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LITERATURA E ENSINO: UMA ANÁLISE DO TRABALHO COM LITERATURA NO ENSINO FUNDAMENTAL LITERATURE AND TEACHING: AN ANALYSIS OF LITERATURE TUI- TION IN ELEMENTARY SCHOOLS Michael Jhonatan Sousa Santos 1 1 Discente do 4º ano do Curso de Graduação em Letras-Literatura/Instituto de Linguagens/ Universidade Federal de Mato Grosso. Membro do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – Subprojeto da Licenciatura plena em Língua Portuguesa (campus Cuiabá) e do Grupo de Pesquisa Lugares de arte: linguagens, memórias, fronteiras, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem-UFMT.

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LITERATURA E ENSINO: UMA ANÁLISE DO TRABALHO COM LITERATURA NO

ENSINO FUNDAMENTAL

LITERATURE AND TEACHING: AN ANALYSIS OF LITERATURE TUI-

TION IN ELEMENTARY SCHOOLS

Michael Jhonatan Sousa Santos1

1 Discente do 4º ano do Curso de Graduação em Letras-Literatura/Instituto de Linguagens/ Universidade Federal de Mato Grosso. Membro do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – Subprojeto da Licenciatura plena em Língua Portuguesa (campus Cuiabá) e do Grupo de Pesquisa Lugares de arte: linguagens, memórias, fronteiras, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem-UFMT.

Neste trabalho, analisamos uma prática de ensi-no de Literatura no ensino fundamental de uma

escola da periferia de Cuiabá-MT. Objetivamos, assim, identificar a con-cepção de Literatura subjacente a ela e refletir sobre sua eficácia no que tange à formação do aluno como leitor. Além da observação das aulas e do ambiente escolar, pesquisas bibliográficas conjugadas às discussões reali-zadas no âmbito da disciplina “Estágio Supervisionado I: Literatura”, ofe-recida no Curso de Letras/Literatura da Universidade Federal de Mato Grosso, possibilitaram o desenvolvimento das reflexões aqui apresentadas. Os resultados indicam a desvalorização da Literatura como obra de arte; logo, um ensino redutor do fenômeno literário.

In this paper we analyze a teaching prac-tice of Literature in an elementary school

in the outskirts of Cuiabá, MT. Our goal is to identify the underlying con-cept of Literature and reflect on its efficacy regarding students´ formation as literary readers. These reflections are based on field observations at the school and its classrooms, on a literature review and on discussions from the course "Supervised Teacher Training: Literature", offered by Curso de Letras/Literatura, at UFMT. The results suggest that Literature was not valued as art in these classes, which shows a reductive approach to Litera-ture.

RESUMO

Palavras–chave: Literatura no ensino fundamental. Literatura e formação de leitor.

Keywords: Literature at elementary schools. Literature and fostering rea-ding.

ABSTRACT

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho é fruto da reflexão a respeito de fatos vivenciados em decorrência de um

estágio de observação desenvolvido no âmbito da disciplina “Estágio Supervisionado I: Literatura”,

parte integrante do curso de graduação em Letras-Literatura oferecido pela Universidade Federal de

Mato Grosso.

Nesse sentido, os fatos aqui relatados transcorreram em uma escola situada num bairro peri-

férico do município de Cuiabá-MT, entre os meses de maio e junho/2012, período em que observa-

mos a dinâmica de ensino de Literatura, no contexto da disciplina “Língua Portuguesa”, em uma

sala de aula de 9º ano do Ensino Fundamental. Além disso, ampliamos nosso campo de observação

ao ambiente escolar como um todo, de modo a perceber como a instituição promovia o contato dos

alunos com obras literárias.

Entre outros objetivos, essa atividade seria um contato inicial, do ponto de vista de acadêmi-

cos, futuros docentes, com a prática e metodologia de aulas relativas à área de Literatura. Nesse

contexto, pretendíamos observar o trabalho executado no âmbito de sala de aula, buscando verificar

em que medida constitui um estímulo à leitura e, portanto, à formação de leitores; era nosso objeti-

vo observar, também, se havia articulação extracurricular entre os professores da escola no sentido

de oportunizar momentos de aperfeiçoamento das habilidades de leitura dos alunos, tais como feiras

de livros, projetos de leitura etc. Como reflexão de base, procuramos constatar se as atividades eram

fundamentadas em uma concepção que valoriza a literatura como obra de arte, tanto no que tange às

formas pelas quais ela se mostra quanto em relação à multiplicidade de sentidos que uma única obra

pode sustentar.

Além da observação e do trabalho de tentarmos compreender os fatos por meio dela verifi-

cados à luz das teorias estudadas na graduação, o que em si constitui um nível de análise dos even-

tos observados, buscamos, sobretudo, partir disso para a reflexão de nossa futura prática docente.

Assim, o estágio de observação nos permitiu ampliar a compreensão que tínhamos ‘do que é

ensinar Literatura’ no nível fundamental. Por diversas vezes, durante a observação e até mesmo en-

quanto a relatávamos por meio de texto, refletimos sobre as maneiras pelas quais o professor con-

tornou dificuldades, de variada natureza, desde ambientais até interpessoais, no momento da expla-

nação dos conteúdos e aplicação das atividades deles decorrentes.

A oportunidade de estar em contato com as dificuldades inerentes ao processo de ensino, tais

como a falta de interesse por parte do aluno, a estrutura física da escola – que em alguns aspectos é

ineficiente – a existência de problemas familiares que desestabilizam emocionalmente os alunos,

além de outras que não lhe dizem respeito diretamente, como a violência e a criminalidade que se

aproximam da escola, permitiu-nos pensar de modo mais concreto nas variantes que interferem nos

processos de ensino e de aprendizagem. Submeter tais vivências a um olhar teórico constitui um

modo de nos prepararmos para os obstáculos que se colocarem entre nós e nossos objetivos relati-

vos ao ensino de Literatura no futuro.

Dessa forma, no momento em que observávamos uma das aulas, além de refletir sobre a fi-

nalidade de estarmos ali, pensávamos sobre o aprendizado que adquiriríamos com a experiência de

observação e sobre como ela poderia possibilitar algum amadurecimento para que, em momentos

desafiadores, pudéssemos encontrar alternativas coerentes. Juntamente a isso, vinha-nos à memória

um diálogo travado minutos antes do início da aula com a professora responsável pela turma que

fazíamos nosso estágio.

