. atuando sobre o pensamento e a cultura, a língua atua sobre si

mesma, uma vez que é instrumento a serviço do pensamento e da cultura. Forma-se

daí um processo cíclico de interinfluência entre pensamento, cultura e linguagem, de

tal forma constituído que é tênue a linha de separação que permite ver mais

claramente a influência de um sobre o outro.

Uma ilustração hipotética demonstra bem o que quero apresentar

nestes argumentos básicos, Nos títulos subseqüentes procurarei, apresentando

exemplos da língua moré, confirmá-los mais claramente:

Em uma determinada língua L utilizada por

uma comunidade C, com suas peculiaridades culturais, o

nome estabelecido para um certo pássaro rapineiro é

“destruidor”. A rapina, nessa cultura, sempre foi mal vista,

pois trata-se de um povo criador de galinhas e codornizes,

e o pássaro recebe um nome que, na língua dessa

comunidade, significa “aquele que destrói, que danifica”.

Esse nome tem, portanto, uma conotação ruim na cultura

dessa comunidade.

Page 23: Livres Pensares Atualizado

23

As gerações que surgirem tenderão a ver o

pássaro destruidor como nocivo, maléfico. Isto é a língua

influenciando as novas gerações de falantes, mas porque já

foi influenciada pelo pensamento e pela cultura

anteriormente, no ato de nomeação do pássaro. Mas,

digamos que, em um momento qualquer de sua história,

essa comunidade seja afetada por uma praga de roedores

que destroem as lavouras de milho, colocando em risco,

mesmo a criação das galinhas e codornizes que dependem

do alimento advindo daquelas plantações. O pássaro

destruidor poderá assumir um papel importante no

combate a essa praga e passar a ser visto como o

“destruidor da praga”, ganhando uma conotação boa na

cultura. O sentido da palavra que designa o nome do

pássaro será modificado em conseqüência da mudança do

pensamento e da decorrente mudança da cultura. As novas

gerações receberão valores culturais diferentes expressos

pelo nome do pássaro, pois o ciclo de interinfluência entre

linguagem, cultura e pensamento atuou decisivamente.

Podemos representar esse processo pelo seguinte esquema:

pensamento= cultura= linguagem=

visão de avicultores trato de avicultores “destruidor (das aves)”

realidade 1 realidade 1 realidade 1

pensamento= cultura= linguagem=

visão de avicultores trato de avicultores “destruidor (da praga)”

realidade 2 realidade 2 realidade 2

Nesse esquema, a interligação dos balões indica a inter-relação

existente entre pensamento, cultura e linguagem, tanto sincrônica como

diacronicamente. Cada um dos balões refere-se a uma realidade contextual e a seta

com duas pontas indica que o movimento não é seqüenciado, mas cíclico, num ir e vir

interinfluenciante. A seta de uma única ponta indica a direção cronológica, isto é, a

passagem, no tempo, do primeiro ao segundo estágio de desenvolvimento.

Passemos agora a exemplos atestados na língua e na cultura morés.

3. Uma Pincelada sobre Cultura e a Língua Morés

O povo moré, da etnia Chapakura, da Amazônia, não é exceção aos

demais povos indígenas da América, que passam por um flagrante processo de

Page 24: Livres Pensares Atualizado

24

aculturação e conseqüente caboclização. Estimado em quatro mil índios em 1950 e

contando com cerca de cento e cinqüenta indivíduos em 1969 (Grasso, 1982), esse

povo vive atualmente na aldeia boliviana de Monte Azul, às margens do rio Azul,

afluente do rio Guaporé. Dos quase duzentos indivíduos conhecidos atualmente,

apenas cerca de dez, todos anciãos, falam a língua moré suficientemente bem para se

constituírem como prováveis informantes. Os demais, ou entendem malmente o que

os anciãos falam, ou nem sequer compreendem qualquer expressão na língua.

O processo de pacificação pelo qual passou o povo moré, atingiu

também outras seis nações Chapakura, cujas línguas são dadas como extintas:

kitemoka, napeka, torá, chapakura, urupá e yaru. Outras línguas permanecem

temporariamente vivas: do miguelenho conhece-se um falante idoso vivo; do kuyubi,

um em mesma situação. As nações residentes no Brasil, às margens dos rios Laje e

Pacaás Novas, no território do município rondoniense de Guajará-Mirim, são as que

se encontram mais fora de risco, do ponto de vista das populações. Trata-se das

nações oro wari (oro win, oro nao, oro mon, cao oro waje, oro waram, oro eo, oro

waram txien e oro at). Algumas contam com quase mil falantes, como a oro nao9

.

A língua moré possui a peculiaridade de ser isolante, segundo a

tipologia humboldtiana (Humboldt, 1836). Os recursos utilizados por esta língua são

pouco conhecidos, uma vez que diferentes dos que são utilizados pelas línguas

aglutinantes e flexionais e já que não se tinha notícia anterior de descrição de outra

língua natural puramente isolante. Vejamos, portanto, muito sumariamente, alguns

aspectos da gramática do moré10

:

Em moré não há, em princípio, quaisquer tipos de afixos ou clíticos,

flexionais ou derivacionais. Todas as unidades mórficas são lexemas independentes,

invariáveis e plenamente isolados, apresentando obrigatoriamente uma das quatro

estruturas seguintes: #CV:# ([u] “o vento”), #CVC# ([] “o osso da perna”),

#CVCV:# ([] “o caminho”) ou #CVCVC# ([] “a onça”). Pode-se

considerar, porém, que o estágio atual da língua apresenta forte tendência à

flexivização, por influência extrínseca, provavelmente.

O moré, como as demais línguas Chapakura e quaisquer outras, usam

formas de concordância e regência como recursos convencionais para garantir a

inteligibilidade dos seus enunciados através da harmonização de traços semânticos

subjacentes11

.

Assim como nas demais línguas naturais, o contexto da enunciação

em uma língua puramente isolante é não só um auxílio para a interpretação do

enunciado. Trata-se de um dos recursos mais importantes da língua para que o

falante possa levar a interpretação a efeito satisfatoriamente, principalmente para a

recuperação dos elementos elididos. E é justamente nesse contexto mínimo definido e

compartilhado pelos interlocutores que se estabelecem os parâmetros do bom senso

comum que servem de esteio para a construção e interpretação dos diversos

enunciados, inclusive os poéticos, os mitológicos e os meramente figurativos.

Quanto a uma taxonomia lexical, diríamos que os lexemas do moré

podem ser utilizados indistintamente na qualidade do que tradicionalmente

9

Segundo dados da Superintendência Regional da Funai em Guajará-Mirim fornecidos em 1996.

10

Para uma explicação mais detalhada cf. C. Ferrarezi Jr. (1998a).

11

Sobre isso cf. C. Ferrarezi Jr. (1998b).

Page 25: Livres Pensares Atualizado

25

chamaríamos de “verbos”, “nomes substantivos”, “nomes adjetivos”, “nomes

adverbiais”, “locativos”, etc. Ou seja, os lexemas dessa língua possuem um sentido

original abstrato que é gramaticalizado como “nome” dos diversos tipos ou “verbo”,

etc., única e exclusivamente no nível do enunciado. Exceção a esta característica

“ataxonômica” dos lexemas Chapakura pode ser feita àqueles que designam

significados meramente gramaticais, ou seja, àqueles que parecem existir em função

da estrutura da língua, de sua gramática, e que exprimem significados como pessoa

gramatical, inter-relação entre os sintagmas, elementos de um sintagma ou sentenças,

etc. A esses lexemas igualmente isolados e independentes poderíamos, com

propriedade, chamar de conectivos gramaticais. Entretanto, aos outros, não lhes cabe

nenhuma das designações tradicionalmente encontradas nos manuais. Houvemos

por bem designar as únicas duas classes de lexemas dessas línguas, portanto, de:

1. classe aberta - à primeira, com significados exteriores à estrutura

gramatical da língua. Esta classe, como é próprio das classes ditas nocionais, cresce ou

diminui em número de elementos com o desenvolvimento histórico da língua;

2. classe fechada - à segunda, composta por cerca de dez lexemas,

cujos significados têm natureza gramatical. Trata-se de um paradigma mais rígido,

uma vez que não há a necessidade de alterações em seus elementos ou de acréscimos,

visto que a estrutura atual da língua é suficiente para a expressão cabal do

pensamento e da cultura de seus falantes.

Uma terceira classe poderia ser considerada, mas não no nível lexical.

Trata-se da classe dos “pronomes”. Na verdade, essas línguas não possuem lexemas

pronominais simples, entendido o pronome em sua acepção tradicional. Há grupos,

parcialmente cristalizados nessa língua, de lexemas que funcionam como anáforas,

catáforas ou determinantes nominais. Conviria considerá-los como uma espécie de

“classe sintagmática”.

Uma vez que a língua não possui uma morfologia interna

significativa e já que somente existem morfemas lexicais indecomponíveis, não há

componente lexical com regras morfofonológicas cíclicas alternando-se com regras

morfológicas de inserção de morfemas. Podemos, portanto, considerar que, em moré,

o input do componente lexical vazio coincide com o input do componente pós-lexical.

Estas brevíssimas observações sobre a estrutura da língua moré serão

suficientes para entendermos os exemplos comprobatórios da hipótese de

interinfluência entre pensamento, cultura e linguagem. Passemos a eles.

4. Atestando a Interinfluência entre Pensamento, Cultura e Linguagem

Há, pelo menos, três fatos estruturais da língua moré - mas, não

exclusivos a ela - que servem de forte argumento para comprovar a hipótese até agora

defendida. São eles:

1. as concordâncias reveladas através das palavras gramaticais;

2. as construções figurativas e;

3. as gramaticalizações de pressuposições mitológicas em paráfrases

de nomes próprios.

Page 26: Livres Pensares Atualizado

26

Vejamos uma a uma:

4.1. Concordâncias

Observemos o exemplo abaixo:

3. //[a onça ][apontativo de objeto/ passado / neutro [o

jacaré]]]

Apresentado na ordem sintática direta portuguesa, este exemplo

parece claro em função de sua tradução para o português, língua que tem uma

sintaxe de ordem rígida. Mas, em moré, como quase não há restrição à ordem dos

termos nesta sentença, ela pode apresentar outras formas naturais:

4. 5. 6. 7. , etc.,

todas paráfrases perfeitas de 3, “a onça caçou o jacaré” , e nunca com

o significado “o jacaré caçou a onça.” Como a inteligibilidade deste enunciado é

garantida? Com base no recurso da concordância. Os lexemas , , e , associam-

se em função de seus sentidos “apontativo de objeto”, “tempo passado” e “marca de

gênero neutro”, em uma estrutura “verbal” composta que indica que “um referente

de gênero neutro foi alvo de alguma ação no tempo passado”, que tem sentido em

função dos dois outros nomes presentes na sentença.

Uma pergunta que parece imediata é “de onde vem a idéia de

caçar?”. Pragmaticamente, estabelece-se em todas as línguas que a economia

enunciatória é, sempre que possível, um recurso bem vindo. No moré, o apontativo

de objeto, quando aparece só na sentença, tem seu significado atribuído em função

da ou das relações empiricamente conhecidas ou culturalmente determinadas entre o

elemento agente e o elemento paciente da sentença. Quando isso não é possível,

aparece o lexema ou conjunto de lexemas específico necessário à interpretação. Em

português, algumas palavras assumem esta mesma característica polissêmica do

apontativo moré, como ocorre, por exemplo, com a palavra “coisa”, utilizada na

qualidade de verbo em:

1. Mãe, olha aqui o Joãzinho que está me coisando! (no sentido de

chateando, atazanando)

2. Pára de coisar essa televisão, menino! (no sentido de mexer, fuçar)

3. Joãzinho coisou a Mariazinha e ela engravidou... (no sentido de

copular)

4. Essa mania de ficar coisando as coisas dos outros ainda acaba com

esse moleque. (no sentido de mexer sem permissão, vasculhar ou fuçar)

Page 27: Livres Pensares Atualizado

27

Assim, como os dois nomes presentes na sentença são de seres

naturalmente caçadores, mas que também podem ser caçados, atribuir o sentido de

caçar ao apontativo, neste caso, tornou-se um estatuto pragmático da língua e cabe à

determinação do gênero de cada um a definição de quem foi caçado (e de quem

caçou, por conseqüência).

Em uma oração tipicamente transitiva do moré, o nome que assume a

função que em português chamaríamos de verbal, vem associado a um lexema do

mesmo gênero do objeto. O nome para onça é masculino; o nome para jacaré é

neutro. Assim, somente se pode interpretar esta sentença como significando “a onça

caçou o jacaré”, independentemente da ordem em que os termos sejam apresentados,

se se conhece o gênero dos nomes nucleares onça, ejacaré. Mas, se

a língua não possui qualquer tipo de afixação ou flexão de gênero, ou seja, se as

palavras do moré são totalmente isolantes, logo, invariáveis, de onde vem a

informação de que é masculino e é neutro? Da cultura.

Na mitologia moré esses traços culturais determinados na língua são

revelados através da constituição de mitos e lendas. A onça, por exemplo, aparece na

mitologia como sendo um homem castigado e transformado em animal, e o jacaré um

dos seres assexuados e estéreis que o deus peixe mantinha sob sua custódia (uma

espécie de eunuco das profundezas, algumas vezes aludido como sendo uma mulher

estéril). Hoje, mesmo que os falantes do moré desconheçam sua mitologia e aceitem

tacitamente o gênero dos nomes da língua, como o fazem os falantes do português,

pode-se verificar a influência da cultura sobre a forma gramatical e da forma

gramatical sobre o pensamento, uma vez que os referentes têm mais probabilidade de

serem vistos como espécies que refletem o gênero de seus nomes.

4.2. Construções figurativas

Segundo Greimás & Courtés (1979) e Black (1954-55 e 61), uma

construção figurativa na língua é uma operação definível nos termos de uma função.

No caso de uma metáfora, a função exigirá que o sentido de um elemento de um

paradigma semântico seja transferido para um elemento de outro paradigma

semântico. No caso de uma metonímia, a transferência de sentido dar-se-á entre

elementos de um mesmo paradigma. Esta forma12

de ver tais funções como operações

entre ou dentro dos paradigmas nada mais é do que uma representação das relações

de transferência de sentido por similaridade (metáfora) e por contigüidade

(metonímia) da Semântica estruturalista. Mas, a pergunta que deve ser feita é: quem

ou o quê estabelece esses paradigmas? Creio haver suficientes provas de que é a

cultura que os estabelece.

Na língua moré, como os lexemas básicos (ou simples) são poucos, em

função de sua natureza isolante, e, em conseqüência, os lexemas compostos pela

combinação dos lexemas básicos são em número muito maior proporcionalmente, a

língua recorre demasiadamente às construções nominais figurativas. Assim, seja para

12

Sobre isso, cf. C. Ferrarezi Jr. (1998c).

Page 28: Livres Pensares Atualizado

28

nomes comuns de seres, antropônimos, topônimos, etc., temos quase sempre uma

combinação que gera uma figura. Um dos desafios a que me propus foi verificar,

junto aos informantes, o que, para eles, se constituía num empréstimo de significados

entre elementos de paradigmas diferentes e o que se constituía num empréstimo de

significados entre elementos do mesmo paradigma. Alguns dados são especialmente

significativos:

8. / [ areia / cabeça]

“corvina de água doce”

Para nossa cultura, isto poderia ser considerado como uma metáfora

entre peixe e areia, ou até, em última análise, como uma mera descrição do fato de

que este tipo de peixe possui duas pequenas pedras de cálcio em uma cavidade do

osso occipital. Mas, para os morés, que consideram este tipo de peixe como um dos

elementos mitológicos que nasceram da areia da praia, trata-se de uma metonímia. A

cultura e o pensamento moré estabelecem uma relação de contigüidade entre este

peixe e a praia que forma um único paradigma identificável. O mesmo acontece com

9. / [está deitado em/ areia]

nome dado a certo pássaro de hábitos praianos (“cuyabo” da praia),

igualmente considerado um dos seres nascidos das areias das praias do rio Azul.

Como se pode notar, também aí se nota a interinfluência entre a

linguagem e pensamento. Aquela expressa as idéias sobre o mundo, idéias que

compõem o pensamento da comunidade que a fala. Por sua vez, essas idéias aceitas e

refletoras da visão do mundo pelos morés (ou seja, o pensamento) interferem na

cultura.

Uma das formas mais interessantes e notáveis de interferência nos

hábitos culturais por parte da língua é a indicação indireta, através dos nomes dos

seres, da tecnologia mais própria para ser utilizada na realização de certa tarefa e

dominada pela comunidade de fala. Quando o nome de um animal mostra que ele

vive na praia ou no alto das árvores mais altas da mata, este nome dá ao caçador do

animal pistas interessantes sobre que tipo de tecnologia deve ser utilizada para a caça.

O mesmo se dá quando o nome de um rio indica que suas águas são turbulentas, o

nome de um lugar indica que seu relevo é rochoso e íngreme, ou o nome de uma

comida indica que ela deve ser assada, cozida ou comida crua. Em todos esses casos, a

língua traz em si informações funcionais significativas à cultura e que refletem a

forma como a comunidade vê seu próprio mundo.

4.3. Gramaticalizações de pressuposições mitológicas

Em uma cultura como a moré, em que os mitos e lendas estavam

muito vivos na alma dos falantes até há bem pouco tempo (e que, aliás, ainda o estão,

Page 29: Livres Pensares Atualizado

29

na alma dos cerca de dez anciãos restantes), muitas vezes, é possível ver como

elementos da cultura refletem-se na estrutura gramaticalizada para uma determinada

sentença ou nome próprio13

. Narro aqui um fato interessante ocorrido em uma das

sessões de coleta de dados com o informante principal. Veja-se o dado abaixo:

10. ////

[jaguatirica (caçar + arara)] / caçar / passado /masculino/ arara]

“A jaguatirica caçou a arara.”

Esta sentença foi dada como paráfrase do nome composto

“jaguatirica”, que significa literalmente “caçar arara”. O fato interessante

desta sentença é que o tempo gramatical expresso é o passado e não um tipo de

presente contínuo, como ocorre na grande maioria dos exemplos de paráfrases de

nomes compostos colhidos. Isto se explica de forma muito interessante. Os nomes

para jaguatirica e para arara foram atribuídos, segundo os informantes, de forma

mítica, em um passado remoto, definido pelos morés como “ancestral”. O nome da

jaguatirica deve-se, segundo eles, ao fato de ela ter caçado uma arara em especial (que

por sua vez era um guerreiro transformado em ave), e não por ela ser um animal

destro caçador de araras ainda hoje. Esse fato mitológico é que obrigaria o verbo ao

passado.

Este dado apresenta de forma bastante interessante a interinfluência

que venho defendendo. As alterações gramaticais às quais o falante se obriga ao

montar esta sentença parafrástica, como a determinação do tempo gramatical

passado, não podem ser justificadas de outra forma que não pela influência da

cultura na forma da língua, o que resulta em uma influência no - e já um reflexo do -

pensamento de quem usa essa língua como falante nativo. Este dado moré remete ao

fato de que o falante somente pode usar sua língua coerentemente se este uso

obedece aos padrões culturais em que esta língua se insere e para os quais ela foi, de

certa forma, desenvolvida e está devidamente adaptada.

Ao construir uma sentença em moré ou em outra língua qualquer,

para descrever um determinado objeto, é imprescindível que o falante parta de sua

visão cultural do objeto para descrevê-lo usando o sistema lingüístico como

instrumento nessa descrição. É por isso que uma representação lingüística do

significado do nome da jaguatirica na cultura e na língua morés obriga o verbo ao

passado. É por isso, também, que as línguas que utilizam o sistema gramatical de

classificadores nominais na estruturação de suas concordâncias internas exigem dos

falantes que aprendam a enxergar o mundo em conformidade com a visão cultural

expressa na língua. Para falarmos em yanomami, por exemplo, em que os

classificadores são representativos da forma física dos objetos, a construção de uma

sentença exige um tipo de visão do mundo que não tem a menor importância em

inglês ou português. Para construir a frase yanomami correspondente à portuguesa

“A canoa está no rio.”, precisamos saber a que grupo de nomes “canoa” e “rio”

13

No sentifo fregeano; cf. G. Frege (1978)

Page 30: Livres Pensares Atualizado

30

pertencem, em função de sua conformação física aparente ou culturalmente

estabelecida. Em português ou inglês isso não tem a menor importância gramatical. E

por que digo “conformação física aparente ou culturalmente estabelecida”?

Como argumentei alhures14

, é com base no pensamento e na cultura

de uma comunidade que esta realiza a constituição dos paradigmas utilizados no

sistema lingüístico. Inserir dois quadrúpedes ou duas árvores ou duas flores em um

mesmo paradigma parece um ato quase natural, porque as semelhanças aparentes

entre os elementos desses conjuntos são tão evidentes que dispensam maior atenção.

Certos seres ou objetos, entretanto, não permitem tal classificação óbvia. Um bom

exemplo disso ocorre na cultura yanomami, segundo a qual avião e canoa pertencem

ao mesmo paradigma e recebem idêntico afixo classificador. Isso se dá, não porque

avião e canoa são meios de transporte, mas porque o “corpo” do avião, segundo os

yanomami, tem a mesma forma física do “corpo” da canoa. Para chegar a tal

conclusão, os yanomami tiveram que filtrar culturalmente sua visão de um avião de

tal maneira que as asas, a cauda, as turbinas ou hélices, as rodas, tudo isso foi

desprezado em função da forma de “canoa” do corpo de uma aeronave cortado

longitudinalmente ao meio. Nesse caso, a classificação não foi estabelecida em função

de aspectos meramente aparentes, muito menos o foi de forma evidente a qualquer

cultura, mas com base nos princípios culturais interpretativos do mundo utilizados

pelos yanomami na constituição de seus paradigmas lingüísticos, uma vez que, nessa

língua, todos os nomes têm que ser classificados.

É bastante provável que no desenvolvimento natural da língua

yanomami esses aspectos aglutinantes se flexivizem, de tal forma que esses

classificadores, atualmente bem distintos, venham a fazer parte da estrutura dos

lexemas de tal forma que os futuros falantes não possam mais neles reconhecer a

origem cultural, do mesmo modo que acontece com a maioria dos falantes - não

filólogos - das línguas neolatinas. Mas, de forma alguma isso indica que a constituição

dos paradigmas dessa língua não adveio de aspectos do pensamento e da cultura dos

povos que as originaram ou desenvolveram.

5. Conclusão

Na hipótese que defendi neste trabalho, as palavras-chaves são

influência e ciclicidade, diferentemente da hipótese whorfiana, que defendia a

determinação unilateral da linguagem sobre o pensamento. Penso haver um ganho

descritivo bastante grande com esta nova hipótese em relação aos fatos observáveis

nas línguas naturais, como demonstrei através do moré. Esta hipótese permite, entre

outras coisas, dar respostas às três restrições que fiz no título 1 à hipótese de Whorf.

Mais do que isso, ela permite explicar relações funcionais entre a linguagem e os fatos

culturais de um povo, bem como entre a linguagem e o padrão de pensamento de

14

C. Ferrarezi Jr. (1998c)

Page 31: Livres Pensares Atualizado

31

cada comunidade. O poder previsivo da hipótese também é muito maior em relação

ao da teoria proposta por Whorf.

Outro ganho que considero significativo é a acolhida que esta

hipótese dá à separação, comum na Antropologia e na Sociologia modernas, entre

cultura e pensamento, o que não ocorre na hipótese whorfiana.

7. Referências Bibliográficas:

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BOAS, F. (1911). Linguistics and Ethnology. (Outras Informações não disponíveis)15

.

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apresentada no IV Seminário de Estudos Lingüísticos e Literários.

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Acadêmica.

WHORF, B. (1939). Lenguage, Pensamiento y Realidad. ed Barral. (outras informações não

disponíveis)16

.

15

Este texto foi fornecido como material didático para discussão durante atividade letiva da

Universidade Estadual de Campinas. Não me foi possível conseguir os demais informações

bibliográficas.

16

Idem nota anterior.

Page 32: Livres Pensares Atualizado

32

VINCTI SPEI1:

Um brevíssimo ensaio antropológico

Ao grande mestre e amigo Clodomir Santos de Morais

0. Introdução:

Tratamos aqui de um profícuo campo de estudos sociológicos e

antropológicos: associativismo. Uma proposta de estudo com a participação de

múltiplos agentes de diversos níveis acadêmicos é o mote. Cabe, antes de entrar em

nosso ensaio, portanto, uma descrição, mesmo que sumária, do porquê e do como para

que os dados sejam estes e não outros.

A academia ensina que o primeiro passo metodológico para a

realização de uma pesquisa de campo é a elaboração de instrumentos adequados de

coleta de dados. Elaboramos um questionário que procurava levantar dados em quatro

campos temáticos diferentes sobre os grupos associativos de Guajará-Mirim. Foram

estes os temas levantados:

1. Da associação - sua natureza, origem, magnitude e estrutura

organizativa interna. Pretendemos, com esta parte do questionário, levantar os

aspectos orgânicos que dão sustentação ao funcionamento de cada associação.

Críamos - e confirmamos nossa crença - que o organismo da associação refletiria o

nível de desenvolvimento da consciência organizativa de seus membros, bem como

ditaria grandemente as possibilidades de tornar concretos os objetivos aos quais a

organização propõe-se.

2. Do funcionamento - levantamos, neste capítulo, aspectos funcionais

não orgânicos da associação. Aqui se pretendeu averiguar de que forma os associados

dispõem de seus meios organizacionais, como usam os recursos que possuem, qual é o

aproveitamento que fazem de uma estrutura que construíram ou herdaram.

Objetivávamos, ao inserir tal tema, verificar até que ponto uma estrutura orgânica

define os rumos de uma associação. Constatamos que influi sucesso da empresa,

porém não da forma determinante como comumente se apresenta, uma vez que a

estrutura orgânica não é nada sem movimento. Assim como um corpo humano,

complexíssimo, obra-prima viva e ainda fora do controle total de seus possuidores, que

cai inerte, inútil, putrefato sem o movimento que a vida lhe confere.

