memorial de saramago

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Adaptado de JL/ Visão - Especial José Saramago - 19 de Junho de 2010

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Filho de gente pobre e quase analfabeta, fez-sesozinho para existir com uma ideia de si e do mundo.Tornou-se escritor, um homem de convicçõesinabaláveis, mas também de escondidas fragilidades.Aqui se traça o retrato do primeiro portuguêsa receber o Prémio Nobel da Literaturapor Filipa Melo

ada ruga na cara de um homemconta uma história. Aos 76 anos,no rosto de José Saramago, ape-nas em torno dos olhos, descaí-dos, cansados, se marcam linhasfinas com uma expressão própria.Depois, há a boca, um traçoestreito que tem de rasgar o rostoquando ri, ou que faz desaparecer

os lábios, transformando-se numa faca afiada a denunciar acomoção. Um dia a mesma boca do homem então com18 anos, serralheiro mecânico nos Hospitais

Civis de Lisboa, disse: «Aquilo que tiver de ser meu, às mãosme há-de vir ter.» E por ela o destino foi traçado.

Nem Deus nem o Diabo foram chamados para este pacto.José de Sousa Saramago nasceu a 16 de Novembro de 1922,numa casa humilde da Rua da Magoa, freguesia de Azinhagado Ribatejo, concelho da Golegã, a 32 km de Santarém, 102 deLisboa. E logo ali se desuniram os fados. Para não pagaremuma multa, os seus pais, José de Sousa, jornaleiro, e Maria daPiedade, doméstica, ambos com 24 anos, decidiram registar omenino como tendo nascido a

18. Calharam mal a sorte, o dia e o oficial do Registo Civil.Afirmaria décadas mais tarde o escritor que o funcionário daConservatória estava bêbado e por isso se enganou a escrevero seu apelido, juntando-lhe a alcunha da família: Saramago,nome de planta daninha com que por maldade era apelidada.A cópia original do dito registo mostra, porém, uma letraelegante e segura, nada própria de um bêbado. Será este oprimeiro mistério da vida do futuro Nobel.

As raízesCom a palavra «saramago», hoje pronunciada pelos quatrocantos do mundo, nasceu outra incógnita. A sua origem,árabe, parece ser também a de um dos ramos da genealogiado escritor. Ele mesmo o refere numa crónica publicada emA Capital, em 1969, lembrando as histórias fabulosas que empequeno ouvia sobre o seu bisavó materno, oriundo da Áfricado Norte, falecido na Azinhaga. Seria este «um homem alto,magríssimo e escuro, de rosto de pedra, onde um sorriso, detão raro, era uma festa». Contava-se que teria morto um ho-mem em circunstâncias obscuras, «a frio, como quem arrancauma silva». E o menino José tremia só de ouvir.

FAMÍLIA Maria da Piedade e José de Sousa, os pais do escritor, em 1920.O Mistério do Moinho, de Jefferson Farjeon, o primeiro livro de Saramago(nas fotos de cima, aos 8 e to anos) foi-lhe oferecido pela mãe, que não sabia ler

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ALUNO MEDIANO Na Escola Industrial AfonsoDomingues, onde estudou entre os u os 17 anospara serralheiro, nunca tirou mais de n a Português

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cida Quinta do Perna-de-Pau, depoisna Rua E (hoje Rua Luis Monteiro) ena Rua Carrilho Videira. No entanto,aos 8 anos, o menino já aprendera a lermuito bem, na Escola Primária da Rua

Martens Ferrão, depois na do Largo do Leão, com o professorVairinho, «um homem alticalvo, grave quanto bastava paraacentuar a respeitabilidade da sua posição de director, mas,ainda assim, nosso amigo e nada exagerado na disciplina»(A Bagagem do Viajante).

