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A HISTÓRIA NA LITERATURA, A LITERATURA NA HISTÓRIA: JOSÉ SARAMAGO, NOBEL PORTUGUÊS Christopher Rollason

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A HISTÓRIA NA LITERATURA, A LITERATURA NA HISTÓRIA:JOSÉ SARAMAGO, NOBEL PORTUGUÊS

Christopher Rollason

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ICRÓNICA DE UM NOBEL MERECIDO

Na quinta-feira, 8 de Outubro de 1 9 9 8 ,José Saramago foi galardoado com o PrémioNobel da Literatura. O romancista, nascido

em 16 de Novembro de 1922 na Azinhaga, freguesiado concelho ribatejano da Golegã, constituiu-seassim como o primeiro escritor na história daliteratura de expressão portuguesa a receber umNobel da Literatura, além de se tornar apenas osegundo lusitano a ser honrado em qualquer doscampos abrangidos pelos vários Prémios Nobel(lembre-se que, em 1949, o Nobel da Medicinacoube a Egas Moniz). A Academia sueca, na suamemória oficial, constatou que José Saramago sesituara à altura do prémio graças a uma obra que,com as suas ‘parábolas sustentadas por imaginação,compaixão e ironia, continuamente nos permitecaptar uma realidade ilusória’ (‘Diário de Notícias’,9 Out).

O acontecimento foi acolhido (e será, sem dúvida,aproveitado) em Portugal como consagrando avalorização a nível internacional do país lusitano,da sua língua e cultura - valorização que seimpunha há longo tempo, e que muito felizmentetambém se tem alimentado com o sucesso da Expo98, para não falar da entrada de Portugal norecinto sagrado dos ‘Euro-11’. Sugeriu o ‘Diário deNotícias’, no seu editorial pós-Nobel, que o paísestava a viver sob uma ‘boa estrela’ (9 Out); e logo,uma semana mais tarde, o prestigioso semanáriobritânico ‘The Economist’ anunciou que daqui emdiante já não considerará Portugal como um‘mercado emergente’, passando, para finsestatísticos, a integrar aquele país europeu nacategoria global dos referidos ‘Euro-11’ (17 Out, p.134). O Nobel de José Saramago será previ-sivelmente encarado por muitos como mais umaprova do êxito da procura, por parte de Portugal,do estatuto de nação verdadeiramente europeia,aceite como comensal de respeito à mesa dos‘grandes’ - isto é, ainda, da sua redenção dos 48anos de salazar-caetanismo e do encerramentodefinitivo do capítulo de distúrbios que já englo-bou as turbulências da revolução de Abril, a quedado império, a inflação épica dos anos 80 e a crisegeneralizada da identidade nacional. Não é dito,porém, que a visão dos poderes constituídos sobrea modernidade portuguesa seja forçosamentemuito convergente com a do laureado do Nobel.

Na semana que se seguiu ao galardão, multipli-caram-se os encómios, quer a nível nacional, querinternacional. José Saramago recebeu a notíciano aeroporto de Frankfurt, quando estava paraembarcar no avião de regresso a Madrid, logo apósa sua comparência na Feira do Livro daquelacidade alemã. O laureado voltou imediatamente àFeira, onde foi acolhido como triunfador. EmPortugal, mal se soube a notícia, tanto o Conselhode Ministros como a Assembleia da Repúblicaaprovaram votos de saudação. O ‘Diário de Notíci-as’ (órgão de imprensa do qual o próprio Saramagojá foi director-adjunto, aliás durante o grandetumulto do período revolucionário, entre Abril eNovembro de 1975) publicou uma edição especial,com data de 9 de Outubro, exibindo a assinaturade José Saramago umas prolíficas 63 vezes, napágina de capa e em todas as páginas interiores.Na terça-feira, 13 de Outubro, o escritor, emcerimónia oficial, recebeu as chaves da cidade deLisboa - encontrando-se as ruas da capital, paraa ocasião, enfeitadas com cartazes alardeando aimagem fotográfica do galardoado e a legenda‘Parabéns, José Saramago’. Na quarta-feira, 14 deOutubro, foi-lhe prestada uma homenagempública, com a presença de António Guterres eJorge Sampaio, em cujo decurso o Presidente daRepública declarou mesmo a sua intenção de tudofazer para que o laureado do Nobel pudesse serdignificado, ainda, com a Ordem de Sant’Iago daEspada, no seu grau máximo de Grande-Colar -ou seja, a mais ilustre condecoração do Estadoportuguês, a qual, até então, apenas fora outorgadaaos próprios Chefes de Estado em funções (‘Públi-co’, 15 Out; em 10 de Dezembro, de facto, JoséSaramago compareceu em Estocolmo, para rece-ber o prémio das mãos do Rei da Suécia, ostentan-do aquela condecoração - ‘El País’, 11 Dez).

Difícil será, contudo, esquecer-se a ironia deque, hoje em dia e como é sabido, José Saramagojá não reside em território português, tendoescolhido, em 1992, fazer a sua casa em terras de‘nuestros hermanos’ ibéricos, concretamente nailha canária de Lanzarote. Mesmo na esteira doNobel, o autor já confirmou ao ‘Público’ (14 Out)que não tem intenções de voltar a viver na pátrialusitana: ‘Não encaro, de facto, essa hipótese’. Seà decisão do escritor de fixar a sua residência emEspanha não foi alheia, evidentemente, a nacio-

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nalidade da sua esposa, Pilar del Río, com quempartilha a sua vida desde 1988, a razão determi-nante bem pareceria ser o conflito que o opôs, em1992, ao governo de direita então em funções.Num episódio que ficou célebre como sendo aversão ‘à portuguesa’ do ainda mais célebre ‘casode Salman Rushdie’, a nomeação do romance deJosé Saramago, ‘O Evangelho segundo JesusCristo’, em representação do Portugal moderno eeuropeu de hoje para o próprio ‘Prémio Europa’,galardão literário patrocinado pelo ParlamentoEuropeu, teve o triste destino de encalhar contrao recife da férrea e aguerrida oposição de AntónioSousa Lara, homem político do PSD que entãodetinha a pasta de Subsecretário de Estado daCultura na administração de Cavaco Silva. SousaLara justificou o seu veto na medida em queaquele romance não passava de uma ofensaflagrante e patente aos sentimentos religiosos dopovo português: ‘ataca princípios que têm a vercom o património religioso dos cristãos e, longe deunir os portugueses, desunia-os naquilo que é oseu património espiritual’. A reacção de JoséSaramago foi duríssima: ‘É o regresso à Inquisi-ção’ (ambos citados em ‘Público’, 9 Out). Seis anosmais tarde, no entanto, foi a Academia suecaquem, na sua memória oficial consagrada aolaureado, achou judicioso e correcto elogiar omesmo romance por ‘encerrar, na sua franqueza,reflexões merecedoras de atenção sobre grandesquestões’ (ibid.). A despeito disto, Sousa Laramanteve as suas posições: ‘Aquilo que fiz, fizconvicto de que estava a fazer o que devia. Fá-lo-ia na mesma, se na altura soubesse que o senhorJosé Saramago iria receber o Prémio Nobel’ (ibid.).O romancista, por seu lado, mostrou igual firmeza,frisando até, nas suas declarações ao ‘Público’ (10Out): ‘Pensei que naquele caso concreto e pontualo governo se portava como nos tempos do fascismoe surgiu a possibilidade de ir viver para outrolugar’.