3. Dos associados - quem são, que idade têm, onde trabalham e qual é

o nível de formação acadêmica. O que se queria averiguar era a relação entre a vida

social e a vida associativa. Não queríamos constatar o reflexo da ideologia artesã ou

1

Prisioneiros da Esperança. Trata-se de uma célebre frase romana utilizada em relação aos miseráveis de

uma nação.

Page 33: Livres Pensares Atualizado

33

operária no funcionamento da associação, tese importante, mas suficientemente

comprovada. Buscávamos, isto sim, uma relação entre as necessidades cotidianas do

associado e o fato de ele ser associado.

4. Opiniões e perspectivas dos associados - trabalhamos, aqui, com a

imagética do associado: como ele se vê e como ele vê a associação. Mais do que isso,

como ele acha de se deveria ver e deveria ver sua associação. Os princípios gerais da

imagética psicossocial seriam testados e, de forma alguma, refutados. A inter-relação

entre a imagem egocêntrica, calcada nos sentimentos pessoais desenvolvidos no

íntimo sapiens e a imagem alteregocêntrica, calcada nos arquétipos socialmente

construídos de um homo symbolicus e, ainda, faber.

Estes capítulos obrigatoriamente preenchidos de nosso questionário

subsidiar-nos-íam em nossa análise global do movimento associativo em Guajará-

Mirim. Mas, ainda uma outra espécie de dados nos interessavam: aqueles que se

abstraíam do complexo imagético do pesquisador. Abrimos, então, um capítulo para

observações livres, daquelas que mais se nos configuram como fofocas e bisbilhotices

de alguém que, de fora, chega para ver como somos e o que pensamos. Eram mesmo

estas as que queríamos; e decididamente as alcançamos. Como as uvas maduras que a

gralha negou à raposa, se nos vieram doces e cheias de revelações embriagantes sobre

a forma como o cidadão comum vê as associações...dos outros.

Estes questionários foram aplicados em um intervalo de cerca de uma

semana por um corpo eclético de pesquisadores: graduandos, graduados, especialistas

e membros comuns da comunidade. Em uma segunda data, os questionários foram

repassados à dupla de mestrandas que trabalharam os dados estatisticamente,

procurando retirar deles algumas conclusões preliminares. O trabalho de tratar

cientificamente os dados brutos durou mais uma semana. Meu trabalho pessoal

resumiu-se à orientação e organização do trabalho como um todo, emitindo o mínimo

de sugestões possível2

e, agora, o feitio do brevíssimo ensaio que se segue.

I. Organismo social

O que é um organismo social, se não um ser vivo em que cada célula

luta pelo alimento que pelo corpo circula? Se cremos que a organicidade do mundo

biológico determina a composição dos conglomerados de indivíduos aos quais

podemos, também, chamar organismos, não temos outra resposta que não a de

considerar a questão acima como uma indagação auto-respondida: trata-se mesmo

uma sociedade de um ser vivo. Como diria Farias, a mais complexa e sublime “forma

de organização da matéria viva”3

E o homem, nada mais do que “uma célula viva

integrada no seu grupo social e dele integrante”4

.

Mas, obviamente, como um organismo vivo qualquer, que evolui em

sua existência da forma unicelular à multicelular, esperar-se-ia que as sociedades

2

“O mínimo possível” é um eufemismo para “o quanto achei necessário”. Obviamente “o mínimo

possível de sugestões” é nenhuma.

3

FARIAS, Álvaro de. Homem, O Mago Pensador: Pensar- o que é? São Paulo, Edicon, 1984.

4

Idem.

Page 34: Livres Pensares Atualizado

34

refletissem esta mesma evolução, mas no nível de sua existência, muito mais longeva

do que a da maioria dos seres vivos que conhecemos. Assim, se um ser humano passa

do unicelular ao multicelular e complexo em algumas semanas, e do multicelular e

complexo à sua maturidade em poucos decênios, a escala cronológica das sociedades,

formadas por estes mesmos seres humanos, sociedades estas que constituem formas

de vida organizada em estruturas muito mais intrincadas, porque constituídas de

organismos complexos de per si - os homens-, e se estas sociedades têm a

peculiaridade de serem regenerativas, porque capazes de substituir suas células-

indivíduos por outras igualmente funcionais, conseqüentemente sua cronologia será

mais dilatada. Falamos de séculos, milênios talvez, se pudermos provar que a

organicidade de nossas sociedades advém da organicidade das sociedades ditas

primitivas. Ou mesmo, se pudermos comprovar - isto sim parece-me mais lógico - que

nossa sociedade é, ela mesma, o organismo social primitivo que consideramos

germinal, que já se encontra em avançado estágio de amadurecimento5

.

Considerada a longevidade de um organismo social, podemos admitir

que as fases apresentadas por Farias6

são lógicas e palpáveis. Em um parágrafo

encontrado na página 55 da obra citada, Farias assim resume a história das sociedades

humanas:

“Ultrapassava-se, assim, a era histórica em que as

organizações internas dos agrupamentos sociais baseavam-se na

espontânea e necessária solidariedade diante de um inimigo

comum - o mundo selvagem. Iniciava-se a era da pressão das

necessidades individuais e das relações de competição no seio

dos agrupamentos e entre os próprios indivíduos.”

Duas fase são explicitadas neste parágrafo. Excetuado o período pré-

social, dois outros em cujas interinidades perdurou relações diferentes entre o homem

e a natureza determinaram comportamentos distintos do ser humano na qualidade de

célula de um organismo social. Farias descreve o fato de que o homem era indivíduo,

por suas relações unívocas com o mundo. Em função do advento de tecnologias e

necessidades diversas, o homem se agrupou e surgiu o trabalho socialmente

determinado. O homem constitui, então agrupamentos; organiza-se, enquanto

matéria viva, de forma mais complexa, porque torna a si mesmo, unidade complexa e

integral, uma partícula de uma unidade ainda mais complexa, da qual ele ainda estaria

longe de compreender a cabalidade. Novas tecnologias e novas necessidades, porém,

viriam a promover uma segunda e mais assustadora transformação, aquela em que o

homem desenvolve a capacidade de abstrair necessidades, criando-as em função da

descoberta do seu poder de projetar. Surge o escravismo, e com ele o organismo social

simples, mas unívoco que se formara, torna-se em um emaranhado de re-indivíduos.

O homem havia redescoberto a individualidade, através de um confronto de

interesses personalistas que respondiam às projeções abstratas de necessidades nem

sempre tangíveis, quase sempre ilusórias. Farias comenta:

5

Ou, quem sabe, já se encontra em degenaração putrificante. Não se pode olvidar que a morte é parte

da evolução do organismo vivo e colabora para a continuidade da vida no sistema.

6

FARIAS, Álvaro de. Da Babel à Comunicação. São Paulo, Matra, 1971.

Page 35: Livres Pensares Atualizado

35

“Esta pulverização ou atomização alienou os

indivíduos uns dos outros, alienou-os das relações de produção

na natureza, dessa natureza da qual inegavelmente provêm e

para a qual inegavelmente retornam.”(op.cit., p.56)

Intrigante evolução de um organismo: de unidades-indivíduos a

unidades com indivíduos e depois a unidades pulverizadas por seus próprios

indivíduos. Este processo, diacronicamente determinado, que constitui a evolução

orgânica das sociedades humanas, pode ser representado como a seguinte

transcorrência de estágios: unidade complexidade de unidades unidade na

complexidade.

Não é incomum que os estágios evolutivos, diacronicamente

determinados, de um organismo vivo sejam reproduzidos sincronicamente em sua

existência. Assim é que os mesmos princípios que propiciaram ao homem sua

transformação de unicelular a multicelular e complexo7

coexistem no organismo

maduro, ensinando a própria história como um filme que se repete milhares de vezes

para quem o quiser assistir. Na Lingüística, não raras vezes encontramos nitidamente

os diferentes estágios diacrônicos da evolução de uma língua em sua estrutura

sincrônica. E as línguas, tanto quanto as sociedades, são organismos vivos, complexos,

multifacetados.

É assim que, nesta selva social individualista aludida por Farias,

encontram-se representados e visíveis diferentes estágios da evolução orgânica das

sociedades humanas. O associativismo participa representativamente de um desses

estágios - a nosso ver, o primeiro e mais longínquo.

II. Argumentum Baculinum8

Deveríamos nos perguntar o porquê de os homens se agruparem em

associações, se já vivem em sociedade. A resposta, a meu ver, só se encontra na

diacronia do processo evolutivo descrito anteriormente.

Em uma sociedade que se pauta em relações determinadas pela

capacidade de abstração de seus indivíduos e, por isso mesmo, uma sociedade

altamente simbólica, imagética, e ainda mais, que se caracteriza por um individualismo

atomizante, sobreviverá, segundo as normas da natureza para os seres vivos, aquele

que estiver melhor preparado. Na maioria das vezes, o preparo que a natureza exige se

resume à força - real ou abstrata - que o organismo exibe.

Em um mundo de relações do tipo sujeito-objeto, a demonstração de

força obviamente será real e concreta. O sujeito deverá ser capaz de demonstrar suas

aptidões para a sobrevivência sobrevivendo. Estas demonstrações típicas dos

irracionais, mas igualmente presentes nas sociedades humanas, cria a imagem

infecunda de que a força sobrepuja a razão em quaisquer circunstâncias naturais. O

7

É conveniente deixar claro que não falo aqui da evolução da espécie, mas da evolução do indivíduo, de

sua geração a sua maturidade.

8

“Argumento do cacete”. Velha expressão latina que se refere ao poder da força sobre a razão.

Page 36: Livres Pensares Atualizado

36

rato que se esconde em uma pequena reentrância da parede e sobrevive diante das

garras afiadas e muito mais rápidas do gato é um singelo exemplo de que outros

fatores, que não o poder traduzível em força bruta, concorrem para determinar a sorte

dos organismos em um sistema biodiverso.

Em um mundo de relações do tipo sujeito-abstração objetal, a

demonstração de força poderá, e provavelmente o será, de igual forma, uma abstração.

Não se traduzirá simplesmente na sobrevivência do sujeito, mas compreenderá outros

fatores de complexidade inimaginável em que os arquétipos imagéticos e símbolos

socialmente construídos fluem e refluem na construção de um sistema ao qual Farias

se refere como sendo de “feições de coisas”9

. A demonstração de poder em uma

sociedade como a nossa pode ser simplesmente uma encenação, uma farsa. São mais

raras as demonstrações concretas de força, em um sistema de relações como as

sociedades modernas, do que as teatralizações. O homem moderno desenvolveu

grande e velozmente a capacidade de representar-se forte sem o ser. A linguagem

concorre como arma surpreendente para isso, mas há outros artifícios para a mesma

finalidade.

Em uma sociedade atomizada, em que os indivíduos atuam uns contra

os outros em busca de seus interesses pessoais, mas que se caracteriza por ser pautada

em relações calcadas em abstrações, o mega-indivíduo, aquele que se possa abstrair e

representar como o mais poderoso de todos, certamente terá mais sucesso. O

indivíduo que encarna as qualidades orgânicas essenciais a um ser vivo, ou seja, as

capacidades de regenerar-se e ser longevo, de demonstrar força na hora certa e, se

necessário e em último caso, de demonstrar concretamente a força que possui, terá

muito mais chances de sobrevivência do que o indivíduo comum. Entretanto, este

indivíduo não existe, exceto na imaginação dos ficcionistas e dos ingênuos, que

fizeram de homens comuns super-heróis detentores de poderes incalculáveis. Este

mega-indivíduo deveria ser - e efetivamente acabaria sendo - criado, não como

resultado de um projeto humano de desenvolvimento, mas como resultado natural da

evolução do organismo social. Este mega-indivíduo é a associação.

O associativismo constitui novamente o estágio inicial da evolução do

organismo social, quando o homem-indivíduo labutava sozinho com a natureza. Só

que, agora, a natureza é a sociedade atomizada e o indivíduo é o mega-indivíduo, a

associação, o sindicato, a congregação, que luta por seus exclusivos interesses

traduzíveis pela intersecção entre o interesse pessoal de cada um de seus sócios e a

afinidade destes entre si. O homem-célula ressurge agora dentro deste mega-

indivíduo, que luta contra as forças “naturais” do organismo social em busca de sua

sobrevivência.

E os recursos? Teatralizações de sua força - ou pseudo-força -, na

maioria das vezes. Assim como dois machos que disputam uma mesma fêmea, os

mega-indivíduos das sociedades modernas testam seus instrumentos de intimidação

no interior do sistema biodiverso: o tamanho, o ruído, a imponência de suas formas e,

em último caso, a demonstração de sua força no embate direto. Da mesma forma, as

associações e congêneres teatralizam sua força através de seu tamanho- traduzido no

número de seus associados; de seu ruído- traduzido na capacidade de a associação

“gritar” seu poder diante do organismo social; da imponência de suas formas-

9

Idem, p.57.

Page 37: Livres Pensares Atualizado

37

traduzida nos seus objetivos confessados (mas, raramente os verdadeiros), no

montante de recursos que gere, na sua sede própria, na sua popularidade e

credibilidade diante das massas; e, finalmente, de sua força real, quando precisa- e se

consegue- concretamente agir no organismo social. Através do recurso extremo do

argumentum bacalinum, se não conseguiu intimidar aquele que se opõe aos seus

interesses particulares, a associação demonstrará sua aptidão para sobreviver como

mega-indivíduo no organismo social.

A razão de as associações surgirem em momentos de crise dentro de

uma determinada classe de indivíduos é, assim, plenamente explicada. Quando os

esforços de indivíduos comuns não resulta satisfatório, torna-se necessária a criação de

um mega-indivíduo que responda mais satisfatoriamente às exigências do organismo

biodiverso da sociedade. Não se torna difícil compreender, conseqüentemente, o

porque das afinidades de interesses entre os membros associados e os tipos de

cobranças realizadas entre os membros de um agrupamento associativo.

Mas, assim como um organismo humano depende da integração

dialeticamente harmônica entre suas células, para sua sobrevivência como organismo,

o mega-indivíduo moderno depende de uma mesma qualidade de integração entre os

membros associados para que sobreviva. Neste ponto, porém, a falta de consciência

cooperativa, refletida na falta de consciência organizativa, dos indivíduos das

sociedades modernas, é uma espécie de microorganismo nefasto que cancerígena as

células e as necrosa dentro do corpo desprovido de anticorpos, de uma associação

desestruturada - como a maioria. Este indivíduo-célula que insiste em ser um

indivíduo isolado, assume uma dimensão desproporcional no interior do corpo

associativo, impedindo a harmonia entre as partes.

Quando os interesses de uma célula falam mais alto do que os

interesses do organismo, energia demasiada é destinada a essa célula doente e a

tendência natural é que outras morram de inanição. Esvaziam-se as assembléias,

morrem as associações. O individualismo, o sectarismo e outros comportamentos

ideologicamente determinados, presentes em indivíduos-células da grande maioria

das associações nas sociedades modernas, respondem pelo fracasso de um sem-

número de empreitadas desses agrupamentos humanos.

O saneamento dessas doenças no corpo associativo só é possível com a

modificação, por um instrumento apropriado, da conformação imagética do

panegírico que representa a associação, como instrumento de resolução de todos os

problemas humanos, nas mentes dos associados. Torna-se necessário recuperar no

homem o sentido da unidade social cooperativa existente no interstício da primeira

mutação social aludida por Farias,10

aprimorando-o com uma consciência organizativa

modernamente construída.

Não cabe aqui uma profecia. A evolução do organismo social, porém,

tem demonstrado que à fase do ser-indivíduo, representado hoje pelo mega-

indivíduo, que é a associação (e seus congêneres), segue-se uma fase de cooperação

entre os seres-indivíduos, que se tornam indivíduos-células. Seguir-se-á tal evolução?

Seria próprio perguntarmo-nos isto: conseguirá o homem a cooperação dialeticamente

harmônica entre os mega-indivíduos- realidades incontestáveis das sociedades

modernas?

10

Ibidem.

Page 38: Livres Pensares Atualizado

38

III. Vincti Spei

O contingente de dificuldades que a vida em modernas sociedades

trouxe aos homens tem sido dificilmente aceito- e mais raras vezes superado- ao nível

pessoal. As respostas colhidas, na grande maioria dos questionários, demonstram que

aos membros das associações (grande maioria dos quais se constitui de pessoas com

enormes dificuldades sociais) resta a esperança imploratória, que desejam seja

premeditória, de que a evolução social continue e chegue-se a uma harmonia11

que

lhes permita, finalmente, a consecução de seus objetivos particulares, quase sempre

abstratos, mas outras vezes orgânicos, através do mega-indivíduo que procuram

constituir.

Este desejo de igualdade, ideologicamente marcado e confessável,

esconde os desejos biológicos íntimos de satisfação das necessidades pessoais

concretas, mas também das necessidades abstratas culturalmente desenvolvidas. Esta

necessidade de satisfação pessoal faz dos associados prisioneiros da esperança, vincti

spei, como diriam os latinos.

O associativismo tem esse poder quase místico de desenvolver, no

indivíduo-célula que o constrói e o compõe, uma fé comparável à do homem que

constrói um ídolo e, depois, prostra-se diante dele. A apologia ao associativismo, como

uma forma de resolução dos problemas modernos, que se vê atualmente nos mais

diversos rincões, segue-se da constatação da necessidade do mega-indivíduo ou é mais

uma abstração cultural? A quem interessam os prisioneiros da esperança, com seus

vícios artesãos e sua típica incapacidade de concretizar projetos?

Através do associativismo dois objetivos muito distintos podem ser

alcançados: o de conseguir coisas e o de fazer crer que se pode conseguir coisas.

O primeiro se consegue com a constatação de que o ser-indivíduo é

impotente diante de uma sociedade atomizada como as modernas o são. Através dessa

constatação e de um processo centrípeto que faz com que indivíduos, atômicos em seu

organismo social, descubram suas propriedades comuns e resolvam unir-se,

indivíduos efetivamente se unem, formando um corpo maior e mais forte, para

alcançar a consecução de seus objetivos.

O segundo se presta à transferência de responsabilidades, geralmente

por parte do estado e das facções sociais que nutrem a certeza de tirar partido, em

proveito próprio, da fraqueza dos seres-indivíduos que os cercam, à própria

incapacidade desses mesmos indivíduos explorados de constituírem um mega-

indivíduo sadio, capaz de competir com igualdade de condições no interior do

organismo biodiverso. Desta forma, essa espécie de associações já nasce doente,

dependente dos benefícios gotejados pelo estado, por políticos ou por pseudo-

mecenas que se apresentam como o cérebro que, ao mesmo tempo em que instiga as

pernas a pular um alto muro, as condena, depois do malogro, porque elas não o

puderam fazer.

Não é sem razão que as associações pesquisadas, sem exceção,

aguardam do estado muitas providências que elas mesmas deveriam tomar. Mais

11

Entenda-se, aqui, por harmonia o equilíbrio ideal que permitiria a distribuição eqüitativa de renda e a

garantia do direito de suprimento das necessidades básicas a todos os membros de uma sociedade.

Page 39: Livres Pensares Atualizado

39

intrigante ainda, porém, é o fato de que os associados culpam-se mutuamente

(diretorias a membros e membros a diretorias) pelos fracassos de seu agrupamento. Na

mesma intensidade em que se formara o espírito dos prisioneiros da esperança, forma-

se agora um espírito de desolação diante da incapacidade autoatribuída e

aparentemente intransferível de construir e de administrar a própria felicidade. A

apologia se esvanece e o mega-indivíduo sucumbe em conseqüência da inanição de

suas células. Os prisioneiros da esperança tornam-se prisioneiros da própria imagem,

por eles mesmo construída quando se perdeu, em uma sucessão de desilusões, a

imagem de seu mega-corpo, esperança de poder malograda e infame. Nada mais do

que a evolução natural do organismo social, auto-regenerativo, em que células dão

lugar a células. Drasticamente desorientador, porém, por tratar-se de nossos pares.

IV. Conclusão

As associações são, portanto, ao mesmo tempo, uma conseqüência

natural da evolução do organismo social e um instrumento habilmente utilizado por

certos grupos de indivíduos das modernas sociedades individualistas e atomizadas em

função da consecução de seus objetivos pessoais. São, também, um instrumento

importante, que se constitui num como que mega-indivíduo, capaz de conseguir, no

desenrolar da luta interna a um organismo social, aquilo que um indivíduo-célula

nunca seria capaz de fazer sozinho.

Esta concorrência de interesses intrínsecos e extrínsecos, próprios e

alheios, se reflete claramente nas respostas dadas pelas diretorias e membros das

associações de Guajará-Mirim. A desorganização de arquivos e assembléias, a desunião

entre os membros, a esperança nas ações governamentais, enfim, a debilidade desses

organismos associativos, tão-somente refletem este jogo de interesses em seus

diferentes estágios evolutivos.

Não se pode, entretanto, utilizar a “naturalidade” evolutiva do

fenômeno como desculpa para o imobilismo. Já que outras vezes utilizei, neste

trabalho, aforismos latinos, conviria considerar, aqui, um último: Nihil agere delectat12

.

Àqueles que coube a oportunidade de adquirir a consciência da essência de qualquer

que seja o fenômeno, cabe a conseqüente responsabilidade de utilizar este

conhecimento em prol da humanidade. Sem aplicação objetiva, o conhecimento é

inócuo, logo, não é conhecimento.

Guajará-Mirim, maio de 1998.

12

É agradável nada fazer.

Page 40: Livres Pensares Atualizado

40

DA NATUREZA DO SIGNIFICADO E SUAS IMPLICAÇÕES

0. Introdução

Para que um estudo sistemático qualquer se estabeleça como ciência é

mister que três fatores estejam nele muito bem definidos: o objeto, o objetivo e o

método.

O objeto é aquilo que se estuda, o elemento material ou imaterial que

concentra as atenções do cientista e a respeito do qual são formuladas, primeiramente

as hipóteses e, depois de comprovação científica, as mais variadas teorias com base

nas teses estabelecidas.

O objetivo é aquilo que se almeja alcançar, o ideal da ciência em

questão. Descrever, compreender, resolver, controlar, modificar são objetivos que

comumente aparecem integrados em um que é o mais mais amplo e genérico objetivo

de todas as ciências: proporcionar ao homem a compreensão e o domínio sobre os

seus mais variados objetos de estudo e, a partir disto, a compreensão e o domínio

sobre os mundos físico e não físico.

O método é o meio utilizado para estudar o objeto e para cumprir o

objetivo. O método deve ser entendido também como abrangendo o conjunto de

tecnologias específicas (aparelhadas ou não aparelhadas) utilizado para a consecução

dos objetivos da ciência; o método inclui, portanto, cada uma das técnicas e cada

instrumento desenvolvido para os fins de uma ciência. Desta forma, todo o arsenal

tecnológico de uso científico existente constitui, no âmbito dos três fatores que

descrevi, parte do método das ciências.

A Lingüística é uma ciência. Tomemo-la como exemplo e a crivemos

quanto aos três elementos acima apresentados.

Ao falar de Lingüística como ciência, é cabível considerar Ferdinand

de Saussure como fundador da Lingüística moderna no sentido em que foi o primeiro

pesquisador a delimitar com mais clareza esses três fatores descritos. A visão histórica

que Saussure possuía dos estudos lingüísticos o levou a considerar que

“a matéria da Lingüística é constituída inicialmente por

todas as manifestações da linguagem humana, quer se trate de povos

selvagens ou de nações civilizadas, de épocas arcaicas, clássicas ou de

decadência, considerando-se em cada período não só a linguagem

correta e a “bela linguagem”, mas todas as formas de expressão.”

(Saussure, 19891, p. 13)

1

F. de Saussure (1916/1989). Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix.

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41

Esta visão aparentemente ampla da linguagem como produto da ação

humana seria “post mortem”, no Curso de Lingüística Geral, circunscrita ao âmbito

da língua falada. Aliás, cabe ressaltar que, sem tal circunscrição, não entendemos o

porquê de Saussure citar a forma “bela” e a “não bela” como matéria de estudo da

Lingüística. Isto se deu obviamente em função de os pesquisadores que o

antecederam terem, em sua maioria, tomado somente a língua escrita como base de

estudos. Diríamos então que, desde Saussure, é bastante próprio - e, creio, sem

objeções inquestionáveis até hoje - definir a Lingüística tendo como objeto a língua,

sendo assim parte

“determinada e essencial dela (a linguagem)... ao mesmo

tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto

de convenções necessárias adotadas pelo corpo social para permitir o

exercício dessa faculdade nos indivíduos.” (Op.cit., p.17)

É incontestável que o conceito de língua evoluiu bastante de Saussure

até hoje, o que nada mais é do que decorrência clara e natural de sua posição de

objeto de estudo de uma ciência. E justamente por isso, isto é, por tal evolução

conceitual, é que se pode ainda manter a língua como objeto primário da Lingüística.

O objetivo da Lingüística também foi apresentado por Saussure em

seu Curso:

“A tarefa da Lingüística será:

a. fazer a descrição e a história de todas as línguas que

puder abranger, o que quer dizer: fazer a história das famílias de

línguas e reconstituir, na medida do possível, as línguas-mães de cada

família;

b. procurar as forças que estão em jogo, de modo

permanente e universal, em todas as línguas e deduzir as leis gerais às

quais se possam referir todos os fenômenos peculiares da história;

c. delimitar-se e definir-se a si própria.” (Op.cit, p.13)

Parece claro que, a despeito de todos os avanços alcançados pela

Lingüística neste século, estamos longe ainda de cumprir os dois primeiros objetivos

lançados por Saussure e, creio, isto se dá não somente pela imensidão do objeto de

estudo, mas - e principalmente - porque não conseguimos ainda cumprir com

exatidão o terceiro objetivo, este, aliás, a aparente razão da elaboração do Curso de

Saussure por seus alunos.