Na escrita «fazia poucos erros para a idade, só a caligrafiaera má, e assim veio a ficar sempre». Em compensação, JoséSaramago devorava as páginas do Diário de Notícias. Poucomais havia em casa para ler: um guia de conversação de Portu-

Recuemos portanto com ele até ao tempo da infância. TinhaSaramago z anos quando o pai José de Sousa decide migrar daAzinhaga para Lisboa e para um emprego numa esquadra daPolícia de Segurança Pública, onde chegaria a subchefe. Em De-zembro desse mesmo ano,1924, morre-lhe o filho mais velho,Francisco, com 4 anos e dois meses, vítima de uma broncop-neumonia. O choque desta morte afectará para sempre aquelelar. Do seu único irmão, Saramago nada mais virá a saber. A mãeapenas lhe diz, «em ocasiões que [ele] achava mal escolhidas,que o Chico tinha as faces coradíssimas, ao contrário [das dele],que sempre puxaram para o pálido»(Cadernos de Lanzarote,

Diário IV).A família Sousa vive então uma vida1.4 1 77.141

AFONSO dura, em quartos alugados, águas-DomiNGUES

-furtadas ou partes de casa, na área do

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«A raiz para muitos dos meuscomportamentos de adulto estána impossibilidade de, em criança,chegar à minha família»

guês-Francês assinado por Moliére; e um livro grande, «comhistórias de chorar», A Toutinegra do Moinho, de Émile deRichebourg, encadernado de azul e religiosamente guardadopela mãe numa gaveta da cómoda, embrulhado em papel deseda e cheiro de naftalina.

Ao contrário do seu marido, Maria da Piedade nunca soubeler. Quase no final da sua vida, a única neta, Violante, ensiná--la-ia a assinar o nome. Mas foi ela, com um inusitado espíritovisionário, quem comprou o primeiro livro que, aos 13 anos,o filho teve como seu: O Mistério do Moinho, de J. JeffersonFarjeon. Apontou-o o futuro escritor no escaparate de umapapelaria, deliciado com o presente que ia levar para as fériasgrandes, sempre passadas na Azinhaga. Aí, entre a mudançada palha das pocilgas, os passeios entre os troncos torcidosdas oliveiras ou «o desnocar da nuca dos coelhos com umapancada seca do cutelo da mão», Saramago teve o seu primei-

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O PRIMEIRO CASAMENTO Em 1944, casa com Ilda Reis, de quem viria a teruma filha, Violante. Na foto ao lado, pai e filha passeando juntos na Azinhaga,1953

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ro contacto com o mundo da literatura.Sentado num quarto do Hotel Altis, em Lisboa, Saramago

afirmaria à VISÃO, em 1998: «Nunca tive ambições na vida!».Desde o anúncio da atribuição do Prémio Nobel, a 8 de Ou-

tubro desse ano, o escritor não teve um minuto de sossego. Derepente, o mundo virou os olhos para este sujeito alto, seco.

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«Nunca tive ambições na vida!», repete.Vem em seu socorro o que, em Fevereiro de 1995, no terceiro

volume dos Cadernos de Lanzarote, espécie de inventário doquotidiano que iniciou em 1993, escreveu: «A mim estas coisasassombram-me, quase me deixam sem palavras (...). O rapazitoque andou descalço pelos campos da Azinhaga, o adolescentede fato-macaco que montou e tornou a montar motores deautomóveis, o homem que durante anos calculou pensões dereforma e subsídios de doença, e que mais adiante ajudou a fa-zer livros, e depois se pôs a escrever alguns - esse homem, esseadolescente e esse rapazito acabam de ser nomeados doutorhonoris causa pela Universidade de Manchester.»

Seria esta uma distinção entre as muitas que viria a receber.O Presidente Jorge Sampaio entregou-lhe a 3 de Dezembro oGrande Colar da Ordem Militar de Santiago da Espada, a maisalta condecoração portuguesa, até agora reservada a chefes deEstado. Mas o homem que a recebeu é o mesmo que assegura:«Não quero, recuso-me a romantizar as coisas.» Então comoentender o romantismo com que fala, por exemplo, dos seusantepassados?

