literatura portuguesa iv um duplo saramago

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO UM DUPLO SARAMAGO MARCELO TAVARES DOS SANTOS

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Page 1: Literatura portuguesa iv um duplo saramago

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

UM DUPLO SARAMAGO

MARCELO TAVARES DOS SANTOS

SÃO PAULO2012

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

UM DUPLO SARAMAGO

Trabalho apresentado na disciplina Literatura Portuguesa IV, sob a orientação da Profa. Dra. Marlise Vaz Bridi

SÃO PAULO2012

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Neste excerto, iremos apresentar questões presentes num dos últimos

livros do português José Saramago, falecido em 2010. A obra se chama “O

homem duplicado”. Alguns aspectos da obra pertinentes ao homem

contemporâneo serão assinalados.

A narrativa relata os acontecimentos na vida de Tertuliano Máximo

Afonso, professor de História. Sua vida enfadonha, sem sentido e com um

relacionamento frouxo com Maria da Paz, é modificada quando descobre uma

pessoa exatamente idêntica a ele ao assistir a um filme. A incessante busca é

apresentada sempre com muitas dúvidas e com temor pelo protagonista. Uma

tragédia acontece após ambos se encontrarem. Um terceiro ser aparece ao fim

do livro.

Percebemos que no interior do livro há inúmeras pequenas histórias as

quais invocam as ações, aparentemente banais e irrelevantes, das

personagens, que dão dinâmica à narrativa clara e que ao serem somadas em

nada obscurecem o leitor ao intento do narrador: “Tertuliano Máximo Afonso

voltou para a sala, sentou-se no sofá e, fechando os olhos, deixou-se reclinar

para trás. Durante uma hora não se moveu, mas, ao contrário do que se

poderia julgar, não dormiu” (SARAMAGO, 2002, p. 281).

Todas as personagens da obra, inclusive o próprio narrador, mostram-se

de alguma forma envolvidas pela possibilidade da existência do múltiplo na

sociedade atual.

O aparecimento dum terceiro ser idêntico nos faz pensar acerca dum

mistério que vai além do pensamento racional e mundano. Ao mesmo tempo,

lembramos da possibilidade de um novo outro elemento igual ser produto de

experiências genéticas, possibilidade científica da realidade atual.

O estilo narrativo

A História é tema recorrente do autor de “Memorial do Convento”.

Tertuliano é o representante da história formal (ROSA, 2006, p.2). A narrativa

pós-moderna tenta trazer o passado, mas de outra forma. Propõe também um

novo modelo de escrita, como forma de ampliação de possibilidades artísticas.

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O ar que visa dar graça pode ser incluído no rol da modernidade

posterior literária, o texto saramaguiano relata: “Não nos esqueçamos de que

Tertuliano Máximo Afonso, além de ser o conhecido professor de História que

sabemos e um reputado estudioso das grandes questões do audiovisualismo”

(SARAMAGO, 2002, 72, grifo nosso)

Em “O homem duplicado”, nota-se o uso rarefeito de pontos finais,

utilizando-se, por seu turno, as vírgulas. O que pode gerar algum desconforto e

também confundir o leitor menos atento. Essa forma também aproxima a

narração da forma oral, duma contação de histórias. Os grandes autores

buscam em seus escritos deixarem suas marcas, como no caso de Saramago,

o não seguimento das regras de pontuação.

Quiasmo simples existe onde “o segundo grupo faz espelhar ao mesmo

tempo as significações vocabulares e as funções sintáticas do primeiro grupo.”

(COIMBRA, 2006, p. 5). De fato, durante a obra se observam muitos deles,

como “Por minha culpa, Também por culpa minha.” (SARAMAGO, 2002, 32).

Coimbra nos chama ainda atenção para uma forma muito interessante de

quiasmo que é aquela que ocorre implicitamente, onde a construção da

sequência original deve acontecer com a participação do leitor: “a razão

sempre tem o cliente” (Ibidem, p. 11). O receptor duplica as frases,

comparando a escrita na obra com a original, que está em sua mente. A ideia

também de inversão é fornecida pelo uso do quiasmo.