Na sequência desse conflito, qualquer desejo porparte de José Saramago de continuar a viver naterra de Camões parece ter-se esvaecidorapidamente. Pelos vistos, tal desejo também nãofoi reanimado pela mais recente renascença políticada esquerda lusitana (o seu abandono de Portugalprecedeu, de facto, os respectivos triunfos eleitoraisde António Guterres e Jorge Sampaio). A bemconhecida militância do autor no Partido Comu-nista Português já vem de longa data (foi em 1969que ele se juntou às fileiras). Em 1989, JoséSaramago foi, brevemente, Presidente da

Assembleia Municipal de Lisboa, e o seu nometambém já figurou nas listas do PCP para oParlamento Europeu, mesmo se, quando surgiua oportunidade de entrar na câmara de Estras-burgo, na sequência da renúncia de um colega, oescritor preferiu não preencher a vaga. O roman-cista, porém, nem sempre tem acatado a linhapartidária em todos os seus pormenores (ojornalista Torcato Sepúlveda - ‘Público’, 9 Out -qualifica-o de ‘comunista heterodoxo’), mas é desalientar que hoje em dia a sua fé políticapermanece tão firme e inquebrantável como antes,mesmo neste universo pós-soviético e, no dizer dealguns, pós-ideológico em que vivemos. JoséSaramago resumiu o seu credo político, para‘Público’ (10 Out), nestes termos eloquentes: ‘Oserros do comunismo foram muitos, e também oscrimes ... eu sou herdeiro de todos esses erros, nãotenho outro remédio, mas mesmo assim pensoque um dia se vai poder viver de forma diferente noMundo, pelo que continuarei a pensar o quepenso’. Em 14 de Outubro, o novo Nobel falou, naPraça do Comércio, para um comício da CGTP-IN,e no quartel-general lisboeta do PCP foi acolhidopor inúmeros camaradas, ‘cravos na mão, muitos,olhos lacrimejantes, outros, orgulhosos, todos’(‘Público’, 15 Out). Quatro dias mais tarde, nos

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arredores do Porto, o laureado partilhou o palcocom ninguém menos que Fidel Castro -encontrando-se o dirigente cubano em Portugalpara a cimeira ibero-americana - e ali ‘exprimiu oseu apoio à revolução cubana’ (‘El País’, 19 Out).

A fé comunista de José Saramago tem os seusalicerces nas origens humildes do autor. Nasceunuma casa de aldeia sem janelas, sendo a mãeanalfabeta. Depois de se ter mudado a famíliapara Lisboa, o pai arranjou emprego na PSP; nãoobstante, o filho só pôde completar dois anos docurso liceal, devendo logo, por prementes razõeseconómicas, abandonar o sistema educativo. Pas-sou, como aprendiz, por uma série de ofíciosdiversos. Um dia, caiu-lhe nas mãos (adquirido -e se aqui nos lembrássemos de Fernando Pessoa?- numa tabacaria lisboeta) o seu primeiro livro -um policial - e já aos 18 anos começara a passaras suas noites numa biblioteca da capital,embarcado nessa longa viagem de autodidacticis-mo que lhe havia de fazer as vezes de Faculdadeuniversitária.

A notícia foi recebida em Portugal com quaseuniversal júbilo. António Guterres afirmou que ogalardão era ‘um testemunho do reconhecimentointernacional do papel que Portugal tem naconstrução do mundo moderno - um papel em quea literatura portuguesa sempre se afirmou, comuma enorme pujança’. Jorge Sampaio, por suaparte, honrou em José Saramago ‘[a] suacapacidade de intervenção e de testemunho, daqual sempre deu provas ao longo da vida - tenha-se ou não concordado com ele em vários momentos’.O seu antecessor na Presidência da República,Mário Soares, saudou a escolha da Academiasueca como ‘um acto de justiça, porque a nossaliteratura tem uma grande qualidade’. Semprenas bancadas socialistas, Manuel Alegre, o poetada ‘Trova do Vento que Passa’ e outros hinos deAbril, viu no Nobel do autor comunista ‘um acto dejustiça em relação à nossa literatura’ (todos citadosem ‘Público’, 9 Out). A estes louvores por parte dosmaiores vultos do Partido Socialista, juntaram-se,mais à esquerda, as reacções propriamenteeufóricas nas fileiras do PCP. Álvaro Cunhal exal-tou o seu companheiro de luta como um escritor‘muito original [que] não me parece fácil de imitar’,salientando ainda, na obra premiada, aqueleselementos que constituem ‘uma reflexão muito

interessante relativa à história portuguesa’,enquanto não deixava de referir o muitocontroverso ‘Evangelho segundo Jesus Cristo’,descortinando o significado daquele romancenestes termos: ‘Não há ali uma mensagemantirreligiosa, mas de compreensão humana’(ibid.). Em 14 de Outubro, na homenagem aolaureado organizada pelo PCP, foi Carlos Carvalhasquem declarou: ‘Este Prémio honra Portugal, aliteratura de expressão portuguesa, mas tambémhonra os comunistas portugueses’ (‘Público’, 15Out). A única voz discordante que se ouviu emtodo o universo da esquerda parece ter sido a deMaria Teresa Horta, autora de ‘Mulheres de Abril’e militante feminista: ‘Estou contente pelaliteratura portuguesa, mas tenho muita pena quese continue a esquecer as mulheres. Existemmulheres portuguesas com melhores obras’(‘Público’, 9 Out - mesmo se, para quem quiser ler,o historial, até recente, do Nobel revela que oprémio foi atribuído a personalidades de sexofeminino em 1991, 1993 e ainda em 1996).

À direita, as reacções foram, naturalmente,mais matizadas, variando o tom do cortesmenteapreciativo até ao visivelmente antagónico. Do

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lado do PSD, opinou Marcelo Rebelo de Sousa queo galardão resultara ‘muito prestigiante paraPortugal’, saudando a ‘produção literáriariquíssima’ do premiado. Os dirigentes do PPreagiram com maior frieza, afirmando ManuelMonteiro que, ‘como português, sempre fico satis-feito quando um compatriota é galardoado aomais alto nível’, mas que ‘ficar contente não épropriamente apreciar Saramago’ (ambos citadosem ‘Público’, 9 Out). No momento preciso do votode saudação na Assembleia da República, houvequatro deputados, todos do PP (entre os quais opróprio Monteiro e o antigo presidente da edilidadelisboeta, Krus Abecasis), até então presentes, quemuito ostensivamente privaram o hemiciclo dahonra da sua assistência (‘Diário de Notícias’, 9Out). Tão-pouco faltou a opinião da Casa deBragança, declarando o próprio Dom Duarte Pioque Saramago, para ele, não passava de ‘um autorde leitura difícil e muito pesada, que insultaabertamente os sentimentos cristãos’ (‘Público’, 9Out).

Pelos quatro cantos do universo de expressãoportuguesa, a notícia foi recebida com um entusi-asmo igual ao que se verificou em Lisboa. NoBrasil, Jorge Amado, ele mesmo muitas vezes jáapontado como candidato ao Nobel, declarou que‘ao reconhecer a literatura portuguesa ... o PrémioNobel finalmente fez justiça’, enquanto o campeãodas vendas, Paulo Coelho, afirmou que José Sara-mago ‘representa uma tradição de bons livros euma consistente forma de pensar’. Um grupo deescritores e intelectuais angolanos endereçou umacarta colectiva ao recém-galardoado, elogiando-ocomo ‘um homem coerente, solidário com os queprecisam de apoio, defensor intransigente dassuas ideias’, e assinalando a sua simpatiaconstante com a luta do povo angolano; atéaventaram a hipótese, ousada ou não, de que ‘umcazumbi [espírito amigável] deve ter passado pelacabeça do júri’ em Estocolmo (‘Público’, 11 Out).