Qualquer afirmação que se faça sobre José Saramago, ho-mem fértil em subtis contradições, é uma armadilha. Sabem-nobem os seus amigos, poucos, que movem com pinças as pala-vras com que o referem. O escritor e jornalista Baptista-Bastosconheceu-o no início de 1965, num restaurante do Bairro Alto,

e recorda-o como «um tipo bem posto, com um ar gravíssi-mo, profundamente triste e sonhador. Por mais que o negue,ele é um animal místico, a braços com a transcendência de sipróprio.» Baptista-Bastos fala de uma ferida oculta e nuncacicatrizada, carregada por Saramago até à morte, essa etapaque, a este ateu confesso, parece não inspirar qualquer temor.Descreve-o como «um homem de amor, extremamente hábil einteligente, alguém coerente e congruente com o quadro morale ideológico que lhe serve de couraça«. No livro que Bastossobre Baptista-Bastos escreveu (José Saramago, Aproximação aUm Retrato, Dom Quixote), o autor de Memorial do Convento

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VIOLANTE SARAMAC O Zangas com o pai por questões políticas

Um pai diferenteA palavra «pai», Violante Matos, sempre associou outra:«livros». Aos oito anos, sabia que a secretária de José Sa-ramago era um santuário onde só ele podia mexer. Aos 13,este homem «sisudo, introvertido, mas também afectuoso»já a ensinara a nadar e a ler poemas, e impressionava-acom a linguagem cuidada e a paixão pelo saber. «Sentia queaspirava a ser mais do que um mero funcionário da Caixade Previdência», explica. Tal como ele, nesta época, lidaReis, a mãe, «uma mulher doce, de uma profunda sensi-bilidade» (falecida em 1997), inicia-se numa outra formade realização pessoal: a pintura. Criança quase anormal-

mente bem comportada, Violante poucotrabalho dá ao casal. De tal modo que hojesó se lembra de, aos sete anos, «lhes terroubado 20 paus da carteira». A tropeliafoi rematada com a única palmada querecebeu do pai, «a quem ela também deveter doído muito».Entretanto, Violante cresce e começaa mostrar sinais de rebeldia. Na alturado divórcio dos pais, em 1970, é já umaacérrima militante do MRPP, um partidomaoísta-estalinista, ferozmente anti-PCP,

a que chamavam «social-fascista», que era então dirigidopor Arnaldo Matos, irmão do seu futuro marido, Danilo. «Porrazões políticas, início então um longo período de afasta-mento em relação ao meu pai», conta.Hoje, reatados os laços, descreve-o como «um homemmuito disciplinado e organizado, com uma grande forçade vontade, coerente e apaixonado pelas suas estruturaisconvicções». Defeitos? «Às vezes é um bocado casmurro,teimoso, demasiado arreigado às suas ideias.» Tambémaos olhos da filha, Saramago é detentor de sentimentoscontraditórios. Por exemplo: «O que nele existe de vaidade eorgulho tem que ver com a sua timidez, que, em momentosde irritação, se manifesta pela gaguez. Ele é um homemextremamente tímido, que se refugia numa certa pose altivapara enfrentar determinadas situações.»No entanto, é do pai que Violante parece ter recebidotanto a figura seca e esguia, como uma inusitada coragem.Em 1973, durante os três meses em que esteve presa emCaxias, acompanhada pela sua primeira filha, Ana, JoséSaramago visita-a e diz-lhe: «Minha filha, tens de ir buscarforças nem que seja ao dedo grande do pé.»

deixará dito: «Sou incapaz de mostrar uma alegria profunda.Algo me impede de dar-me em espectáculo a mim próprio.»

til dut loDe onde lhe L111 esta tão rígida concepcão de si próprio e domundo? «A raiz para muitos dos meus comportamentos deadulto está na impossibilidade de, em criança, chegar à minhafamília», responde.

À descrição do modo como, então, a mãe lhe negava afecto,junta o retrato dos avós maternos, Josefa e Jerónimo, e da sualuta sem tréguas pela vida. Dos avós paternos, o guarda de

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PERFIL

POLÍTICO Numa manifestação da Associação Portuguesa de Escritores em 1974,. logo a seguir à Revolução, e no primeiro L° de Maio.No ano seguinte,1975, ajudaria na preparação da festa do Avante! (página do lado)

herdades João de Sousa e a doméstica Carolina da Conceição,nascidos, respectivamente, em 1869 e 1871, pouco desvenda.Mas, por várias vezes, nos seus livros, Saramago emolduracom uma aura romântica os feitos daquele «avô guardador deporcos, de cujos pais nada se sabia, posto na roda da Miseri-córdia, homem toda a vida secreto, de mínimas falas, tambémdelgado e alto como uma vara» (A Bagagem do Viajante).