O método da Lingüística deveria ter sido o instrumento capaz de

levar-nos à consecução desse objetivo mais íntimo desta ciência. Com o

desenvolvimento metodológico deveríamos ter sido capacitados a compreender os

limites da Lingüística e a ver bem claramente cada uma de suas atribuições.

Pode-se afirmar seguramente que o primeiro efeito do método

aplicado ao objeto sobre a ciência da linguagem já era claramente notado mesmo no

tempo de Saussure e já aparecia definido no Curso. Falo das subdivisões da

Lingüística. Foi por meio da aplicação dos métodos de análise dos sistemas

lingüísticos até então desenvolvidos que Saussure pôde propor uma ciência da

linguagem subdividida em Fonologia, Semiologia e Gramática (esta considerada em

Page 42: Livres Pensares Atualizado

42

dois eixos principais: estudo das relações sintagmáticas e estudo das relações

associativas).

O subseqüente desenvolvimento metodológico da Lingüística, seja

pelo desenvolvimento de novas técnicas, seja pelo avanço tecnológico do

instrumental utilizado nas pesquisas, permitiu verificar nuanças de seu objeto central

que permitiram uma subdivisão mais acurada desta ciência de modo a propiciar um

estudo ainda mais abrangente e detalhado desse objeto. É comum aceitar-se hoje

(embora não sem objeções) uma divisão muito mais complexa da Lingüística do que a

apresentada por Saussure, como a que se vê em Cagliari (19902

):

“Assim podemos dividir a Lingüística em Fonética,

Fonologia, Morfologia, Sintaxe, Semântica, Análise do Discurso,

Pragmática, Sociolingüística, Psicolingüística, etc.” (p. 42)

É de se esperar que cada uma dessas subdivisões apresentadas por

Cagliari, inclusive a subdivisão “etc.”, tenha em seu âmbito muito bem definidos o

objeto, o objetivo e o método que orientam seus estudos e fundamentam suas teorias.

E é claro que esses objetos, objetivos e métodos devem ser harmônicos em relação aos

da Lingüística como “ciência-mãe”; mas, certamente isto não significa que serão os

mesmos. Neste artigo, preocupo-me com a Semântica, subdivisão à qual me tenho

dedicado mais intensamente nos últimos dez anos. Crivê-mo-la a respeito desse três

fatores essenciais como fizemos com a Lingüística:

A Semântica tem sido definida comumente como “a ciência que

estuda o significado.” Esta definição, por si só, determina, pelo menos, o objeto e o

objetivo da Semântica:

1. o objeto, o significado;

2. o objetivo, compreender o significado, ou como diria Saussure

mutatis mutandis: “as forças que estão em jogo, de modo permanente e universal,

em todas as línguas e deduzir as leis gerais às quais se possam referir todos os

fenômenos peculiares da história”3

no que concerne ao significado.

Quanto ao método, caberia à Semântica, também em consonância

com as idéias saussureanas, definir-se a si mesma e delimitar-se, circunscrever-se,

desenvolver uma metodologia e um instrumental específicos para o trato com seu

objeto peculiar de estudo. A Semântica estaria, assim, clara e solidamente definida

como ciência. A questão não é tão simples como parece à primeira vista, porém, como

já observaram Ilari e Geraldi (19924

):

“A palavra ciência evoca domínios de investigação

claramente definidos, a respeito dos quais os cientistas aperfeiçoaram

métodos de análise unanimemente aceitos e elaboraram

conhecimentos coerentemente articulados e fiéis aos fatos. Ao contrário

disso, a Semântica é um domínio de investigação de limites movediços;

semanticistas de diferentes escolas utilizam conceitos e jargões sem

medida comum, explorando em suas análises fenômenos cujas relações

não são sempre claras: em oposição à imagem integrada que a palavra

ciência evoca, a Semântica aparece, em suma, não como um corpo de

2

L. C. Cagliari (1990). Alfabetização e Lingüística. São Paulo: Scipione.

3

Idem, p. 13.

4

R. Ilari e W. Geraldi (1992). Semântica. São Paulo: Ática, (Série Princípios, no

8).

Page 43: Livres Pensares Atualizado

43

doutrina, mas como terreno em que se debatem problemas cujas

conexões não são sempre óbvias.” (p. 6)

Esta constatação da difusibilidade da Semântica deve levar-nos a

desconsiderá-la como ciência? Nem tanto ao mar, nem tanto à terra... Creio que a

questão primordial está ainda no âmbito das definições - ou mais propriamente, da

compreensão dos fatores integrantes da ciência Semântica - e não tanto no que se

refere ao conjunto dos estudos desenvolvidos, da terminologia utilizada, do

desenvolvimento de teorias no campo daquilo que se tem chamado de Semântica,

mesmo porque grande parte desses estudos é extremamente rigorosa no que tange

ao que podemos definir como metodologia científica.

O que relato no parágrafo anterior parece ser um elemento

explicativo do fato de muitas teorias semânticas não apresentarem o poder explicativo

e o poder preditivo esperados de teorias científicas, embora sejam elaboradas sob

rigorosos critérios de cientificidade e por pesquisadores reconhecidamente

competentes. Paralelamente, quando a Física, por exemplo, explica o movimento de

um corpo e prediz a possibilidade de reprodução do mesmo movimento em

condições idênticas, da mesma forma que prediz as alterações nas propriedades do

movimento do mesmo corpo em condições diversas, ela o faz porque detém um

conhecimento exato - ou quase isso - do objeto de estudo e do método a aplicar nesse

estudo. Quando, por outro lado, a Semântica propõe teorias acerca do significado, tais

asserções mostram-se, na maioria das vezes, insatisfatórias pelo simples fato de que

não detemos uma noção exata de “que espécie de coisa”5

é o significado, logo, não

sabemos bem a que espécie de objeto devemos aplicar tais teorias, ou seja, que espécie

de coisa estamos descrevendo e que espécie de eventos devemos prever. E, se não

temos noção exata do objeto de estudo, não há como circunscrever a ciência que o

estuda, tampouco especificar um corpo doutrinário e metodológico coerente e aceito

unanimemente, como reclamam Ilari e Geraldi6

.

Durante milênios a pergunta “o que é o significado?” tem ocupado a

mente de estudiosos da linguagem e de filósofos. Sem esta reposta não podemos

manter o estatuto de ciência para a Semântica, a menos que consideremos um outro

escopo para esta ciência que não o comumente proposto. O presente ensaio versa

sobre essa celeuma histórica, apresentando uma revisão da teoria tradicional através

de uma proposta de restruturação da Semântica enquanto subdivisão da ciência da

linguagem.

1. Brevíssima - e possivelmente imprecisa - História do Conceito de

Significado.

A questão de que espécie de coisa é o significado está tão

intimamente ligada à própria natureza humana e à das manifestações do pensamento

5

Para relembrar Katz. (J. Katz (1972). “O Escopo da Semântica”. In: M. Dascal (org.) (1982).

Fundamentos Metodológicos da Lingüística: Semântica. Campinas: Ed. do Organizador. pp. 43-61.)

6

Idem.

Page 44: Livres Pensares Atualizado

44

que raramente foi possível ao homem analisá-la de uma maneira imparcial e

realmente científica através um prisma unicamente lingüístico. A correlação da

língua com as demais manifestações do pensamento humano - e do significado com

tais manifestações, por conseqüência - fez com que o significado fosse sempre

explicado à luz de outras teorias, ora da Filosofia, ora da Teologia, das ciências

naturais, enfim, a partir de um ponto de vista que não estritamente próprio de uma

ciência da linguagem. Assim é que as concepções de significado desenvolvidas até

hoje estão, em sua maioria, eivadas de critérios de outras ciências ou crenças, de tal

forma que cumpre conhecer um pouco do pensamento da época em que essas

concepções foram formuladas, para que se possa compreendê-las.

Do que se tem notícia nos estudos lingüísticos, provavelmente

Heráclito, filósofo grego, tenha sido o primeiro estudioso a sistematizar idéias acerca

do significado. Para Heráclito, o significado era o próprio pensamento humano. O

“logos”, a palavra, era sua expressão. Ao pensar, o homem criava significados; ao

falar, os expressava. Heráclito não via significados na natureza ou fora da língua. Eles

eram como idéias absolutas, cuja existência dependia da existência do pensamento.

Aristóteles, embora baseado em uma lógica mais formalizada, agregou à idéia de

Heráclito uma visão mitológica - bem ao gosto helênico, diga-se - de que o significado

atuaria em relação à palavra como uma espécie de espírito encarnante. Ainda se

falava das idéias, mas agora destas em forma de uma energia transcendental que se

encarnava na palavra e dela fazia uso como corpo formal durante o tempo que lhe

aprouvesse, devendo-se desencarnar e retornar em outra palavra quando a evolução

do sistema lingüístico assim o exigisse - ou ainda justamente para provocar tal

evolução. Assim foram, por muito tempo, explicados os fatos históricos facilmente

detectáveis de significações antes relacionadas a uma palavra que, mantidas na

cultura, passavam a ser referidas por outra ou outras palavras. Para uma cultura que

separava corpo e espírito dando a ambos existência quase independente, não se

tratava de uma explicação somente representativa, como também bastante acessível.

A lógica formal grega, por sua vez, se hoje objetivamente analisada,

não contribuiu muito na definição de um conceito de significado. Auxiliou, sim, na

elaboração de um método bastante complexo de tratamento das manifestações do

significado nos diferentes níveis do estudo lingüístico, desde a simples “teoria do

certo e do errado”, que apontava para uma tendência normativista semelhante à de

Paninì em sua gramática do sânscrito do Século IV a.C., até a formulação mais

complexa do raciocínio lógico, tanto em sua modalidade indutiva, quanto na clássica

forma dedutiva do silogismo.

A visão aristotélica do significado permaneceu quase inalterada até

meados do século XVII. Neste grande hiato da história dos estudos lingüísticos, pouco

de novo foi concebido no que concerne ao significado, sendo que a reprodução das

idéias gregas constituiu-se como norma científica. Por volta dos anos 1600, já

constituído o mosteiro de Port-Royal e já bem desenvolvida uma filosofia cristã

católica na Europa, os senhores de Port-Royal conseguiram sistematizar uma nova

teoria da significação com fundamentos teológicos e filosóficos nomeados de

“racionalismo” que, para eles, constituíam bases lógicas e naturais. Por que lógicas?

Por que a natureza era tida lógica e seu funcionamento tido como definido por uma

lógica superior e divina. Por que naturais? Porque tais concepções seriam aquelas que

melhor representariam a essência dos fatos do mundo.

Page 45: Livres Pensares Atualizado

45

A Bíblia, até então privilégio da elite católica, tinha finalmente sido

acessada pelos monges e por alguns leigos que buscavam a compreensão de cada

palavra em um estudo ardente e ininterrupto. Como se sabe, o relato bíblico

apresenta a criação como obra da palavra do Criador. A deparação com frase “e disse

Deus” repetida diversas vezes na gênese do mundo segundo as Escrituras e as muitas

interpretações ontológicas que dela decorreram, fez desenvolver-se uma visão

bastante tentadora da noção de significado. As palavras primordiais do Criador (fiat

lux, por exemplo), aquelas utilizadas por Ele para fazer surgir os elementos naturais,

eram encaradas como sendo o meio condutor da energia criadora que resultou nos

objetos do mundo físico, ou seja, o meio pelo qual Deus criou as substâncias de um

mundo que era “sem forma e vazio”7

. E foram essas mesmas palavras que,

posteriormente, passaram a denominar as substâncias através delas criadas. Isto

levava a enxergar a palavra como um instrumento do processo da criação, mas

também como uma ferramenta divinamente concebida para a intermediação entre o

mundo físico e a compreensão humana racional desse mundo. Logo o significado da

palavra passaria ser visto como sendo aquilo que ela gerara, o próprio objeto, a

substância. As palavras cujas significações eram substâncias passaram a ser chamadas,

então, pelos monges de Port-Royal de palavras de significação própria e, mais tarde,

de substantivos – ou palavras que designam substâncias; as palavras que se referiam

às propriedades das substâncias ou às decorrências dessas substâncias, como ações e

demais fenômenos imateriais, eram consideradas como tendo uma significação

imprópria e receberam o nome de acidentes8

.

Essa associação do significado ao objeto do mundo ao qual a palavra

se refere parece ter prevalecido até o final do século XIX e, em muitos aspectos

prevalece até hoje. A maioria dos dicionários do português, por exemplo, não

apresenta a significação da palavra, mas dá uma descrição das propriedades do seu

referente, o que se pode chamar com mais precisão de extensão do significado. Assim

é que procuramos a significação da palavra “pernilongo”e encontramos “inseto da

família tal, etc. e tal.” É claro que isso não é o significado da palavra, mas a descrição

da substância por ela referida. O significado da palavra “pernilongo” pode ser

definido grosseiramente como “pernas longas” ou ainda “aquilo/aquele que tem

pernas longas”. E nesse sentido, um avestruz ou uma girafa seriam “pernilongos”.

Mas, a especialização dessa palavra em relação ao inseto não permite facilmente tal

uso. Mais do que isso, faz crer que o próprio inseto seja o significado da palavra. Tal

concepção é não somente repetida como alimentada pela maioria dos dicionaristas.

Apenas alguns trabalhos do gênero “dicionário” apresentam a significação das

palavras mas, mesmo assim, comumente seguida da descrição do referente.

Tal confusão entre a significação da palavra e seu referente foi

discutida pelo filósofo alemão Gottlob Frege, no clássico ensaio “Sobre o Sentido e a

Referência”9

. Frege utiliza grande quantidade de argumentos para sustentar

logicamente a afirmação de que o significado não é o objeto ao qual uma palavra se

7

Gênesis 1:2.

8

Cf. Arnauld e Lancelot (1992). Gramática de Port-Royal. Tradução de B. F. Basseto e H. G. Murachco.

São Paulo: Martins Fontes.

9

G. Frege (1978). Lógica e Filosofia da Linguagem. Tradução de Paulo Alcoforado. São Paulo:

Cultrix/EDUSP.

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46

refere e que é necessário diferenciar, ainda, o objeto real e a palavra daquilo que é

compartilhado socialmente como sendo o significado desse sinal e daquilo que cada

um entende particularmente como sendo sua significação. Frege diz que

“A referência e o sentido de um sinal devem ser

distinguidos da representação associada a esse sinal. Se a referência de

um sinal é o objeto sensorialmente perceptível, minha representação é

uma imagem interna, imersa das lembranças de impressões sensíveis

passadas e das atividades internas e externas que realizei.” (Op.cit., p.

64)

Para Frege, então, o sinal é o elemento que remete à significação. No

caso da língua, é a palavra. A referência é a substância - quando ela existe, ressalva

Frege. O sentido é a idéia compartilhada sobre o referente, isto é, uma concepção

geral que permite o entendimento dos significados das frases entre os falantes.

Finalmente, a representação é minha concepção pessoal acerca do referente. Essa

separação entre o significado e a substância era o resultado direto do neo-

racionalismo europeu do Século XVIII, segundo o qual deve haver uma grande

valorização da objetividade representada pela separação entre o fenômeno, seu

estudo e o estudioso. Essa separação foi responsável pelo aprimoramento do conceito

de objetividade científica e também pela idéia de que seria possível proceder ao

estudo de um objeto de maneira tão imparcial e descomprometida com os resultados

que a própria presença do pesquisador deveria passar despercebida, sendo que as

conclusões científicas tornar-se-iam cabalmente ininfluenciáveis. É óbvio que um

racionalismo desse nível negaria as idéias teológicas e filosóficas de Port Royal,

procurando lançar bases mais humanistas e menos teológicas para o estudo da

realidade – essa negação do sobrenatural acabou formulada sob a égide da

objetividade.

Foi nesse tipo de clima intelectual que essa idéia de que o significado

era um tipo de entidade socialmente construída, compartilhada e passível de análise

objetiva aparece, também, em Saussure, contemporâneo europeu de Frege. Para

Saussure, o significado era um tipo de imagem mental criada por interação social na

mente do falante. Sem dúvida, uma proposta conceitual bastante próxima à de Frege,

embora a proposta de Saussure não abrangesse claramente os quatro níveis da de

Frege (matéria, imagem socializada, imagem pessoal e sinal).

As idéias de Frege e Saussure em relação o significado tiveram uma

vida mais curta que as idéias de Aristóteles, não porque fossem piores, mas em função

até de já existir, no Século XX, um grupo muito maior de pesquisadores da

linguagem, em uma ciência então razoavelmente constituída que era a Lingüística. E,

nesse sentido, Saussure foi o maior responsável pela negação de grande parte de suas

próprias idéias: ele mesmo idealizou a estruturação da Lingüística científica. Essas

idéias de imagens mentais, as socialmente definidas (o sentido, para Frege; o

significado para Saussure) ou as pessoalmente construídas (as representações, para

Frege) sofreram grave objeção já na década de 30 deste século, quando se argüia

sobre uma resposta teórica que explicasse o fato de que há muitas palavras para as

quais atribuímos significados, mas para as quais não possuímos ou desenvolvemos

nenhuma imagem mental descritível. Entretanto, além de objetar das concepções de

Saussure sobre as imagens mentais, as escolas lingüísticas, até a década de sessenta,

Page 47: Livres Pensares Atualizado

47

pouco conseguiram avançar na elaboração de um conceito de significado, embora

tenham procedido grandes descobertas em relação a este objeto. Mais do que isso, os

estudiosos estruturalistas deram um grande passo comprovando a divisibilidade do

significado com seus sistemas de análise binária.

No início da década de sessenta, Chomsky e sua equipe inauguram

nos Estados Unidos a escola gerativista. A idéia fulcral dessa escola é a de que a

geração da linguagem humana passa por vários estágios sucessivos, sendo que o

primeiro deles, o mais profundo e primordial, é puramente semântico. Isto é, a

geração da linguagem humana é um processo que nasce na significação pura e vai

até a expressão lingüística, e desta de volta à significação pura, no ato de

compreensão do que foi anteriormente gerado. O principal argumento da escola

gerativista era inatismo das estruturas lingüísticas humanas. Este argumento era

justamente o principal fator negado pela escola psicológica piagetiana e a base dos

estudos de seu mentor, o pesquisador suíço Jean Piaget. O resultado quase óbvio foi o

confronto das duas teorias em uma grande série de debates acirrados10

que resultaram

mais na separação dos pesquisadores das duas linhas do que em uma formulação

realmente explicativa do que é o significado. Mas, como vimos, todos os

fundamentos da escola gerativista estavam fincados em um conceito de significado,

ou melhor, todas as esperanças dessa escola estavam baseadas na possibilidade de se

apresentar um conceito claro, objetivo e coerente de significado e, assim, de poder-se

delimitar exatamente as propriedades de um componente semântico. Não é sem

razão que em poucos anos de existência a escola gerativista tenha-se dedicado de

forma tão intensa a uma teoria das transformações. Não porque pretendesse a partir

das transformações explicar que espécie de coisa é o significado, mas justamente

porque não sabia que espécie de coisa era o significado e, assim, não se tinha como

dedicar a uma teoria específica da geração. A busca de respostas transformacionais

não foi nada mais do que uma tentativa frustrada de transformar o desconhecido em

conhecido através de complexíssimos processos pseudo-explicativos de como uma

significação pura torna-se uma frase da língua.

Enquanto a grande massa de pesquisadores da linguagem11

fazia do

gerativismo uma teoria “sintático-florestal”, cuja maior preocupação era explicar por

meio de árvores que transformavam qualquer coisa no que o pesquisador precisasse,

houve uns poucos gerativistas que procuraram dedicar-se, obviamente orientados

pela necessidade, à busca de uma resposta satisfatória a respeito de que espécie de

coisa é o significado, sem a qual as idéias gerativistas não teriam muito mais

fundamento do que as de Aristóteles ou a dos monges de Port-Royal. Entre esses

pesquisadores destaca-se Jerrold J. Katz, certamente a maior esperança gerativista (ou

talvez coubesse ler “chomskyana”) de uma solução para a questão do significado.

10

Como exemplo desses debates cf. M. Piatelli-Palmarini (1979/1983). Teorias da Linguagem, Teorias

da Aprendizagem: O Debate entre Jean Piaget e Noam Chomsky. Tradução de Álvaro Cabral. São

Paulo: Cultrix.

11

Principalmente nos Estados Unidos e em seus países culturalmente colonizados, como o Brasil, uma

vez que os europeus mantiveram em grande monta sua tradição histórico-comparativa, tratando até

com certo desprezo a onda gerativa. Conta-se, como exemplo dessa distância, que certo lingüista

europeu de renome teria dito em um congresso: “Deixe-os gerar a linguagem que depois nós

utilizamos a Lingüística para analisá-la.”

Page 48: Livres Pensares Atualizado

48

2. O Erro Gerativista Acerca do Significado

Em 1972, Katz apresentou à comunidade científica um ensaio

denominado “O Escopo da Semântica”12

, no qual procurou explicar porque a

Semântica tinha problemas históricos como ciência, bem como porque não se havia

chegado a um conceito bem definido sobre o que é um significado. Cumpre aqui

mostrar, com base nesse texto que se tornou um dos pilares filosóficos da teoria

gerativista e assim foi mantido por muito tempo, em que aspectos Katz e seus

seguidores se equivocaram e quais as conseqüências desses erros.

O primeiro passo dado por Katz no caminho de uma teoria do

significado foi ratificar a posição de que a Semântica é a ciência que estuda o

significado lingüístico. Assim, Katz procurou afastar as acusações de que a própria

teoria gerativa não era científica, pois fundamentada em uma concepção do

componente semântico como base de toda a linguagem. O segundo passo de Katz foi

o de tentar explicar o porquê de, em sendo a Semântica uma ciência, não ter ela

conseguido sequer delimitar seu objeto de estudo. O argumento básico de Katz é o de

que

“Tem havido alguns equívocos sobre a maneira pela qual

o estudo do significado deveria proceder ao tentar responder à questão

(“o que é o significado?”)...

A questão “O que é o significado?” não admite uma

resposta direta, “isto ou aquilo”; sua resposta é, ao contrário, uma

teoria toda.” (Op.cit. p. 45-6)

Katz diz, então, que os lingüistas e filósofos que se ocuparam dos

estudos semânticos não procederam metodologicamente de forma equivocada: ou

não foram até onde deveriam. Para ele, os semanticistas poderiam ser divididos em

dois grandes grupos: o dos que interromperam os estudos contentes com respostas

parciais e o dos que simplesmente tentaram responder à questão central encarando-a

de forma inadequada, ou seja, de forma filosoficamente equivocada, o que, na prática,

acabava gerando igualmente respostas parciais.

Katz argumenta que essa trajetória científica galgada pela Semântica

era natural de ciências cujos objetos são demasiadamente complexos e que outras

delas, como a Astronomia e a Física também haviam passado pelos mesmos estágios

de compreensão parcial. Ele propõe, então, que a compreensão do problema “O que é

o significado?” passa, obrigatoriamente, pela compreensão das propriedades do

significado verificáveis em um conjunto definido de fenômenos já fartamente

conhecidos, mas que segundo Katz mereceriam melhor explicação. São elencados e

exemplificados os seguintes fenômenos: sinonímia, paráfrase, similaridade, diferença,

antonímia, hiperonímia, hiponímia, significatividade, anomalia, ambigüidade,

redundância, analiticidade, sinteticidade, falsidade, indeterminação, inconsistência,

12

J.J.Katz (1972). “The Scope of Semantics”. In: Semantic Theory. New York: Harper and Row.

Este texto tem versão brasileira, utilizada para os fins do presente ensaio, publicada segundo referência

citada na nota de rodapé no

5.

Page 49: Livres Pensares Atualizado

49

implicação, pressuposição, interrogação e resposta possível. Sobre esses fenômenos

Katz afirma:

“Qualquer teoria que ofereça uma resposta a “O que é o

significado?” deve responder às questões... e outras análogas, e

qualquer teoria que responda a tais questões deve oferecer uma

resposta a “O que é o significado?” (Op.cit., p. 50)

Muitos dos fenômenos propostos por Katz para explicação já eram, à

sua época, perfeitamente compreendidos e explicáveis e, obviamente, não devemos

crer que o próprio Katz não possuía respostas convincentes para os fenômenos que

ele listou e os quais foram, por ele mesmo, exemplificados em seu ensaio. Não

somente Katz conhecia boas respostas para as questões que ele formulou, como

também conhecia a evolução da idéia de significado, apresentada sucintamente no

mesmo texto. Mas, a despeito disto, Katz não conseguiu apresentar, nem nesse texto e

nem depois dele, uma resposta para que tipo de coisa é o significado.

Se procurarmos trilhar o caminho proposto pelos gerativistas,

provavelmente não chegaremos mais longe do que eles próprios chegaram na pessoa

de Katz. Podemos, sem muita dificuldade, listar o conjunto das principais

propriedades do significado implicadas em cada um dos fenômenos descritos por

Katz. No geral, creio que é próprio dizer, com base nos fenômenos que são por ele

ressaltados e sem maiores problemas, que o significado é um tipo de coisa que:

a. toma parte em relações de equivalência e pode nelas ser analisado;

b. é subdivisível;

c. é organizável segundo as dimensões de sua extensão , isto é,

segundo a dimensão lógica de sua referência (unidade, conjunto, classe);

d. é oposicionável a outro significado;

e. associa-se a sinais, mas somente se especializa em relação a um

sinal quando este é contextualmente definido;

f. quando definido, pode acarretar implicações;

g. quando definido, pode fazer subentender pressuposições;

h. pode ser valorado;

i. pode ser comparado a outros significados em diversos aspectos;

j. não é garantido pela mera existência do sinal, mesmo que

considerado diretamente relacionado a esse sinal.