Ela nos dizia o quanto era complicado exigir competências mínimas da maioria dos alunos

em atividades relativas à leitura devido a falhas de formação, em termos de conteúdos, que eles tra-

ziam de etapas anteriores do ensino. Segundo a docente, trabalhar com leitura era um verdadeiro

desafio.

Foi-nos possível confirmar a legitimidade dessa informação porque, na ocasião do estágio, a

professora de Didática solicitou a todos os estagiários que aplicassem uma avaliação diagnóstica

nas respectivas turmas observadas. Para tal, tomamos por base os Parâmetros Curriculares Nacio-

nais de Língua Portuguesa (BRASIL, 199) e, assim, através da aplicação do teste, verificamos a di-

mensão do desafio a que a professora se referiu. Mais de 90% dos alunos daquele 9º ano demonstra-

ram competências de leitura inferiores às assinaladas pelos Parâmetros.

Quando a professora usou a palavra “desafio”, naquele momento de interação, pareceu-nos

que ela se entristecia diante da realidade que não conseguira superar. Em outras palavras, a dificul-

dade que os alunos tinham no que se referia à leitura persistia, apesar das estratégias de ensino ado-

tadas pela docente.

Assim, tivemos a percepção de como é possível, frente a um obstáculo que não conseguimos

superar, ficarmos paralisados ou o evitarmos. Isto é, tais momentos ou nos põem em fuga ou em

imobilidade, criando um estado de angústia por meio do qual somos levados a criar representações.

É um meio de nos identificarmos, de lidarmos com o real, com os objetos e fatos que nos amedron-

taram, desequilibraram-nos, modificaram nosso ambiente (CYRULNIK, 1997). São as representa-

ções, bem como os sentimentos que fecundaram o momento de sua fixação (BOSI, 1977), que de-

terminam o modo como lidaremos com os acontecimentos-pessoas. O “encontro desencadeia ima-

gens” e é com base nelas que agimos.

Todos passam por situações de desequilíbrio, que podem ser consequência de vários fatores,

como um fato que nos surpreende. A sensação decorrente dessas situações nem sempre é agradável

de ser vivida. Sentimo-nos, em alguns casos, de início, impotentes diante da realidade, por isso fi-

camos com medo. Dele passamos ao momento da angústia; é o imperativo humano de lidar com o

objeto por meio da representação que possibilita a transição do medo, sensação de ameaça iminente,

à angústia: “o homem e o animal conhecem o medo que leva ao acto. E o homem conhece a angús-

tia que obriga à cultura” (CYRULNIK, 1997, p. 101). É só depois de tentarmos reconhecer a reali-

dade, através de representações, que a estabelecemos como permanente. Realizados esses proces-

sos, o sujeito assume uma postura frente a ela, ou a evita, permanecendo imóvel, ou age sobre a si-

tuação, no sentido da mudança.

Havia marca de angústia na voz e na palavra “desafio”. Imaginamo-nos naquela situação,

assumindo o lugar da professora. Apropriamo-nos daquele contexto e o projetamos em nosso futuro

através da imaginação, e, graças a isso, pudemos, na segurança e conforto proporcionados por essa

instância da realidade, pensar em posturas que assumiríamos diante de situações semelhantes, e em

hipóteses para solucionar contextos problemáticos relacionados a elas.

Embora tenhamos nos apossado daquela situação pela imaginação, o simples ato de refletir-

mos sobre um possível comportamento futuro em função de uma situação, quando nesse processo

se considera um leque extenso de consequências, dá-nos maior segurança emocional para lidar com

fatos que possam ocorrer. Isso é possível porque o próprio da imagem é fixar o tempo, o que permi-

te, parece-nos, lidar melhor com as emoções.

A atividade de estágio nos permitiu essa experiência. Por um lado, o momento da observa-

ção proporcionou o exercício da empatia. E, por outro, o distanciamento necessário à reflexão sobre

os processos de ensino desenvolvidos pela professora, dado pelo próprio universo imaginativo, que

nos serviu para refletir sobre o futuro.

Embora o mote do presente trabalho sejam os elementos relativos às práticas de ensino de

Literatura, não nos abstemos de discorrer sobre outras questões, uma vez que compreendemos que

os processos de aprendizagem extrapolam os limites da explanação de conteúdos. Nesse sentido,

compreendemos que a organização do tempo e do espaço pode se estabelecer de modo educativo.

Além disso, sabemos que a maneira como se constitui a interação entre os componentes de um gru-

po pode tanto favorecer quanto prejudicar a aprendizagem dos sujeitos envolvidos nesse contexto

social. Dessa forma, estabelecemos, tanto quanto nos foi possível, aproximações entre a Literatura e

a organização do tempo, do espaço e da interação social estabelecidos na sala de aula e na escola.

A partir disso é que, internamente, dividimos o presente trabalho em seis partes: ‘Introdu-

ção’, ‘Organização do espaço’, ‘Organização do tempo’, ‘Interação’, ‘Ensino de Literatura’ e ‘Con-

siderações finais’.

A primeira delas cumpriu a função de descrever o que pretendíamos alcançar através da ati-

vidade de estágio. A segunda, terceira e quarta partes apresentam observações e reflexões sobre suas

respectivas temáticas, bem como relações delas com o ensino da Literatura.

A quinta, por sua vez, refere-se às atividades diretamente ligadas à Literatura e desenvolvi-

das durante as aulas. Nela, incluem-se considerações sobre conteúdos, modos de abordagem, avali-

ação. Na sexta parte, são feitas considerações finais e o esboço de uma metodologia de ensino dire-

cionada à disciplina de Literatura.

Por fim, antes que sigamos adiante, afirmamos que este trabalho se fundamentou na obser-

vação e no diálogo que mantivemos com a professora responsável pela turma, bem como na refle-

xão teórica sobre os fatos.

1. ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO

A escola da qual principiamos a tratar situa-se ao norte do município de Cuiabá, capital de

Mato Grosso. Ela foi construída em um terreno ao lado do qual passa um córrego canalizado que

recebe o esgoto daquela região. Nessa mesma lateral da escola, acumulam-se lixo doméstico e resí-

duos decorrentes de construções e reformas de moradias; os restos são ali depositados por morado-

res da própria comunidade.