Filho das ervas ou «filho oculto de uma duquesa», o analfa-beto Jerónimo, de cajado na mão, capote enlameado e imensasabedoria, é uma referência fundamental na sua vida. Comele enrolado numa manta lobeira, debaixo de uma figueira daAzinhaga e numa noite morna de Verão, o menino José apren-derá os segredos das estrelas. Com a sua mulher, Josefa, «amais bela rapariga do seu tempo», Jerónimo fará sete filhos,dormirá na mesma cama com os bácoros, viverá «uma vidadifícil, de desconforto, de ignorância». No final, deixa ao netocomo herança a marca indelével da luta pela subsistência e dacrueza do destino dos pobres, aquilo a que Baptista-Bastosvirá a chamar «uma moral proletária do trabalho».

Serralheiro, revoltadoViolante Matos, a única filha do escritor, bióloga, que quandoSaramago recebeu o Nobel era deputada do Partido Socialistana Assembleia Regional da Madeira, defende: «Tudo o queele conseguiu na vida nasceu da necessidade interior de, emdado momento, fazer uma coisa e deixá-la bem feita. Nãopara chegar a algum sítio mas para cumprir os seus própriosobjectivos. Ele mesmo acrescenta que é difícil entender estasua «pouco normal ausência de ambição», este ir vivendo cadadia como uma luta só, transposta para o futuro apenas pelaconvicção de que «tudo chega quando tem de chegar».

O dever do trabalho, a disciplina férrea com que sempre oenfrentou, remontam ao período entre 1934 e 1939, quandoaprendia o ofício de serralheiro mecânico na antiga EscolaIndustrial Afonso Domingues, em Xabregas, para onde setransferira, por falta de recursos económicos, do Liceu GilVicente. Explica, no terceiro volume dos Cadernos de Lanza-rote: «Nessa altura, compreendi que quando produzimos umapeça de um mecanismo, ela tem que entrar em harmonia comas outras peças, tem que funcionar, tem que ser bem feita.»Nas oficinas, «iluminadas por altos janelões que davam para arua da Madre de Deus», José obedecia às ordens dos mestresVicentino, Teixeirinha e Gião. Com tanto esmero o fazia que,no seu caderno de aluno mediano, ficará a brilhar um 15 a Ser-ralharia e outro a Francês. Este contradiz as suas notas a Por-tuguês, que não ultrapassam o ii, mas deixa adivinhar o seudesempenho, entre 1955 e 1981, como tradutor de 48 livros.

José Saramago faz-se, entretanto, um homem. Logo aos 16anos, quando termina o curso técnico, começa a ganhar o seusustento, como serralheiro mecânico, nas oficinas dos Hospi-tais Civis de Lisboa. Mais tarde, relata a Zeferino Coelho, seuamigo e director da Caminho (desde 198o, editora de todos osseus livros), a indignação que sentiu num dia em que estava acomer da marmita com os outros trabalhadores. Passou porele o seu chefe, acompanhado de alguém a quem mostrava asoficinas e as máquinas, mas nem por um segundo os visitantesdetiveram o olhar sobre os trabalhadores, postos «em sentido».Saramago é o único que permanece sentado. Comenta Zefe-rino: «Julgo que a sua rebeldia nasceu ali, na percepção da suacondição de operário. É por isso que, em jeito de brincadeira,ele me disse que tinha inventado 'o comunismo hormonal'».