No outro lado da fronteira ibérica, ‘El País’,máximo órgão de imprensa do país de Cervantes,não poupou os louvores, dedicando ao laureado

uma fotografia de primeira página, um editorial,e seis páginas interiores, regozijando-se pelaconsagração de um ‘autor crítico e utópico’,frisando ainda com orgulho, num gesto desolidariedade pan-ibérica, que a Espanha é ‘umpaís vinculado ao autor’ (9 Out). Em França,‘Libération’ salientou, na obra do romancistaportuguês, ‘a sua passagem em revista, contun-dente, da história portuguesa’, para além da sua‘ironia na linha de Voltaire’ (11 Out). A proeza deJosé Saramago também granjeou louvores emItália, tendo-o saudado tanto Dario Fo, o Nobel de1997 (‘El País’, 9 Out), como Umberto Eco,qualificando-o este último como ‘um grandeportuguês, um grande europeu e um talentosoescritor de quem há ainda muito a esperar’(‘Público’, 11 Out). Apreciações semelhantes foramemitidas por vários escritores da América Latinahispânica (Carlos Fuentes e Mario Benedetti - ‘ElPaís’, 9 Out; Mario Vargas Llosa - ‘Diário deNotícias’, 9 Out).

Na Alemanha, ‘Der Spiegel’ declarou: ‘As suasparábolas criticam o espírito da época, sendobarrocas e cheias de imagens na sua construção’,publicando uma entrevista com o romancista, àqual não faltou o título provocador, ‘Sim, soucomunista’ (12 Out). Na Grã-Bretanha, um porta-voz de Harvill, uma das empresas editoras de JoséSaramago naquele país, explicou ao ‘Guardian’:‘Trata-se de um escritor muito português,empenhado na tarefa de estabelecer a identidadede Portugal como uma peça integrante da culturaclássica europeia’, enquanto um responsável deCarcanet, outra empresa que o tem publicado,exaltou José Saramago como sendo ‘o maior ro-mancista ibérico deste século’ (9 Out). Nos Esta-dos Unidos, o ‘Washington Post’ colocou o escritorportuguês, ao lado de tantos latino-americanos,na escola literária do ‘realismo mágico’, citandoainda a reacção, altamente favorável, de HaroldBloom, catedrático de literatura da Universidadede Yale e, segundo o mesmo jornal, ‘o maiorhomem de letras dos Estados Unidos dos nossosdias’ (9 Out). Já anteriormente, no seu polémicoestudo de 1994, ‘The Western Canon’ (‘O CânoneOcidental’), Harold Bloom se havia revelado comoum paladino da literatura portuguesa, tendo re-servando um lugar para Fernando Pessoa entre asfiguras-chave da tradição ocidental, ao lado deShakespeare, Dante, Goethe e companhia, alémde incluir ‘Memorial do Convento’ (sob o seu títuloinglês de ‘Baltasar e Blimunda’) na lista de leiturasrecomendadas anexa à mesma obra (‘The Western

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Canon’, London: Macmillan, 1995, pp. 485-492,550). Desta vez pronunciou-se nos termosseguintes: ‘Entre os prémios Nobel dos últimosquinze anos, poucos houve que mereceram talgalardão. Mas José Saramago merece-o realmen-te. Como Borges, que, creio, teve um certo impactonele, como Kafka, o qual, evidentemente, oinfluenciou, como Beckett em certa medida,Saramago é um escritor de fantasmagorias -daquilo que, em tempos passados, se teria chamadofábula, mais que romance. No meio da maisextravagante fantasia, ele sabe manter o sentido -seco, meticuloso - do detalhe, do pormenor’ (‘Wa-shington Post’, loc. cit.). Mais tarde, ainda nomundo de expressão inglesa, o ‘Economist’ resolveuhomenagear José Saramago na sua edição de 14de Novembro, elogiando uma obra que, ‘mais doque a da maior parte dos autores ibéricos actuais,empurra para a frente’, graças à maneira comologra conciliar ‘experimentalismo formal’ e‘realismo extensivo e bem documentado’,homenagem que foi ecoada em 21 de Novembro nalongínqua Austrália, onde o ‘Courier-Mail’ afirmouque o escritor português ‘merece perfeitamente oseu lugar na mesa dos grandes, ao pé de Flaubert,Kafka e Dostoievski’.

Se deixarmos de lado alguns comentários hostisda parte doutro Nobel da Literatura, o poetapolaco Czeslaw Milosz (‘El País’, 9 Out), a únicareacção negativa de grande ressonância eenvergadura foi a do Vaticano. ‘L’OsservatoreRomano’, pouco disposto, pelos vistos, a entregara César o que a César pertence, afirmouredondamente que o Nobel de Saramago nãopassava de ‘uma escolha política’, na medida emque se tratava de ‘um comunista inveterado’ (emitaliano, ‘veterocomunista’), condenando ainda,não só, como era de esperar, ‘O Evangelho segundoJesus Cristo’, mas também ‘Memorial do Conven-to’, sendo este último romance, para a Santa Sé,outra instância da ‘veia anti-clerical do escritor’ -isto sem dúvida devido à sua áspera representaçãoda Inquisição e dos autos-de-fé! (‘L’OsservatoreRomano’, 8 Out, citado em ‘Público’, 10 Out; vejatambém ‘Público’, 22 Out). Replicou o romancista,falando a ‘Público’: ‘Acho a atitude do Vaticano amais lógica, não seria aliás normal que tivesseoutra, o seu fundamentalismo não ocorre pela

primeira vez, ainda recordo o que se passou o anopassado com o Dario Fo’, concluindo: ‘O Vaticanodeve meter-se naquilo que lhe compete, salvar asalmas que possa, mas a Igreja tem uma capacida-de especial para insultar’ (‘Público’, 10 Out).

Menos hostilidade mostrou, porém, a Igrejaportuguesa. O bispo de Bragança, D. AntónioRafael, declarou: ‘Nunca li qualquer livro deSaramago, mas fiquei chocado com a forma comotratou a religião católica em « O Evangelho segundoJesus Cristo »’ (‘Público’, 9 Out; como no caso deSalman Rushdie, é de salientar aqui que os defen-sores da fé nem sempre parecem julgar necessá-rio, ou mesmo útil, ler os livros por eles condena-dos!). Por outro lado, o bispo resignatário deSetúbal, D. Manuel Martins, confessou à RadioRenascença estar ‘extraordinariamente feliz coma atribuição dum Prémio Nobel a um compatriota’,muito embora ficasse ainda mais contente se JoséSaramago, ‘que escreve lindamente, se deixasseiluminar por ideais cristãos’. Ainda mais longe foiD. Januário Torgal Ferreira, secretário da Confe-rência Episcopal Portuguesa, que criticou as posi-ções da Santa Sé, qualificando-as de ‘demasiadoredutoras’ e recordando: ‘Já não estamos nostempos do Índex’ (Público, 10 Out). O próprio JoséSaramago, segundo ‘El País’, se definiria comoateu, mas não deixa de estar consciente do pesoque a religião já teve, e ainda tem, na históriahumana: ‘na sua visão, tem sido, em boa parte, areligião o que tem condicionado as nossas vidas eas nossas consciências’ (9 Out).

A euforia oficial parece ter sido redobrada nasfileiras do povo português. José Saramago, escritore comunista, é também um homem desse mesmopovo, sendo a sua obra literária verdadeira egenuinamente popular - isto é, vendida e lida - nasua pátria lusitana. Tal fenómeno nem sempreacontece com os laureados do Nobel, se bem quedeterminados galardoados - um Pablo Neruda,um Gabriel García Márquez - certamente seperfilam como detentores do favor do povo, e nãosó o dos intelectuais. A popularidade de JoséSaramago data de 1980 (de uma época em que elejá quase tinha sessenta anos): a partir de ‘Levantadodo Chão’, os seus romances têm estado semprepresentes nas listas dos mais vendidos. Segundoa Editorial Caminho, desde 1979 as vendas dos

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livros do autor ascendem a 1 108 900 exemplares- ou seja, aproximadamente um para cada dezportugueses. O mais vendido é ‘Memorial doConvento’ (281 000 exemplares), seguido de ‘OEvangelho segundo Jesus Cristo’ (181 000). Noestrangeiro, ‘Memorial do Convento’ já foi traduzidopara 22 línguas, e ‘Levantado do Chão’ para 20; aspalavras lusitanas de José Saramago lêem-se emromeno, polaco, turco e japonês (‘Diário de Notícias’,9 Out).