Isso, em nossa opinião, torna aquela região insalubre. Condiz com esse ponto de vista o fato

de que, em 2011, um morador da vizinhança da escola morreu vítima de dengue. Assim, embora o

mau cheiro não tenha alcançado a escola no período em que a observação foi feita, o esgoto e a po-

luição são quase inevitáveis em alguns dos principais trajetos utilizados pelos alunos para chegar à

escola. Por causa disso, eles são obrigados a fazer um percurso muito maior.

Isso pode não ser visto como um grande problema e, talvez, não se constitua, de fato, como

tal, para os alunos e para a direção da escola. Apesar disso, o espaço, conforme o descrevemos, é,

por um lado, uma evidência material do descaso do poder público com aquela região, visto que não

longe desse local encontra-se também uma creche. E, por outro, é a marca de uma educação falha,

de um sistema educacional que não logrou sucesso no sentido de humanizar os sujeitos que por ele

passaram.

No início do ano de 2012, conforme indicações constantes no letreiro de prestação de contas

do Estado, fixado em placa na frente da escola, o prédio começou a passar por uma reestruturação.

Por esse motivo, também se amontoavam entulhos de construção civil em frente ao acesso principal

daquela instituição. Tais montes chegavam, como pudemos perceber, a uma média de dois metros

de altura. Algumas vezes vimos crianças ‘brincarem’ de escalar montanhas de lixo no fim da tarde.

As descrições acima possibilitam uma abstração do cenário no qual a escola se insere. Um

espaço de tal maneira constituído não é atrativo, o que diminui as possibilidades de a pessoa, inde-

pendentemente da idade, constituir vínculos sociais de afeto com ele. Isto é, torna-se improvável

que alguém goste do espaço escolar, uma vez que ele não é agradável. Essa constatação tem várias

implicações nos processos de aprendizagem, principalmente se considerarmos que temos maior fa-

cilidade para aprender aquilo de que gostamos2, e, por extensão, em um local do qual gostamos.

Se, por um lado, tal espaço não se constitui como facilitador da aprendizagem, por outro,

poder-se-ia dizer que ele acentua contornos de possíveis complexos de inferioridade e de abandono.

Ou, nas palavras do etólogo Boris Cyrulnik (1997, p. 92):

O indivíduo é um objecto ao mesmo tempo indivisível e poroso, suficientemente estável para ser o mesmo quando o biótipo varia e suficientemente poroso para se deixar penetrar,

a ponto de se tornar ele mesmo um bocado do meio ambiente.

Apesar disso, o contraste entre o entorno da escola e o entusiasmo com que os alunos se di-

rigiam a ela era visível. O que pode indicar uma compreensão, por parte deles, da situação momen-

tânea do estabelecimento de ensino, em relação à sua restauração. Todavia, pode ser sinal de uma

2 Segundo estudos realizados por Antonio R. Damasio (Universidade de Iowa), a região do lobo frontal chamada de ventromeridiana concentraria tanto funções de raciocínio para tomada de decisão quanto as emoções e sentimentos li-gados às relações sociais e pessoais. Nessa região ocorreria, então, um cruzamento entre razão e emoção (SILVA, 2003, p. 101).

completa alienação no sentido de que eles não percebem a gravidade da situação à qual estão ex-

postos. Agem alegremente diante dela porque não são capazes de compreender os motivos dos quais

ela decorre; de certo modo, pode-se dizer que não compreendem o que significa estar onde estão.

Pensamos que seja, apesar do período de reformas, responsabilidade da escola e da emprei-

teira que prestava o serviço de revitalização do espaço escolar zelar para que não se acumulasse lixo

nas calçadas.

Penetrando, pela primeira vez, os portões da escola, tudo nos pareceu planejado e coerente

com o objetivo de um espaço educacional, ou seja, o ambiente externo contrastou fortemente com o

interno. A exceção eram as cozinhas, que funcionavam em contêineres posicionados à direita da

quadra de esportes, em razão da reforma pela qual a escola passava.

Havia no pátio poucos espaços nos quais não se podia permanecer, visto que é bem arbori-

zado e à sombra das árvores são dispostas mesas e bancos de concreto, configurando-se em exce-

lente local para socialização.

Ao entrar no prédio, observamos que as paredes eram extremamente limpas, de cor única,

branca, e que os banheiros possuíam sanitário destinado aos portadores de deficiências físicas, os

quais, assim como os outros, estavam em excelente estado. Além disso, todas as salas de aula eram

equipadas com unidades de climatização de ar, porém, ainda não em funcionando, em decorrência

de o sistema elétrico da escola não haver sido ajustado para suportá-las. Toda essa infraestrutura nos

pareceu deslumbrante, pois destoava acentuadamente das escolas públicas que frequentamos.

Entre os objetivos de uma escola está a transmissão aos alunos do conhecimento científico e

cultural construído pela humanidade e, nesse sentido, sua infraestrutura deve estar em consonância

com o trabalho pedagógico a ser realizado em função desse objetivo. Entretanto, apesar da estrutura

interna descrita, verificamos que não havia uma confluência de esforços entre aquilo que era feito

em termos de organização do espaço escolar e aquilo que era feito em função do objetivo de ensi-

nar. O ambiente não era informativo; por exemplo, não havia nos corredores cartazes de divulgação

de eventos culturais gratuitos, tais como oficinas de arte e literatura. Também não eram divulgadas

informações de outra natureza, não havia murais com textos de revistas ou jornais em que se tratas-

se de questões, como política, economia ou esporte.

Havia apenas um pôster de cerca de um metro de altura que veiculava informações sobre um

projeto denominado “Caça ao tesouro na escola”. Tal projeto era uma iniciativa dos professores de

Geografia.

O espaço da sala de aula que visitamos, por sua vez, não oportunizava o contato dos alunos

com textos que não estivessem no livro didático. Isto é, nele não estavam dispostos jornais, revistas

e nem mesmo livros. Fazemos essa observação porque, em escolas que visitamos anteriormente, as

salas de aula eram equipadas com um pequeno acervo de textos, os quais, na sua maioria, eram tra-

zidos pelos próprios alunos.