Mas José não é um operário qualquer. «Calado, metido consi-

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go, (...) tem poucos livros em casa porque o ordenado é pequeno,mas leu na Biblioteca Municipal das Galveias tudo quanto a suacompreensão logrou alcançar.» (Aviso introdutório à reediçãode Terra do Pecado, em 1997). Nestas páginas, que devora em ho-rário nocturno, descobre os autores para sempre seus favoritos:Gogol, Kafka, Cervantes, Montaigne. Padre António Vieira e RaulBrandão. O gosto pelas palavras torna-se de tal modo evidenteque, em Outubro de 1942, a administração dos Hospitais Civis deLisboa o transfere, como auxiliar de escrita, para uma das Repar-tições, à razão de nove escudos por dia. Então. «é tão cumpridor epontual que à hora de começar o serviço já está sentado à peque-na mesa em que trabalha ao lado da prensa das cópias.»

Viver, apagaiQuando, em 1943 um ano antes de rescindir o contrato comos Hospitais Civis, Saramago começa a trabalhar na Caixa deAbono de Família do Pessoal da indústria de Cerâmica, IldaReis já entrara na sua vida. Também com zo anos, esta moçamorena e bonita, natural de Lisboa, era datilógrafa na sededos Caminhos de Ferro de Portugal. Por estranha coincidên-cia, enamorara-se de um José que, em pequeno, sonhava vir aser maquinista de comboios, depois aviador militar, por fimescrevinhador. O casamento dá-se em 1944 e dura 26 anos,mas sobre ele o escritor nada deixará dito.

O mesmo acontece com todas as outras paixões da sua

'1 ARIANA A M Saramago viveu em casa dela,nos tempos da reforma agrária e da UCP do Lavre

Levantados do chão«0 que mais há na terra é paisagem.» Com esta frasese inicia o romance que, publicado em 1980, serviu dedetonador do reconhecimento de José Saramago comoum grande escritor. A paisagem que ali se refere não é umaqualquer. Em 1976, já determinado a fazer dos livros a suavida, Saramago deita os olhos pelo País, à procura de umsítio onde possa ir buscar dados para um livro que traz «há50 anos no ventre», sobre «o trabalho da terra nas raízes, otrabalho da lavra e da ceifa, o esforço e a dor do esforço, olabor pesado e a paga pobre» (Ler Saramago: O Romance,Beatriz Berrini, Caminho, 1998). Encontra-o na alentejanaUnidade Colectiva de Produção Boa Esperança, na vila doLavre, perto de Montemor-o-Novo. Durante alguns meses,instala-se pois nesta terra onde a Reforma Agrária conheceos seus dias mais intensos, e cuja cooperativa, nascida em1975, tem cerca de 400 homens e mulheres a labutar nos6 600 hectares de dez herdades ocupadas.

António Joaquim Pinto, um dos 26 trabalhadores queainda mantêm vivos os actuais 2 200 hectares exploradospela Unidade, já lá andava por essa altura. Hoje, recorda:«Havia muita gente que vinha cá ver o que aqui se passava.Entre ela, apareceu o José Saramago, que se apresentou àspessoas e disse que queria escrever um livro sobre o povodo Lavre. Ainda não era conhecido como escritor e tinhadificuldades económicas, mas como os trabalhadores daReforma Agrária sempre foram muito acolhedores, a coope-rativa decidiu que havia de suportar todas as despesas delee instalá-lo por cá.» Dito e feito. Saramago aloja-se numadependência da Unidade e passa a tomar as refeições nacasa de Mariana Amália, João Bazuga e dos seus sete filhos.Mariana, hoje viúva, 76 anos, conta o resto. «Ele passava amanhã a andar pelos campos e, à hora de almoço, apareciacansado, cheio de pó. À tarde, ia à sede do PCP, em Monte-mor, e, ao serão, punha aqui na mesa o gravador e escutavao que dizíamos da fome, dos ricos não darem terreno paracultivar, das histórias da terra. Era um senhor como é hoje:simples, delicado, respeitador, sempre contente.» Do resul-tado final, Mariana não sabe bem, porque não leu Levantadodo Chão. Mas podemos dizer-lhe nós que os olhos azuis dosMau-Tempo, as personagens principais, parecem mesmotirados da cara de António Joaquim.