Entre outras, essas são propriedades do significado que deveriam ser

suficientes para, ao menos, construir-se o esboço de uma teoria convincente do

significado, nos moldes que propõe Katz ser possível construir. E, porém, não o são. A

causa dessa incongruência entre a proposta gerativista e a realidade lingüística

concernente ao significado, a meu ver, está no fato de que a concepção filosófica de

significado e, conseqüentemente, a concepção teórica e metodológica da Semântica

em que essa proposta se baseia estão equivocadas. Katz não errou somente ao propor

que se estudassem os fenômenos lingüísticos de natureza semântica para que se

chegasse a uma teoria do significado, como errou também em crer que o significado é

algo de natureza lingüística. Katz não estava equivocado quanto a dizer que o

significado não é um tipo de coisa que se defina como “isto ou aquilo”; o erro consiste

em acreditar que significado é um tipo de coisa que se defina com uma teoria

Page 50: Livres Pensares Atualizado

50

lingüística. Assim, por “efeito cascata”, Katz também erra ao afirmar que “a Semântica

é o estudo do significado lingüístico”, simplesmente porque esse objeto denominado

“significado lingüístico” não existe. Podemos falar em sentidos e representações, nos

termos de Frege, como atributos a certos sinais de uso lingüístico, mas o significado

em si não tem natureza lingüística. Assim, além do fato de que a Semântica não pode

estudar o “significado lingüístico”, principalmente pelo fato de que não há objeto que

se refira a esta expressão - e a Semântica, como ciência que é, não prescinde de um

objeto - Katz errou igualmente por supor a veracidade da tradicional afirmação de

que cabe à Semântica o estudo do significado. E não cabe.

3. Da natureza do significado e suas implicações

Certamente, a maior contribuição do ensaio de Katz à moderna

Semântica está no fato de que ao propor o estudo dos fenômenos lingüísticos de

natureza semântica, Katz propiciou a verificação inequívoca de que o significado não

é um objeto de natureza lingüística. Há três argumentos simples e suficientes para

comprovar isso, a partir mesmo da teoria gerativa:

a. o significado independe do sinal e não está a ele vinculado de

forma orgânica, podendo ser suscitado lingüística ou não lingüisticamente;

b. o pensamento humano não é processado lingüisticamente, mas em

forma do que hoje ainda só podemos, por pura ignorância, chamar de “significações

puras” ou, em última instância, de “significados”;

c. a possibilidade de tradução entre línguas indica que não há uma

relação determinativa entre o significado e o sistema lingüístico que o representa, mas

que qualquer significado é plenamente representável por qualquer sistema

lingüístico, independentemente das peculiaridades orgânicas desse sistema.

Podemos afirmar com grande margem de segurança, portanto, que os

sistemas lingüísticos são intermediários entre as significações puras apreendidas pelos

seres humanos e o mundo e seus eventos. O significado não é, assim, um

componente da língua, embora intimamente relacionado a ela. A estranheza inicial

dessa afirmação pode ser minimizada se percebemos que o som também não é um

componente lingüístico, mas apenas um meio - entre tantos outros - utilizado com

finalidades lingüísticas. Como conseqüência de se perceber isto sobre o som, e mesmo

sobre sua produção e sua utilização lingüística, chega-se à conclusão de que a

Fonética é obviamente uma ciência híbrida, do domínio também da Física (Fonética

Acústica), da Fisiologia (Fonética Articulatória), etc., e não exclusivo da Lingüística

como crêem alguns, embora suas conclusões apresentem importantes aplicações

diretas para a Lingüística. Já a Fonologia, a Sintaxe e a Análise do Discurso são

ciências típicas do domínio lingüístico, pois seus objetos são tipicamente lingüísticos.

Entretanto, mesmo estas estão modernamente se hibridizando, passando a integrar-se

a outras ciências: a Fonologia e a Fisiologia, criando a Fonologia Articulatória; a

Análise do Discurso unindo-se à Sociologia e à Psicologia; a Lingüística Geral unindo-

se à Neurologia, surgindo a Neurolingüística, entre tantas outras, em um claro

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51

reconhecimento de que a linguagem é um objeto demasiadamente complexo para ser

estudado através de uma ótica monolítica.

Desta forma, o que nos cabe estudar na Semântica - e já existe um

cabedal bastante satisfatório de métodos para tanto - não é o significado e sua

natureza, mas as manifestações lingüísticas do significado. Os fenômenos elencados

por Katz são exemplos inquestionáveis dessas manifestações lingüísticas. E se as

respostas às questões propostas por Katz não nos fornecem uma resposta a “O que é

o significado?”, não é por outra razão que não a de que a Semântica não possui

métodos para o estudo do significado, mas apenas para o estudo de suas

manifestações lingüísticas. Isto porque a Semântica sempre se comportou -

certamente porque sempre foi e continua sendo - como a ciência que estuda as

manifestações lingüísticas do significado, e não o significado em si mesmo, assim

como a Fonologia estuda as manifestações lingüísticas do som e não o som em si

mesmo, uma vez que o som em si mesmo não é do domínio da Lingüística, mas

apenas as aplicações lingüísticas de suas propriedades o são.

A percepção de que o significado não é um objeto de natureza

lingüística tem como implicação direta o reconhecimento tácito de que uma teoria

gerativa que se pretenda à explicação do fenômeno da geração da linguagem

partindo do significado terá, obrigatoriamente, que ser uma teoria interdisciplinar. A

explicação de que espécie de coisa é o significado compete muito mais à Neurologia

(ou, em última instância, à híbrida Neurolingüística) do que à Semântica. A esta cabe

estudar as inúmeras manifestações do significado nas línguas, em suas

aparentemente infinitas nuanças, descobrir que tipos de leis regem essas

manifestações e dar, a partir daí, sua contribuição para a consecução dos objetivos da

ciência-mãe, a Lingüística.

Voltando à questão de crivar a Semântica como ciência, fica claro,

então, que:

1. seu objeto é o conjunto das manifestações lingüísticas do

significado, e este objeto é não somente muito bem conhecido como

competentemente abordado por grande parte dos semanticistas;

2. seu objetivo deve ser encarado, em consonância com os da

Lingüística Geral, conforme proposto por Saussure, como sendo algo que se define

em estudar as forças que estão em jogo, de modo permanente e universal, em todas

as línguas e deduzir as leis gerais às quais se possam referir todos os fenômenos

peculiares da história no que concerne às manifestações do significado, e isto a

Semântica tem feito com satisfatória competência;

3. seu método abrange diferentes formas de análise, desde as análises

propostas pela lógica formal, passando pelas decomposições estruturalistas, pela

análise dos traços semânticos nos moldes gerativistas, indo à contextualização

discursiva das análises mais modernas e chegando à análise interfacial proposta

hodiernamente. Em outras palavras, a Semântica, ao longo de sua longa existência,

desenvolveu e tem a seu favor uma gama bastante respeitável de métodos de análise

que permite a continuidade e o aperfeiçoamento de sua ação científica.

Esclarecida, portanto, a cientificidade da Semântica e descartado o

significado puro como objeto de estudo desta ciência, cabe aqui tratar de um último

fator determinante para a construção de uma teoria semântica, fator este aludido por

Page 52: Livres Pensares Atualizado

52

Katz, mas não tratado claramente no ensaio que citei anteriormente, embora fosse

esse seu nome. Falo de definir o escopo da Semântica.

4. O Escopo da Semântica e a Necessidade de Estudos Interfaciais

Além das manifestações do significado citadas por Katz em seu

ensaio, todas tipicamente lingüísticas e, portanto, parte do escopo da Semântica, um

outro grande conjunto de manifestações do significado nas línguas naturais, ainda

pouco explorado, merece destaque na busca da formulação de uma teoria semântica

mais abrangente: falo das manifestações estruturais. Demonstrei alhures13

como as

línguas naturais, no intuito de representar o mais exatamente possível os significados,

os utilizam como um dos recursos para construção de suas estruturas e manutenção

da inteligibilidade dos enunciados produzidos. Vejamos três exemplos desse tipo de

utilização de traços semânticos em línguas naturais para demonstrar, dentro dos fins

deste ensaio, que os rumos de uma Semântica moderna passam por estudos

interfaciais:

a. os sistemas de concordância: para estabelecer os sistemas de

concordância presentes em todas as línguas naturais conhecidas, são eleitos, no

âmbito do próprio sistema, alguns traços de natureza semântica (portanto não

lingüísticos!) que serão utilizados lingüisticamente como traços concordantes. O

português utiliza gênero, número e pessoa nesses sistemas. Assim, quando a língua

permite dizer “Os sacos pretos contêm o leite fresco”, ela constitui um complexo jogo

de repetições de traços semânticos de gênero, número e pessoa que colaboram na

estruturação e ajudam na interpretação do enunciado como mostrado a seguir:

os - significado atribuído ao artigo definido + masculino e plural

sacos - significado atribuído a “saco” + masculino, plural e 3a

pessoa

pretos - significado atribuído a “preto” + masculino e plural

contêm - significado atribuído a “conter” + 3a

pessoa e plural

o - significado atribuído ao artigo definido + masculino e singular

leite - significado atribuído a “leite” + masculino, singular e 3a

pessoa

fresco - significado atribuído a “fresco” + masculino e singular

Como se vê, é a repetição, em forma de estatutos pragmáticos da

língua, de traços semânticos gramaticalizados que cria os conjuntos concordantes que

definem os limites sintagmáticos e permitem boa parte da interpretação do

enunciado. E veja-se que não há nenhuma razão aparente para que “leite” e “saco”

13

C. Ferrarezi Jr. (1998). “Recursos para Manutenção da Inteligibilidade do Enunciado: um Estudo da

Interface Semântica/ Morfossintaxe através de uma Língua Isolante”. Vilhena: Anais do IV Seminário

de Estudos Lingüísticos e Literários.

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53

tenham atribuídos a si o traço masculino ou de terceira pessoa e, tampouco, existem

nessas palavras morfemas específicos para essa atribuição desses traços, sendo que

tais traços estão presentes apenas implicitamente, sendo que, a despeito da ausência

morfológica, o falante nativo reconhece-os facilmente. O traço plural, nesses dois

casos, dependerá também da realidade constatada.

Da mesma forma que atribui traços semânticos às unidades, as

línguas criam escalas de valor para o “apagamento” desses traços no âmbito

morfológico, ou, em outras palavras, para permitir sua implicitação e uma decorrente

economia na forma. Os traços de gênero são, no português, muito mais fortes que os

traços de número. Assim é que um falante normal permite uma frase como “Os saco

preto contém o leite fresco”, mas não aceita como normal uma do tipo “*As sacos

pretas contêm a leite fresca”.

Esse fenômeno de concordância pode ser considerado como sendo

sintático, porque só tem razão de existência na e pela estruturação dos sintagmas de

uma sentença. Mas, como vimos, é inegável que tal fenômeno depende de recursos

de natureza semântica, o que demonstra a necessidade de um estudo aprofundado

da interface Semântica/Sintaxe14

;

b. a regência: trata-se de outro fenômeno tido como apresentando

uma natureza meramente sintática. A regência é o resultado da projeção diatética de

traços semânticos, presentes inicialmente nas palavras nucleares e projetados,

posteriormente, para as palavras periféricas e da projeção desses mesmos traços de

palavras nucleares para outras palavras nucleares. Essa projeção de traços cria

restrições de preenchimento nas lacunas virtuais abertas nas diáteses e tais restrições

são o que normalmente se denomina regência. Assim, em “O boi come o capim” não

há qualquer evidência de concordância que permita identificar o agente e o paciente,

uma vez que a coincidência de gênero, número e pessoa nos sintagmas sujeito e

objeto inviabiliza a interpretação através de tal crivo. Há, porém, restrições semânticas

oriundas do núcleo verbal que determinam a necessidade de um agente como

sintagma sujeito, o que dirime as dúvidas interpretativas. Há mecanismos de bloqueio

e de fortalecimento dessas projeções, há restrições internas e externas, enfim, um

conjunto bastante complexo de regras que somente pode ser definido em um estudo

interfacial que determine as influências semânticas, sintáticas e discursivas na

determinação desses mecanismos de bloqueio e fortalecimento, bem como na

imposição de restrições de aceitabilidade por parte dos falantes (por exemplo, por

qual motivo a sentença “O capim comeu o boi” tem sentido em alguns contextos e

não o tem em outros);

c. os sistemas entonacionais: um outro fator decisivo na interpretação

dos enunciados refere-se à entonação em que estes são produzidos pelo falante.

Nuanças de interrogação, afirmação, negação, ironia, espanto, medo, etc., são

demarcados, em grande parte, nas línguas naturais através das propriedades

entonacionais atribuídas pelo falante ao enunciado construído. Um estudo que dê

14

Nos moldes do que realizei em: C. Ferrarezi Jr. (1998). A Interface Semântica/Morfossintaxe. Tese

Doutoral. Guajará-Mirim: Fundação Universidade Federal de Rondônia em convênio com a University

of Pittsgurgh.

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54

conta das diferentes alterações de sentido causadas nos enunciados em virtude de

questões entonacionais somente será satisfatório se tiver uma natureza interfacial

Fonética/Fonologia/Semântica/Análise do Discurso, para poder explicar e prever, por

exemplo, fenômenos do tipo: por que uma entonação dada é ofensiva em um

contexto e não o é em outro?, etc.

Esses três exemplos são suficientes, creio, para demonstrar o fato de

que as manifestações do significado vão muito além daquelas poucas presentes nos

fenômenos elencados por Katz no texto aqui referido. Conseqüência direta disso e do

fato de que à Semântica cabe estudar todas essas manifestações é que se configura

para essa ciência um objetivo de tal monta complexo que somente será passível de

realização interfacialmente, isto é, correlacionando os métodos da Semântica com os

das demais subdivisões da Lingüística e dessas com os das demais ciências, às quais

poderíamos chamar de “ciências de interface” da Semântica. Isto se dá para que se

permita uma abordagem que abarque as mais diversas manifestações do significado

nas línguas naturais. Isto se dá, também, em virtude de que todas as unidades

lingüísticas de todas as naturezas (desde um subtraço semântico atribuível a um traço

fonético de um fonema qualquer até um texto complexo) se permitem a atribuições de

sentido, sendo, portanto, representativos de um significado.

O escopo da Semântica é, portanto, a própria língua natural. Não me

refiro, porém, a todos os fenômenos de uma língua natural tomados isoladamente,

mas a todos aqueles a que se pode atribuir uma significação.

5. Conclusão

A construção epistemológica de uma ciência depende da visão

filosófica que se tem do objeto de estudo. Os equívocos históricos dessa visão do

objeto da Semântica atrapalharam o desenvolvimento desta ciência, embora a

confrontação com os fenômenos tenha sobrepujado o equívoco filosófico e permitido

a constituição de um método adequado de estudo do real objeto da Semântica. Tal

objeto não é o significado, mas o conjunto de suas manifestações no âmbito da

linguagem. Assim, ao definirmos a Semântica como a ciência que estuda as

manifestações lingüísticas do significado, estabelecemos um objetivo mais coerente

com seu método já desenvolvido e nos obrigamos ao aperfeiçoamento desse mesmo

método, permitindo, assim, que os estudos interfaciais da linguagem resultem na

consecução desse objetivo. Certamente, isso contribuirá para a consecução dos

objetivos da Lingüística como um todo harmônico e indissociável.

Guajará-Mirim, 01 de outubro de l999.

Page 55: Livres Pensares Atualizado

55

CONSIDERAÇÕES SOBRE A ALFABETIZAÇÃO

BRASILEIRA

"Vitate quaecumque casus attribuit"1

Sêneca

0. Introdução

Uma educação transformadora não se constrói pela ação do acaso.

Talvez esta seja uma forma óbvia demais para iniciar um artigo sobre educação, mas

certamente não se trata de uma nulidade diante do que se tem visto chamar de

educação neste país. Há como que uma síndrome de "educação por atacado", talvez

motivada pelo excessivamente rápido desenvolvimento das formas eletrônicas de

comunicação e pela facilidade com que se digitalizam informações hoje em dia, ou

mesmo motivada pela incompreensão de que as tecnologias desenvolvidas ainda não

foram capazes de modificar a natureza humana.

Os programas educacionais levados avante pelo Ministério da

Educação reforçam sobremodo essa idéia. O mestre presente, interferente e

interagente é descaradamente substituído por um mestre virtual, excessivamente

informativo, mas muito pouco formativo e nada interagente. A interatividade

proclamada nesses eventos pseudo-educativos - geralmente traduzida pela

possibilidade de enviar um fac-símile ou mensagem de correio eletrônico aos

participantes dos programas ao vivo, torcendo para que essa mensagem chegue e

receba a atenção esperada - nunca substituiu e nunca substituirá a interação face a

face, socialmente definida, humanizada. Este processo de formação não custa mais

barato, tampouco é mais eficiente do que os tradicionais cursos de formação de

professores em que eram possíveis trocas detalhadas de experiências profissionais,

além da constituição de uma rede de afinidades profissionais e pessoais

absolutamente insubstituíveis.

Mestres formados in absentia de seus mestres têm apresentado a

triste característica de querer formar seus alunos através de um processo impessoal e

desumanizado, em que as relações sociais e afetivas têm uma menor importância e

em que a maturação biológica do aluno pouco tem importado. Parece que o velho

ditado "ninguém dá o que não tem" está mais em voga do que nunca em nossa

educação. E justo em uma época de forte desestruturação social, em que a escola

precisaria atuar como um tipo de lastro laico dessa mesma sociedade, fazendo um

1

"Evitai tudo o que o acaso dá" ou "As obras do acaso devem ser evitadas" ou "Vamos criar vergonha e

construir nosso futuro"...

Page 56: Livres Pensares Atualizado

56

trabalho paralelo ao que algumas igrejas procuram fazer na manutenção da

humanidade dos homens dessa era.

Neste artigo, pretendo observar algumas conseqüências desse

processo de desumanização crescente de nossa sociedade dita moderna na fase de

alfabetização, tida desde sempre como marco inicial e, ao mesmo tempo, típico da

escolarização - não sem motivos, diga-se - e seus reflexos na educação como um todo.

1. Evolução decadente

"Abyssus abyssum invocat."2

Salmo 42:7

Todas as épocas da História têm suas dificuldades típicas. As épocas

não foram melhores antes e, enquanto houver vida nesta Terra, provavelmente não

serão melhores depois. Não se trata de pessimismo, mas uma constatação lógica a

partir do reflexo natural da natureza humana sobre as sociedades que criamos. A

aparência de que épocas passadas foram melhores, geralmente se justifica por

memórias pessoais de tempos de juventude ou de histórias que ouvimos de nossos

antepassados sobre quando éramos felizes e não sabíamos.

Os métodos educacionais são, geralmente, elaborados em função das

peculiaridades de um povo em dada época. Não existe método atemporal, como não

é atemporal o conjunto de idiossincrasias manifestas de uma pessoa ou de uma

sociedade - se é que uma sociedade pode ter idiossincrasias... O método chamado

tradicional de alfabetização compreende um conjunto de desenvolvimentos técnicos

que atendiam razoavelmente à clientela da época em que foi concebido esse processo

educativo. Não falarei do período em que somente as famílias riquíssimas pagavam -

ou adotavam - professores particulares para ensinar seus filhos em casa, mas do

período inicial da escolarização brasileira, quando os grandes centros educacionais se

orgulhavam de formar os filhos dos doutores3

de então no nível da quarta série

primária. Vejamos.

A criança entrava na escola, advinda de uma família que, se não era

bem estruturada, pelo menos fingia bem. Havia um pai que trabalhava, uma mãe que

se dedicava aos filhos e irmãos que cresciam juntos trocando experiências que os

socializavam desde muito cedo. As famílias eram mais participativas quanto às

convenções sociais, como as festas locais, a igreja e mesmo a escola. Os infantes eram

ensinados a alimentar-se segundo os padrões de etiqueta mais recomendados, e

sabiam que não se interrompe um adulto quando este está falando. Desmenti-lo era

2

"O abismo atrai o abismo" ou "Um abismo atrai outro abismo" ou "Desgraça pouca é bobagem"...

3

A alemã Ina von Binzer, professora particular no Brasil no período da transição Império/República,

observou em uma de suas cartas de 1881, à amiga Margarida: "O Dr. Rameiro veio buscar-me. Não sei

porque o chamam de "doutor" e duvido muito que ele próprio saiba encontrar a razão desse

tratamento. A única explicação verossímil seria a de que todo o brasileiro bem colocado na vida já

nasce com direito a esse título, o que em parte me parece uma falta de modéstia." (Ina von Binzer

(1916/1982) Os Meus Romanos: Alegrias e Tristezas de uma Educadora no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e

Terra). Parece que essa "falta de modéstia" perpetuou-se como traço cultural brasileiro.

Page 57: Livres Pensares Atualizado

57

um pecado mortal. Desde muito cedo, era meritório ensinar aos filhos os afazeres

domésticos. Mesmo aos meninos era dado coser uma meia furada, fazer uma barra de

calça ou pregar um botão. As meninas faziam as roupas de suas bonecas - e, muitas

vezes, as próprias bonecas - enquanto os meninos construíam seus carrinhos de lata

de óleo ou com rolimãs, faziam seus revólveres de madeira e seus arcos e flechas, com

que atacavam os companheiros mocinhos nas brincadeiras que se tornavam

representações dos filmes de far west que passavam nas poucas televisões existentes

no país. O chique era ser James West e ter um cachorro chamado Rim-Tim-Tim,

enquanto os mais revolucionários acatavam com resignação o papel de índio matador

de pioneiros desbravadores. À noite, as mães ainda contavam histórias para as

crianças, rezavam com elas e as colocavam para dormir.

Esse era o típico quadro da família brasileira que mandava seus filhos

à escola. É claro que havia também famílias bem menos estruturadas do que essas

chamadas "de posse", mas suas crianças não iam para a escola. Os métodos

educacionais não foram desenvolvidos para as crianças sem família, ou cuja família

não cumpria seu papel. Foram idealizados para crianças que vinham de casa com

uma excelente coordenação motora, proporcionada pelos afazeres domésticos e pelos

brinquedos tradicionais, que vinham com um comportamento social bem definido e

que chegavam à escola mais tarde do que chega hoje, portanto mais madura biológica

e, até cognitivamente.

O método tradicional, então, compreendia um período preparatório,

que ocupava cerca de dez páginas da cartilha com ondinhas e vogais pontilhadas, as

quais deveriam ser criteriosamente cobertas pelos alunos. Na verdade, essa fase

destinava-se mais ao aprendizado de como segurar um lápis, o que muitas vezes

ocorria apenas após o ingresso na escola.

Depois do período preparatório, iniciava-se uma fase de

apresentação dos sons básicos da língua, as vogais. Nesta fase não havia textos e os

alunos ficavam felizes por criar construções como ai, ui, oi e eu. As combinações

abstratas de sinais correspondentes a sons viriam logo em seguida. O resultado era

inquestionável: b com a dá bá e b com é da bé; depois vinha a família do c, e ninguém

perguntava - pelo menos, não às abertas - por que lhe faltavam o ce e o ci. A escola

sabia fazer seu trabalho e não seriam os fedelhos que lhe imporiam questionamentos

de ordem metodológica.

Já concomitantemente à construção das sílabas com consoantes

apareciam os primeiros textos: "O bebê baba", "O nenê mama na mamãe" e "Vovô viu

a uva do Ivo" são exemplos clássicos do tipo de texto que se construía. É claro que não

havia nenhum tipo de contestação da qualidade informativa e, muito menos da

formativa, desses textos. Os alunos haviam sido ensinados em casa a obedecer, a

nunca contestar um adulto, a seguir regras à risca. Não havia formação crítica da

criança. Descobrir a vida e sua criticidade era fato raro na maioria dos adultos, quanto

mais nas crianças! Mais do que isso, a tolerância nunca era ensinada. A verdade era

tida como única e a leitura de filósofos contestadores era um sacrilégio. O método

tradicional de alfabetização foi concebido, portanto, para um grupo de crianças que

possuíam todas as qualidades de uma criança bem formada (etiqueta, respeito social

hierárquico, coordenação motora fina, maturidade cognitiva suficiente para a

alfabetização, poucos problemas afetivos, etc. e tal) e que, ainda por cima, possuía

todas as desvirtudes de uma sociedade acrítica e - por isso - apática, que vivia o

Page 58: Livres Pensares Atualizado

58

deslumbramento do milagre industrial brasileiro, o afã das conquistas trabalhistas e

que sonhava com uma nação próspera em que todo mundo deveria ser feliz sem

perguntar nada. É claro que o método funcionava como um relógio. Com seis ou sete

meses os alunos liam e escreviam razoavelmente, podendo participar como

proclamadores das Sagradas Escrituras nos eventos religiosos, o que deixava os

familiares demasiadamente satisfeitos. "A escola era boa", "os professores eram bons",

"naquele tempo se aprendia mais"...diz-se.

O pós-II Guerra proporcionou às nações que encabeçavam os grandes

grupos aliados um desenvolvimento tecnológico brutal num período bastante curto

de tempo. O Brasil sempre esteve à margem desse desenvolvimento, principalmente

após a década de sessenta, quando da implantação do regime militar no Brasil. O

Brasil crescia num ritmo e numa forma muito particulares. Enquanto o crescimento

interno era irrisório, as estruturas destinadas à exportação de bens eram tidas como

orgulho nacional. Câmbios sempre favoráveis à exportação produziam superávites

colossais, que eram anunciados pelo governo como a marca do progresso. Enquanto

isso, a maioria avassaladora da população não tinha acesso aos produtos exportados,

tampouco aos nacionais de padrão inferior e começou a reforçar-se uma descomunal

concentração de renda no país. Os problemas econômicos, disfarçados pelos anúncios

de superávit nas exportações, somados aos problemas regionais habilmente utilizados

para a perpetuação do poder4

e a alguns movimentos sociais de libertação, como o

movimento de liberação feminina, começaram a desenhar um novo perfil familiar

nacional.