Micali (2011) nos atenta para o aparecimento da metanarrativa: “Ao

contrário da errónea afirmação deixada cinco linhas atrás, que contudo nos

dispensaremos de corrigir in loco uma vez que este relato se situa pelo menos

um grau acima do mero exercício escolar” (SARAMAGO, 2002, p. 43).

Em compensação a escolha por um narrador onisciente em terceira

pessoa diminui o número de possibilidades de interpretação. No interior da

narrativa ocorre “o inimaginável convertido em realidade, o absurdo conciliado

com a razão” (Ibidem, 2002, 167), onde o narrador declara o descrédito em

relação ao universal, e se deixa banhar por pensamentos relativistas, onde o

importante atualmente não é entender e aceitar as coisas que acontecem, mas

vê-las apenas algum sentido, quando possível.

Rosa (2006, p. 4) nos ilumina com seus estudos em aspectos pós-

modernos presentes. Vejamos:

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Poderei falar com o senhor Daniel Santa-Clara, perguntou Tertuliano

Máximo Afonso quando a mulher dele atendeu, Suponho que é a

mesma pessoa que ligou para aqui no outro dia, estou a reconhecê-lo

pela voz, disse ela, Sim, sou eu, O nome, por favor, Não creio que

mereça a pena, o seu marido não me conhece, Também o senhor não

o conhece a ele, e apesar disso sabe como se chama, É natural, ele é

actor, portanto uma figura pública. (SARAMAGO, 2002, p. 177)

O trecho “É natural, ele é actor” nos deixa confuso sobre qual

personagem o teria enunciado. A multiplicidade não é apenas na existência dos

personagens, mas também ocorre no aspecto interpretativo.

A criação artística é pensada em trechos como: “as palavras eram tão

poucas que nem sequer as tínhamos para expressar algo tão simples (...)

enquanto as palavras, aquelas e todas as mais, essas vieram ao mundo com

um destino nevoento, difuso.” (Ibidem, 61). A essa dificuldade em relação ao

uso das palavras nos faz lembrar do célebre poema “No meio do Caminho” de

Carlos Drummond de Andrade: “No meio do caminho tinha uma pedra / tinha

uma pedra no meio do caminho”.

No jogo entre realidade e ficção, Alavarce (2008) apresenta o caráter

duplicado no interior da narrativa:

desde que se divorciou, Máximo Afonso servimo-nos aqui da versão

abreviada do nome porque à nossa vista a autorizou aquele que é seu

único senhor e dono, mas principalmente porque a palavra Tertuliano

estando tão próxima, apenas duas linhas atrás, viria desservir

gravemente a fluência da narrativa” (SARAMAGO, 2002, p. 11-12)

O primeiro nome Tertuliano não foi usado em primeiro momento, porque

ele permitiu que o narrador assim o fizesse. O narrador completa que tal

retirada está relacionada diretamente ao ato de escrever.

Presente e futuro irão se encontrar: “os seus traços físicos e a

problemática eventualidade de que em um futuro, auxiliados pela

demonstração de talento suficiente, poderiam vir a ser postos ao serviço da

arte teatral ou da arte cinematográfica” (Ibidem, p. 35, grifo nosso). No excerto

fica evidente o caráter irônico. O erro de Tertuliano em não contar para Maria

da Paz de seu ser duplo possibilita na concretização do desastre

automobilístico e a perda de sua amada. Em virtude de seu fracasso pessoal

ele se torna ator. O próprio narrador tem um caráter dúbio para com o leitor,

deixa pistas, utiliza-se de ironias, pois sabe o final da história.

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A realidade e a ficção deveriam ter o mesmo valor, deveriam se mesclar.

Discute-se o que é viver e o que é fazer literatura:

A vida real sempre nos tem parecido mais parca em coincidências que

o romance e as outras ficções, salvo se admitíssemos que o princípio

da coincidência é o verdadeiro e o único regedor do mundo, e nesse

caso tanto deveria valer aquilo que se vive como aquilo que se escreve,

e vice-versa. (Ibidem, p. 170-171).