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vida: excepção feita para a última, com a jornalista espanho-la Pilar del Rio, celebrada em casamento, em 1988. Da rela-ção que, durante 20 anos, até 1986, mantém com a escritoraIsabel da Nóbrega - que, em 1964, tem 39 anos, e já ganharao Prémio Camilo Castelo Branco com o romance Viver comos Outros -, José Saramago apaga todas as referências. Nasreedições dos livros publicados até 1984, desaparecem assimas dedicatórias: «Não se dirá aqui o nome. Mas da sua exalta-ção nasceu este poema, do seu riso esta autobiografia, da suaverdade esta meditação» (Deste Mundo e do Outro, 1971);«À Isabel, sempre» (Levantado do Chão, 1980); «À Isabel,porque nada perde ou repete, porque tudo cria e renova»(Memorial do Convento, 1982); ou «À Isabel, outro livro,o mesmo sinal» (O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984).Esclarece José Augusto França, 76 anos, amigo do escritor:«A Isabel, filha das chamadas boas famílias, empurrou-opara um meio social que não era o dele. Acreditou nelee incentivou-o a explorar o imenso talento que já antespossuía.» Zeferino Coelho remata: «Acho que tiveram umarelação de intensa paixão que, com o convívio do dia-a-dia,se foi degradando.»

Os anos do silêncioVoltemos, entretanto, a meados da década de 4o. Como«seguimento de leituras mal arrumadas e mal organizadas»,Saramago escreveu o seu primeiro romance, A Viúva. Ahistória tem jeitos de fatalista enredo camiliano, envolve umaviúva ribatejana, a sua paixão pelo cunhado e a chantagem quesobre os dois é feita por uma criada, Benedita, figura gémea daJuliana de Primo Basílio, de Eça de Queirós.

Em 1947, o manuscrito é enviado pelo candidato a escritor,«com notável atrevimento, sem padrinhos, sem empenhos,sem recomendações» (Aviso à reedição), para a editora Par-ceria António Maria Pereira. Por inexplicáveis razões, poucotempo depois reaparece nas mãos de Manuel Rodrigues, daEditorial Minerva, que lhe altera o título para Terra do Peca-do, convence Saramago a prescindir dos direitos de autor e odá à estampa ainda nesse ano.

Colhendo duas ou três razoáveis críticas, o volume depres-sa cai no esquecimento. Será rejeitado pelo próprio escritor,que o retira da sua bibliografia, até 1997, quando José Carlosde Vasconcelos o recupera no Jornal de Letras, assinalando osseus so anos de escritor, e ele se decide assumi-lo.

Aos 26 anos, com um livro publicado, uma filha que acaboude nascer e a quem «medievalmente» dá o nome de Violante,e umas quantas árvores plantadas na Azinhaga, a José «poucomais resta para fazer na vida». Mas não, não baixa os braços,e produz mais um original, Clarabóia. O romance, dirá ele,em 1997, ao ensaísta e director da Biblioteca Nacional, CarlosReis, «é a história de um prédio com seis inquilinos nossucessivamente envolvidos no enredo» (Diálogos com JoséSaramago, Caminho). Na época, o amigo e pintor FigueiredoSobral encarrega-se de o enviar para a Empresa Nacional dePublicidade. Mas só em 199o, quando procede à reorgani-zação dos seus arquivos, a editora dá sinal do manuscrito ao

«Se tivesse morrido aos 63 anos,antes de conhecer Pilar, morreriamuito mais velho do que sereiquando chegar a minha hora»

escritor. «Eu próprio me havia esquecido dele durante todosestes anos; sempre tive consciência de que não se perdeugrande coisa em não ter sido publicado», clarifica Saramago.

«Uma das grandes incógnitas da biografia do José», diz-nosum dos seus amigos mais próximos, José Manuel Mendes,presidente da Associação Portuguesa de Escritores, «é o factode, durante 19 anos entre a criação de Clarabóia e a ediçãode Os Poemas Possíveis, em 1966, ele não ter escrito nada.»Habituado a desmistificar todas as questões que lhe dizemrespeito, Saramago é rápido na explicação: «Durante todoesse tempo, eu não estava decepcionado com a recepção deTerra do Pecado, não pensava acumular experiência para es-crever mais tarde.. Simplesmente, achava que não tinha nadapara dizer».