Nessa nova família brasileira, quando o pai e a mãe coexistem e

coabitam, não é raro que ambos tenham que trabalhar fora de casa o dia todo. São

comuns mais do que nunca os casos de famílias só com pai, só com mãe, sem ambos,

etc. "Família" é um termo que implica alguma estabilidade. Ao que parece, a estrutura

mais estável nas sociedades atuais é algo como "grupo de filhos de alguém criados por

alguém", o que acabou virando sinônimo de família, uma vez que a instabilidade das

relações matrimoniais hodiernas não permite sequer chamar um casal de família.

Mesmo porque esse casal, muitas vezes, é de homossexuais e, por questões

biológicas ainda não superadas não pode procriar. A estabilidade dessa estrutura

"grupo de filhos de alguém criados por alguém" parece durar enquanto as crianças

precisam de cuidados indispensáveis, ou enquanto suportam a convivência no grupo

"familiar".

Este novo perfil familiar conseqüencia um razoável conjunto de

modificações formativas nas crianças. A televisão é o principal companheiro de

conversa e de brinquedo5

. O diálogo está sendo exterminado. A industrialização dos

brinquedos de materiais sintéticos em larga escala proporcionou um tal barateamento

nos preços de brinquedos mais simples que, hoje, é mais barato comprar um carrinho

de plástico do que quatro rolimãs no ferro velho. A popularização do brinquedos

industrializados roubou das crianças a manufatura que lhes desenvolvia boa parte da

4

Cujo exemplo mais assombroso no Brasil é a seca nordestina.

5

Durante nossa pesquisa sobre as estruturas familiares atuais, pudemos identificar vários esquemas de

hierarquia familiar que incentivam a ausência de diálogo. Os principais são: 1. A criança é criada pela

televisão: por ela é educada e com ela conversa; 2. A criança é criada pelo irmão mais velho que, por

sua vez, é criado pela televisão; 3. A criança é criada pela babá ou empregada doméstica que, por sua

vez, é criada pela televisão.

Page 59: Livres Pensares Atualizado

59

coordenação motora. A quantidade de informações acessadas pelas crianças, por

outro lado, tornou-se surpreendentemente maior, o que gera uma quantidade muito

maior de questionamentos sobre o mundo. Ao mesmo tempo em que as crianças

crescem em estado de mutismo e dissociadas de relações afetivas positivas e concretas

com seus familiares (coisas como longos abraços, trocar idéias, rolar na grama e contar

segredos são completamente "demodê") são expostas a um sem-número de estímulos

que as sexualizam precocemente, transmitem-lhe uma insegurança crônica e

provocam um tal grau de desequilíbrio emocional que é cada vez mais comum a

escola ter que recorrer a psicólogos logo nos primeiros contatos com as crianças, no

intuito poder, ao menos, "acessar" essas mentes infantis.

Os padrões hierárquicos sociais, por sua vez, são cada vez menos

respeitados porque não têm representantes à altura na família. Os chefes do grupo

permanecem ausentes a maior parte do tempo. Quando têm contato com "os filhos de

alguém", que podem até ser os seus próprios filhos, esses chefes sentem-se na

obrigação de corrigir simultaneamente todos os aspectos dessas crianças que a chefia

considera insatisfatórios ou não correspondentes ao esforço exercido por ela para a

manutenção material do grupo. As únicas observações que a maioria dessas crianças

ouve de seus chefes é sobre os defeitos de caráter que elas possuem e os problemas

que elas causam à família, quase sempre sobre a alegação de que os chefes fazem sua

parte sustentando-as e que elas devem fazer sua parte obedecendo. Cansados, os

chefes do grupo, à noite, ou dedicam-se aos afazeres domésticos abdicados durante o

dia, hora em que não podem ser importunados, a tarefas do trabalho diário que

vieram para casa, no que também não podem ser importunados, ou, quando podem,

descansam à frente da televisão - "Única hora de paz do dia!" - momento em que, é

claro, conversar é terminantemente proibido. Cria-se, então, uma relação social do

tipo "quem caça manda, quem come obedece", bem mais típica das sociedades

primitivas do que de estágios posteriores pelos quais a humanidade já passou. O filho

deve respeitar o chefe do grupo porque este lhe veste, lhe dá de comer, lhe paga a

escola, o judô e a aula de língua estrangeira. O amor, o respeito ao ser humano (o

chefe, crê-se, é um exemplar de ser humano...), as hierarquias sociais abstratas que são

o fundamento das sociedades democráticas são, então, substituídas por uma relação

de poder social que tem exclusivamente a ver com a posse, quer de bens, quer de

dotes para consegui-los. Voltamos aos tempos das cavernas. Evoluímos

decadentemente. Não é difícil entender porque muitas crianças e pais retorquem a

disciplina da escola com frases do tipo: "Essa professora não tem nada a ver com isso!

Quem sustenta meu filho sou eu!" e "Você não é meu pai, não paga minha escola e

não vou te obedecer!". Essas frases são expressões incontestáveis de uma nova ordem

social rudimentar que se tem instaurado nas últimas décadas, baseada

exclusivamente em fatores concretos e não, como já foi outrora, em estatutos abstratos

como a democracia e a hierarquia social. O que diferencia uma democracia de uma

ditadura, é que naquela a hierarquia é abstratamente concebida e concretamente

obedecida e nesta a hierarquia é concretamente concebida e não há espaço para

obediência, uma vez que a obediência é um ato voluntário. A diferença entre as

ditaduras e os sistemas primitivos de organização humana baseados no "argumento

do cacete"6

está por ser descoberta.

6

Os antigos romanos diriam "argumentum baculinum".

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60

No Brasil, para complicar, os raros programas de instrução ao

planejamento familiar são péssimos, e as crianças multiplicam-se em lares

complemente desestruturados e, por conseguinte, desestruturantes.

O resultado palpável da restruturação familiar nas sociedades

modernas - e o Brasil, nesses termos, está na vanguarda da modernidade... - é um

conjunto de crianças com carências emocionais gravíssimas, problemas de maturação

cognitiva, falta de coordenação motora ampla e fina e, o que torna bem pior tudo isso

- porque impede a ação da escola sobre a criança - não socializadas, no sentido em

que não foram habituadas a seguir os padrões hierárquicos abstratos necessários à

manutenção de qualquer sociedade democrática.

Cada vez que apresento esse quadro social em minhas palestras,

tenho sua ratificação integral por meus interlocutores, com alguma diferenciação de

um caso específico para outro. Mas, sempre e sempre, surge uma mesma e única

pergunta: "Bem, se é este mesmo o perfil geral da criança das sociedades ditas

modernas, que tipo de método educacional ter-se-ia que usar com elas?" Este é

exatamente o problema. Não se trata de escolher um método. O problema é mais do

que metodológico.

Todo método é fundamentado em uma filosofia de ação e numa

leitura particular do mundo. Ao elaborar o método tradicional de alfabetização - o que

não se fez em uma tarde... - os educadores leram nas crianças de seu tempo suas

necessidades e prescreveram uma forma de lidar com essas necessidades. Muitas

escolas brasileiras ainda atuam com o método tradicional de alfabetização, o que, por

si só, significa aplicar um método fora de ser tempo. Mas, isso, no fundo não é tão

grave como pode parecer à primeira vista. Muito pior do que isso é o fato de que

muitas escolas de hoje fazem a mesma leitura social que fizeram os criadores do

método tradicional. Essa escolas estão cegas a fatos palpáveis como, por exemplo, o

de que dez folhas de cartilha com exercícios de cobrir não desenvolvem a

coordenação motora de uma criança que, até os seis anos não fez nada além de

apertar o botão da televisão, o botão que liga o carrinho a pilha, os botões do

videogame. A escola precisa de uma nova leitura do mundo que a cerca, leitura em

que baseie sua filosofia de atuação, leitura que permita aplicar os métodos existentes -

ou criar os seus próprios - de modo eficaz.

2. Métodos ou Filosofias?

"Barba non facit philosophum"7

Há uma inter-relação bastante interessante entre a estrutura de um

método educacional e a formação de um professor8

, o que pode ser visto no esquema

abaixo:

7

"A barba não faz o filósofo" ou "O hábito não faz o monge" ou "O buraco é mais embaixo"...

8

Tornou-se bastante corriqueira na bibliografia corrente a diferenciação entre professor e educador.

Acho que isso é meio papo furado. Educador é quem educa: pode ser um padre, um chefe de grupo

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NÍVEIS PROFESSOR MÉTODO

EDUCACIONAL

Nível de ação Formação Técnica Técnicas

Nível de concepção Filosofia de Vida Filosofia do Método

Nível de base Caráter Leitura do objeto ao qual o

método de aplica e da

realidade social na qual

será aplicado.

Tanto um método educacional quanto um professor, muito antes do

nível da ação, isto é, daquele nível em que se atua diretamente com o objeto, possuem

níveis de estruturação mais profundos, em que se baseiam suas respectivas filosofias

de ação. O caráter de uma pessoa, isto é, o conjunto que integra sua têmpera, sua

formação moral, sua visão de mundo, seus ideais, entre outros valores essenciais, é o

fundamento de uma filosofia de vida e de atuação profissional que a caracterizam.

Com base nessa filosofia de vida é que o professor aceita, ou não, um método

determinado de trabalho, aplica, ou não, uma técnica prescrita pelo sistema. A

formação técnica de um profissional é inócua e, até, perda de tempo, se não há uma

base em que essa formação se sustente. De que vale o maior técnico do mundo em

segurança bancária, se contratado por um banco usar suas técnicas para roubar a

instituição em que trabalha? De que vale o professor com maior domínio de classe da

História, se usar esse domínio para usufruir de benefícios escusos da parte de seus

alunos, para conquistar adolescentes, para ser aclamado grande líder e senhor?

As técnicas de ensino estão acessíveis a qualquer escola de hoje. Pela

TV Escola o professor aprende tudo de tudo sobre técnicas e conteúdos. Só não

aprende a ler a sua realidade particular, seu mundo pessoal, ou não está disposto a

fazê-lo. Como não consegue - ou não quer - ler seu próprio mundo, o professor não

pode construir uma filosofia de atuação sua, própria, com sua cara e adaptada às suas

idiossincrasias. Então, fica alardeando que está usando a filosofia dos Parâmetros

Curriculares Nacionais, que ele nem sabe bem o que são... Como não foi educado

para ler seu próprio mundo, esse professor é também inábil para ler o mundo de seus

alunos, não podendo ajudá-los como deveria. Parece mesmo incrível, mas duas

décadas depois de "A Importância do Ato de Ler9

", o problema de nossa educação

parece continuar sendo a leitura de mundo feita por nossas escolas. Não temos

problemas metodológicos sérios no Brasil. Temos, aliás, métodos demais para filosofia

educacional de menos.

Uma escola que se propõe a alfabetizar uma criança urbana típica

neste último ano do milênio não pode enxergar a mesma figurinha pacata que os

professores da década de cinqüenta enxergavam em seus alunos. Parece óbvio. É

óbvio. Mas, não está em aplicação. Uma criança que cresce exposta às circunstâncias

de vida que analisamos há pouco não se contenta com coisas do tipo "Tico tem o

Totó."! Na maioria das vezes, a escola terá que superar as deficiências motoras,

familiar, um colega de gangue. Professor é aquele cuja profissão é educar. Se não educa, não é

professor, mesmo que contratado para isso.

9

Paulo Freire (1982). A Importância do Ato de Ler. São Paulo: Cortez.

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62

afetivas e cognitivas da criança antes de pensar em apresentar-lhe uma vogal sequer.

Isso pode demorar um ano todo. O que fazer? Fazer! Esse é o ponto aqui. A escola

tem brincado de fazer, fingido que faz. Fazer: é hora de fazer algo por essas crianças,

de verdade!

Há alguns dias entrei em uma escola e vi uma professora que

empurrava um aluno seu que lhe queria dar um abraço. O menino, de uns sete ou

oito anos, saiu realmente decepcionado. A professora alegou que ele iria sujar a roupa

que ela vestia... Em outra escola, vi uma aula com massas plásticas. Um dos alunos

colocava o bolo de massa sobre a mesa e o esmurrava estupidamente. Quando a

massa estava esparramada, ele enfiava suas unhas na massa e puxava para si como

que agredindo a massa. Repetia isso até tirar toda a massa da mesa e retomava os

murros. Olhei para a professora e perguntei sobre a criança. Ela respondeu: "Esses

meninos de hoje são todos loucos. Ainda bem que não começou a fazer isso com o

colega ainda..." Em outra escola presenciei um menino de oito anos jogando-se no

chão e esmurrando a própria cara porque tinha errado uma conta de matemática. A

professora, calmamente informou-me que se tratava de uma fato comum. São estes

casos fatos esporádicos? Não. Bem que eu gostaria que fossem. Estamos caminhando

a largos passos para uma sociedade plenamente neurotizada. As famílias, em sua

maioria, não têm condições de propiciar educação de base para as crianças. A escola

reluta em fazê-lo, pois não tem uma clara filosofia educacional que a oriente.

3. Alfabetizando no Ano 2000 como no Ano 2000

"Mater artium necessitas"10

A escola moderna conhece as fases de desenvolvimento da criança,

desde que Piaget publicou suas teorias. Até hoje as teorias piagetianas são

aperfeiçoadas: muito foi negado, muito confirmado, como é próprio de toda boa

teoria. Depois surgiram os interacionistas, Vigotskii à frente destes, embora já

falecido. Emília Ferrero e sua psicogênese, etc. etc. e mais etc. Teoria não falta, método

não falta, técnicas estão caindo do balaio. E não sou eu quem vai ditar o que falta.

Somente acho que, certamente, pelo menos uma coisa falta: filosofia educacional.

Se eu entendo meu aluno como um ser em processo de

desenvolvimento, se reconheço que atrás do número de chamada existe um ser

humano, se percebo que esse ser humano tem carências múltiplas provocadas por sua

vida familiar, o que eu faço? Cumpro o plano de curso ou educo esse aluno? Resposta

normalmente praticada nas escolas: cumpro o plano de curso! Resposta necessária:

educo esse aluno. Fácil falar. Difícil fazer? Nem tanto...

Uma pergunta extremamente pertinente aqui é: por que a escola? Por

que a família não resgata sua função? A resposta é simples, tomando como base o que

já expus anteriormente. A família não está como está por opção. A conjunção de uma

série de fatores tornou a família tradicional no "grupo de filhos de alguém criados por

10

"A necessidade é mãe das artes" ou " O ofício surge da necessidade" ou "Não dá mais para agüentar..."

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63

alguém" que temos hoje. Para reverter essa condição da família, temos que reverter

todas as causas que a construíram. Coisa para muitas gerações... O sistema escolar

representa a maior rede de assistência direta do país. Ele atende cerca de oitenta

milhões de pessoas diariamente, no mínimo por duzentos dias a cada ano. Nenhum

outro sistema tem tamanha abrangência e tal estrutura. Nosso problema precisa de

resolução rápida. Não dá para esperar que as famílias restruturem-se. Aliás, chego a

crer que nunca virão a restruturar-se se a escola não agir hoje. Respondido isto,

passemos à alfabetização.

Consideremos que uma criança é um organismo que dará suporte ao

aprendizado da leitura e da escrita. Antes de iniciar esse organismo nas letras, é

necessário que ele esteja pronto. Vejamos alguns passos importantes:

a. afetividade - ame essa criança. Quanto mais problemática ela for,

mais ela precisará de seu amor como professor. Amor deve ser considerado como um

termo técnico da alfabetização de hoje, tão importante como período preparatório,

motivação, interação social, etc. Sem amor é impossível resgatar a afetividade latente

e corrigir os problemas afetivos dessas crianças. O amor do educador pelo aluno não

deve ser uma pronunciação tão-somente. Precisa traduzir-se em atos cotidianos que

se revelam na paciência, na atenção ao ouvir, num sorriso e até, quem sabe, num

abraço. O amor também se revela no cuidado com o aspecto da criança, com sua

saúde, com suas ansiedades. A escola moderna deve suprir essas necessidades básicas

de qualquer alma infantil;

b. maturação áudio-viso-motora - ondinhas pontilhadas não bastam.

A escola deve oferecer atividades muito mais complexas e duradouras. Tricô, crochê,

costura, bordado, pintura, tapeçaria, artesanato com palitos, jogos de coordenação

ampla e fina, artesanato com massas (plástica, argila, pvc, etc.), contato e aprendizado

de instrumentos musicais, fabrico de brinquedos, pintura com pincel, lápis e giz, entre

outros, são exemplos de atividades duradouras que devem ser adotadas ao longo de

todo o ano. E um ano pode ser ainda insuficiente. Essas atividades precisam deixar de

ser consideradas com enrolação e passatempo e passar a constituir parte importante

do currículo escolar de alfabetização. De uma certa forma, o sistema conhecido como

C.B.A. (Ciclo Básico de Alfabetização), que é um sistema de progressão de série com

ciclo inicial de dois ou três anos anos, responde a essa demanda de tempo relativa à

necessidade de uma preparação mais duradoura sob a supervisão de um mesmo

professor. Mas, por si só, o C.B.A. não é suficiente: exige tanto trabalho árduo junto ao

aluno como a seriação tradicional;

c. relacionamento social - o trabalho com as relações sociais da criança

precisa ser calcado na descoberta da cooperação como cerne da vida social

democrática. Tratar abertamente dos temores pessoais diante da figura do outro, de

questões como o preconceito e a estereotipia são essenciais ao convívio social. Deve-se

desestimular a disputa pessoal e a concorrência individual e enfocar sobremodo a

necessidade do trabalho conjunto, das realizações harmônicas somente possíveis com

o desenvolvimento de práticas como o diálogo democrático, a escolha democrática, o

respeito às escolhas da maioria e o respeito às opções feitas pelas minorias, a

cooperação nas realizações e o compartilhamento das vitórias e das derrotas de uma

sociedade democrática;

d. maturação das funções cognitivas básicas - muitas vezes, apenas

expostas a programas infantis meramente comerciais e de baixa qualidade o dia

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inteiro, as crianças não são levadas a desenvolver aspectos importantes de sua

cognição. Nem mesmo as inter-relações mais simples são possíveis. Habilidades como

classificar, ordenar e nomear são ainda desconhecidas. Não se deve crer que a criança

sabe fazer essas coisas: deve-se ensiná-la a fazer. Literalmente ensiná-la a pensar,

desde as mais rudimentares formas de pensamento concreto, até as mais complexas

formas de pensamento abstrato, tudo a seu tempo, cada coisa por sua vez, com vagar

e coerência. E veja-se que isso não é o popularmente chamado caso de "burrice". A

criança não desenvolve certos tipos de raciocínio simplesmente porque nunca foi

treinada para isso, nada mais. Como acontece com alguém que nunca foi ensinado a

tocar piano e se lhe cobra que o faça;

e. o que mais aparecer - o professor não pense que ao desenvolver os

quatro aspectos acima terá preparado totalmente a criança. Muitas vezes, esses quatro

fatores respondem pela maturação que faltava, outras vezes não. Caberá ao professor

detectar esses fatores restantes. Mas, isso só será possível se ele desenvolver -

realmente! - um contato educacional com seus alunos, além do contato técnico

meramente.

Tudo bem - pode qualquer professor dizer - mas, precisaremos de

material, de salários decentes, de condições físicas e tudo mais para fazer esse

trabalho com os alunos. Há escolas em que mal se tem quadro e giz. E daí, a teoria

funciona? Sem condições de trabalho, os problemas poderão ser minimizados, mas

não se deve ter ilusões quanto aos resultados finais. O fato é que bastava gastar um

pouco menos com propaganda oficial e economizar em programas inócuos que

custam o dobro do que oferecem, que haveria dinheiro para isso. E nem falei da

corrupção do sistema público brasileiro, que gera, segundo cálculos da Fundação

Getúlio Vargas11

, cinqüenta bilhões de reais de prejuízo a cada vinte anos.

Sim, agora digamos que o professor esteja em uma escola na qual

sejam oferecidas as mínimas condições de trabalho: isso tudo feito, e bem feito, aquele

organismo infantil que dará suporte ao processo de alfabetização está pronto. É hora

de aplicar um método de alfabetização. Qual deles é o melhor?

O melhor método de alfabetização é aquele que um professor com

uma filosofia educacional coerente sabe utilizar. Nenhum método presta nas mãos de

quem não o sabe usar. Todos serão bons nas mãos de quem souber usá-los, o fizer

baseado em uma filosofia educacional coerente e com crianças preparadas para

desenvolvê-lo com o professor. O método de alfabetização é o que menos importa e o

fator menos determinante no sucesso da alfabetização. Seria até tentado a dizer que a

ausência total de um método constituir-se-ia em um "método" bastante interessante

de descobrir como as coisas funcionam. Certamente seria muito mais vagaroso, mas

não menos excitante e, certamente, pessoas prontas para o processo acabariam por

alfabetizar-se. Não é uma questão de anarquia, mas de constatação.

Durante minha vida como professor, o que mais tenho visto em

relação à alfabetização é uma correria infindável atrás de métodos. Já vi passar tantos

métodos debaixo da ponte, já vi tantas iniciativas frustradas de obrigar professores

alfabetizadores a usar o método tal ou o qual. Tanto tempo perdido! Acreditou-se por

décadas que o método era a chave do processo, sendo, porém, a filosofia de trabalho

esta chave. Que método de alfabetização poderá sozinho suprir as deficiências

11

Florência Costa (2000) "Corrupção Mata". In Istoé, 1593: 30-1, São Paulo: Ed. Três.

Page 65: Livres Pensares Atualizado

65

afetivas, cognitivas, sociais, áudio-viso-motoras e outras mais das crianças e, ainda,

alfabetizá-las? Obviamente nenhum! A filosofia de trabalho, porém, que é fruto direto

de como se vê o homem que se quer educar, essa sim poderá guiar o professor

entremeio quantos métodos existirem, fazendo as melhores escolhas, desenvolvendo

uma ação eficaz.

4. Conclusão

"Natura abhorret vacuum"12

R. Descartes

Diz-se, comumente, que este país não tem uma política educacional

coerente. Há quem diga que não há política nacional alguma... Concordo. E nunca

poderá haver, enquanto não houver uma filosofia educacional que permeie essa

política. Somos um país sem rumo definido. Não lemos nossa nação, não lemos o

mundo que nos cerca, não lemos nosso povo, não lemos nossa realidade; somos,

portanto, guiados por filosofias alienígenas, que nos vêem segundo suas óticas

particulares e interesses estranhos aos nossos. Somos um país de modismos. Entra um

ministro que gosta de televisão e computadores e lá vai o Brasil gastar seus recursos

com TV Escola, parabólicas e receptores e salas de informática em escolas que não têm

banheiro, quadra de esportes, carteiras escolares! Entra outro que não gosta de

tecnologia e lá vai o Brasil desativar tudo isso, sem considerar os milhões de reais

lançados ao vento. Entra um secretário de educação estadual que fez um curso de

construtivismo de dez horas e lá vai o estado inteiro aplicar o construtivismo nas

escolas, sem nem saber o que é isso. Fica um senador da República com vontade de

mudar a educação nacional da noite para o dia, e lá vai um projeto substitutivo de lei

de educação que joga por terra cinco anos de trabalho democrático em busca de uma

lei coerente e eficaz. Ê, Brasil, triste país sem direção!... Falta ao Brasil uma leitura

clara de si mesmo, que permita a construção de uma filosofia de vida nacional. Há um

vácuo imenso causado pela falta dessa filosofia, vácuo aborrecível, detestável, que se

reflete em todos os aspectos da vida nacional. Só quando preenchermos esse vácuo

teremos um rumo. Só aí, então, poderá surgir uma política educacional que atenda às

necessidades de nossa gente.

Guajará-Mirim, 24 de abril de 2000.

12

"A Natureza tem horror ao vácuo" ou "A natureza aborrece o vácuo" ou "Alguma coisa está fazendo

falta neste país!..."

Page 66: Livres Pensares Atualizado

CONSIDERAÇÕES SOBRE A ARTE NO BRASIL

“E disse: Em verdade vos digo que se não vos

tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos

céus.” (Mateus 18:3)

0. Introdução

A arte tem sido, desde sempre, um dos temas preferidos dos

filósofos. Especulações sobre a Estética e sobre o valor dos padrões estéticos são

anteriores a Aristóteles. Uma boa bibliografia sobre o tema comportaria, certamente,

milhares de obras dos mais ilustres escritores. Muito bem. Mas, o que tanto

pensamento sobre um único tema acabou resultando? Criaram-se estigmas sobre a

arte? Desvendou-se-lhe o verdadeiro caráter? Alcançou-se-lhe a natureza real? Ou

vivemos e praticamos concepções filosóficas positivistas, as últimas que parecem ter

tido suficiente força para academizar pensamentos? Ou, se isso não é, por que nossa

escola é ainda tão positivista?

Este artigo não quer estabelecer uma nova teoria sobre a arte e

tampouco é um tratado antipositivista. O que quero aqui é verificar o que toda essa

teoria já existente fez com nossas concepções e com nossa maneira de nos relacionar

com a arte no Brasil. Não pretendo, portanto, fazer uma abordagem mundial, o que

creio não ser possível em apenas um artigo, e também não com a arte numa

perspectiva temporal muito dilatada, mas apenas no período mais contemporâneo,

que nos interessa mais de perto. Isso porque nossas escolas e academias, ao que

parece, são bem homogêneas na forma como tratam a arte em seus manuais e livros

didáticos e, assim, também homogênea na forma como a maioria dos professores vê e

“pratica” a arte nos estabelecimentos educacionais. Creio, na verdade, que há uma

incrível difusão de valores equivocados sobre a arte e sua importância, sendo isto um

reflexo direto de toda essa teorização multi-milenar sobre o que seria e para que

serviria a arte. Em outras palavras: penso haver um desvio histórico – e talvez

propositado – no ensino da Estética e da arte, no Ocidente, desde os gregos.

Considero, e o leitor verá o porquê, que uma abordagem dessa

modalidade sobre a arte é existencialmente necessária. Muito mais necessária hoje do

que em outra época qualquer da história recente da humanidade. Vamos à prosa.