A linguagem volta à tona quando Tertuliano e a professora de Literatura

estão dialogando: “seria preciso ir mais longe, identificar nos diversos

componentes da expressão as analogias, directas e indirectas, com o estado

de espírito que se quis representar” (Ibidem, 148). Parece que a cultura formal

não dá conta de todas as formas existentes da cultura popular. A linguagem

popular também é apresentada em “nem te vi nem te conheço” (Ibidem, 31).

Rosa bem lembra que ditados populares também aparecem: “nunca jogues as

pêras com o destino, que ele como as maduras e dá-te as verdes” (Ibidem, 16).

O autor utiliza-se da intertextualidade com um ramo do conhecimento

humano, no caso, a História: “em que as matérias históricas fossem estudadas

do presente para o passado em vez de o serem do passado para o presente”

(Ibidem, 149).

Os três nomes próprios que compõem o nome de Tertuliano Máximo

Afonso podem nos propor que sua personagem esteja dividida, fragmentada.

Em nosso mundo atual podemos tomar café da manhã no Rio de Janeiro e

jantarmos em Paris. Ao lermos o texto, podemos pensar se o Máximo não é

algo irônico, pois ele não passa de um medíocre professor. O seu duplo

também é um medíocre ator. O fracasso profissional também os une, mesmo

que Tertuliano pense: “Eu, ao menos, sou professor de História, murmurou”

(Ibidem, p. 89). A divisão e a multiplicação conferem a Tertuliano um caráter

universal para o mundo em que agora vivemos.

António Claro utiliza-se do nome de Daniel Santa-Clara em seus filmes.

Ele não é tão claro assim, ele é alguém acostumado com o jogo de cena.

Como ator ele deve ser capaz de se aproximar, de compreender e de ser o

outro. Consegue até passar uma noite com a namorada de Tertuliano. Helena

ao conversar pelo telefone com Tertuliano apresenta o caráter dúbio de seu

esposo: “Todos nós andamos por aí, mais ou menos somos todos figuras

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públicas, o número de espectadores a assistir é que difere” (Ibidem, p.177).

“Youtube”, “Facebook” e outras maravilhas do mundo virtual permitem que

qualquer um de nós possa se transforma em pessoas conhecidas em pouco

tempo, podendo ocorrer de forma não planejada e quase imediata.

Um texto de caráter elevado procura dialogar com escritos anteriores a

fim criar personalidade. O estilo e o tema permitem que outros textos se

insiram numa obra. Essa situação intertextual pode ser através de

semelhanças, diferenças, transformações e ampliações. Assinala Todorov: “A

literatura é criada a partir da literatura, não a partir da realidade, quer seja esta

material ou psíquica” (1975, p. 14). Mesmo assim, possui um caráter não-

literário, passível de exprimir categorias filosóficas. Uma obra por mais

singular e inovadora que seja, tende a possuir um caráter mais amplo,

genérico.

O fantástico Tertuliano Claro

A questão da identidade é fulcral neste romance. A existência dum outro

objeto/ser idêntico é inerente à modernidade. Imaginemos uma pessoa do

século XVI no interior dum supermercado e ver produtos iguais dispostos em

prateleiras. Isso lhe causaria um grande espanto. Talvez essa pessoa

acreditasse que seria o fim dos tempos.

Bauman (2003, p. 20, grifo do autor) prenuncia: “’Identidade’, a palavra

do dia e o jogo mais comum da cidade (...) substituta da comunidade (...).

Nenhuma das duas está à disposição em nosso mundo rapidamente

privatizado e industrializado, que se globaliza velozmente”. A sociedade atual é

uma fábrica formada por pessoas assustadas e ansiosas, marcada pela

separação dos ambientes do lar e do trabalho. A relação entre as pessoas é

marcada pela impessoalidade: na obra, não ficamos sabendo os nomes dos

professores de Matemática e de Literatura, bem como o do diretor da escola.