Para mais, a vida corria rápida e difícil. Em 1949, comoconsequência do seu apoio à campanha eleitoral de Norton deMatos, o candidato da oposição à Presidência da República,Saramago é afastado da Caixa de Abono da Indústria de Ce-râmica. Mas, graças a um antigo professor da Escola AfonsoDomingues, consegue emprego na Caixa de Previdência doPessoal da Companhia Indústrias Metálicas Previdente, onde,até 1959, calculará subsídios e pensões.

Na manhã de 25 de Abril de 1974, a Revolução encontra «umhomem com meia dúzia de livros publicados mas que nãotinham importância por aí além». É o próprio quem o afirma,referindo-se aos títulos de poesia Os Poemas Possíveis (1966)e Provavelmente Alegria (197o), e aos registos das suas cróni-cas e textos de opinião publicados na Seara Nova, nos jornaisA Capital e Jornal do Fundão (A Bagagem do Viajante,1973) eDiário de Lisboa (As Opiniões Que o DL Teve, 1974).

Por insistente sugestão de Isabel da Nóbrega, Saramago é

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PILAR, MEU AMOR Por ela, nos finais de 1986, Saramago percorria, de camioneta, os sinuosos caminhos de Lisboa a Sevilha

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então convidado para, no Fundo de Apoio aos OrganismosJuvenis (FAOJ), dependente do Ministério da Educação,coordenar uma equipa de dinamização cultural que integra aprópria Isabel (Literatura), Mário Barradas (Teatro), Rui Má-rio Gonçalves (Artes Plásticas), Vasco Granja (Cinema) e JoséRibeiro da Fonte (Música). O escritor ganhava oito contospor mês, e Correia Pinto, então diretor-geral do organismo,salienta que «era extremamente organizado e eficiente».Ainda em 1974, Saramago passará a ser também assessor doMinistério da Comunicação Social.

Desde 1955, o seu nome é conhecido nos meios intelectuais.Empregado na Editorial Estúdios Cor, a convite de NatanielCosta, durante 16 anos assume a direcção literária destachancela. Como lembra o desenhador gráfico Luís Correia,52 anos, filho de um dos sócios da casa (Manuel Correia, jáfalecido), «Saramago ganha mal, mas faz a revisão de todos oslivros, contacta os autores, é incansável».

No meio destas andanças, vai sendo convidado para tra-duzir livros e escrever crónicas, «nas quais já se nota o pesode uma mão feliz» (Baptista-Bastos), por vezes de pendorautobiográfico e, na medida do possível, político.

Empenhado na luta contra o regime, em 1969 é convidado,pelo seu amigo Augusto Costa Dias, director da importan-te Portugália Editora, para entrar no Partido ComunistaPortuguês. O escritor Urbano Tavares Rodrigues, 75 anos,

encontra-o depois, na célula intelectual, e descreve: «Bastan-te exigente e muito crítico, ele era um militante exemplar,muito empenhado, capaz de uma entrega que ultrapassavatodas as outras.»

Abandonado pelo PCPNo seu percurso como comunista, sempre fiel à ideologiamarxista, Saramago não abdicará de manifestar as suas di-vergências. Assim, em 1988, assina o «documento da TerceiraVia», defensor de uma maior abertura interna. Algumas vezeschega a confrontar-se com Álvaro Cunhal. Antes, na sequên-cia do 25 de Novembro de 1975, quando é afastado do cargode director-adjunto do Diário de Notícias (ver artigo sobreas olémicas de Saramago), fica desempregado e não encontraqualquer tipo de apoio por parte do PCP, que aparentementeo deixa cair por ter sido demasiado radical ou extremista. So-fre um rude golpe. A ele alude no quinto volume de Cadernosde Lanzarote: «O pior de tudo (...) foi aquele dia em que medefrontei com uma fria, gratuita e desapiedada indiferen-ça, vinda precisamente de quem tinha o dever absoluto deoferecer-me a mão estendida. Sendo, porém, os casos e acasosda vida férteis em contradições, sabe-se lá se a minha vida deescritor não terá começado justamente nessa hora?»