Page 67: Livres Pensares Atualizado

67

1. Arte no Brasil

Não é preciso afirmar mais uma vez que a arte não recebe a atenção

devida no Brasil1

. E penso que isso decorre de dois fatores primordiais: o primeiro é

que aprendemos, desde os primeiros anos escolares, a lidar com um conceito de arte

extremamente viciado e o segundo é que esse conceito viciado cria e multiplica

concepções filosóficas igualmente viciadas sobre a arte do e no Brasil.

É interessante notar que, desde a chegada dos europeus, nós vivemos

apenas duas concepções filosóficas de arte, embora os teóricos sejam capazes de

apontar um grande número de escolas artísticas. Quero tomar como exemplo do que

estou afirmando a arte literária.

A Literatura no Brasil teve apenas dois modos gerais de encaramento

filosófico – e, portanto, de existência conceitual - desde que surgiu em sua forma

europeizada: mero exercício recreativo e instrumento de denúncia. No período de

paz e autonomia, instrumento de mera recreação; nas épocas de revolta nacionalista e

na ditadura, instrumento de denúncia.

O preocupante nesse caso é que a arte – a literária inclusa - nem é

instrumento de mera recreação e menos ainda instrumento de denúncia, embora se

permita a ambas as funções. A arte literária proporciona prazer e recreia; a arte

literária, em função de seus recursos técnicos figurativos permite “dizer sem dizer” e

“não dizer dizendo” o que é bastante propício para quem quer denunciar e ferir sem

perder o pescoço. Mas, estamos aqui diante de uma árvore que é usada como

garagem. Pode parecer interessante usar a sombra de uma árvore2

como garagem,

mas não seria muito sensato dizer que uma árvore é uma garagem. Debaixo da

sombra da arte cabem muitos interesses, mas nem sempre esses interesses

correspondem à natureza ontológica da arte.

Essa impropriedade no trato com a arte é, por certo, a decorrência de

uma incompreensão nacional, quase generalizada, do que é arte e do que significa a

expressão “arte brasileira”, incompreensão que foi academicamente desenvolvida,

engolida, digerida e defecada, e sobre a qual se faz crescer as espinheiras teóricas que

aparecem nos manuais e livros didáticos utilizados dos pré-escolares aos doutorados

brasileiros. Isso aparece tão claramente nos compêndios que versam sobre arte, que é

mesmo espantoso que esse problema seja tão rara e vagamente abordado nas

academias nacionais. Como escolhi a Literatura por referência, quero mostrar alguns

dos problemas de concepção que têm resultado nessa visão viciada de arte no Brasil

visão que aparece em famosos – e muito utilizados – manuais de arte.

1.1. Apropriação Indébita

O primeiro problema que aparece claramente nos manuais é o de que

a arte não é uma invenção do povo brasileiro e de que se conclui, portanto, não há

1

Embora essa frase seja justamente esta afirmação...

2

Dependendo da árvore...

Page 68: Livres Pensares Atualizado

68

genuína arte brasileira. Logo, a arte seria uma apropriação indébita de nosso povo e,

por isso mesmo, é mal praticada, já que o plágio é em tudo condenável... Um dos

mais famosos manuais de Teoria Literária3

do Brasil descreve assim a origem da arte

literária, segundo seus principais gêneros:

“Gênero Lírico – caracteriza-se pelos seguintes elementos:

forma, conteúdo e composição. O lirismo grego floresceu no século VI

a.C. ordinariamente cantado ao som de instrumentos.” (Tavares, 1984,

p.118)

“Oratória - Atenas foi o berço da eloqüência e a teoria da

arte oratória surgiu no século V a.C.” (idem, p.143)

“Gênero Dramático – é o gênero representativo ou

figurativo por excelência...todas as principais espécies teatrais clássicas

tiveram seu berço na Grécia.” (ibidem, p.127)

Além de inventar a poesia, a oratória e o teatro, segundo Tavares, os

gregos também criaram a Estética4

, o sistema rítmico e de versificação5

e a maior parte

da terminologia literária é oriunda dos gregos. Ou seja, não tem prá ninguém... se

alguém quiser fazer Literatura tem que apropriar-se das criações dos gregos.

Ainda, ao descrever as características do lirismo, o autor faz pressupor

que esse gênero só existe escrito, já que pressupõe a forma escrita (prosa e verso). Isso,

por si só, elimina todo o lirismo oral das culturas ágrafas e faz descartar a produção

oral de nossos indígenas antes da colonização.

É preciso recorrer a alguns contrapontos, porém. Primeiro, há de se

verificar que o conceito de arte clássico e trabalhado na maior parte das academias

brasileiras, despreza o que aconteceu por aqui e fora da Europa antes de 1500. Sobre a

paternidade da criação das modalidades artísticas, como muito bem observa Ariano

Suassuna6

, é óbvio que os gregos inventaram o teatro... o grego. Porque certamente os

gregos não inventaram o teatro chinês, o teatro japonês, o teatro de máscaras dos

índios do México e das América Central e do Sul e tampouco o teatro de máscaras da

África Central.

Também é bom lembrar que o lirismo hebraico existia registrado em

verso há mais de dez séculos antes de Cristo. Além disso, podemos retomar o lirismo

de nossos indígenas, como nesses versos que traduzo7

do moré, língua Chapakura da

Bolívia, ao português:

“ Um homem na canoa, a canoa no rio.

Um homem na canoa, a canoa no rio.

Os rios de aproximam e se juntam.

Os homens buscam margens opostas.

3

Hênio Tavares (1984). Teoria Literária. 8 ed. Belo Horizonte: Itatiaia.

4

Cf. idem, Capítulo 1 – Estética.

5

Cf. ibidem, pp. 167-170.

6

Em “Aula Show com Ariano Suassuna”, produzido e transmitido pela TV Cultura de São Paulo.

7

O termo “tradução”aqui é mera praxe. Não creio na possibilidade real de traduzir poesia, mas não

vou entrar nessa polêmica aqui. O que faço é uma aproximação em português do sentido dos versos

em moré.

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69

Um rio. Dois homens.”8

Pelos cálculos de antigüidade da língua e dos mitos, estes versos

mitológicos têm mais de mil e quinhentos anos. Não são poesia? Até em português

são sonoros! Lirismo puro! Pura arte não grega. E quantos bons poetas assinariam,

sem temer por sua boa fama, versos como estes...

O fato é que, embora se faça crer que tudo ou quase tudo que temos

de Literatura é oriundo dos gregos, o que caracteriza nossa arte como a apropriação

indébita de que falei acima, há um conjunto bastante grande, inegável e cada vez

mais inocultável de boa produção artística conhecida, desde a produção plástica

rupestre até a lírica em verso e prosa dos nossos indígenas, sertanejos e ribeirinhos

que nunca ouviram falar da arte grega mas, nem por isso, deixaram de produzir arte.

O que se nota é como que uma necessidade de estigmatizar a arte do

povo o que, então, fez criar expressões altamente pejorativas como “arte regional”,

“arte primitiva”, “arte rupestre” e mesmo “artesanato”. Assim, uma obra de Rodin é

arte; uma genuína estátua de argila ou pedra sabão de Rodelinha do Sertão é

artesanato. Àquela atribui-se um caráter universal e um valor intelectual diferenciado;

a esta um caráter local, apropriado à mente inculta que a gerou e, portanto,

pouquíssimo ou nenhum valor intelectual.

Esse estatuto de “adaptadores da arte alheia” vem sendo

desenvolvido no Brasil e impingido ao nosso povo através do ensino escolar desde a

colonização e é, sem dúvida, um dos grandes responsáveis pela errônea concepção de

arte que mormente se adota no Brasil. Mas esse estatuto não caminha só.

1.2. Língua Abastardada

Falando de Literatura, precisamos falar de língua escrita. Quero

emprestar, aqui, uma significativa descrição da história da língua portuguesa, à moda

do professor Napoleão Mendes de Almeida, ilustre latinista e autor de uma das

gramáticas9

mais vendidas, adotadas e reverenciadas neste país. Trata-se de uma

citação bastante longa, mas certamente valerá a pena. Vamos a ela:

“Esse idioma latino, fonte donde promana a nossa língua,

a princípio simples dialeto falado, sem escrita nem literatura, foi assim

chamado do nome Latium, humilde, obscuro e pequeno território da

nação romana, que, por seu poder, por sua grandeza sempre crescente,

por seus brilhantes destinos, por sua política sagaz, perseverante,

ambiciosa e absorvente, lançou a rede de suas conquistas sobre o

mundo civilizado ocidental e fez do humilde e vulgar dizer do Lácio a

língua que se desenvolveu e cresceu, à medida do desenvolvimento do

povo romano... tornando-se no decurso do tempo a bela, rica e

8

Versos recitados por Touá Saê Paray, índio moré com o qual trabalhei em minhas pesquisas de

mestrado e doutorado. Fazem parte da mitologia moré.

9

Napoleão. M. de Almeida (1985). Gramática Metódica da Língua Portuguesa. 33 ed. São Paulo:

Saraiva.

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70

pomposa língua latina, esplendidamente vestida e ornada como uma

rainha.

Mas, ao lado10

do latim oficial, do latim dos atos

administrativos, do latim literário e clássico, da língua dos livros e dos

grandes escritores, que com tanto garbo e luzimento se imortalizaram

sob os nomes de César, Cícero, Tito Lívio, Lucrécio e Virgílio, Horácio e

Ovídio, é incontestável a existência em Roma... do latim vulgar,

popular e campesino, da língua falada.

Esta foi a que levaram aos países submetidos a seu

poder... desvirtuando-se mais e mais o latim, já profundamente

modificado na linguagem do povo, por essa mescla de elementos

heterogêneos e estranhos, que lhe deviam de força alterar a pureza e

pronunciação.

No século 5o os visigodos...substituíram os romanos em

seu domínio na Espanha; mas, embora vencedores, menos adiantados

que os vencidos na ciência e civilização, adotaram a língua destes.

A conseqüência da invasão desses bárbaros foi a

corrupção, decadência e ruína das letras e da cultura romana.

Estancados assim os mananciais donde vertiam os tesouros preciosos

com que se enriqueciam as ciências, as artes e as letras, a língua, tão

sólida e custosamente implantada na península, foi-se ainda mais

abastardando e corrompendo.

A língua vulgar, agora livre e independente, entregue só

às suas tendências ingênitas, sem as peias da língua clássica oficial...

foi-se mais e mais desenvolvendo, à feição de sua índole nativa, dando

afinal nascimento a vários dialetos... que se foram obscurecendo e

reduzindo a dizeres populares, a línguas meramente faladas... as

línguas neolatinas ou românicas, as quais outra coisa não são que o

latim vulgar, disfarçado em português...” (Almeida, 1985, pp. 372-5)

Seria conveniente elencar os atributos referidos a cada grupo aqui

diferenciado, para permitir uma visualização mais clara da valoração feita em relação

ao latim e ao português:

Latim clássico e seus falantes Latim vulgar, línguas neolatinas e seus

falantes

Fonte

Poder

Grandeza crescente

Brilhantes destinos

Política sagaz, perseverante, ambiciosa e

absorvente

Beleza

Riqueza

Pomposidade

Esplendidamente vestida e ornada como

uma rainha

Garbo

Luzimento

Imortalidade

Mas, ao lado...

Popular e campesino

Desvirtuado

Mescla

Estranheza

Heterogeneidade

Corrupção

Decadência

Ruína

Abastardamento

Tendências ingênitas

Sem peias...

Índole nativa

Dialeto

10

Neste ponto o autor transmite uma sensação de profunda tristeza e consternação...

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71

Virtude

Ciência

Civilização

Mananciais de tesouros preciosos

Obscuridade

Disfarce do latim vulgar

É interessante perguntar como seria possível fazer arte literária

brasileira, verdadeira arte universal, tendo que emprestar os moldes dos gregos para

usá-los com uma língua abastardada e sem peias... Poder-se-ia, então, perguntar: mas

essa concepção não seria uma idiossincrasia do autor? Abra-se um livro de Direito,

um manual de português do tipo “isso sim, aquilo não” ou um livro didático e ver-se-

á que não.

Essa concepção de que a língua portuguesa já nasceu como uma

corruptela acentua-se ainda mais quando pensamos em uma língua genuinamente

brasileira. O mesmo autor tece as seguintes considerações no Prefácio à sua

aplaudida gramática:

“O professor deve ser guia seguro, muito senhor da

língua; se outra for a orientação de ensino, vamos cair na “língua

brasileira”, refúgio nefasto e confissão nojenta de ignorância do idioma

pátrio, recurso vergonhoso de homens de cultura falsa e de falso

patriotismo... A língua é a mais viva expressão da nacionalidade. Como

havemos de querer que respeitem a nossa nacionalidade se somos os

primeiros a descuidar daquilo que a exprime e representa, o idioma

pátrio.” (idem, p. 7)

Cumpre ver que gritante demonstração do tipo de conceito que se

aplica à nossa língua e à nossa arte. O autor diz claramente que a língua brasileira é

nojenta, nefasta, vergonhosa, falsa cultura e falso patriotismo. Na descrição da

formação do português, a lista de impropérios aumenta. E se esta língua é tudo isto e

é “a mais viva expressão da nacionalidade”, por conseqüência, nossa própria

nacionalidade é nojenta, nefasta, abastardada, etc., etc. Como esses compêndios são

referência na formação de professores de Língua Portuguesa e Literatura e na

elaboração dos livros didáticos, não fica difícil perceber as causas subliminares de só

se considerar a arte brasileira realmente boa quando aparentada ou cópia, o quanto

mais fiel melhor, da arte européia, o que se pode chamar de vocação caudatária.

1.3. Vocação Caudatária

Um breve estudo de História da Literatura chamada brasileira

demonstra o que quero dizer com vocação caudatária. Consideremos as escolas

literárias – ou estilos de época, como alguns preferem chamar - tradicionalmente

estudadas nas instituições de ensino no Brasil. Tomemos como referência Bosi11

, um

11

Alfredo Bosi (1987). História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix.

Page 72: Livres Pensares Atualizado

72

dos mais respeitados autores de História da Literatura no Brasil e um dos mais

adotados nas universidades.

No chamado período colonial, segundo Bosi, tivemos escritores

portugueses fazendo Literatura Portuguesa para portugueses12

. A partir do Barroco,

as descrições que se seguem são:

“Barroco - Seja qual for a interpretação que se dê ao

Barroco, é sempre útil refletir sobre a sua situação de estilo pós-

renascentista e, nos países germânicos, pós-reformista. É instrutivo

observar que o barroco-jesuítico não tem nítidas fronteiras espaciais...

Floresce tanto na Áustria como na Espanha, no Brasil como no México.

(Bosi, 1987, pp. 33-4)

“Arcadismo - A primeira Arcádia foi fundada em Roma,

em 1960, por alguns poetas e críticos antimarinistas que já antes

costumavam reunir-se em salões da ex-rainha Cristina da Suécia.”

(idem, p.61)

“ Romantismo - ... o Romantismo expressa o sentimento

dos descontentes com as novas estruturas. O quadro, vivo e pleno de

conseqüências espirituais na Inglaterra e na França, então limites do

sistema, exibe defasagens maiores ou menores à medida que se passa

do centro à periferia. As nações eslavas e balcânicas, a Áustria, a Itália

central e meridional, a Espanha, Portugal e, com mais evidência, as

colônias, ainda vivem em um regime dominado pela nobreza fundiária

e pelo alto clero.” (ibidem, p.100)

“Realismo - ...o deslocar-se do eixo de prestígio para o Sul

e os anseios das classes médias urbanas compunham um quadro novo

para a nação... De 1870 a 1890 serão essas as teses esposadas pela

inteligência nacional, cada vez mais permeável ao pensamento

europeu que na época constelava em torno da filosofia positiva e do

evolucionismo. Comte, Taine, Spencer, Darwin e Haeckel foram os

mestres...” (ibidem, p.181)

“Naturalismo e Parnasianismo – O Realismo se tingirá de

Naturalismo, no romance e no conto, sempre que fizer personagens e

enredos submeterem-se ao destino cego das “leis naturais” que a

Ciência da época julgava ter codificado; ou se dirá parnasiano, na

poesia, à medida que se esgotar o lavor do verso tecnicamente perfeito.

Na década de 80 afirmara-se o Naturalismo entre nós... a maioria dos

intelectuais imergiu na água morna de um estilo ornamental, arremedo

da belle époque européia.

(Do Parnasianismo)... o nome da escola vinha de Paris e

remontava as antologias publicadas a partir de 1866, sob o título de

Parnasse Contemporain, que incluíam poemas de Gautier, Banville e

Lecomte de Lisle.” (ibidem pp. 187, 219 e 246.)

“Simbolismo – O Parnaso legou aos simbolistas a paixão

do efeito estético. A arte pela arte de Gautier e Flaubert é assumida por

eles.Visto à luz da cultura européia, o Simbolismo reage às correntes

analíticas dos meados do século.”

É bastante conveniente resumir: período colonial, Barroco,

Arcadismo, Romantismo, Realismo, Naturalismo, Parnasianismo e Simbolismo:

escolas européias assumidas caudatariamente pelos intelectuais brasileiros. Como diz

12

Cf. idem, pp. 13-29.

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73

Bosi(1987), em alguns casos, verdadeiros arremedos da arte européia. E, juntando as

palavras de Almeida(1985), desenvolvida com uma língua abastardada.

Bem, o leitor pode perguntar agora: estamos salvos pelo

Modernismo? E a Semana de Arte Moderna de 22? Para responder a essa pergunta

recorro a Teles13

:

“Ao contrário do modernismo hispano-americano... o

modernismo brasileiro, conhecido historicamente a partir de 1922,

recebeu influências das vanguardas européias, ainda que

constantemente negadas pelos seus próprios fundadores.” (Teles, 1987,

p.30)

A partir desse trecho, Teles começa a descrever minuciosamente as

influências de cada escola européia sobre os fundadores do Modernismo dito

brasileiro e como tais influências redundaram em mais arremedos da arte européia,

com algumas boas exceções.

Quero eu, agora, fazer uma pergunta: e a contemporaneidade? Bem,

como vimos acima, por mais peculiaridades nacionalistas que possamos encontrar na

arte literária brasileira até o Modernismo, sempre se tratou de uma arte caudatária.

Nossas “vanguardas” foram caudatárias! A escola nacional fez o desfavor ao povo

brasileiro de sistematizar, reproduzir e estigmatizar o pensamento de que nossa arte

foi uma cópia constante da arte européia. Isso ocorre porque os manuais e livros

didáticos desprezam arte antes do descobrimento e somente registram a arte da classe

intelectualmente dominante no Brasil desde então, que realmente era mais européia

do que brasileira. A atração pela Corte é muito forte, mesmo hoje, na colônia... Toda a

arte “regional”, “primitiva” e todo o chamado “artesanato” são descaradamente

marginalizados no processo de constituição desse ideário nacional sobre arte. Além

disso, muito de nossa arte foi transformado em “folclore”, que na concepção

tradicional é o “conjunto de tradições, conhecimentos ou crenças populares expressas

em provérbios, contos ou canções”14

. E veja-se que as idéias de “tradições” e “crenças”

não pressupõem construção, mas herança. O povo, então, não constrói sua arte,

herda coisas de um passado desconhecido. Câmara Cascudo, o mais conceituado

folclorista brasileiro, ratifica essa dualidade entre arte e folclore, no se Dicionário do

Folclore Brasileiro15

:

“Ao contrário da lição dos mestres, creio na existência dual

da cultura entre todos os povos. Em qualquer um deles há uma cultura

sagrada, oficial, reservada para a iniciação, e a cultura popular, aberta

apenas à transmissão oral, feita de histórias de caça e pesca, de

episódios guerreiros e cômicos, a gesta dos heróis mais acessível à

retentiva infantil e adolescente.” (Cascudo, 1972, p.11)

13

Gilberto M. Teles (1987). Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. 10 ed. Rio de Janeiro: Record.

14

Aurélio B. de Holanda. (1986). Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira.

15

Câmara Cascudo (1972). Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Ediouro.

Page 74: Livres Pensares Atualizado

74

Cascudo é aqui concessivo. Eleva o folclore ao nível da arte, embora

com a ressalva de que cabe mais “à retentiva infantil e adolescente”. Qual seria, então,

a que ele chama de “lição dos mestres”?

No estudo da contemporaneidade, ainda, a grande maioria dos livros

didáticos pára no Modernismo e uns poucos que se aventuram por um pretenso Pós-

Modernismo acabam retratando escritores do Modernismo em suas fases mais

recentes. Esse retratamento histórico capenga de nossa arte é, claramente, um dos

grandes responsáveis pela concepção de que a arte brasileira somente é arte e

somente é universal, como disse, quando “imitação de boa qualidade”16

da arte

européia.

Mais do que isso e muito mais grave, como a arte literária brasileira

não é, segundo tal concepção, em essência, realmente brasileira, não é para ser

experimentada, mas para ser aprendida. O resultado disso são as intermináveis listas

de acontecimentos históricos europeus que propiciaram a germinação dos ideários

artísticos de cada escola literária. E, pelo fato de grande parte da intelectualidade

brasileira apreciar o estatuto de “eterna colônia” e fazer grande questão de reproduzir

esses fatores de modernidade no Brasil, surgem também as enormes listas de

acontecimentos históricos nacionais que reproduziram os acontecimentos europeus e

permitiram a reprodução daqueles ideários aqui. E já ia esquecendo: restam ainda as

listas de características das escolas européias e como essas características se

reproduziram aqui, as listas autores europeus que influenciaram os autores nacionais,

as listas de características dos autores nacionais que têm que ser apontadas em

fragmentos de obras, obras estas que devem ser enquadradas em padrões de

construção gregos. Tudo deve ser decorado. É arte para aprender, não para vivenciar;

arte transformada de conteúdo programático.

Na contemporaneidade, parece estar havendo, porém, uma visão

mais licenciosa da intelectualidade brasileira com relação a toda aquela arte que, por

quinhentos anos, havia sido execrada. E aqui podemos formular uma descrição

histórica bastante interessante: a intelectualidade nacional começou, enfim e em

alguns lugares, a descobrir a arte genuinamente nacional, protegida pela ignorância

aos padrões europeus, que sempre foi conhecida do povo e vivida por ele.

Na verdade, o que percebi em meus anos de professor da área, é que

os alunos fazem grande esforço mnemônico para decorar todas aquelas listas, em seus

módulos de memória recente e de forma extremamente seletiva: até o término da

prova. Ao sair, esses mesmos alunos deixam essas listas na escola e passam a viver a

arte que conhecem, dos vasos de flor feitos com garrafas PET aos versos apaixonados

no improviso do namorador. E isso não é uma demonstração de nacionalismo, pelo

simples fato de que não há sentido em falar de arte nacionalista. Explico:

A arte é um construto inteligente mas, certamente, associado à

vivência do homem. A arte é um construto existencial humano tanto quanto a

Filosofia. Se não for a imitação barata17

da arte de outrem, a arte será sempre

genuinamente nacional, tenha ela a forma que tiver na nação em que vier a existir e,

ao mesmo tempo, universal, como é universal o homem que a construiu. O agregado

ideológico dessa arte, por sua vez, reflete valores pessoais tanto quanto valores

16

Se é que isso existe em arte...

17

Ou mesmo custosa...

Page 75: Livres Pensares Atualizado

75

sociais. O problema está em sobrevalorizar o agregado ideológico da arte, em

detrimento da própria arte, que é justamente o que a academia brasileira faz com rara

competência.

1.4. Mero Exercício Recreativo

Toda essa ação de marginalização da arte nacional por cinco séculos

não deixou de criar profundas cicatrizes, obviamente. A concepção que as escolas

têm ensinado desde os jesuítas é a de que, uma vez que a arte que vale a pena não é

genuinamente um produto nacional e, portanto, do sujeito aprendiz, ela deve ser

aprendida, apenas. Como tal, ou seja, como um objeto não experimental, porque não

está sob a responsabilidade da construção do sujeito que vem a conhecê-la, a arte, seu

estudo e sua imitação não podem passar de mero exercício recreativo. Essa concepção

durou da chegada dos portugueses até o golpe militar de 1964, com raros e

curtíssimos interlúdios históricos.

Do golpe militar de 1964 – e, como disse, talvez em raros e pequenos

períodos antes dele, como na época da Independência – o agregado ideológico da

arte ganhou mais relevo do que a própria arte. Tornou-se a arte um mero instrumento

de denúncia política e social. As obras eram pensadas segundo as possibilidades de

“dizer sem dizer” e de “não dizer dizendo”. Isso desvirtuou a arte, porque a tornou

um instrumento de ação assemelhado à Lógica. A arte denúncia foi tão prejudicial à

arte como as concepções jesuíticas de arte contemplativa.

Ao final da ditadura militar, a palavra foi novamente franqueada.

Agora, era permitido “dizer dizendo”, clara e abertamente. A arte denúncia perdeu a

razão de ser – e a graça - porque o agregado ideológico que lhe dava sustentação foi

profundamente danificado. Esperava-se que a arte finalmente assumisse sua

importância existencial mas, infelizmente, retomou o estatuto de mero exercício

recreativo, e com um abaixamento de qualidade inacreditável. Na verdade, parece

haver muito mais arte em um vasinho de garrafa PET do que em muito do que se tem

chamado arte no Brasil, como, por exemplo, certas versões ditas sertanejas de canções

norte-americanas. E não se trata, definitivamente, de elitismo ou nacionalismo

exacerbado da minha parte, mas pura constatação de que o estatuto de “eterna

colônia” continua vivo, bem vivo, e que ele impede nossa elite e grande parte de

nosso povo por ela dominada de conceber a arte como um elemento existencial.

2. Relacionamento com a Arte

Tenho me referido várias vezes à arte como um elemento existencial e

quero explicar isso agora. A arte não é um elemento externo ao ser humano. Por mais

que a arte assuma um agregado ideológico ou formal, ela é um construto existencial,

parte da própria organicidade dos seres vivos. A atração estética entre os animais, as

formas de construir, as representações teatrais dos machos em época de reprodução,

Page 76: Livres Pensares Atualizado

76

entre outras coisas, têm sim uma função pragmática, mas demonstram que há muito

de existencial no fator estético.