Após ter assistido ao filme estar ciente de sua duplicação, Tertuliano

pensa na possibilidade de ser fruto de sua imaginação. Há uma ambigüidade

entre realidade e sonho, capaz de acontecer no plano do fantástico. Se o fato

estranho realmente aconteceu é devido a motivos incompreensíveis. Essa

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hesitação é que dá vida ao fantástico, mas para isso o leitor deve “considerar o

mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre a

explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos

evocados” (TODOROV, 1975, p. 39). O leitor deve se identificar com as

situações não comuns que ocorrem nas vidas das personagens.

A própria ciência, fruto do pensamento racional humano, pode nos

colocar envoltos de situações que beiram o incrível ou a loucura, ou seja, a

ausência de uma própria compreensão racional:

Ora, ora, duzentos mil milhões de quilômetros em lugar de cem, Não

esqueça que o que chamamos de realidade foi imaginação ontem, olhe

o Júlio Verne, Sim, mas a realidade de agora é que para ir a Marte, por

exemplo, e Marte em termos astronômicos até se pode dizer que está

ali ao virar da esquina (SARAMAGO, 2002, p. 14).

A ciência diminuiu as distâncias, ao menos, as físicas. A própria ciência

foi transformada em objeto de entretenimento graças ao cinema maravilhoso

de Georges Méliès e as posteriores publicações de histórias em quadrinhos.

Não podemos esquecer que a ciência pode hoje duplicar indivíduos.

Todorov (1975, p. 124, grifo do autor) pronuncia algo que não podemos

deixar escapar: “Assim, aí se pode generalizar o fenômeno das metamorfoses

e dizer que uma pessoa se multiplicará facilmente. Nós nos sentimos todos

como várias pessoas: aqui, a impressão se encarnará ao plano da realidade

física.”

A palavra “espelho”, a exemplo de outras, como “duplicação”, aparece

várias vezes durante a obra. Tertuliano de forma narcísica se observa várias

vezes na frente do objeto capaz de refletir seu próprio corpo na busca de

descobrir como os outros veem o seu eu.

As confidências de Tertuliano são apresentadas, uma espécie de alter

ego, chamada na obra de “senso comum” e que visam caracterizar o

personagem, que no caso, é um homem metódico e cauteloso: “não devo

transformar isto numa tragédia, tudo quanto é possível suceder, já sabemos

que se sucederá”. O “senso comum” se torna mais uma voz atuante na

narrativa, multiplicando o protagonista. O “senso comum” parece ser outro

personagem com quem Tertuliano dialoga: “Serias melhor companhia se não

quisesses ter sempre razão, Nunca presumi de ter sempre razão, se alguma

Page 9: Literatura portuguesa iv um duplo saramago

vez errei fui o primeiro a dar a mão à palmatória” (SARAMAGO, 2002, 224). Os

personagens não se constroem somente através de suas ações, mas também

através de seus pensamentos.

A descoberta de Tertuliano por outro ser idêntico permite-nos lembrar

da literatura fantástica, que tem muitos representantes, como Jorge Luis

Borges. O nome completo de Tertuliano Máximo Afonso é citado com

exaustão. Lopondo (2010, p. 3) percebe que o excesso também se dá a

situações em que o personagem se envolve e seus pensamentos: “que seu

noivo, amante, amigo de cama, ou como quer que se lhe chame nos tempos de

hoje, se prepara para bater com a porta” (SARAMAGO, 2002, p. 64). A

professora também relata que Tertuliano tem origem latina e é diminutivo

originariamente de “Tertius, o terceiro” (GUÉRIOS, 1981, p. 236 apud

LOPONDO, 2010, p. 4, grifo de LOPONDO). Na História, temos o jurista

cartaginês Tertuliano que se converteu às ideias cristãs, onde suas escritas

apresentariam um ser “quase fanático” (SOUZA, 2008, p. 60 apud LOPONDO,

2010, p. 4, grifo de LOPONDO). Tertuliano fica obcecado pela ideia de

conhecer o seu duplo.