Além disso, não havia biblioteca na escola. Nesse sentido, quanto aos espaços de estudo e

leitura, a escola não favorece o desenvolvimento e a autonomia dos alunos.

2. ORGANIZAÇÃO DO TEMPO

A disciplina se distribuía em quatro aulas ao longo da semana, com duração era de cinquenta

minutos cada. A partir do que observamos, as aulas pareciam não funcionar com um planejamento

sistemático. A exceção se dava no início de cada uma, quando sempre era feita uma oração, o “Pai

Nosso”.

Para além disso, as atividades não foram distribuídas de modo claro e organizado ao longo

do tempo disponível para as aulas. Assim, os conteúdos das aulas assistidas durante a observação

não dialogavam entre si, tanto porque a professora não seguia o livro didático de modo sequencial,

quanto porque a organização que se estabeleceu para a exposição dos conteúdos não focalizava de-

tidamente questões teóricas ou temáticas. Tudo isso repercutia na organização das aulas, uma vez

que os alunos tinham muita dificuldade para executar as atividades que a professora solicitava, no

tempo indicado.

Cabe destacar, quanto à organização do tempo de ensino, que era feito atendimento indivi-

dualizado em momento posterior ao da aula. Tais atendimentos visavam, especialmente, aqueles

alunos que apresentavam dificuldade de assimilação da matéria ou mesmo aqueles indisciplinados.

A professora reservava de vinte a trinta minutos para realizar esse trabalho após a aula de sexta-fei-

ra, que era a última do período.

Não foi possível afirmar se havia uma divisão do tempo embasada em sequências didáticas

ou atividades permanentes. Apesar disso, pudemos verificar que todas as aulas começavam com a

leitura de um texto, alguns de teor literário, outros não. A principal fonte utilizada era o livro didáti-

co. Uma exceção foi a atividade desenvolvida com o Hino Nacional. Neste, a professora explorou

questões formais, como rimas e figuras de linguagem, dando, também, enfoque a alguns aspectos

sociais.

Embora tenhamos visto diversos trabalhos com a leitura, não houve um momento da aula

em que os alunos devessem produzir texto ou praticar exercícios de interpretação, tanto no que se

refere à transposição dos sentidos apresentados por eles, no decorrer das aulas, para a escrita, quan-

to em sua tradução para outras linguagens, tais como a do corpo.

3. INTERAÇÃO Entre os alunos e a professora se estabelecia uma relação que se pautou sobre o desrespeito

da parte daqueles em relação a ela. Enquanto ela explicava determinado assunto ou esclarecia, de

modo particular, a dúvida de algum aluno, os demais conversavam em voz alta e brincavam entre si.

Ainda que se possa argumentar que a indisciplina é uma das características da pré-adoles-

cência, o que ocorria naquela sala de aula era inaceitável. O comportamento dos alunos, somado a

outros fatores prejudiciais ao ensino e à aprendizagem, tais como o calor excessivo e o barulho, tor-

navam praticamente inviável qualquer prática educacional. Assim, pode-se falar até mesmo de uma

descaracterização da escola, no que diz respeito à sala de aula em questão, enquanto lugar de ensino

e de aprendizado.

A falta de respeito também era visível quando a professora solicitava uma atividade e a mai-

oria dos alunos não a desenvolvia. Eles, deliberadamente, resolviam que a atividade não seria feita.

Em uma dessas ocasiões, a professora perguntou o que eles gostariam de fazer. A resposta foi um

“nada” que por poucas exceções não foi unânime.

Esse pode ser considerado o aspecto básico da interação entre professor e alunos que ocorria

naquela sala de aula, isto é, o aspecto a partir do qual os demais graus de interação se estabeleciam,

a interação considerada em seu nível físico, implicando a proximidade entre os seus sujeitos e o

ambiente imediato (SOBRAL, 2009).

A partir disso, uma hipótese que começa a se delinear, no nível da interação, para explicar a

dificuldade dos alunos em relação às atividades de leitura, é a de que o sentido pretendido pelo pro-

fessor, ao constituir um enunciado solicitando algo, não é realizado pelos alunos, pois, já em um

nível básico de interação se estabelecem diálogos com “entonações avaliativas”, que implicam des-

respeito, tanto do docente quanto da própria instituição escolar.

A “entonação avaliativa”, expressão cunhada no âmbito do Círculo de Bakhtin (SOBRAL,

2009), refere-se ao fato de que todo sujeito diz ou faz algo a partir de uma dada posição social, a

qual, por sua vez, decorre não apenas das relações que ele mantém com outros sujeitos nos ambien-

tes concretos de sua interação, bem como dos elementos culturais que os compõem. Assim, por uma

série de questões sociais, os alunos se punham frente à professora de um modo que inviabilizava a

produção dos sentidos por ela intencionados.

Entre essas questões sociais, destaca-se uma que nos pareceu ser efetivamente a mantenedo-

ra do estado de interação de que tratamos. Referimo-nos ao fato de que, durante a observação (pode

ser que isso tenha sido feito antes ou depois), os alunos não eram lembrados de que, mais cedo ou

mais tarde, seriam responsabilizados pela maneira como agiam. Isto é, não houve um esforço no

sentido de levá-los a refletir acerca das consequências de seus procedimentos e do seu lugar social.

Ainda assim, um aluno, brincando, disse que seria o “dono da boca de fumo” de sua rua.

Desse modo, no contexto concreto de interação daquela sala de aula, observamos que os

sentidos produzidos pelos alunos, decorrentes de suas interações, divergiam dos objetivados pela

escola, no que diz respeito à formação do cidadão e ao ensino dos conteúdos.

Em tal parâmetro, a leitura, um tipo abstrato de interação, para que se dê modo efetivo, exi-

ge do sujeito ampla capacidade de mobilizar conhecimentos linguísticos, históricos, sociais, bem

como a capacidade de estabelecer relações entre esses elementos (SOBRAL, 2009). Contudo, se

lidando com informações concretas os alunos não constituíam sentidos que lhes permitiam compre-

ender e desempenhar, no âmbito de sala de aula, a função de estudantes, então, pode-se supor, será

muito mais difícil para eles acionar e relacionar conhecimentos abstratos no processo de leitura re-

flexiva. Graças a isso, os sentidos intencionados no momento da produção dos textos, possivelmen-

te, não serão desenvolvidos pelos alunos, visto necessitarem da elaboração interacional de conteú-

dos abstratos.