Sempre tem cabido na missão do escritor JoséSaramago a tarefa de recriar - mesmo que nãopelos métodos da antiga ortodoxia neo-realista - ahistória submersa da gente comum: como expli-cou em 1997, falando ao crítico literário e docenteda Academia conimbricense Carlos Reis, ‘a estemundo vêm milhões de pessoas e a história nãodeixa rasto da sua passagem’ (citado em ‘Público’,9 Out). Este escritor do povo já foi premiado, defacto, pela atenção e lealdade que lhe tem mani-festado esse mesmo povo.

Há mais de uma década, o mesmo Carlos Reis(hoje em dia director da Biblioteca Nacional dePortugal), explicara, numa contribuição a umsimpósio sobre o décimo aniversário do 25 deAbril, como a obra de José Saramago se constituicomo meio de ‘repensar esses eventos, figuras elugares [da história portuguesa] à luz de uma novarealidade histórica’, assim lançando uma ponteentre o património cultural lusitano e as mudançasdramáticas da época mais recente (Carlos Reis,‘«Memorial do Convento» ou a emergência daHistória’, Revista Crítica de Ciências Sociais(Coimbra), No 18/19/20, Fevereiro 1984, pp. 91-103; p. 93). Saliente-se, de facto, a circunstânciade José Saramago ser lido em Portugal como umgrande reinterpretador, de cariz radical ereivindicativo, da história da nação - mas dahistória concebida como devir: um fluxo contínuoque alimenta o presente, um processo em evoluçãopermanente e dinâmica.

A euforia nacional não significa que tambémnão tenham cabimento certas advertências sa-

lutares. Para citarmos mais uma vez Carlos Reis:‘O prémio é também dos que têm estudado JoséSaramago, não das pessoas e instituições que seaproveitam agora dum escritor que antes conside-ravam subversivo ... não faltarão, agora, vozesgenerosas a celebrá-lo, sem nunca terem lidouma linha de Saramago’ (‘Público’, 11 Out). NaMafra de ‘Memorial do Convento’, a escolasecundária local passará, daqui em diante, achamar-se ‘Escola Secundária José Saramago’ -gesto que, contudo, nunca teria vingado sem o‘deus ex machina’ do Nobel, sabendo-se que aautarquia local, controlada pela direita, durantevários anos recusara a proposta de uma medalhade mérito ser oferecida pela vila de Mafra a quema imortalizou por este mundo fora (‘Público’, 13Out). Entretanto, a Azinhaga, terra natal doromancista, já há algum tempo se pode ufanar deter uma ‘Rua José Saramago’, mas o que lhe faltaainda é uma biblioteca pública, sendo os únicoslivros na posse da Junta de Freguesia daquelalocalidade ribatejana 14 volumes das obras dorecém-premiado, oferecidos, por sinal, pelo pró-prio escritor para formarem o núcleo da referidabiblioteca (‘Diário de Notícias’, 9 Out). Dir-nos-áo futuro se as pessoas que agora prodigalizam osseus louvores, nesta feliz ocasião do primeiroNobel da literatura portuguesa, decretarão poste-

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riormente qualquer medida cultural de naturezaconcreta para melhorar a sorte das camadasmenos favorecidas, aqueles que o próprio laure-ado nunca tem deixado de defender.

Em 14 de Outubro, José Saramago exprimiu-seao ‘Público’ nos termos seguintes: ‘Se o que tenhovindo a fazer até agora tem tido alguma utilidadepara alguém, como voz, como crítica, como análisedas circunstâncias, dos factos, da vida política, davida social, da situação em que o mundo está,então assim continuará a ser’. Decorre claramen-te destas palavras que, para o romancista, aliteratura é uma forma de intervir na sociedade,uma expressão do espírito crítico e questionador,um desafio lançado a essa ‘situação em que omundo está’. O tal estado do mundo, de contornosneoliberais e americanizados, não é,manifestamente, do agrado do escritor, o qual,nesse mesmo dia, no Terreiro do Paço e perante ocomício da CGTP-IN, deixou bem clara a suaposição: ‘Deixemo-nos de eufemismos e chamemoscapitalismo autoritário ao neoliberalismo’ (‘Públi-co’, 15 Out). Acrescente-se que, dois meses maistarde, em Estocolmo, José Saramago soubeaproveitar a própria cerimónia da entrega doNobel para se lançar contra as multinacionais:‘Alguém não está a cumprir com o seu dever. Nãoestão a cumprir os governos ... porque não lhopermitem aqueles que efectivamente governam omundo: as multinacionais, ou plurinacionais, cujopoder, absolutamente não-democrático, já reduziua quase nada o que ainda permanecia do ideal dademocracia’ (‘El País’, 11 Dez).

II‘MEMORIAL DO CONVENTO’

O momento do Nobel é também, evidentemen-te, uma ocasião para redescobrir algumas dasobras do autor consagrado. Neste contexto, podeser interessante agora debruçarmo-nos sobrealguns aspectos de dois dos romances maisimportantes de José Saramago: ‘Memorial doConvento’ e ‘O Ano da Morte de Ricardo Reis’.

‘Memorial do Convento’ (1982; ‘Obras’, III, pp.3-344) é uma narrativa excepcional que empurrao género do romance histórico para dentro douniverso mágico-realista da última parte do séculoXX. José Saramago reconstitui a construção doconvento de Mafra (‘o mais prodigioso dos

monumentos que em Portugal se levantaram’ - p.337), na época de D. João V, recriando o Portugaldo século XVIII, tanto do ponto de vista do Podercomo do da gente popular, e até dissidente. Namelhor tradição do romance histórico, aquela queo grande escocês Walter Scott iniciou no seu‘Waverley’, as personagens verídicas da História,entre as quais a família real e ‘o senhor Escarlate’,isto é, o celebérrimo músico italiano, DomenicoScarlatti, entrecruzam-se com seres fictíciosideados pelo próprio autor; a narrativa, no entanto,nem sempre acata as convenções do realismoclássico. Num clima geral de conformismo emtodas as camadas da sociedade, destacam-se trêsfiguras que são marcadas por uma irrevogáveldiferença: um intelectual e dois rebentões dopovo. São estes: o padre Bartolomeu Lourenço, ‘aquem chamam o Voador’ (‘Memorial do Convento’,p. 56) - personalidade autêntica da História,licenciado da Faculdade de Cânones de Coimbrae inventor da ‘passarola’, estranha máquinavoadora - ‘um pássaro de ferro e vimes entrançados’(p. 340) - a qual lhe há-de atrair, finalmente, a irada Inquisição; Blimunda, uma jovem mulher dopovo, analfabeta mas dotada do poder mágico de

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ler no coração e na vontade da gente; e o seucompanheiro Baltasar, soldado desmobilizado,grisalho e maneta, mas, para Blimunda, ‘o homem... mais formoso do mundo’ (p. 326). O padreBartolomeu Lourenço casa os amantes, conferindoa Blimunda o cognome de ‘Sete-Luas’ para cor-responder ao apelido de Baltasar, ‘Sete-Sóis’,assim os confirmando numa união quase pagã;posteriormente, os dois passam a ser, de facto, osassistentes do padre, eles também conspiradoresno seu projecto extravagante. Os profundos laçospsicológicos que unem os três assentam no traçocomum da diferença. A família de Baltasar sãopessoas passivas e resignadas, para quem tudo oque sai do vulgar tem o sabor inquietante doesquisito, do desconhecido e alheio: ‘Nunca lhesdeu o capricho de experimentar a novidade, sãoespíritos quietos e carnes desambiciosas’ (p. 320).Assim a relação de parceiros que se cria entre estecasal do povo e o homem da sotaina se constituicomo um verdadeiro escândalo ontológico: ‘Bli-munda fora abrir a porta sem que alguém a elabatesse, e agora estava ali um padre novo queperguntava por Baltasar, não é assim quecostumam passar-se as visitas deste tempo, mashá excepções, como em todos os tempos sempre sedisse, vir um padre de Lisboa a Mafra para falar aum soldado manco, e a uma mulher que é visionáriada pior maneira, porque vê o que existe’ (pp. 114-115).