A contemplação do belo no homem é aprimorada pela capacidade de

promover sistematizações e assistematizações que nem sempre são visíveis – aos

nossos olhos – nas ações dos outros animais. Mas, nem por isso, é menos existencial.

A mera constatação de que a preocupação estética existe em todos os grupos

humanos conhecidos e até nos homens de vida isolada é demonstração clara dessa

natureza existencial. Aprofundemo-nos nisso.

2.1. Quatro Terços

Desde a sistematização das áreas do cérebro humano pelo Dr.

Leukel18

, sabe-se com precisão que quatro terços da massa cerebral humana estão

diretamente relacionados a funções que podem ser tipicamente consideradas como

estéticas. O outro quarto responde por funções lógicas ou meramente biológicas. A

despeito disso, seguindo-se a tradição grega, o raciocínio lógico, há muito, tem sido

considerado como a função cerebral mais importante, agregada à memória de dados

objetivos.

Mais recentemente, Gardner19

sistematizou essa constatação biológica

em forma de uma teoria educacional. A linha de pensamento era espantosamente

óbvia: um ser que tem quatro terços de sua massa cerebral ligada à Estética, não pode

ter como inteligência exclusiva a Lógica. Aceitam-se, então, as “novas inteligências”.

Basicamente, Gardner fala de inteligências lingüística, lógico-matemática, espacial,

musical, corporal, naturalista, pictórica e pessoal20

. Oito tipos básicos de inteligência.

Um exclusivamente lógico. Sete contra um. Isso é existencial.

A assombrosa aceitação da sistematização de Gardner pode ser

encarada como um gesto de rebeldia à ditadura da Lógica: finalmente a

intelectualidade mundial libertava-se do estigma de que os físicos e matemáticos são

gênios e que os artistas são imbecis de carteirinha, além de desocupados. A

genialidade artística antes atribuída à mera inspiração ganhou estatuto de ação

inteligente.

A teoria de Gardner permite, ainda, uma outra constatação

interessante: não há equilíbrio psicossocial humano possível sem o desenvolvimento

das inteligências ligadas à Estética. Agora, fica claro entender porque nossas escolas e

universidades têm sido grandes e eficientes centros formadores de desequilibrados.

Um período de quase vinte anos, do pré-escolar à graduação, trabalhando um quarto

do cérebro com raciocínio lógico e memorização e deixando o resto de molho em sal

grosso. Grande parte da violência social e da necessidade da multiplicação dos

consultórios psicológicos é encontrada também aí. Também, a multiplicação da igrejas

encontra boa explicação na necessidade existencial do homem em desenvolver sua

18

Francis Leukel (1968). Introduction to Physiological Psychology. Saint Louis, USA: C.V. Mosby Co.

19

Howard Gardner (1995). A Teoria das Inteligências Múltiplas. Porto Alegre: Artes Médicas.

20

Cf. idem.

Page 77: Livres Pensares Atualizado

77

existência estética, visto que as igrejas, desde suas construções e ornamentações, sua

música e oratória até seus rituais são instituições marcadamente estéticas.

Essa necessidade existencial de desenvolvimento estético do homem,

necessidade que, como vimos, tem fundamento orgânico, permite sistematizar alguns

fatores de importância da arte.

2.2. Importância da Arte

Como vimos, a arte importa, principalmente, por ser existencial. Seu

desenvolvimento responde a uma necessidade orgânica do homem e permite um

desenvolvimento muito mais harmônico do intelecto do que o permite uma formação

lógico-matemática positivista “à la escola brasileira”.

Esse desenvolvimento intelectual mais equilibrado expande

horizontes de inteligência e permite uma reconstrução de valores que não é possível

pela Lógica, como veremos adiante. Mas, neste ponto, cumpre dizer que a arte

importa porque faz parte das vivências humanas desde sempre, desde o momento

em que nos deparamos com a primeira coisa que nos desperta o sentimento de beleza

em nossa vida até o último momento da existência.

Por essa razão, a meu ver, a arte deve ser encarada como uma

experiência na vida. O contato com a arte é não somente um recrear, mas

principalmente, um recriar. E isso permite que se assuma que o recrear também é

parte da existência e não algo para as horas de folga. Muito mais do que isso, porém,

permite enxergar que a arte só existe quando aquele que tem contato com ela a

reconhece como arte, a experimenta como arte e se torna sujeito em sua construção.

A arte tem vida como construto social apenas se considerado seu

agregado ideológico. Fora disso, a arte tem vida existencial na natureza humana, seja

nos rebanhos de cabras de brincadeira feitas com pedaços de ossos pelos meninos

famintos do Nordeste brasileiro, seja no mais refinado óleo sobre tela.

Decorre disso uma pergunta natural: por que, então, critiquei o nível

de certas ações chamadas artísticas no Brasil moderno? Não têm elas uma

preocupação estética? Em assim sendo, não são arte?

O que define a arte não é a mera preocupação estética. A preocupação

e a habilidade do trabalho estético permitem mensurar níveis no resultado artístico,

sempre relativos é óbvio. O que define a arte é o fato de ela ser uma construção

estética intencional – e, portanto, inteligente - de um objeto (ou ação, ou qualquer

outra coisa) por um sujeito. Quanto menos o construtor é sujeito de sua obra, menos

arte existe nessa obra. O arte é, em essência, a revelação do sujeito propositadamente

criada por esse mesmo sujeito. Não pode haver arte sem sujeito, uma vez que a

imitação não-por-sujeito pressupõe analogia, a analogia pressupõe Lógica e a Lógica

não pressupõe arte. Da mesma forma, a arte de um concretiza-se como arte do outro

quando - e somente quando - o outro sujeita a arte do um. Aí também há grande

importância na arte, pois nela se revelam os sujeitos. É fácil dizer que a moeda deve

desvalorizar-se em função de leis lógicas de mercado, mas é impossível convencer

que os versos que criei seguem a leis lógicas de poética. São meus versos, eu os criei,

Page 78: Livres Pensares Atualizado

78

sou sujeito deles e obrigado a assumir sua qualidade artística. A Lógica oculta os

sujeitos; a arte os revela.

O que ocorre nas escolas brasileiras, então, que nossos estudantes

não sentem prazer na arte? Podemos elencar várias causas que aqui dispensam maior

explicação:

a. o ensino lógico e mnemônico da arte é o padrão comum adotado;

b. assim, a arte é ensinada e não vivenciada;

c. por não ser vivenciada, a arte é sempre não-por-sujeito;

d. por ser não-por-sujeito, a arte não assume um valor existencial;

e. por não ter valor existencial a arte se transforma em mero exercício

escolar e, no máximo, assume a função de mero exercício recreativo;

f. o resultado é que o conceito de valor artístico se perde. A arte – e os

artistas – viram coisas não essenciais que se deve tolerar porque o sujeito-professor, o

outro, assim determina e seu estatuto social o permite.

As conseqüências são notáveis: coloque um famoso economista em

um auditório e haverá centenas de intelectuais que pagarão milhares de reais por

uma palestra; coloque um artista na mesma sala e cobre cinco reais por pessoa que,

certamente, haverá quem diga que a arte e a cultura deveriam ser de graça... Este

comportamento reflete a concepção de arte como elemento não existencial, não

necessário ao homem, sem valor objetivo.

Outra questão que se deve colocar em pauta é que o contato com a

arte que a escola brasileira proporciona a seus estudantes não segue o que tenho

chamado de fases de construção do sujeito estético. Assim como na construção do

sujeito lógico e do sujeito social, as distintas fases na construção do sujeito estético

precisam ser respeitadas. Creio que não há grandes problemas teóricos em classificar

didaticamente essas fases em três: prazer, intuição e formalismo.

2.3. Prazer

O primeiro contato com a arte não precisa – e chego a afirmar que

não deve ter! – intermediações e tampouco explicações. Ao aprendiz basta achar

bonito. Falamos de ativar na mente o senso de beleza; de gostar de algo simplesmente

porque se gosta. Nada de “por que esse quadro é bonito?” ou “o que o atrai nessa

música”?

A criança de colo que gosta de um brinquedo e despreza outro pratica

esse tipo de contato estético. Quando o tio gordo entra na sala vestido de Papai Noel

e a criança entra em pânico diante daquela materialização vermelha de Bicho-Papão,

também pratica esse contato estético espontâneo. Ninguém conseguirá tirar dela uma

explicação lógica das causas que a apavoraram e, tampouco, convencê-la com

argumentos consistentes que aquilo é bonito. O homem que pára diante de um pôr-

do-sol, sem palavras, atônito com a beleza que emana de cada raio de luz, também

vivencia esse tipo de experiência. E aí não importam as causas da beleza; importa a

existência da beleza.

Page 79: Livres Pensares Atualizado

79

A escola brasileira pula essa fase. Em nenhum momento do programa

didático tradicional a criança tem contato espontâneo com a arte. É impensável algo

como trazer um quadro para a sala e: “Quem gostaria de ver esse quadro de perto?

Quem achou bonito? Muito bem. Quem achou feio? Muito bem também.” A tradição

é outra: “Olhem. Por que ele é bonito? O que ele significa? Façam uma redação sobre

o quadro, valendo nota...”

O resultado é que a criança trabalha, numa série de perguntas como

esta, com alguns pressupostos que lhe tiram o direito de ser sujeito:

a. “Por que ele é bonito” pressupõe que o quadro é bonito e que se

você o acha feio é porque não está dando conta de enxergar mais algum ponto do

conteúdo, da mesma forma que não sabe dividir por três. Mais do que isso,

pressupõe-se que há um conceito pré-existente de beleza, que deve ser reconhecido

ali, memorizado e repetido. Ainda mais funesto ainda é ver que essa pergunta

pressupõe que a arte existe sem sujeitos pois é do tipo de conhecimento de uma só

resposta que não prescinde de fórmulas interpretativas lógicas e perenes.

Podemos ver isso claramente no trato com a poesia. O professor

apresenta aos estudantes um fragmento de obra e sentencia: “interpretem”. O aluno

cai na besteira de dizer o que pensa sobre a poesia e ouvirá “não é assim que se

interpreta este texto!” Absurdo, mas comuníssimo. Entretanto, é mister que essa

prática seja alterada. Se estamos lidando com um texto artístico, o aluno tem, mais do

que um direito, a necessidade existencial de tornar-se o sujeito daquele texto, de

recriar seu sentido e de dar-lhe o valor artístico que bem entender. Somente isso

poderá trazer-lhe prazer estético. O jogo de relações de sentido desenvolvido nesse

processo é o responsável maior pelo desenvolvimento do prazer com a arte. E nem

sempre – aliás, muito poucas vezes – esse jogo de relações é logicamente exprimível.

Antes de desenvolver nos estudantes o prazer pela arte, é pura perda

de tempo tentar avançar de fase. Se a escola conseguisse, ao menos, desenvolver isso,

faria muito mais pela humanidade do que ensinando a tabela periódica dos

elementos químicos, o movimento uniformemente variável, a oração substantiva

completiva nominal reduzida de infinitivo...

2.4. Intuição

Quando sente prazer pela arte e, por isso mesmo, torna-se sujeito

dela, o homem dá-se o direito de intuir sobre a obra artística. Aí - e só aí - ele está

capacitado a começar a atribuir causas aos efeitos que lhe dão prazer. Então, ele

começa a dizer coisas como “eu pintaria essa flor de azul, ao invés de amarelo”, “eu

tocaria essa nota mais devagar”, “eu faria o nariz dessa estátua mais empinado”.

Todas essas afirmações demonstram que o espectador tornou-se vivenciador, sujeito

da obra, atribuindo-lhe sentidos, mas também intuindo sobre as causas desses

sentidos, dando-se o direito de modificar, de recriar a obra artística, mesmo que

apenas em sua mente.

Lembro-me de meu primeiro contato com Rei Lear, de Shakespeare.

Um horror! Manti-me distante da obra e não conseguia opinar além de “não gostei”.

Page 80: Livres Pensares Atualizado

80

A segunda leitura, porém, foi mais prazerosa. Nela, permiti-me dizer que

Shakespeare poderia ter mudado os destinos de Lear se, num dado momento o

fizesse conversar com um bom conselheiro, ao invés de um servo pessimista. A

história de Lear, a partir daquela descoberta, estava sujeitada aos meus desejos, pois

agora eu me dava o direito de reescrever o Rei Lear. Apropriei-me da obra. Como

escreveu Quintana21

:

“Qualquer idéia que te agrade,

Por isso mesmo... é tua

O autor nada mais fez do que vestir a verdade

Que dentro de ti se achava inteiramente nua...”

(Quintana, 1987, p. 124)

2.5. Formalismo

O último passo no contato com a arte é ser capaz de perceber que

nossas intuições conduzem à possibilidade de sistematizar uma técnica de construção

inteligível e manipulável. Nessa fase, o estudante consegue enxergar o trabalho do

escritor na construção dos versos, no sistema rítmico, na metrificação, no esquema de

rimas, no escolha vocabular. Nessa fase o estudante é hábil para enxergar beleza no

traço do pintor, na combinação de cores, na textura da tela, na qualidade da

pigmentação da tinta.

É essa uma fase muito avançada no trato com a arte. Gostaríamos,

sinceramente, que nossos alunos universitários fossem capacitados a sentir prazer

estético formal. Mas como, se as duas fases anteriores foram queimadas na escola

básica?

Desde muito cedo, ao listar características, ou querer ensinar teoria do

verso, ao fazer decorar datas de publicação de livros e nomes de autores, a escola

brasileira tenta em vão introduzir nossas crianças diretamente na fase do prazer

formal. Uma violência por si só, essa tentativa é seguida da prática de avaliar o prazer

do aluno em relação à obra de arte: se gostou é porque é inteligente; se não gostou,

um caso perdido. Como quer ser inteligente, o aluno é conduzido a assumir uma

postura lógica diante da arte, o que destrói a natureza da arte e violenta a

organicidade estética do aluno. Associe-se a isso as idéias de que nossa arte não é

nossa, de que nossa língua é muito difícil, por isso não é boa, de que só há um tipo de

inteligência, de que a Lógica é mais importante do que a Estética, etc., etc. e fica bem

fácil entender porque nossas crianças têm uma concepção equivocada de arte e de sua

importância.

O nível formal de prazer estético é o mais abstrato de todos. Permite

encontrar beleza até na estética de uma fórmula matemática ou de um argumento

lógico. Aí a Estética suplanta a Lógica, pois adentra seus domínios enquanto o

contrário é impossível. A arte logicizada deixa de ser arte; a Lógica esteticamente

avaliada, não deixa de ser Lógica. Mais: o trato estético da Lógica reforça seus

21

Mário Quintana (1987). Poesias. Rio de Janeiro: Globo.

Page 81: Livres Pensares Atualizado

81

estatutos e dá-lhe uma força que sozinha não tem para impressionar o espírito

humano.

O nível formal de prazer estético somente deveria ser tratado no

período escolar superior. Que maravilhoso serviço estaria a escola básica prestando à

nação em desenvolver os níveis de prazer estético natural e intuitivo de nossas

crianças. A equilibração das mentes infantis seria sobremodo propiciada e a fábrica de

desequilibrados em que se converteu a escola voltaria a ajudar no desenvolvimento

nacional. Entretanto, para meu estarrecimento, o contrário é o que vejo. Cada vez

mais Lógica, cada vez mais memorização, cada vez mais informatização de dados,

cada vez menos música, teatro, lírica, plástica. Fala-se de dezenas de eventos

científicos, feiras, congressos e simpósios para cada um ou outro evento artístico. A

grande maioria das escolas brasileiras, ao invés de incentivar o ensino da arte em uma

tentativa de equilibrar a desigual luta entre o quarto de miolo que acolhe Matemática,

Física, Química, Teoria da Linguagem, Geografia e História memorizadas, Biologia,

entre outras disciplinas, e os três quartos que aguardam seu desenvolvimento pela

Estética, impõe um trato Lógico à arte, que deixa, portanto, de ser arte, e os três

quartos “mais humanos” do cérebro ficam, novamente, de molho na salmoura.

A tradição filosófica ocidental desde de Aristóteles tem contraposto a

Lógica à Estética, sobrevalorizando aquela e desprezando esta. O resultado na

humanidade é plenamente visível. Nunca em nossa história os professores de artes

foram tão necessários. Nunca precisamos tanto de verdadeiros artistas que nos

propiciem a equilibração mental de que carecemos. Os professores de Educação

Artística e de Literatura deveriam orgulhar-se de sua importância para a sociedade

atual. Mas, parece que nosso sistema educacional está ainda bem distante dessa

compreensão da importância existencial da Estética para o homem.

3. O camelo, o leão e a criança

Uma de minhas passagens preferidas de Assim Falava Zaratustra22

é a

parábola das três transformações do espírito humano. Vamos a alguns trechos

centrais dela:

“Três transformações do espírito vos menciono: como o

espírito se muda em camelo, e o camelo em leão e o leão, finalmente,

em criança.

Há muitas coisas pesadas para o espírito, para o espírito

forte e sólido, respeitável... e ajoelha-se como camelo e quer que o

carreguem bem.

O espírito sólido sobrecarrega-se de todas coisas

pesadíssimas; e à semelhança do camelo que corre carregado para o

deserto, assim ele corre pelo seu deserto.

No deserto mais solitário, porém, se efetua a segunda

transformação: o espírito torna-se leão; quer conquistar liberdade e ser

senhor no seu próprio deserto. Procura então o seu último senhor;

22

F. Nietzsche (1985). Assim Falava Zaratustra. São Paulo: Ediouro.

Page 82: Livres Pensares Atualizado

82

quer lutar pela vitória com o grande dragão. Qual é o grande dragão?

“Tu deves”, assim se chama o grande dragão; mas o espírito do leão

diz: “Eu quero”.

Meus irmãos, que falta faz o leão ao espírito? Não bastará

a besta de carga que abdica e venera?

Criar valores novos é coisa que o leão ainda não pode;

mas criar uma liberdade para a nova criação, isso pode-o o poder do

leão.

Para criar a liberdade e um santo NÃO, mesmo perante o

dever; para isso, meus irmãos, é preciso o leão.

Conquistar o direito de criar novos valores é a mais

terrível apropriação aos olhos de um espírito sólido e respeitoso.

Dizei-me, porém, irmãos: que poderá a criança fazer que

não haja podido fazer o leão? Para que será preciso que o altivo leão se

mude em criança?

A criança é a inocência e o esquecimento, um novo

começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento,

uma santa afirmação.

Sim; para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso uma

santa afirmação: o espírito quer agora a sua vontade, o que perdeu o

mundo quer alcançar o seu mundo.” (Nietzsche, 1985, pp. 34-5)

Muito me impressiona esta parábola a facilidade com que podemos

criar uma analogia entre ela e o tratamento da arte no Brasil, com nossa “educação

artística23

” tradicional. No começo, camelos, bestas de carga da arte alheia; depois

leões, pela necessidade de reconhecer o que é genuinamente nosso, com coragem

suficiente para proclamar um santo não; algum dia, quem sabe, crianças cuja

inocência permita despreconceituar a arte verdadeira de nosso povo e reconstruir

uma nova e santa afirmação.

Mas, considero mais pesado e importante ainda um outro sentido que

lhe atribuo. O homem tem, indubitavelmente, sido condicionado nos últimos séculos

a aceitar coisas pesadíssimas como, por exemplo, o conjunto de valores sociais que

considera natural a existência de pobre e ricos, ignorantes e cultos, como a

indefectibilidade dos intelectuais de todos os tempos, como a superioridade da Lógica

e da Razão (seja lá o que for isso...), entre outras. Temos sido, como homens,

condicionados à vida de camelo. Nas palavras de Nietzsche, como a “besta de carga

que abdica e venera”.

É preciso que tenhamos a força do leão para proclamar um santo não

que nos liberte dessa condição. Mas que força pode ser esta se não a própria Lógica

que constata que o caminho que trilhamos é de provável ruína? Que força se não a

Lógica que permite ver com clareza os efeitos dessas causas as quais, cega mas não

despropositadamente, vêm sendo construídas nos últimos séculos? A Lógica é o leão.

Mas o leão não pode construir novos valores, porque isso não é de sua natureza. Ele

sempre será um matador de inimigos, implacável.

Ninguém tente reconstruir o mundo pela Lógica. Seria perda de

tempo, pois chegaria aos mesmos resultados atuais. A Lógica explica – e muitas vezes

defende! - a pobreza dos países subdesenvolvidos, explica a miséria quase absoluta

de quatro quintos da população mundial, explica a globalização, explica a chamada

23

Ou deseducação.

Page 83: Livres Pensares Atualizado

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nova ordem mundial. É da natureza da Lógica explicar. É pela Lógica que subsistem a

economia mundial, a Ciência moderna e os conflitos humanos. É preciso uma criança.

Essa criança – “a inocência e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma

roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação” – é a Estética, a arte.

A Estética pode condenar a nova ordem mundial porque pode criar

novos valores, porque não está preocupada com o curso lógico das coisas e tampouco

com o custo-benefício das ações; pode perdoar as dívidas dos países, porque é a

inocência e o esquecimento; pode destruir fronteiras e juntar povos, porque é um

novo começar e uma roda que gira sobre si; pode mudar os rumos da humanidade

porque é um movimento. Somente a Estética tem o poder de constituir-se sobre

novos valores e de constituir, assim, uma santa afirmação. Esta é a resposta à

pergunta de Nietzsche: o que a criança pode fazer, que o leão não pode é reconstruir.

Essa é a real importância da arte: reconstruir. E daí minha profunda indignação com o

que se tem feito historicamente e que se faz hodiernamente com a arte em nossas

escolas e academias.

4. Conclusão

Uma visão existencial da Estética – e, por conseguinte, da arte - é uma

das poucas maneiras viáveis que possuímos de mudar alguma coisa na ordem atual

das coisas. É imperativo que as academias brasileiras assumam essa responsabilidade.

Ao que chamei de processo de equilibração, neste artigo, não consigo atribuir outro

agente motivador que não as universidades e escolas.

Creio que apenas um sistema educacional que se preocupe com os

três quartos de cérebro que temos sido obrigados a guardar em sal grosso durante os

últimos séculos terá condição de alterar alguma coisa.

E como essa alteração constitui-se sempre e necessariamente como

um “santo não” à ordem atual, podemos compreender a gigantesca resistência

daqueles que se satisfazem com o atual estado das coisas. Acho que é por isso a Bíblia

registra que aquele que não se fizer como criança não poderá, de forma alguma,

entrar no reino dos céus...

Guajará-Mirim, 17 de dezembro de 2000.

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84

DA METÁFORA FUNCIONAL E ALGUMAS IMPLICAÇÕES

0. Introdução

Apresentei alhures1

, embora de forma pouco sistematizada, o conceito

de metáfora funcional. No decorrer desses últimos anos, porém, meus estudos

semântico-pragmáticos com a língua portuguesa e a línguas indígenas da Amazônia

têm demonstrado a necessidade de uma formulação mais completa dessa concepção

teórica e a análise, mesmo que preliminar, de algumas de suas implicações mais

diretas nos estudos lingüísticos que levem em conta os aspectos culturais de uma

língua, além dos aspectos meramente formais tradicionalmente estudados.

Esta é a pretensão deste pequeno ensaio: uma apresentação formal do

conceito de metáfora funcional e a demonstração da importância deste conceito nos

estudos lingüísticos e antropológicos, o que passamos a ver.

1. Metáfora

Em um artigo sobre metáfora e metonímia2

considerei que uma

metáfora é um tipo de construção lingüística que permite a atribuição de um sentido

construído dentro de um paradigma cultural definido a outra palavra (ou construção

multivocabular) que, literalmente, pertencia a outro paradigma cultural estabelecido.

Assim é que quando chamo João de “touro”, estou transferindo, deslocando,

reapropriando sentidos de um paradigma cultural (características do animal touro)

para outro paradigma cultural (características do animal homem).

No corpo de minha obra em Semântica é importante observar que

não creio em sentidos pré-definidos para palavras das línguas naturais. Creio que

tudo pode ser expresso por tudo, desde que a construção social da expressão assim o

permita. Posso identificar qualquer referente usando qualquer palavra desde que haja

uma construção social que explicite (ou implicite) esse processo; assim também posso

expressar quaisquer sentidos, mesmo os mais complexos, com qualquer palavra ou

expressão, desde que esse sentido seja associado à expressão que uso/usarei dentro do

processo de criação do cenário3

enunciatório compartilhado entre mim e meu

interlocutor. Não existe nenhum sentido a priori, nenhuma regra pré-definida de

significação. O que existe - e que nos dá essa sensação de pré-existência dos sentidos –

é um conjunto de construções mais comuns em uma comunidade, construções que

em uma época definida já tiveram sentidos a elas comumente associados, e que,

justamente por isso, são mais conhecidas e repetidas pelos falantes. Mas essas

1

Celso Ferrarezi Jr.(1997). Nas Águas dos Itenês. Dissertação de Mestrado. Campinas : UNICAMP, e

Celso Ferrarezi Jr.(1999). Considerações sobre a Hipótese de Interinfluência entre Pensamento, Cultura

e Linguagem . UNIR/GM: CEPLA Working Papers.

2

Celso Ferrarezi Jr.(2000). “Metáfora e Metonímia: uma Análise através dos Paradigmas Semânticos”.

In: Discutindo Linguagem com Professores de Português. São Paulo: Terceira Margem.

3

Uso cenário significando o conjunto máximo de situações e informações levadas em conta, consciente

e inconscientemente, por um falante ao atribuir um sentido qualquer a uma expressão lingüística.

Page 85: Livres Pensares Atualizado

85

construções mais comuns são tão passíveis de modificação quanto quaisquer outras

estruturas da língua4

.

Na construção dessas associações de sentido parece não haver

nenhuma regra lingüística de ordem puramente gramatical explícita, ao contrário do

que há na construção das formas lingüísticas. Diferentemente, a gramática não é nada

mais do que uma construção em segundo plano, tão momentânea quanto o restante

do processo de especialização do sentido da expressão.