Deve ficar claro, contudo, que, ao apresentarmos esse contexto interacional, não estamos

afirmando que ele era homogêneo, que os alunos se portavam todos do mesmo modo. Mas, sim, que

os aspectos da interação sobre os quais discorremos eram os que se mostravam de modo mais evi-

dente e predominante, bem como os que mais influíam na dinâmica da turma. Nesse sentido, desta-

camos que, dentre os vinte e quatro alunos daquela sala de aula, apenas três alunos apresentavam

comportamento que destoava dos demais. Além de se mostrarem concentrados na maior parte do

tempo, exercício hercúleo dadas as condições ambientais – calor e barulho de construção –, e in-

teracionais – balburdia de seus pares –, sempre tiravam dúvidas com a professora ao final das aulas.

Quanto a isso, ela disse que esses alunos tinham interesse de ingressar no Instituto Federal de Mato

Grosso e por isso estavam estudando mais.

De um modo geral, pelo que observamos, pode-se considerar que os alunos daquela turma se

dividiam em três grupos. A formação desses grupos não parecia ocorrer de maneira aleatória, por-

que havia entre seus componentes características comuns que os distinguiam dos outros alunos,

bem como eles se dispunham no espaço da sala de aula de modo distinto.

Assim, havia um grupo dos “inteligentes”, o qual aglutinava, além dos três alunos referidos

anteriormente, mais dois. Esses cinco alunos se sentavam próximos à professora. Cabe ressaltar

que, apesar de não participarem ativamente das brincadeiras promovidas pelos grupos responsáveis

pelo contexto interacional que dissemos predominante, riam, e, de certo modo, aprovavam o com-

portamento de seus colegas.

Um segundo grupo se sentava mais distante da professora e se constituía da maioria dos alu-

nos. Seus componentes conversavam durante a maior parte da aula, e só silenciavam, pelo que pu-

demos observar, durante o exercício de copiar atividades do livro didático no caderno. Cabe desta-

car que, em momento algum, ouvimos a professora mencionar explicitamente a necessidade de tal

procedimento. Ao solicitar as atividades, ela dizia aos alunos que fizessem “os exercícios no cader-

no”. Assim, ao observar o registro de atividades de alguns alunos, pudemos verificar uma corres-

pondência entre o momento de cópia e o silêncio que faziam.

Duas características nos permitiram diferenciar esse grupo do terceiro. A primeira é que seus

componentes permaneciam sentados em seus respectivos lugares durante a maior parte da aula. A

segunda diz respeito ao fato de que bastava que a professora proferisse seus nomes em voz alta para

que eles parassem de conversar momentaneamente. Os componentes do terceiro agrupamento, ao

invés, transitavam pela sala durante a aula e discutiam com a professora quando eram repreendidos

por ela. Assim, ela precisava argumentar com eles e, então, dizia que chamaria seus pais ou a coor-

denação da escola.

Destacamos ainda que os assuntos mais tratados pelo maior grupo de alunos, nas conversas

que corriam paralelamente à aula, referiam-se a jogos eletrônicos, aos jogos de futebol do Campeo-

nato Brasileiro, a especulações sobre relacionamentos com interesse sexual; figuravam, nesse senti-

do, inclusive, acontecimentos desdobrados em ambientes virtuais. Importa-nos destacar tais assun-

tos porque, assim, verificamos que os alunos não conversavam sobre algo relativo ao seu aprendi-

zado na escola, por exemplo, sobre os textos lidos. Isso implica dizer que, se os sujeitos se constitu-

em como tal na interação que mantêm uns com outros (SOBRAL, 2009), então, a possibilidade,

considerando apenas a situação interacional observada, de que os alunos se constituam como leito-

res e apreciadores da arte literária é mínima.

Diante disso, os conteúdos de Literatura poderiam assumir um papel fundamental nos pro-

cessos de ensino, visto que criariam uma possibilidade de modificação dos dois modos de interação

já destacados. Conforme Antônio Candido (1995), a Literatura humaniza os sujeitos; confirma no

homem traços socialmente considerados essenciais, isto é, torna-o disposto ao exercício da reflexão,

ao bom relacionamento com o outro, refina sua capacidade de se emocionar, sua percepção da bele-

za e da complexidade, dota-o de maior capacidade de penetração nos problemas da vida. Supomos

que isso possibilitaria, com o tempo, a mudança da entonação avaliativa dos alunos frente à profes-

sora e aos discursos que ela proferia.

Por outro lado, um processo de leitura que parte de uma concepção de Literatura que enfati-

za o caráter artístico do texto literário coloca o leitor em uma condição de maior liberdade quanto à

interpretação e aos sentidos diversos que o texto pode sustentar. Além de ser plurissignificativo, o

texto literário carrega uma característica que amplia ainda mais o seu alcance no que diz respeito a

um público leitor. No texto literário, a complexidade de temáticas universais é organizada, traduz-se

o disforme e o inexpresso dos grandes problemas da vida humana em palavras organizadas, eviden-

ciando sentidos que permaneciam obscuros, para o leitor, na realidade (CANDIDO, 1995).

Caberia ao professor, dessa forma, e de início, promover o amplo acesso do aluno à Literatu-

ra que lhe estivesse restrita, ou seja, promover a interação do aluno com texto literário. Tal processo

de trabalho permitiria tanto o desenvolvimento da habilidade de leitura dos alunos, quanto incidiria,

positivamente, no contexto interacional básico descrito no início deste tópico. Cabe ressaltar que

compreendemos literatura nos termos de Antonio Candido (1995), que considera o seguinte:

Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético,

ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura,

desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da

produção escrita das grandes civilizações. (p. 194)

Assim, quando afirmamos que o professor é o promotor da interação do aluno com o texto

literário, deve ficar claro que nos referimos, sobretudo, àqueles textos aos quais, por questões histó-

ricas, políticas e sociais, o aluno não teve acesso. Trata-se de um trabalho de garantir a circulação

dos bens culturais (CANDIDO, 1995).