Tertuliano fala várias vezes consigo mesmo: “Serei mesmo um erro”

(SARAMAGO, 2002, p. 28), “Se achas que deves pedir uma explicação ao teu

colega, pede-a de uma vez” (Ibidem, p. 32). O solilóquio tem o efeito de

multiplicação do eu.

O uso de disfarces através de bigodes, barbas e mudanças de voz nos

levaram a refletir sobre a verdade, a imagem e a identidade, bem como

lembram as artimanhas duma peça teatral, num tom de leve graça. A ação de

se esconder ocorrer porque não querem se denunciar. O professor de

Matemática, o qual sugere ao protagonista ver o filme em que o inusitado é

descoberto, percebe que Tertuliano não é o mesmo: “Você poderá dar-me as

razões que quiser, mas a verdade é que desde que viu aquele filme não parece

o mesmo” (Ibidem, p. 145). Tertuliano também é uma pessoa tímida, centrada

em si e que tem dificuldade para relacionamentos e para resolver seus conflitos

internos, não conhece o outro: “Ao longo dos seis meses da sua relação com

Maria da Paz não foram muitas vezes que Tertuliano Máximo Afonso precisou

de telefonar-lhe para casa” (Ibidem, p. 122).

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António Claro, ator que faz filmes de pouca importância e ocupa papéis

igualmente inexpressivos, tem o papel de protagonista na vida de Tertuliano,

ao por ele ser descoberto. Tertuliano busca um novo sentido de vida após tal

acontecimento fantástico. António também busca algo inusitado e além da vida

conjugal com Helena ao se querer passar por Tertuliano na parte final da

trama. Ambos parecem estar descontentes com a vida que tinham.

Tertuliano e António acabam por se metamorfosear. O acidente

automobilístico em que o corpo de António Claro perece, outrossim, não

obstante a imagem de Tertuliano Afonso Máximo se vai. Restam apenas o

corpo de Tertuliano e a imagem, para Helena, de António Claro. Não podemos

nos esquecer de que Helena interpela Tertuliano para que permaneça no papel

de António Claro. A fatalidade permite ao protagonista que ele se torne menos

solitário e triste e com maior apelo sexual, pois até agora viveu no palco duma

vida sem sentido.

Na duplicação do eu, não podemos nos esquecer que a cópia é

originada a partir da original, onde aquela buscar viver de modo autônomo a

esta, mas pode continuar a ter uma identificação com o ser da sua gênese.

O desejo de saber quem é o original faz Tertuliano encontrar António.

Maria da Paz, Helena, Carolina (genitora de Tertuliano) despertam-se pela

curiosidade que envolve a duplicidade dos dois seres masculinos. Não

podemos esquecer que o protagonista se sente incomodado em saber que não

é o original, e sim António Claro: “que o original seja o outro e ele não passe de

uma simples e antecipadamente desvalorizada repetição” (Ibidem, p. 174).

Ocorre a disputa atual pela singularidade. A constatação dum duplo suscita a

vontade da eliminação da cópia. “Agora a conversação vai repetir-se, o tempo

arrependeu-se e voltou para trás” (Ibidem, p. 315), assim começa o

percebimento de Tertuliano – agora António Claro – na existência dum terceiro

ser. A busca pela identidade continua, há um novo recomeço. Tertuliano agora

vai ao novo encontro em companhia duma arma de fogo agora carregada,

mostrando sua incapacidade de apresentar-se equilibrado diante da nova

descoberta.

A busca pelo encontro por parte de ambos é expressa assim no

pensamento de Tertuliano: “que farei depois de saber que esse homem entrou

em quinze ou vinte filmes (...), Conhecê-lo” (Ibidem, p. 75). Para que isso

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ocorra deve ocorrer um contínuo deslocamento. A capacidade de se travestir

também faz parte do sujeito contemporâneo. O sujeito não pode estar fixo no

tempo e espaço. Pode-se deslocar atualmente em direção às origens, não

obstante descrente. Para o indivíduo parece que “parte de si agora ausente”

(Ibidem, p. 157).