Não obstante, a lógica da narrativa demonstraque, na dura realidade e no quadro de um ambi-ente social tão universalmente opressor, mesmose, como é certo, ‘há excepções’, os seres excepci-onais em questão terão, no fim de contas, a maiordificuldade em sobreviver. A máquina voadorasimboliza a revolta do intelecto, podendo atélembrar a história de Galileo (‘eppure si muove’ -e voa, é verdade que voa!), mas o seu inventorendoidece por medo do Santo Ofício,desaparecendo logo para nunca mais ser visto; equando, por acidente, Baltasar descola no mesmoaparelho, o voo apenas serve para o entregar naspróprias mãos da Inquisição. Também é de salientara ironia pela qual a aproximação dos dois amantesé efectuada, indirectamente, pelas mesmas forçasautoritárias da sociedade às quais, mais tarde,eles se opõem: os seus olhares encontram-se,pela primeira vez, quando os dois estão apresenciar um auto-de-fé em Lisboa - auto-de-féno qual, aliás, à própria mãe de Blimunda édecretado o degredo em Angola, por bruxarias. Nofim da narrativa, Blimunda, que, tendo perdido o

seu homem inexplicavelmente, errara nove anospor todo Portugal, sempre à sua procura esempre em vão, reencontra-o finalmente, numsegundo auto-de-fé - mas desta vez, já não comoespectador mas como réu, condenado à foguei-ra. Afinal, a sociedade e a Igreja conseguirampôr termo à relação deste casal ‘diferente’;Blimunda, porém, faz tudo por reagir, usandotoda a força dos seus poderes mágicos paraliberar, pelo menos, a alma do companheiro:‘Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se avontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiupara as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda’(p. 344). É esta mulher analfabeta quem ficacomo a grande sobrevivente e a mais sábia detodos, sendo apenas ela capaz de conservar asua energia sem ser destruída. Ao longo desteromance, através de uma escrita densa e intrin-cada, José Saramago desvenda-nos o potencialescondido da gente do povo, a criatividade queestá sempre latente sob a morna superfície doquotidiano. Os seus protagonistas são simulta-neamente ordinários e extraordinários - gentede todos os dias, porém heróica, visionários massempre ligados à terra; a sua trajectória fala-nos, com grande eloquência, tanto das possibi-lidades reais, existentes em qualquer época, decontestação do Poder, como dos condicionalis-mos históricos que podem limitar e travar essamesma contestação.

III‘O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS’

No romance que escreveu logo após ‘Memorialdo Convento’, ‘O Ano da Morte de Ricardo Reis’(1984; ‘Obras’, III, pp. 345-745), José Saramagodesvenda um período da história portuguesabem mais recente, concretamente a década de1930, isto é, a época da consolidação e doendurecimento ideológico do Estado Novo.Contra um fundo de obscurantismo nacionalis-ta em Portugal, guerra civil na vizinha Espanha,e fascismo beligerante na Europa, este romancevisa reconstruir a identidade imaginária deRicardo Reis, heterónimo de Fernando Pessoa.Partindo das indicações ‘biográficas’ fornecidaspelo próprio Pessoa (sabe-se que Ricardo Reisé médico e que viveu muitos anos no Brasil),José Saramago imagina o cenário seguinte,correspondente aos últimos nove meses da vida

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da personagem: o ‘senhor doutor Reis’ regressa aPortugal em Dezembro de 1935, encontra aloja-mento em Lisboa, no Hotel Bragança e, maistarde, num apartamento do Alto de Santa Cata-rina, embrulha-se com duas mulheres, Lídia eMarcenda, atura a vigilância da polícia, eempreende uma série de disquisições metafísicascom o espectro do recém-defunto FernandoPessoa, com o qual, finalmente, se reúne namorte. Aqui como em ‘Memorial do Convento’, atécnica narrativa utilizada conjuga elementosrealistas e não-realistas, mas desta vez acrescen-tando à mistura uma forte componente intertex-tual e metatextual: os nomes Marcenda e Lídiaderivam das próprias ‘Odes de Ricardo Reis’pessoanas, e torna-se patente que toda esta ficçãode José Saramago é edificada ao redor dareconstituição de uma personagem fictícia que jáfoi inventada por outro escritor, sendo estapersonagem imaginada em diálogo com o seucriador ‘real’.

Poderia, à primeira vista, parecer estranho queJosé Saramago, comunista empenhado, tenhaescolhido centrar a sua leitura de Fernando Pes-soa e da sua época na figura de Ricardo Reis, detodos os heterónimos pessoanos o mais alheadodo mundo quotidiano das lutas humanas. Pessoaapresenta Reis como um latinista e tradicionalistaque terá deixado Portugal para o Brasil, logo apósa instauração da República em 1910 (‘se expatriouespontaneamente por ser monárquico’ - carta aAdolfo Casais Monteiro, 13 Janeiro 1935, emPessoa, ‘Sur les hétéronymes’, edição bilínguefrancês/português, Le Muy, França: Éditions Unes,1993, p. 60). As ‘Odes de Ricardo Reis’, das quaisnos são oferecidos amplos extractos ao longo doromance, proclamam, dentro das convenções doneopastoralismo, a virtude clássica do nãoalinhamento emocional, a partir de um pedestalde afastamento olimpiano. Reis lembra-nos afigura de Epicuro, ‘sereno e vendo a vida/à distân-cia a que está’, e declara: ‘Sábio é o que se contentacom o espectáculo do mundo’ (Pessoa, ‘Odes deRicardo Reis’, Lisboa: Publicações Europa-América, 1988, pp. 103, 104), sendo essa últimafrase citada, aliás, por José Saramago como umadas epígrafes ao seu romance. Segundo o escritore crítico David Mourão-Ferreira, ‘Ricardo Reis ...sintetiza toda a sabedoria do passado, todo opatrimónio moral da tradição humanística’ (Fer-nando Pessoa: ‘O Rosto e as máscaras: textosescolhidos’, org. Mourão-Ferreira, 2a edição,Lisboa: Edições Ática, 1978 - ‘Prefácio’, p. 14);

para Antonio Tabucchi, romancista italiano edistinguido expoente dos estudos pessoanos,‘Reis escolhe não escolher ... o ideal de Reis é umtempo imóvel, um mundo imóvel’ (‘La Nostalgie,l’automobile et l’infini: Lectures de Pessoa’, Paris:Seuil, 1998, pp. 32-33). O seu epicurismo neopagãositua-se, evidentemente, a mil léguas do projectomarxista de interpretar o mundo para transfor-má-lo: haverá, pois, alguma ironia a obrar no textode José Saramago, cuja finalidade apenas sedescortinará quando se acabar a sua leitura.