O sentido de uma expressão lingüística qualquer só se especializa em

um contexto5

e este, por sua vez, só se especializa em um cenário. E é por essa razão

que nenhuma palavra ou expressão tem sentido a priori, mas tem especializado o seu

sentido no processo de comunicação entre interlocutores, processo em que são

consideradas muito mais informações do que as etimologias e as peculiaridades

gramaticais das palavras de uma língua. Aliás, como diz Bakhtin6

, é somente quando

falantes podem desprezar a consciência dos aspectos gramaticais de uma língua,

quando não precisam mais ficar racionalizando suas construções lingüísticas para

criar expressões inteligíveis e especializar os sentidos das expressões dos outros, que

se pode dizer que realmente falam essa língua.

Aceitar essa concepção de que nenhuma construção lingüística tem

um sentido a priori representa aceitar implicações muito vastas para a teoria

lingüística. Uma das que mais me fascinam é a de que, por esse prisma, toda escritura

é um “defunto lingüístico que, para ser entendido, precisa ser ressuscitado”. A escrita

fornece palavras e partes de um contexto, mas não fornece cenários7

em que esses

contextos sejam especializados e possam criar condições para a especialização dos

sentidos das palavras, além do que, em comparação com os recursos comunicativos

usados numa interação de fala, os recursos da escrita são pífios. Por isso é muito mais

freqüente a falha de comunicação na escrita do que na fala; por isso é, muitas vezes,

muito mais fácil entender com exatidão o que se ouve do que aquilo que se lê. Mas,

para os fins deste artigo, uma outra implicação importante sobre a especialização de

sentidos de palavras e expressões na comunicação é a de que, no bojo do processo de

comunicação, toda construção é funcional. E funcional por três razões básicas:

a. porque deve funcionar como elemento de comunicação;

b. porque, além de ser elemento de comunicação, deve funcionar

adequadamente dentro do contexto e do cenário em questão;

c. porque, funcionando adequadamente no contexto e no cenário,

terá a função de consolidar o processo de compartilhamento de conteúdos entre os

interlocutores, sendo elemento ao mesmo tempo constituído e constituinte desses

mesmos contexto e cenário.

4

E a História das línguas tem mostrado que alterações no sentido de estruturas lingüísticas comuns a

uma comunidade são muito mais freqüentes do que, por exemplo, profundas alterações na fonologia e

na sintaxe.

5

Uso contexto significando o restante do texto, a construção textual e intertextual mais imediata em

que se insere uma expressão lingüística,

6

Cf. M. Bakhtin (1999). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec.

7

Um dos fatores mais relevantes na especialização dos sentidos na fala, e que constituem parte do

cenário de enunciação, é o conjunto de traços semânticos complementares fornecidos pela entonação

da fala, inexistente na escrita.

Page 86: Livres Pensares Atualizado

86

Em razão disso, toda construção lingüística – e toda metáfora, por

conseqüência – é funcional. Mas, quando refiro-me a “metáfora funcional” o faço em

relação a uma função muito mais específica e bastante relevante na construção e

perpetuação de uma cultura, função que não é exercida por palavras ou expressões

que deixarem de ser consideradas como “figuras da realidade”, palavras que só são

entendidas pelos falantes como índices de referentes, às quais chamarei aqui,

seguindo a tradição gramatical, de literais.

Voltemos, deste ponto, à metáfora: como uma construção metafórica

implica, portanto, nessa transferência de sentidos, especificamente entre paradigmas,

só pode ser definida como tal, de forma única e independente, dentro de cada

cultura, uma vez que em cada cultura teremos classificações semânticas naturais

diferentes, agrupamentos naturais distintos. Isso é que permite uma construção seja

metafórica em uma cultura e, por exemplo, metonímica em outra, já que a metonímia

se caracteriza pela transferência de sentidos entre termos de um mesmo paradigma.

Cumpre notar, também, que a metáfora, na maioria das línguas, não é

obrigatoriamente uma construção lexicalmente complexa, nem obrigatoriamente

multivocabular e com tratamento estético de tipo poético como “as lindas pérolas dos

olhos de Maria”. Ao contrário, esse perece ser um tipo de mais raro de metáfora, cuja

finalidade estética – pode-se considerar assim – sobrepõe-se à função de transferência

de informações da metáfora cotidiana. A maioria das metáforas se concretiza nos

nomes atribuídos pela língua aos diversos referentes que representam. Trata-se de

palavras comuns, de uso diário, de nomes de pessoas ou de alcunhas atribuídos a

esses referentes.

Nesse momento, portanto, convém falar um pouco sobre nomes, para

poder retomar a construção do conceito de metáfora funcional.

2. Nomes e metáforas

O estudo dos nomes das línguas tem uma importância muitas vezes

desprezada. Se consideramos que as línguas são como que “depósitos” naturais de

conhecimento humano - depósitos de cultura – e percebemos que esses depósitos são

feitos essencialmente nos nomes dos referentes, entendemos o porque dessa

afirmação.

Consideremos que toda língua possui um conjunto de palavras

nominais – e, muitas vezes, apenas radicais nominais – das quais nenhum falante é

capaz de recuperar a motivação8

de sua atribuição como significante de um referente

qualquer. São palavras “básicas”, cuja origem quase sempre só pode ser identificada

por profundos estudos etimológicos e, mesmo assim, nem sempre sendo possível

identificar as atribuições e derivações do sentido. Essas palavras são, em sua maioria,

uma “herança” lingüística dos tempos ancestrais, de colonizações, de contatos

lingüísticos. Por outro lado, existem nomes que têm o sentido de sua construção

facilmente identificado, que atuam de forma mais complexa do que como meros

8

Uso motivação no sentido saussureano. Uma palavra qualquer da qual o falante não possa recuperar

o tipo de recurso utilizado em sua construção será por ele considerada arbitrária, sem motivação

aparente para sua construção.

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87

significantes-índices de um referente qualquer. Tomando isso como certo - e creio que

não há grande contestação dessa afirmação na academia – podemos, então, grosso-

modo, dividir os nomes de uma língua em dois grupos principais: motivados e não

motivados9

. Estes, constituiriam esse grupo básico de palavras que a teoria lingüística

tem chamado de “literais”, terminologia que, como disse, mantenho aqui; o outro

grupo, sobre o qual os falantes podem recuperar de alguma forma a motivação de sua

atribuição, parece ter duas origens distintas: uma origem cultural complexa e outra

meramente lingüística .

As construções cuja motivação é cultural, podem ocorrer a partir das

palavras literais, seus sentidos e referentes (João é um “touro”) ou pela motivação

direta do nome por características dos referentes (“bumbo”). Esses seriam os nomes

motivados ou, em última instância, nomes figurativos, ou seja, baseados em algum

tipo de figuratividade cultural. No primeiro caso, temos uma metáfora; no segundo

caso uma imitação sonora10

, uma onomatopéia. Para os fins deste artigo, interessa-nos

mais o primeiro tipo, ao qual voltaremos adiante.

O outro tipo é o da atribuição de um nome a partir de uma

construção meramente lingüística, portanto, unicamente baseada em aspectos

estruturais do sistema da língua. Veja-se a diferença: quando chamo o doce caseiro de

amendoim originário do sudeste brasileiro de “pé-de-moleque” tenho uma motivação

cultural: o doce tem a aparência de um pé cascudo e escuro, como se acredita ser um

pé de moleque; uso palavras literais e construo uma palavra composta de natureza

figurativa. Entretanto, quando digo que a pessoa que faz ou provoca muitos

casamentos é “casamenteira”, tenho, para esta construção uma motivação meramente

lingüística resultante da construção regular portuguesa de cas (radical) + a (vogal

temática) + -ment (sufixo) + -eir (sufixo) + -a (desinência do gênero feminino ). Não

há, neste último caso, nenhuma transferência de sentidos de uma palavra literal ou

referente para outra palavra que designa um outro referente qualquer (até porque

apenas uma “consciência de filólogo” permite a identificação detalhada dos

constituintes mórficos dessa palavra como a apresentei acima). Aliás, para a maioria

dos falantes do português casamenteiro/a é apenas a junção de casament + -eir + -a

ou, como em alguns relatos que colhi, apenas de casamenteir + -a. Esse tipo de

motivação lingüística também não interessa propriamente à construção desse artigo.

Deve-se observar que os nomes, como significantes nocionais

utilizados para identificar cada um dos elementos de cada cultura, sem exceção,

acabam comportando-se como indicadores das características desses elementos e

alteram nossa forma de pensar o referente. As palavras nominais de uma língua

atuam na configuração que fazemos de nosso mundo, na visão que temos dos

elementos que o constituem. Assim é que um menino muito magro de cabeça grande

chamado João, pode ter suas características físicas despercebidas por alguns dos seus

colegas de classe enquanto chamado de “João”, mas passa a ter suas idiossincrasias

corporais muito mais evidenciadas aos olhos dos demais logo após ser alcunhado por

um colega – ou seja renomeado - de “Prego”. Da mesma forma, Maria tem sua

gordura muito mais destacada quando recebe o apelido de “Botijão”; os óculos de

9

Celso Ferrarezi Jr.(1997). Nas Águas dos Itenês. Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP.

10

Que também tem influência cultural, uma vez que os sons prototípicos atribuídos aos elementos

naturais variam da cultura para cultura e são diferentemente materializados nas respectivas línguas .

Page 88: Livres Pensares Atualizado

88

Joana passam a ter muito mais destaque quando ela é chamada de “Quatro-Olhos” e

as pernas tortas de Mário, nunca apareceram tanto como depois que ele ganhou

apelido de “Garrincha11

”. Assim ocorre com a valentia do menino alcunhado de

“Leão”, com a covardia do outro que é chamado de “Mingau”, com a beleza (ou

feiúra, em uma metáfora irônica ) da “Bonequinha”, e daí para adiante.

O mero mencionar dessas alcunhas, que são “renomes”, altera a visão

que os falantes têm dos referentes a elas associados. As alcunhas das cidades, das

instituições, de certas práticas, enfim, todas elas têm o mesmo efeito estruturante: por

atuarem como nomes, alteram a percepção que o falante/ouvinte tem do referente.

E aí reside um fator de grande importância na relação entre língua e

cultura: os nomes atuam como depósitos de conhecimento, que podem ser mais ou

menos reconhecidos pelos falantes, mas definitivamente como depósitos. E como tal

são utilizados pelos falantes, que recorrem a seu conteúdo informativo o tempo todo.

Uma das provas mais evidentes que temos disso é que o falante recorrerá a uma

renomeação do referente – e geralmente através de uma metáfora - quando ocorrem

dois fatos concomitantemente:

a. o falante sentir necessidade de que o nome traga em seu sentido

alguma informação relevante para uma construção cultural desejada e específica e

b. esse mesmo falante não mais conseguir identificar nenhuma

informatividade no nome usado como significante desse referente em questão –

agora, por isso mesmo , tido como literal – além da indicação direta do referente.

É esta a razão que leva um grupo de jovens a atribuir as alcunhas aos

membros da turma, uma vez que , João ,Maria, Joana, etc... não conseguem mais do

que meras indicações diretas dos seus referentes, ao passo que na hierarquização do

grupo social se faz necessária uma discriminação das características que justificam as

posições ocupadas. Se eu posso fazer chacotas com você e porque você é “Mindinho”,

mas nunca vou mexer com o seu brio se você é o “Destruidor” (a menos que se trate

de uma alcunha irônica...). Por isso, também na organização social sentimos

necessidade de atribuir nomes como professor, aluno, prefeito, presidente, marginal,

mercenário, etc..: porque as informações contidas nos antropônimos nem sempre12

denotam as informações da organização social e sobre os referentes como as

desejamos evidenciar.

Também por essa razão algumas culturas, principalmente as orientais

e as indígenas tradicionais, têm um apreço muito maior pela significação dos nomes

do que as culturas capitalistas ocidentais. Os nomes cheios de significados dos

orientais e dos indígenas expressam aspirações dos que nomeiam em relação aos

nomeados, planos, desejos pessoais, bênçãos e maldições, entre tantas outras

marcações culturais.

A troca de nomes, bastante comum em algumas nações13

, é uma

evidência bastante clara dessa função do nome na organização social, na marcação de

11

Famoso jogador de futebol brasileiro conhecido pela habilidade em driblar e pelas pernas tortas .

12

Na verdade, nas chamadas modernas culturas ocidentais, essa informatividade do antropônimo é

quase nula, preferindo-se a sonoridade do nome a sua significação.

13

Como, por exemplo, entre os judeus, como evidenciando na Bíblia (Abrão para Abraão, Jacó para

Israel, Simão para Pedro, Saulo para Paulo, entre tantos outros citados nas Escrituras).

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89

funções sociais, na marcação de aspectos idiossincráticos, enfim e portanto, na

construção cultural.

Os nomes, então, quando construídos metaforicamente, passam de

mero “índice de referência” a depósitos de informações consideradas relevantes,

esclarecedoras, dignas de registro em uma comunidade. E essas construções

metafóricas, como dissemos, não obrigatoriamente têm uma grande complexidade

vocabular ou gramatical, ou se obrigam a estruturas esteticamente trabalhadas: pode

tratar-se de uma simples palavra, de uma palavra composta sem rebusques estéticos,

ou seja, pode tratar-se - e geralmente assim o é - de nomes comuns de uso cotidiano.

3. O Conceito de metáfora funcional

Retomemos, então, o tipo de construção de nomes que

considero mais importante nesse artigo: a construção figurativa que se origina de

uma metáfora, e isso com base em alguns exemplos úteis à identificação que pretendo

aqui:

Quando chamo uma árvore Citrus aurantium, que

produz laranjas, de “laranjeira”, construo um nome a partir de uma motivação

meramente lingüística e não ofereço nenhuma informação cultural adicional além

daquela que me permite a utilização da terminação “eira/eiro” juntada a um nome

qualquer de fruta (como em limoeiro, goiabeira, melancieira, mamoeiro, figueira,

jambeiro, etc...) para indicar a árvore que produz essa mesma fruta . É claro que essa

se constitui em informação cultural, mas de um tipo muito mais restrito do que, por

exemplo a fornecida pelo caboclo que chama a laranjeira de “pé-de-caba14

”. Ao

chamar a árvore de “laranjeira”, repasso uma informação que é, do ponto de vista da

lógica formal da língua, como que inerente ao referente. É quase como que uma

construção óbvia, que pode informar-me, por exemplo, de que espécie é uma muda

que ainda não produz frutos. Isso tem utilidade na língua e na cultura, mas a

motivação da construção não é stricto sensu um construto cultural e o nome atua

literalmente no vocabulário da língua. Mas, ao usar “pé-de-caba”, registro uma

informação muito mais complexa do que com o primeiro nome, uma informação que

não é inerente ao referente, cuja motivação não pode ser atribuída ao sistema da

língua e que se destingue da primeira por várias razões:

a. como sua construção não é óbvia no sistema, sua compreensão

demanda um processo interpretativo muito mais complexo;

b. as informações contidas nesse nome têm implicações funcionais

mais amplas do que a mera identificação da árvore da laranja;

c. essa informação se constitui numa construção cultural funcional –

agora no sentido que atribuo à metáfora funcional -, uma espécie de alerta aos

incautos de que é sempre de bom alvitre colher laranjas só depois de conferir se a

árvore tem uma “casa de caba”;

d. essa construção é muito mais regionalizada, muito mais específica

de uma comunidade do que a palavra “laranjeira”.

14

Caba é uma denominação comum norte-brasileira para vespa ou maribondo.

Page 90: Livres Pensares Atualizado

90

Da mesma forma encontramos no Brasil, para a laranjeira, nomes

como “pé-de-chá” e “mata-febre”, cujas indicações e informações terapêuticas são

evidentemente funcionais, ou seja, constituem-se cada uma como uma metáfora

funcional: a palavra metaforicamente construída apresenta uma clara função de

depósito cultural, uma função de registro, para comunidade que a usa, de algum tipo

de construção resultante das experiências vivenciais dessa mesma comunidade que

atribuiu o nome ao referente.

Entre as plantas de uso terapêutico ou culinário, essas metáforas

funcionais são muito comuns, por razões facilmente compreensíveis. Vejamos alguns

exemplos no quadro abaixo:

Nome literal

(diferente de

região para

região)

Nome científico

Outros nomes que se constituem

com metáforas funcionais no Brasil

Manjericão

Ocimum gratissimum

remédio-de-vaqueiro, erva-de-

cozinheiro

Mastruz Senebiera pinnatifida erva-santa-maria, erva-vomigueira,

Boldo Pneumos boldus erva-das-sete-dores

Salsa Petroselinum sativum cheiro-verde, erva-de-tempero

Sasifraga Parietaria officinalis quebra-pedra, rebenta-pedra

Esses cinco exemplos são suficientes para demonstrar como nomes

construídos como metáforas funcionais são informativos dentro do ambiente cultural,

como são muito mais do que meros índices de identificação de referentes. É

interessante notar, porém que, muitas vezes, um nome que funciona como literal em

nossa cultura, era uma metáfora funcional na cultura que o originou. Este é o caso da

“salsa”. Do latim Salsa ou Herba salsa, cujo sentido pode ser reconstruído como “erva

salgada” ou “erva de cozinhar comida salgada”, o que representa claramente a

utilização cultural da erva naquela comunidade. O mesmo se dá no mapuche boldo,

que gerou o português “boldo” e no latim vulgar mastrutio, que gerou o português

“mastruz” entre outros tantos exemplos.

4. Algumas implicações do conceito de metáfora funcional

Em um artigo sobre a hipótese de interinfluência entre pensamento

cultura e linguagem15

, cito um exemplo que colhi da língua moré e que considero

bastante relevante neste contexto, porque demonstra uma das mais interessantes

implicações do conceito de metáfora funcional, o qual peço permissão ao leitor para

transcrever aqui:

15

Celso Ferrarezi Jr.(1999). Considerações sobre a Hipótese da Interinfluência entre Pensamento,

Cultura e Linguagem . UNIR/GM: Cepla Working Papers.

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91

“Um índio moré aprende, em sua cultura, que a árvore de tipo X

tem como nome [kxaw k

xa:pari:], “o pacu

16 come”. Este nome, na

verdade uma metáfora funcional, leva a criança moré desde a

primeira vez em que o ouve, a formular uma questão inicial

acerca do objeto, que poderíamos definir como sendo “por que

esse objeto leva esse nome?” e, a partir dessa questão, a

entronizar um conhecimento prático bastante importante para

sua nação, porque referente à sobrevivência, que é a busca e a

consecução do alimento. Assim se o pacu se alimenta dos frutos

desse tipo de árvore, e se os morés alimentam-se de pacus, a

presença de tal planta na beira de um lago ou rio pode indicar a

presença de pacus, e isso está implícito na metáfora que nomeia

a própria árvore. Entretanto, a língua moré tem sido substituída

pelo espanhol nos últimos cem anos, e essa mesma árvore

passou a ser conhecida pelo morés como “canduru”, o nome

espanhol. O fato é que os morés não perderam o conhecimento

de que os pacus se alimentam dos frutos do canduru, porque a

prática cotidiana da pesca induz à necessidade desse tipo de

conhecimento, mas tal informação perdeu seu registro

lingüístico e, agora, são necessários outros meios que conduzam

à indagação inicial que levava ao conhecimento da serventia do

objeto determinado.”(Op.cit., pp. 3-4)

Como se pode ver no exemplo, sempre que um nome atribuído por

uma construção metafórica funcional típica de uma cultura é substituído por um

empréstimo lingüístico ou, no decorrer da existência da língua, perde sua

identificação metafórica, informações da construção cultural da comunidade que o

utilizava são invariavelmente perdidas. Este seria o processo de transposição de uma

metáfora funcional ao estágio de palavra literal. E, por conseqüência, um processo

muito influente na perda de identidade, no primeiro caso, ou de evolução da

identidade cultural de uma mesma comunidade, no segundo caso.

Assim é que grande parte dos brasileiros que usam computadores não

sabe porque aquele aparelhinho, geralmente branco e com um longo fio, em que

colocamos a mão e com o qual movimentamos o cursor e procedemos a seleções na

tela do monitor, é chamado mouse. Primeiro, porque muitos desses brasileiros não

conhecem o significado da palavra inglesa mouse; segundo, porque certamente, a

relação metafórica existente no nome inglês mouse seria muito mais facilmente

identificada se, como no caso do espanhol ratón ou do francês souris, o nome do

aparelho tivesse sido traduzido para o português como “rato”.

Da mesma forma que em mouse, como utilizado na informática no

Brasil, a quase totalidade de empréstimos nominais apresenta um grau muito baixo -

às vezes realmente nulo - de informatividade em relação aos referentes. Teríamos aí,

por se constituírem esses empréstimos como palavras literais, uma relação de

arbitrariedade verdadeiramente saussuriana, ao contrário do que acontece com os

nomes construídos como metáforas funcionais.

Uma implicação decorrente desta é também evidenciada no

complemento ao excerto que transcrevi acima:

16

Milossoma duriventris: peixe comum na Amazônia, de carne muito apreciada pelos índios.

Page 92: Livres Pensares Atualizado

92

“É por essa razão que qualquer empréstimo lingüístico

constitui-se, a despeito da aparência de “ganho”, em uma perda

incalculável para a cultura e a identidade de uma comunidade

qualquer.”(idem, p. 4)

É bom observar que, no contexto dessa assertiva, quando falo de

“qualquer empréstimo”, refiro-me a qualquer empréstimo que venha em substituição

de um nome ou palavra da língua. Não me refiro aqui aos empréstimos nominais que

denominam objetos culturais antes desconhecidos por uma comunidade, como, por

exemplo, as palavras “cassete” e “abajur” adotadas pelo português, entre tantas

outras. Mas também não descarto a possibilidade de que essas palavras poderiam ser,

assim como vi em algumas nações indígenas que conheci, construídas ao sabor da

cultura local. Lembro-me, meio invejoso, da “casinha-de-cantar-e-dançar”17

, nome

dado aos morés para televisão, e do “corre-rápido-pela terra”, nome dado a carros e

motocicletas por essa mesma nação.

As metáforas funcionais presentes nesses nomes que venho

descrevendo são uma marca identitária da comunidade. Elas revelam a organização

do mundo, a visão que a comunidade tem de seu mundo, seu conjunto de valores

morais e éticos, enfim, um bastante complexo conjunto de traços culturais que não

são representados de outra forma nas estruturas da língua a não ser nos nomes. A

perda dessa identidade tem valor inestimável na história e na construção da auto-

imagem étnica. Ou seja, uma nação cuja língua perdeu grande parte do conteúdo de

suas metáforas funcionais, perdeu, também, grande parte de sua identidade.

Esta é, provavelmente uma das causas de a dominação imperialista,

em todos os tempos, ser sempre acompanhada da dominação lingüística.

Finalmente, cumpre observar que, juntamente com a identidade

étnica e cultural, perdem-se os valores primordiais de uma cultura. As comunidades

entram em patente decadência de valores e a auto-estima da comunidade é muito

afetada. Isso se dá porque com a destruição da nomenclatura que revela a

compreensão do mundo, destrói-se propriamente parte dessa compreensão. Torna-se

necessário, então, acatar uma nova visão de mundo que, na maioria das vezes, se

choca com as concepções próprias da comunidade, desenvolvidas ao longo de séculos

ou milênios de construção cultural. A comunidade perde suas referências, tem seus

alicerces demolidos e, por isso, entra em estado depressivo.

5. Conclusão

O conceito de metáfora funcional, como apresentado aqui, propicia

um grande número de implicações nos estudos lingüísticos. Apresentei alguns deles,

como a construção funcional de informações culturais e seu registro na língua, mas

gostaria de ressaltar três dos perigos da destruição dessas metáforas em uma

comunidade lingüística, conforme apresentei aqui: a perda de informações culturais,

a perda de identidade cultural e a perda de valores primordiais da comunidade

Esses perigos devem ser motivo de profunda meditação nos trabalhos

que têm a oportunidade de monitorar os processos de contato cultural,

17

Reconstruções de sentido aproximadas dos nomes morés.

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93

principalmente entre culturas de comunidades mais frágeis (como a dos indígenas

amazônicos) com a cultura de comunidades mais fortes e agressivas (como a cultura

capitalista ocidental). Isto porque penso ser através da preservação dessas metáforas –

entre tantos outros fatores culturais, é claro – que se conseguirá preservar o

patrimônio cultural desses povos – ou, pelo menos, parte dele -, patrimônios da

humanidade, patrimônios inavaliáveis.

Guajará-Mirim, 29 de novembro de 2001.

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94

DA FILOSOFIA

Cansado das tortas andanças pela mata, descansava o Curupira à rala

sombra de uma seringueira, à beira do igarapé.

- Por que tens teu tronco ferido, seringueira?

- Vês que lindos ramos ostento? Neles fazem ninhos os pássaros,

neles produzo as sementes que alimentam os peixes do igarapé. Vês as minhas raízes,

com as quais seguro a barranca do igarapé que, por sua vez, serve de morada a muitas

animálias selvagens?

- Mas, não é por teus ramos, sementes ou raízes que os homens te

buscam, senão por tua seiva, oferta que a ti custa tais cicatrizes.

- É que são apenas pragmáticos os homens.

- E por que não filosofam?

- Ainda a pragmática é dominada pela filosofia. Não há melhor forma

de ser pragmático do que filosofando. Tudo que há é regido por uma filosofia.

- E não é igualmente pragmática a filosofia da Natureza, tua mãe?

- Se assim o fosse, não teriam os pássaros os seus ninhos, os peixes o

seu alimento, o igarapé as suas barrancas, as animálias a sua morada, tu a minha

sombra, os homens a minha seiva.

- Não compreendo. Não são todas estas coisas práticas?

- A prática não prescinde da existência.

E se foi o Curupira, com seus passos tortos, pela mata densa.

Guajará-Mirim, 02 de novembro de 2000.