Destacamos por fim, que, durante a observação das aulas, um momento de leitura destoou,

quanto à interação, do contexto acima apresentado. Nele, pude perceber que a professora estimulou

a reflexão e a participação dos alunos na aula e eles corresponderam por meio da discussão que es-

tabeleceram após a leitura da canção “Cio da Terra”, de Milton Nascimento e Chico Buarque.

Assim, alguns alunos, quando indagados em relação ao texto lido, participaram da aula ma-

nifestando suas opiniões relativas a fatos sociais, políticos e históricos. Embora a maior parte das

ideias expostas redundasse em senso comum e obviedades, estabeleceu-se um debate decorrente da

exposição das opiniões contrárias, o que enriqueceu a aula.

Embora tenha ocorrido apenas uma vez, considerando o contexto até agora descrito, essa

participação deve ser vista como uma vitória. Nesse momento, a professora atuou como mediadora

das opiniões de alguns alunos; ela o fazia sem deixar de apresentar outros pontos de vista, que con-

tribuíram para o crescimento daquela conversa produtiva.

Interessou-nos destacar esse momento de interação porque o motivo da discussão que se es-

tabeleceu entre os alunos pode ser considerado como literário, na medida em que compreendemos

literatura nos termos apresentados por Candido, no fragmento acima. Isto é, a partir de uma consi-

deração a respeito de música, possibilitada pelo texto, os alunos começaram a questionar e a criticar

gostos musicais que se estabeleciam entre eles. Nesse sentido, criticaram o teor semântico de gêne-

ros musicais, bem como o fato de a letra das canções ser uma sucessão de repetições.

Consideramos esse momento de interação importante, também e principalmente, porque ele pode

permitir a elaboração de estratégias de ensino que, naquele contexto, suscitariam uma participação

efetiva dos alunos nas aulas.

4. RELATO E CONSIDERAÇÕES SOBRE O ENSINO DE

LITERATURA

Dentre as horas de observação exigidas pelo estágio, a metade delas foram dedicadas pela

professora regente ao trabalho com questões relacionadas à Literatura, o que nos deixou bastante

satisfeitos. Isso porque, apesar das dificuldades que os alunos tinham em relação à leitura, das cons-

tatações relativas à formação do leitor destacadas na análise do espaço da escola e na análise da in-

teração entre professor e alunos, trabalhar com o texto literário implicava assumir uma postura no

sentido da resolução de tais dificuldades. Isso implica dizer, também, que a professora permanecia

animada frente ao ‘desafio’ citado na introdução deste trabalho. Tal constatação nos permitiu, inclu-

sive, inferir que, por exemplo, mesmo depois de mais de doze anos de carreira ela assumia seu pa-

pel com profissionalismo, com ética.

No entanto, ressaltamos desde já que, embora a professora tenha voltado seu trabalho à prá-

tica de leitura do texto literário, tal ação não foi orientada com base em uma concepção que valori-

zasse a literatura como expressão artística, o que ficou bastante visível.

As aulas que se referiam à Literatura pautavam-se na exposição de conceitos de modo total-

mente abstraído dos textos, assim, o foco da aula recaia sobre a teoria literária e não sobre o texto

literário em si. O exercício básico era o da identificação das figuras de pensamento, de sintaxe e

sonoridade dos poemas, seguindo estritamente perguntas trazidas pelo livro didático. Isso, no con-

texto interacional daquela turma, tinha o mesmo significado que qualquer outro trabalho de mera

identificação.

De um modo geral, percebemos que a professora tentava aplicar o mesmo modelo de ensino

praticado na disciplina de Língua Portuguesa ao estudo do texto literário. Isto é, um ensino com

base lançada na fragmentação do texto e na classificação de suas partes, tal como se faz, tradicio-

nalmente, em sintaxe do período. Assim, não explorava o valor significativo do texto, as múltiplas

possibilidades de interpretação que eles sustentavam linguisticamente.

Embora fosse feita a leitura do texto literário, essa prática pedagógica, como a temos descri-

to, colocava-o num segundo plano em todas as aulas. Penso que isso não constitui demérito em re-

lação ao profissionalismo e a ética da professora, uma vez que, do ponto de vista dela, esse tipo de

atividade, por si, forma o leitor competente.

Se tal prática pedagógica não implica demérito em relação às qualidades ressaltadas, con-

forme observamos, ela denuncia, certamente, uma formação defasada e, em alguma medida, a au-

sência de hábito de leitura.

Apoiamos-nos, para tal afirmação, em Lemos Monteiro (1991) quando discute, partindo das

proposições de M. Lefebve (1975), a finalidade de se identificar as figuras de linguagem no texto.

Para esse autor, indicar a existência de qualquer figura, seja de pensamento, de sintaxe, ou mesmo

de som, no interior de um texto só é trabalho válido caso seja possível estabelecer as relações entre

esses elementos e o próprio sentido do texto. Assim, tal trabalho deve ser feito de modo que se pos-

sa demonstrar que a figura, no fluxo do poema, cumpre a função de apreender um aspecto da coisa

evocada da realidade pelo próprio discurso poético.

Apenas o reconhecimento e a memorização das figuras não implica o ensino de Literatura,

visto que em si esse trabalho não constitui sentido, sobretudo, no que respeita a poesia. Sobre esse

método de abordagem do texto poético, Octavio Paz (1982, p. 17, 18) afirma:

Classificar não é entender. E menos ainda compreender. Como todas as classificações, as

nomenclaturas são instrumentos de trabalho. No entanto, são instrumentos que se tornam

inúteis quando queremos empregá-los para tarefas mais sutis que a simples ordenação ex-

terna.

Em outros termos, podemos pensar que as atividades de reconhecimento e classificação de

figuras não cumprem uma função de ensino. Sem dúvida, tais procedimentos fazem parte dele, mas

o conhecimento de tais conceitos, em si mesmo, não torna o aluno mais competente como leitor,

menos ainda como leitor de texto literário, visto que “o método estilístico pode ser aplicado tanto a

Mallarmé como a uma porção de versos de almanaque” (PAZ, 1982, p.18).