O acidente de automóvel permite que os corpos de António e Maria

deixem de ter vida. Mas a troca dos documentos oficiais permite que aquele

que morreu continue vivo e o que está vivo morra. A burocracia também pode

funcionar como um muro que impede o contato das pessoas com a realidade.

A identidade do ser humano pode ser reduzida a um calhamaço de papéis?

O fato é que em “O homem duplicado”, realidade (História) e fantasia

(história) se encontram. São forças capazes de transformar não somente os

personagens e o narrador, mas, sobretudo, o leitor. A atividade literária é fonte

de conhecimento acerca da identidade humana. Sobre isso, Hutcheon (1991, p.

34) diz: “A ficção pós-moderna (...) o objetivo de questionar tanto a relação

entre a história e a realidade quanto a relação entre a realidade e a linguagem”.

Na concepção de pós-modernismo, o passado precisa ser inventado duma

outra forma.

A vida após a Revolução Industrial mudou definitivamente a forma de

nós seres humanos nos vermos. A possibilidade fantástica de produção em

massa associada à incessante busca pelo novo nos causou um novo problema:

o da identidade. A cultura de massa nos permitiu a comercialização do

Inconsciente (JAMESON, 2005, p.21), onde todos podem partilhar das mesmas

informações e também terem as mesmas opiniões, mas ao mesmo tempo

estarem desprovidos duma avaliação mais crítica em relação a elas. O

desfecho de “O homem duplicado” nos faz indagar quantos seres idênticos há,

afinal.

No atual estágio da humanidade, as mercadorias são tratadas como se

fossem seres humanos e chegam a ser acumuladas com apego afetivo. O

cinema possui a capacidade de multiplicar a imagem dum ator, tratado como

um produto de caráter industrial. Aliás, a crise em que o protagonista se

envolve é gerada pela exposição midiática duma outra pessoa idêntica.

Mantoury (2011, p. 72) lembrou-nos muito bem do filme “La double vie

de Véronique”, de Krzysztof Kieslowski. Weronika vive na Polônia, e Véronique,

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em Paris. A presença conjunta das duas mulheres é celebrada por uma

fotografia. Outro filme que se relaciona com a duplicidade é “Gêmeos, mórbida

semelhança”. Há dois ginecologistas gêmeos, onde um deles tem uma

personalidade mais influente. Eles dividem inclusive suas parceiras. O mais

tímido se torna dependente químico e projeta instrumentos cirúrgicos

anatomicamente estranhos. Ao fim, ambos estão perturbados

psicologicamente. O mais influenciável acaba tirando a vida de seu irmão

dominador, com seu consentimento, num procedimento cirúrgico. A morte aqui

também está presente.

“Não trabalho para viver; vivo para trabalhar”, assim podemos resumir a

vida dos seres que habitam as áreas urbanas das grandes e médias cidades.

Tertuliano, primeiramente, e o professor de Matemática, em seguida, estão a

conversar: “esta maldita rotina, esta repetição, este marcar passo, Distraia-se,

homem, distrair-se foi sempre o melhor remédio (...), mas precisa de se distrair

com histórias que não ocupem demasiado espaço na cabeça” (SARAMAGO,

2002, p. 13). O marasmo da vida ditada por um tempo em que não podemos

perder faz com que nós busquemos meros passatempos, onde temos que se

contentar com o espetáculo que é fornecido na televisão e cinema, a fim de

recarregarmos nossas baterias. Os saturados efeitos especiais fazem-nos

acreditar que o mundo já está pronto. “A imagem apaga a ideia”, diz nosso

poeta Manoel de Barros.

Dentro da tradição ocidental, o apego aos estímulos oriundos dos

sentidos, e mais especificamente aqui, o da imagem, sempre foi tratado como

algo pertencente às pessoas de menor capacidade intelectual. Platão (2009, p.