Na verdade, é em 1976, quando todas as portas se lhefecham, que nasce um novo Saramago, o escritor. Abando-

24 .n. I VISÃO • ESPECIAL JOSÉ SARAMAGO • 19 DE JUNHO DE 2010

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CADERNOS DE SARAMAGO O livrinho de capa preta

com as notas para Memorial do Convento

na todas as outras profissões, excepto a de tradutor, quemantém, durante alguns anos, na Moraes Editores, dirigidapor Nelson de Matos. Após a publicação de mais dois livrosde prosa, O Ano de 1993 (Editorial Futura, 1975) e ObjectoQuase (Moraes, 1977), e de um «ensaio de romance» (Manu-

al de Pintura e Caligrafia, Moraes, 1978), lança-se por fim naescrita de ficção. Levantado do Chão (1980, Prémio Interna-cional Ennio Flaiano e Cidade de Lisboa) marca o primeiropasso do que depois de se institui como «o estilo Saramago».Em 1979, Manuel Dias Carvalho, do Círculo de Leitores,convida-o para elaborar um roteiro de Portugal, que eletransformará no registo livre de «histórias de um viajante».O livro, Viagem a Portugal, muito bem pago pela editora,é um êxito e permite-lhe, enfim, dedicar-se em exclusivo àescrita. A singularidade da sua prosa marcará o resto

da sua vida.

Por fim, felizNo final do almoço, José Saramago entretém-se a colocar,com carinho, pedaços de fruta nas bocas de Pepe, Camões eGreta, os cães da moradia a que chamou A Casa. Em 1998, tem75 anos e deixou Portugal há cinco, na sequência do veto dosubsecretário de Estado da Cultura da época à candidaturade O Evangelho Segundo Jesus Cristo ao Prémio LiterárioEuropeu. A «terra sua», por via de Pilar, é agora Lanzarote,

uma ilha das Canárias há séculos povoada por berbéres doNorte de África, quem sabe se por lá andou aquele misteriosobisavô materno...

Das raízes plantadas pela terra e pelas gentes da Azinhaga

na alma do escritor, subsiste tudo: tronco, ramos, folhas e fru-tos. No quintal, foram, em 1994, plantados dois marmeleiroscom nome de gente, Victor Erice e Antonio López. Na mesado pequeno-almoço surge muitas vezes um pão cozido emforno de lenha, suculento, barrado com azeite e açúcar. Nasmontanhas vulcânicas que cercam A Casa, desenha-se o rastodas passadas largas do escritor, andarilho infatigável desdeque se sustém nas pernas.

Mas, agora, outra árvore nasceu na vida do escritor. Chama--se, já vimos, Pilar del Rio e, por ela, nos fins-de-semana definais de 1986, Saramago percorria, de camioneta, os sinuo-sos caminhos de Lisboa a Sevilha. «Se tivesse morrido aos 63anos, antes de a conhecer, morreria muito mais velho do queserei quando chegar a minha hora», escreveu. A filha, Violan-te, acrescenta que Pilar o tornou «mais acessível, mais aberto,mais capaz de derramar os sentimentos e de abandonar a suahabitual atitude de defesa».

Um mês após o anúncio da atribuição do Prémio Nobel,José Saramago comemora 76 anos de vida. Para a festa, sãoconvocadas todas as personagem que o tornaram célebre noglobo inteiro. Blimunda, a do Memorial do Convento, quetambém viria a ser título de ópera num dos mais famososteatros líricos do mundo, vê-lhe a alma através do corpo. E lêalto uma frase, escrita em 1966: «Que quem se cala quanto mecalei, não poderá morrer sem dizer tudo» (Poemas Possíveis).Quanta razão tinha a avó Josefa: mais cedo ou mais tarde, averdade acaba sempre por vir ao de cima. •

Perfil originalmente publicado na VISÃO de io de Dezembro de 1998

19 DE JUNHO DE 2010 • ESPECIAL JOSÉ SARAMAGO • JL I VISÃO 25