A escrita de José Saramago neste romance éespessamente intertextual. A presença constantede Fernando Pessoa, juntamente com as evocaçõesrepetidas doutro vulto literário, o próprio Luís deCamões, apontam para o desígnio de escrever umtexto capaz de se perfilar na linha recta da literaturaportuguesa. Tão-pouco esquece o escritor que aliteratura lusitana, à semelhança da história dePortugal, não é alheia ao mundo exterior, com assuas movimentações mais vastas. Se as andançasnocturnas de Ricardo Reis no coração de Lisboarecordam as de outro heterónimo pessoano, oBernardo Soares de ‘O Livro do Desassossego’(texto também citado nas epígrafes), não é menoscerto que lembram, com as suas meditações sobrea mortalidade, outra série de divagações urbanas:as do Leopold Bloom de James Joyce, personagemque também erra por uma capital portuária echuvosa na orla da Europa. Outro fantasmapresente na prosa de José Saramago é o de umcélebre argentino de origem portuguesa, JorgeLuis Borges. Ricardo Reis chega a Lisboa numbarco que começou a sua viagem em Buenos Aires(p. 351), e durante a narrativa inteira está a tentar,em vão, terminar a leitura de um livro em línguainglesa - ‘The God of the Labyrinth’, obra deHerbert Quain, escritor irlandês (p. 363): livro queo nosso viajante encontrou na biblioteca dotransatlântico, e que nunca devolveu. Sãoimaginários os dois, livro e escritor; viveram,porém, uma existência prévia nas páginas deBorges, o qual escreveu um factício ‘estudo crítico’da obra do referido Quain, no qual não se esqueceude referir a obra capital deste, ‘The God of theLabyrinth’ - (‘Examen de la obra de Herbert Quain’(1941), in ‘Ficciones’, Madrid: Alianza, 1971, pp.81-87). No seu texto, Borges (p. 87) até reivindicao fantasmagórico Quain como um tipo de heteró-nimo, o ‘autor’ do seu próprio relato ‘Las ruinascirculares’ (op. cit., pp. 61-69), no qual um homemdescobre que ele mesmo não passa de ser umamera personagem de um sonho de outrem

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(‘compreendeu que ele também era uma aparên-cia, que outro o estava a sonhar’ - p. 69) - assimcomo Ricardo Reis é, afinal, um ser imagináriosonhado por outro, por Fernando Pessoa. De tudoisto podemos concluir que o romance de JoséSaramago encontra os seus alicerces numatradição literária que é simultaneamente clássicae modernista, eminentemente portuguesa e ple-namente international.

A dimensão intertextual estende-se, aliás, aospróprios escritos de José Saramago, e, além disso,à vida do escritor, encarada ela mesma comotexto. O nome ‘Marcenda’ tem certa semelhançacom ‘Blimunda’, em termos morfológicos e visto oestatuto pouco usual dos dois, como nos recordao narrador: ‘este nome de Marcenda não o usammulheres, são palavras doutro mundo, doutrolugar, femininos mas de raça gerúndia, comoBlimunda, por exemplo, que é nome à espera demulher que o use’ (pp. 684-685). A personagemMarcenda sofre de uma imperfeição física, tendoum braço paralisado que a deixa efectivamentemaneta, como Baltasar; e é de Coimbra, cidadeonde se formou o padre Bartolomeu Gusmão.Lídia, empregada de hotel que lê apenas comdificuldade e escreve ainda pior, se assemelha,

vivaz e ousada, a Blimunda, filha do povoanalfabeta. Há momentos em que o narratorpausa para recordar outros elementos de ‘Memo-rial do Convento’: o convento de Mafra (p. 401), a‘passarola’ do Padre Voador (p. 670). Noutro plano,o imaginário Ricardo Reis lê o real ‘Diário deNotícias’, jornal do qual, como sabemos, o muitoreal José Saramago já foi director-adjunto; a sualeitura da imprensa, aliás, coloca o médico peran-te o facto de ter havido cheias no concelhoribatejano da Golegã (p. 368), do qual, ainda queo texto tenha esquecido de no-lo lembrar, fazparte, por acaso, certa freguesia chamadaAzinhaga...

Outra dimensão fundamental deste romancesobre a criação poética é a forma como, na suaescrita, José Saramago interroga a venerávellíngua portuguesa, empurrando-a para além dosseus limites consuetudinários. São de destacar asmúltiplas ocasiões em que o narrador joga com asconvenções que regem as palavras, pausandopara reflectir sobre elementos linguísticos como:os sentidos duplos (‘como ele muita outra gentedescia ... para assistir à passagem do ano, acasopassará mesmo, sobre as cabeças deles e nossasvoará um risco de luz’ - p. 415); a sinonímia (‘teria

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de comprar uma túlipa, um abajur, um globo, umquebra-luz, qualquer destas palavras servirá’ - p.553); a antonímia (‘houve fregueses que lhe deram,rusticamente, a vez, e por esta urbanidade pôdeRicardo Reis comer, mais depressa do que esperava’- p. 640); e até os géneros gramaticais (‘nastraseiras do prédio há quintais com ... coelheirase galinheiros, olhando-os reflectiu Ricardo Reisno enigma semântico de ter dado coelho coelheirae galinha galinheiro, cada género transitandopara o seu contrário, ou oposto’ - p. 552). Sãoinúmeros os registos do português que se repro-duzem, que se parodiam neste romance: asfórmulas da cortesia quotidiana (‘quando quiseralguma coisa é só dizer’ - p. 549; ‘quando tornara precisar da gente, patrão, estamos sempre ali’- p. 551); os lugares comuns da bisbilhotice(‘ontem veio cá uma, agora está lá outra ... mudou-se faz amanhã oito dias e já lá entraram duasmulheres ... em toda a semana ele só saía na horado almoço’ - p. 583); as perenes frases batidas dojornalismo (‘não faltam por esta cidade lugaresonde a festa continue, com luzes ... e animaçãodelirante, como os jornais não se esquecem dedizer’ - p. 417); e, num plano já mais sinistro, osclichés político-ideológicos do regime salazarista,

as frases feitas do Império, da Nação, do DestinoLusitano (‘império temos, e dos bons, com ele atécobriríamos a Europa e ainda sobraria império’ -p. 593; ‘somos penhores e fiéis continuadores dagrande gesta lusa e daqueles nossos maiores quederam novos mundos ao mundo e dilataram a fée o império’ - p. 727).

O acto de escrever, tal como se manifesta nasvozes diversas que nos dirigem Ricardo Reis,Fernando Pessoa e o narrador, afigura-se-nos,assim, como o produto de gerações de pugna comuma língua secular. Recebem um grande destaqueas dimensões linguística e literária do processocriador, ao longo de uma narrativa que nuncaabdica da postura de auto-reflexão. Ao mesmotempo, contudo, desprende-se com toda a claridadedas páginas deste livro que a escrita, para JoséSaramago, é, também e sobretudo, um modo deintervir, no mundo material da luta política. Acompasso dos acontecimentos fictícios,acumulam-se as referências à história e à políticados anos 1930: trata-se não só do Estado Novo,mas também de Hitler e Mussolini, e, acima detudo, da guerra civil espanhola, com o avanço dastropas franquistas a projectar uma sombracrescente sobre a última parte da narrativa. O