Aplicando esses pontos de vista ao contexto que nos coube observar, pode-se dizer que era

necessário levar os alunos à compreensão dos efeitos de sentido provocados pelas figuras, mesmo

que para isso fosse necessário reduzir a quantidade de conceitos que deviam ser estudados. Traba-

lhar dessa maneira é desenvolver um processo de demonstração em que se apresentam, tanto quanto

possível, em termos estruturais e conceituais, as potencialidades expressivas das figuras em função

da polissemia da literatura.

É preciso demonstrar a existência de uma relação entre o sentido que se atribui ao texto e a

estrutura por meio da qual ele se apresenta, bem como é preciso explorar – discutir e refletir, junta-

mente com os alunos – o efeito que essa convergência, ou contraste, buscou causar.

O fato de o texto poético ser composto de palavra poética – ser ambivalente, que é, plena-

mente, ritmo, cor, significado e imagem (PAZ, 1982, p. 26), sem deixar, com isso, de ser palavra

(BOSI, 1977), não implica a aceitação de qualquer sentido ou ausência dele, contrariamente a isso,

amplia as possibilidades de discussão do sentido e de seus efeitos, bem como exige que possam ser

verificados em função da natureza da palavra posta.

As considerações acima se ligam diretamente a um dos objetivos delineados para o estágio,

visto que compreender se a prática pedagógica e metodológica de ensino enfatizava o valor da lite-

ratura como obra de arte era um ponto a ser observado.

Nesse sentido, reiterando, entre os objetivos que se esperava alcançar por meio do estágio

estava o de observar e refletir sobre a postura do professor acerca dos conteúdos da área de Literatu-

ra. As considerações acima propostas também cumprem esse objetivo, visto que, através da prática

de ensino descrita, é possível inferir uma postura ou que reduz o fenômeno literário ou que lhe é

indiferente.

Sobretudo, porque é bastante improvável que um professor de Literatura com experiência,

gosto pela leitura, desenvolva uma prática pedagógica redutora das qualidades artísticas do texto, na

medida em que ele mesmo sofre os efeitos dessa arte em seu comportamento e seus modos de orga-

nizar o mundo (CANDIDO, 1995).

Uma hipótese que explicaria o modo como se estrutura a prática de ensino de Literatura

acima exposta diz respeito ao uso inadequado do livro didático. Todavia, ainda esta aponta para

uma ausência de hábito de leitura por parte da professora porque, conforme observamos, ela não

apenas utilizava, exclusivamente, os textos propostos no livro didático, como também se valia uni-

camente das questões ali solicitadas. E, mesmo assim, elas eram subaproveitadas.

Exemplificamos isso com uma breve explanação a respeito da segunda aula observada. Após

cumprir os ritos comuns de chegada em sala de aula, a professora solicitou aos alunos que abrissem

o livro didático, intitulado Projeto radix: Português 9.º ano, de autoria de Ernani Terra (2009) e

Floriana Toscano Cavallete (2009). E, sob a égide do seguinte enunciado, foi iniciada a aula: “Leia

o seguinte poema:” (TERRA, CAVALLETE, 2009, p. 182). Procedeu-se a leitura, em voz alta, do

poema “Anímico”, de Adélia Prado. Depois disso, foi solicitado a um aluno que comentasse o texto,

os demais riram.

Pensamos que o efeito cômico decorreu do fato de o aluno, ao qual foi solicitada a leitura,

estar conversando no momento em que a professora se dirigiu a ele, de modo que o pedido feito por

ela soou aos demais como uma punição pela conversação.

Com isso, a atividade de leitura cessou. Nem mesmo o título do poema, que se constitui de

uma palavra cujo significado é desconhecido para a maioria das pessoas e que é extremamente su-

gestivo em relação ao conteúdo do texto, fora trabalhado. A questão seguinte solicitava aos alunos

que escrevessem em seus cadernos três figuras de linguagem utilizadas pela poeta.

Antes que os alunos iniciassem a atividade, a professora começou a perguntar a eles o que

eram as figuras de linguagem. Algumas vezes ela direcionava o questionamento a um único aluno.

Eles, por seu turno, mantinham-se calados ou emitindo murmúrios inconclusivos.

Ao fim da aula, foi feita a leitura das três estrofes iniciais do poema “O padre Henrique e o

dragão da maldade”, de Patativa do Assaré, também constante no referido livro didático. Em segui-

da, a professora solicitou aos alunos que realizassem as atividades relativas àquele poema em suas

casas.

As duas atividades, do modo como foram desenvolvidas, comprovam a hipótese levantada

em relação à postura da professora no que diz respeito ao trabalho com Literatura.

A segunda atividade descrita respalda a hipótese apresentada porque, por exemplo, o título

do poema de Patativa evidencia uma aventura, fato que, possivelmente, despertaria a curiosidade de

um leitor de textos literário.

Quanto à primeira atividade de leitura, constitui-se como prova sólida, na medida em que

não se pode trabalhar um texto literário, com alunos não leitores desse tipo de texto, sem que se va-

lorizem suas qualidades artísticas, ou seja, sem que se valorize sua beleza, manifesta em forma e

conteúdo poético. Penso que um leitor que apreciasse, sinceramente, a Literatura, comunicaria, in-

clusive inconscientemente, por meio de gesto e movimentos corporais, essa valorização do texto.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Seguindo a proposta deste trabalho, considerando o que já temos apresentado, resta-nos,

agora, estabelecer uma proposta metodológica de trabalho com a Literatura que, de alguma manei-

ra, explore tanto as potencialidades de formação humana possibilitadas na disciplina, quanto se pau-

te por uma concepção que a valorize como obra de arte.

Nesse sentido, se a professora selecionasse textos literários que se relacionassem de modo

mais imediato com a vida cotidiana dos alunos, e elaborasse questões para discutir as temáticas ne-

les propostas, a aula seria mais dinâmica e os alunos teriam maiores condições de acionar seus co-

nhecimentos de mundo no momento da leitura. Isso desenvolveria neles a sensação de afinidade

com o texto literário; o que, possivelmente, faria com que se sentissem mais livres e confiantes para

manifestar suas opiniões e fazer suas próprias leituras. Sobretudo, pensamos que isso lhes daria a

dimensão do quanto são importantes para o desenvolvimento da aula, até porque o professor pode-

ria argumentar que procede à seleção de textos pensando neles.