187) em “A República”, no Livro V, relata sua diferenciação entre dois tipos de

amantes de espetáculos: os da verdade e os da aparência. Sócrates diz a

Glauco:

Os que gostam de ouvir e de ver, respondi, acolhem pressurosos as

belas vozes, as belas cores, as belas figuras e tudo quanto é produzido

por semelhante beleza, mas sua reflexão é incapaz de observar e de

acolher solícita a natureza do belo em si.

A grande multidão, evidentemente, pertence ao segundo grupo. Na Bíblia

Sagrada, no Segundo Livro, chamado “Êxodo”, em “O bezerro de ouro”, é

relatado o apego dos filhos de Israel a um bezerro de ouro, no momento em

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que Moisés está no Monte Sinai. Como acreditar em um Deus que não pode

ser visto? Moisés em seu retorno ao se deparar com cenas de bebidas,

comidas e diversão em excesso fica enfurecido e quebra as tábuas que

consigo levava.

Sobre os padrões de consumo atual: “Tirou de um armário três latas de

diferentes comidas, e como não soube por qual decidir-se, lançou mão”

(SARAMAGO, 2002, p. 16). Reflete acerca da liberdade, palavra muito

pensada na história da humanidade: quando o nosso dever de gente livre seria

questionar energicamente um destino despótico que o determinou (Ibidem, p.

17). Vivemos num mundo onde as pessoas, inclusive aquelas que estão na

ordem burocrática estatal, acreditam que a principal liberdade humana é a de

escolha econômica: “Não se pode exigir a toda a gente que seja sensata, Por

isso o mundo está como está” (Ibidem, p. 31). Uma coisa que une o mundo

parece ser o inconformismo. A vida atual é marca por profunda desilusão,

como diz Tertuliano: “Se calhar não há nada que possamos fazer, são os

problemas do mundo” (Ibidem, p. 40).

“Imagem não é nada. Sede é tudo”, assim sugeriu uma campanha

publicitária de uma marca de refrigerante, na qual diz ser diferente, mas que se

utiliza incessantemente de impulsos imagéticos para tentar ao final negá-los de

sua importância. Pessoas que acreditam que a originalidade reduz-se ao fato

de possuírem os mesmos desejos de se tornarem diferentes entre si. Para

onde vai essa sociedade em que a cultura letrada tem cada vez menos

importância, mas o valor oriundo das imagens ganha um ar supremo?

O mundo hoje

Nestes tempos em que se acreditam no fim das utopias, aqueles que se

mostram de alguma forma engajados a discutir temas como liberdade e

humanismo parecem que estão deslocados. Assim é o lusitano Saramago, que

possui grande autoridade ao apresentar o conjunto de suas ideias. Acreditamos

que Saramago deseja uma mudança social, por isso escreve.

O autor é um homem que reflete sobre seu tempo, ou seja, a ficção “O

homem moderno” apresenta importância histórica, pois apresenta aspectos do

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mundo atual. O diálogo entre História e Literatura é posto em questão. O que

são a realidade e o imaginário hoje?

O homem hoje parece uma massa amorfa, onde busca sua

individualidade na defesa dum mundo altamente estratificado. Parece que está

perdido num pesadelo em que não consegue despertar.

Em tempos de termos como multiespecialistas, multilateralismo, nós,

humanos, temos que ser múltiplos. Conseguimos, graças às ciências, fazer até

cópias idênticas de nós mesmos, ou melhor, nas palavras de Tertuliano “o ser

humano repete-se” (Ibidem, p. 27). O que ainda temos é o outro como utopia.

O russo Mikhail Bakunin já dizia, no século XIX, que a verdadeira ignorância

não é ter apego ao conhecimento da cultura letrada, mas é não acreditar que o

outro deve ser capaz de trabalhar coletivamente com o eu e com os outros, a

fim duma vida mais digna e melhor.

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Referências

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ambigüidade da morte e a celebração da vida por meio do contato “real” com a

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(Associação Brasileira da Literatura Comparada). São Paulo, 2008. Disponível

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(Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa). Disponível

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<http://www.abraplip.org/anais2009/documentos/mesas_tematicas/aurora_gedr

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