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gosto pelo espectáculo do qual sempre fez provao povo português fornece o pretexto para umasérie de descrições - panorâmicas, pormenorizadase algo formalistas - de acontecimentos públicos,no início relativamente inócuos (o ‘bodo do Século’,a passagem do ano no Rossio, uma representaçãoteatral com a presença de verdadeiros pescadoresda Nazaré, o Carnaval), mas logo de traços maisescuros (uma peregrinação, magnificamentevácua, a Fátima, a simulação de um ataque aéreo,e, finalmente, o afundamento real de três naviosrebeldes). O episódio de Fátima recorda os sinistroseventos eclesiásticos de ‘Memorial do Convento’ -a romaria, como os autos-de-fé do romance ante-rior, aparece como uma ocasião para negócios eencontros, e um pretexto para a manipulaçãoideológica; as pevides, os tremoços, as queijadas,os carapaus (pp. 639-40) que se oferecem paramatar a fome dos peregrinos parecem ser muitomais substanciais - e até mais autenticamenteportugueses - do que os objectos vazios da suadevoção, sobre os quais ... não se revela nada!:‘Não houve milagres. A imagem saiu, deu a voltae recolheu-se, os cegos ficaram cegos, os mudossem voz, os paralíticos sem movimento’ (p. 649).Ao longo da narrativa, o bom povo português éapresentado, apesar de tudo, com uma certaambivalência: as vítimas da manipulação sãotambém vítimas de si próprias. Na década de 1930vista por José Saramago, assim como na suarecriação do século XVIII, há quem, como Lídia (ouBlimunda), actue com consciência e initiativa, ehá quem acate passivamente as ordens dasociedade, ou até - como o gerente do HotelBragança, ou as boas amas de casa do prédio deRicardo Reis - obre, pelo menos indirectamente, afavor do autoritarismo político, pela suamentalidade de reles espionagem e infindávelfalatório.

Deve ficar evidente que, no quadro históricodeste romance, no qual o fascismo nacional einternacional paira como presença constante numcéu cada vez mais escuro, não se trata, da parte doautor José Saramago, de fazer a apologia dapostura ideológica de Ricardo Reis, do não alinha-mento, do alheamento neoclássico. Igualmente,não se pode tratar da validação acrítica donacionalismo messiânico do Pessoa ortónimo (‘Sou,de facto, um nacionalista místico, um sebastia-nista racional’ - carta a Casais Monteiro, op. cit.,p. 50), tal como consagrado em ‘Mensagem’, afamosa sequência de poemas históricos publicadaem 1934 na qual o poeta invoca D. Sebastião e

afirma o destino trágico-marítimo de Portugal,imaginando Afonso de Albuquerque ‘de pé, sobreos países conquistados’ e aparentando BartolomeuDias ao gigante legendário Atlas, portador doglobo (‘Atlas, mostra alto o mundo no seu ombro’)(Pessoa, ‘Message: édition bilingue’ - francês/português, com prefácio de José Augusto Seabra,Paris: José Corti/Éditions UNESCO, 1988, pp.78, 92). Longe disso, no romance de José Sarama-go os nomes de Afonso de Albuquerque e Barto-lomeu Dias servem para denominar duas dasnaus rebeldes que são afundadas pelos militaresportugueses, sugerindo, assim, uma revoltaimpossível e anacrónica.

Em ‘O Ano da Morte de Ricardo Reis’, o protago-nista é significado desde o início como moribundo,pelo próprio título, ao mesmo tempo que o FernandoPessoa ortónimo faz a sua entrada já reduzido àcondição de fantasma. No fim da história, torna-se evidente a esterilidade da posição de afasta-mento de Ricardo Reis: a sua relação com Lídiadesfaz-se, abrindo-se entre eles um abismoirremediável a par das suas divergências cada vezmais graves sobre a guerra civil espanhola (oirmão de Lídia é marinheiro e comunista). A faltade empenho que Ricardo Reis manifesta em relaçãoà Lídia parece confirmar a sua recusa de seempenhar no plano político e humanista, a suarecusa da causa do povo trabalhador. Numa alturaem que as tropas do general Franco vão enaltecendo‘o império da cruz e do rosário’ (p. 705), Lídiapergunta-se com amargura o que anda a fazer emcasa de Ricardo Reis, ‘uma criada de servir quetem um irmão revolucionário e se deita com umsenhor doutor contrário às revoluções’ (p. 706), eresolve nunca mais lá aparecer. Podemos concluirque, para José Saramago, o alheamento, classicistaou até régio, de um Ricardo Reis (não é casual ojogo de palavras latente entre ‘Reis’ e ‘reis’) é, nofim de contas, uma condição necessária, mas nãosuficiente, para a criação da arte significativa,sobretudo numa época de crise. Ao mesmo tempo,o romancista dá uma forma dramática à naturezamúltipla e volátil dessa mesma criação artística,na medida em que ele representa FernandoPessoa, poeta, dialogando com uma parte, auto-nomizada, de si mesmo; se, para voltarmos a citarDavid Mourão-Ferreira, os heterónimos pessoanossão ‘como personagens de uma peça monumental... os quais ... se articulam num diálogo ininter-rupto’ (op. cit., p. 15), torna-se patente que JoséSaramago, neste seu romance, consegue dar umnovo passo em frente, pelo acto de imaginar, em

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pormenor, o decorrer desse mesmo diálogo.Ricardo Reis, criado por Fernando Pessoa erecriado por José Saramago, fica como apenasuma das múltiplas vozes do poeta dos heterónimos- artista esse cuja obra, mesmo se as opçõespolíticas que exprime não são exactamente idên-ticas às do cidadão José Saramago, nunca podeser reduzida ao mero esteticismo panfletário.

Este romance fica, apesar de tudo, como ummonumento à admiração que José Saramagosempre tem manifestado pelo poeta FernandoPessoa, ao mesmo tempo que nos revela umescritor que se esforça titanicamente para merecer,ele também, o seu lugar no panteão da literaturaportuguesa. Podemos notar que Pessoa, na cartade 1935 que já referimos acima, até especulousobre as suas possibilidades de ganhar o máximogalardão literário (‘quando ... me for dado o PrémioNobel’ - carta a Casais Monteiro, op. cit., p. 53), eque, por outro lado, foi José Saramago quem disseà imprensa, logo a seguir ao seu próprio Nobel:‘Fernando Pessoa merecia mil prémios Nobel’(‘Público’, 10 Out). ‘O Ano da Morte de RicardoReis’, romance que não poderia ter existido semFernando Pessoa, até pode ser visto, com umpouco de fantasia, como a obra que, por umcaminho indirecto e tortuoso, assegurou, para opoeta fenecido, o seu quinhão no primeiro Nobelque veio, finalmente, iluminar o firmamento dasletras portuguesas.

Como comentário final (para já) sobre a vertenteintertextual da obra de José Saramago, podemostambém observar que os seus escritos já setornaram presença fértil na produção literária dealguns dos seus contemporâneos mais admirados,à escala internacional. A sua recriação da relaçãoPessoa-Reis terá, com toda a lógica, constituídoum antecedente textual para a obra de AntonioTabucchi, ‘I tre ultimi giorni di Fernando Pessoa:un delirio’ (1994), na qual o poeta moribundorecebe, a fio, as visitas de despedida dos seusvários heterónimos, Reis e companhia. No romancede Salman Rushdie, ‘O Último Suspiro do Mouro’(‘The Moor’s Last Sigh’, 1995), aparece uma per-sonagem indo-portuguesa luzindo o nome deBlimunda (Londres: Jonathan Cape, 1995, p.13), e foi o próprio Rushdie quem admitiu: ‘Roubei-lhe [a Saramago] a Blimunda’ (entrevista comClara Ferreira Alves, ‘Expresso’, 4 Nov 1995,secção « revista », p. 96). Também parece haverrastos da leitura de ‘Memorial do Convento’ noromance de Gabriel García Márquez, ‘Del amor yotros demonios’ (1994) - outra narração da Inqui-

sição, desta vez nas Américas, na qual émencionado um livro de Voltaire em versão latina,‘traduzido por um monge de Coimbra’ (BuenosAires: Editorial Sudamericana, 1994, p. 155),referência que lembra, indirectamente, outroeclesiástico conimbricense de cunho heterodoxo,o padre Bartolomeu de Gusmão. Parece, assim,plenamente justificada a afirmação segundo aqual será José Saramago, quem, seguindo nocaminho marcado por Fernando Pessoa, maiseficazmente tem enaltecido o perfil internacionaldas letras portuguesas no nosso século.