Essa prática de ensino não excluiria o livro didático, mas ele deixaria de figurar como prota-

gonista das aulas, o que daria espaço a outros textos e livros. O que é central nessa proposta de tra-

balho não é a seleção dos textos, mas sim um processo de análise e de reflexão profunda sobre to-

dos aqueles que fossem levados à sala de aula. Processo esse que deve permitir e solicitar a partici-

pação efetiva dos alunos no momento das discussões, as quais poderiam partir do estudo de sua es-

trutura e organização literárias para a percepção de como tais elementos expressam de modo dife-

renciado e criativo as emoções e conflitos humanos.

Além de isso ser positivo para os alunos, o ato de selecionar os textos literários a serem tra-

balhados, mesmo isso não seja central, tornaria o momento da aula muito mais agradável para o

professor. Isso porque, na medida em que ele for capaz de selecionar textos que lhe agradem como

leitor, ficará mais satisfeito ao apresentá-los aos alunos. Tal satisfação, evidentemente, transparece-

ria em sua postura corporal, em seu olhar e seus gestos; o que, por um processo natural de imitação

recíproca entre corpos, levaria os alunos a se colocarem de igual maneira frente a ele (GAIARSA,

2000).

Nesse sentido, estabelecer-se-ia um trabalho de estímulo à leitura aos menos em dois níveis.

O primeiro pode ser visto de modo objetivo. Proceder à leitura de textos literários que tencionem o

cotidiano da contemporaneidade e desvendem suas contradições sob o prisma da arte, humanizaria

os alunos no sentido proposto por Antonio Candido (1995), anteriormente apresentado.

Tais textos, além de sensibilizar os alunos, revelando-lhes sentidos e relações que eles não

são capazes de perceber-atribuir à realidade, isto é, além de organizar a visão que eles têm do mun-

do, primeiro nível de humanização promovido pela Literatura (CANDIDO, 1995), serviriam como

‘iscas’ para cativá-los.

Cumpririam, também, a função de fazê-los expressar a sua condição de sujeitos, na medida

em que tais temas possibilitariam, de início, o diálogo e, portanto, eles seriam capazes de atribuir

sentido aos textos (responder ao mundo) e de comporem, assim, suas identidades (SOBRAL, 2009).

Acreditamos que, se tais diálogos também ocorrerem na interação com o texto literário, há muito

mais chances de se formar um leitor que aprecie e valorize a Literatura.

No segundo nível, e de modo menos objetivo, pode-se dizer que o ato de o professor seleci-

onar os textos literários em função de seus critérios, tanto emocionais como racionais, reveste-o de

uma imagem diferente da do professor que não adota esse procedimento. Decorre disso não apenas

a maior satisfação pessoal do professor frente ao texto que lê e interpreta juntamente com seus alu-

nos, mas, também, uma postura corporal que comunicaria esse sentimento. Isso significa muito,

porque a postura corporal é um tipo de comunicação mais veloz que a palavra, visto que é por ima-

gem, portanto, simultâneo, além disso, ela implica, também, um processo de aprendizagem por as-

similação da imagem do outro (GAIARSA, 2000). Isto é, aprendemos ao passo que vemos a postura

corporal de outras pessoas porque as imitamos.

José Ângelo Gaiarsa (2000) explica esse processo através da experiência da estimulação ale-

atória do encéfalo. Segundo ele dois terços dos estímulos que o cérebro recebe se manifestam em

forma de olhar. Quanto ao encéfalo, dois terços dele servem apenas para nos movermos. O cerebe-

lo, por sua vez, tem função exclusivamente motora. Assim, mais da metade de nossa estrutura neu-

ral nos instrumentaliza para que possamos fazer igual aquilo que vemos.

Isso se revela em nossas atitudes e nos modelos educacionais da família e da sociedade: o

principal processo de ensino é o exemplo, e o fundamental no processo de aprendizagem é a imita-

ção (GAIARSA, 2000). É, portanto, plausível pensar que o aluno assimila a postura que o professor

apresenta frente ao objeto de conhecimento.

Dessa forma, ao longo de nossas vidas, aprendemos através de processos miméticos. Imita-

mos gestos e comportamentos que em nosso grupo social são aceitos e admirados. Além disso, con-

forme Christoph Wulf (2005), essa mímesis humana designa a nossa capacidade de representar e

encenar, também, o núcleo das ações que se propagam em séries em nosso entorno. Entende-se aqui

por “núcleo de uma série de ações”, o conjunto de motivações psíquicas ou externas ao sujeito que

molda sua postura corporal e direciona suas atitudes frente ao mundo. Poder-se-ia dizer, portanto,

que o processo mimético não se restringe apenas aos aspectos visíveis, mas abrange, também, a

amplitude e a complexidade motivadora de nossos comportamentos.

Tais considerações são, sobremaneira, relevantes devido à posição que deve ser ocupada

pelo professor em um contexto de sala. Ou seja, ele é o sujeito da interação cuja função social é a de

orientar alunos. Isso significa que, além da inclinação natural humana relativa ao processo de míme-

sis, por nós destacada, há um conjunto de procedimentos científicos e de elementos culturais que

ampliam a capacidade de alcance e a influência da imagem do professor em relação ao aluno.

Se a imitação é um dos processos fundamentais de aprendizagem, é essencial que a conside-

remos quando desenvolvemos metodologias de ensino, levando em conta, em um exercício de me-

tacognição e autoconhecimento, inclusive, os elementos culturais que compõe nossa postura como

educador, como profissional, ou seja, a postura corporal.

Nesse sentido, se o professor gosta de Literatura, aprecia-a, valoriza-a, é possível que ele

ensine um comportamento, uma postura social de respeito e apreciação frente à arte literária. O que

amplia as possibilidades de qualidade e de abrangência do ensino de Literatura.

REFERÊNCIAS

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SILVA, A. B. Mentes inquietas: entendendo melhor o mundo das pessoas distraídas, impulsi-vas e hiperativas. 29. Ed. São Paulo: Editora Gente, 2003.

SOBRAL, A. Do dialogismo ao gênero: as bases do circulo de Bakhtin. São Paulo: Mercado das Letras, 2009.

WULF, C. Antropologia da educação. Trad. Sidney Reinaldo da Silva. São Paulo: Editora Alínea, 2005.