IV CONCLUSÕES

Ao leitor é que compete reflectir - de preferênciaa ler os romances de José Saramago, a (re)descobrira materialidade das suas palavras - sobre a validadeque poderão ter as críticas lançadas pelo autorcontra as ortodoxias da sociedade de hoje. Sejacomo for, é bem certo que este Nobel já serviu, nocontexto português e não só, para reafirmar opapel e a importância da literatura no mundo - ovalor permanente (tal como eloquentemente odefende Harold Bloom, em ‘The Western Canon’)da leitura empenhada de textos substanciais esérios. A festa nacional que surgiu em Portugallogo após o Nobel de José Saramago vale comoprova de que o reconhecimento internacional deum escritor ainda pode ser um assunto de grandeenvergadura - de que a literatura ainda podeimportar, até profundamente, ao povo de um paísde dimensão modesta, desejoso de reconquistar olugar que lhe corresponde na arena global.

É bem de esperar que as instituições lusitanasse mostrarão capazes de agir em conformidadecom os padrões muito exigentes que têm caracte-rizado a acção do mais célebre de todos osemigrantes portugueses. É de esperar, ainda, queas palavras de António Guterres (acima citadas),no sentido de que o Nobel de José Saramago éuma consagração ‘do papel que Portugal tem naconstrução do mundo moderno’, papel esse ‘emque a literatura portuguesa sempre se afirmou’,serão devidamente frutíferas e servirão parafomentar um modelo da modernidade querestituirá a esse vocábulo as suas autênticasconotações de dinamismo e sentido crítico.

Em termos gerais, pode levantar-se a hipótesede que o momento de um primeiro Nobel da

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Sobre o texto:

Este texto é a versão portuguesa (revista, actualizada e alargada) de um artigo que apareceu pela primeira vez,em língua inglesa, na Internet, nos fóruns de discussão (newsgroups) soc.culture.portuguese e rec.arts.books, emtrês partes (8 e 24 de Outubro e 23 de Dezembro de 1998). Esta versão portuguesa é da responsabilidade do autor,o qual agradece muitíssimo, neste contexto, os conselhos linguísticos do Dr Renato da Costa Correia.

Sobre as fontes utilizadas na preparação do texto:

1. Romances de José Saramago:Obras de José Saramago (3 volumes), Porto: Lello e Irmão, 19912. Artigos de imprensa referentes ao Nobel de José Saramago [todos de 1998]:Público, 9 Out, pp. 2-9, 10 Out, pp. 2-6, 11 Out, p. 34, 13 Out, p. 28, 14 Out, p. 30, 15 Out, p. 29, 22 Out, p. 30;

Diário de Notícias, 9 Out, pp. 2-11; El País (Espanha), 9 Out, pp. 42-48, 19 Out, p. 7, 11 Dez, p. 38; Libération (França),11 Out, p. 33; Der Spiegel (Alemanha), 12 Out, p. 256; The Guardian (Grã-Bretanha), 9 Out, p. 3; The Economist (Grã-Bretanha), 14 Nov, secção cultural, pp. 14-15; The Washington Post (Estados Unidos), 9 Out (referência via Internet);The Courier-Mail (Austrália), 21 Nov.

Estes artigos são referidos no texto de forma abreviada (p. ex.: ‘Público’, 9 Out), subentendendo-se que o ano dereferência é 1998. As traduções de outras línguas para o português são do autor deste artigo.

3. Bibliografia diversa:Para todas as outras obras referidas ou citadas, as referências bibliográficas encontrar-se-ão integradas no corpo

do texto. As traduções de outras línguas para o português foram efectuadas pelo autor deste artigo, mantendo-seas referências de página originais.

Literatura poderá e deverá fornecer a um paísuma excelente oportunidade de redefinir o seuconceito de modernidade. Seria o momento deromper com os esquemas empobrecidos do ‘mundomoderno’ que se baseiam numa noção simplistade « progresso » linear, para abraçar um modelode modernidade que privilegia o fluxo, a mudançamultidimensional e o espírito questionador; derejeitar qualquer modelo utilitário, tecnicista oupositivista da educação, a favor desse constantepôr em questão do qual a criação literária éparadigmática; de ultrapassar, de uma vez portodas, determinados conceitos de ‘formaçãotécnica’, orientados para a inserção em profissõesespecíficas, os quais já se tornaram de duvidosautilidade num mundo em rápida mudança tecno-lógica; e, sobretudo, de fomentar e encorajar ascapacidades críticas, a ampla e generosa imagina-ção, de que vai precisar quem quiser ser capaz dese apropriar esse mesmo processo de mudançatecnológica para o bem de todos - e para o bem

desse povo, dessa gente cuja dignidade recebe asua consagração na própria obra de José Saramago.

Trata-sE, evidentemente, de uma problemáticade natureza internacional. No entanto, o autordeste artigo, que na década de 80 teve (vejabiografia anexa) alguma experiência do sistemaeducativo português e da sua evolução ideológicana altura, julga pelo menos lícito - com o devidorespeito e sem querer preconizar qualquer intro-missão injustificada na realidade portuguesa -levantar a hipótese de que as considerações ante-riormente expostas poderiam ser levadas em contatambém no contexto português, nesta conjunturade regozijo nacional na sequência do Nobel de JoséSaramago. O futuro saberá dizer se este momentohistórico terá contribuído para que o estudocrítico da criação literária e a interrogação darealidade social possam reassumir o seu justo emerecido lugar no esquema educativo, para maiorbenefício de Portugal, da Europa, e da repúblicauniversal das Letras.

No caso de os leitores pretenderem entrar numa discussão com o autor desteartigo sobre a temática do mesmo, poderão encetar o diálogo por correio electrónico(endereço e-mail: [email protected])

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O Doutor Christopher Rollason licenciou-se emFilologia Inglesa na Universidade de Cambridge eobteve o seu doutoramento na Universidade deYork (Inglaterra), com uma tese sobre Edgar AllanPoe. De nacionalidade britânica, é actualmentefuncionário internacional e reside em França.

Entre 1978 e 1987, foi docente da Faculdade deLetras de Coimbra, no Grupo de Estudos Anglo-Americanos, onde assegurou as cadeiras de Intro-dução aos Estudos Literários, Literatura Inglesa I eIII, Literatura Norte-Americana e Inglês IV. Partici-pou em vários encontros da APEAA (AssociaçãoPortuguesa de Estudos Anglo-Americanos), e pro-feriu várias conferências públicas na Faculdade deLetras de Coimbra. Entre as suas publicaçõesdestacam-se: ‘Ideologia da Vontade, Sexualidadee Forças Produtivas em Poe e Balzac’, RevistaCrítica de Ciências Sociais (RCCS) (Coimbra), No.4/5 (Outubro 1980), pp. 215-242; ‘Bob Dylan’,RCCS, No. 13 (Fevereiro 1984), pp. 45-75; ‘AindaAcerca de Bob Dylan’, Jornal de Notícias , 2 Outu-bro 1984; ‘Nature, Culture and Education in Wor-dsworth, Byron and Shelley’, in Associação Portu-guesa de Estudos Anglo-Americanos: Actas do VEncontro, Braga: Universidade do Minho, 1984,pp. 29-54; ‘Ethno-Brigadiers [sobre o grupo portu-guês Brigada Víctor Jara]’, Folk Roots, No 165,Março 1997, pp. 28-29. Publica também regular-mente por via electrónica, na Internet, principal-mente sobre temas literários e musicais.