filosofia: ensino e educaÇÃo · a lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em...
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FILOSOFIA: ENSINO E
EDUCAÇÃO
ISSN 1982 - 0283
Ano XXI Boletim 10 - Setembro 2011
SUMÁRIO
FilosoFia: ensino e educação
Apresentação da série ................................................................................................. 3
Rosa Helena Mendonça
Introdução ......................... ...................................................................................... 4
Walter Omar Kohan
Texto 1: Filosofia e educação
Filosofia e educação: pensamento e experiência ......................... .............................. 13
Sílvio Gallo
Texto 2: Filosofia e Infância............. .............................................. ............ ................ 20
Walter Omar Kohan
Texto 3: Filosofia no Ensino Médio
Filosofia no Ensino Médio: possibilidade de uma educação filosófica ....................... 25
Ingrid Xavier
3
FilosoFia: ensino e educação APRESENTAÇÃO DA SÉRIE
1 O abecedário de Gilles Deleuze. Realização Sodeperaga, França, 1995/1998. Disponível no catálogo da TV Escola (MEC).
2 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV ESCOLA (MEC).
A relação entre filosofia e educação – tal
como abordada nos textos que compõem
esta publicação e nos programas de TV da
série Filosofia: ensino e educação – mostra-se
uma relação complexa e polissêmica. A gê-
nese dessa relação pode estar em Sócrates,
ou nos pré-socráticos, mas pode também
ser percebida como uma questão primordial
do ser humano, na busca por entender sua
existência no mundo e por transmitir essa
experiência aos outros seres.
Com relação à filosofia no currículo escolar,
a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-
no da disciplina em todas as séries do Ensi-
no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos
países, inclusive no Brasil, experiências de fi-
losofia prática para crianças.
A série que o programa Salto para o Futu-
ro, da TV Escola, ora apresenta conta com
a consultoria de Walter Kohan (UERJ) e tem
como objetivo a discussão sobre filosofia e
educação, filosofia e infância e filosofia no
Ensino Médio, tendo em vista contribuir
para o debate entre professores e gestores
da Educação Básica.
As palavras extraídas de O abecedário de Gil-
les Deleuze1 são estimulantes no sentido de
intensificar as práticas filosóficas na escola
e em outros espaços sociais:
Suponho que muita gente ache que a Fi-
losofia é uma coisa muito abstrata e só
para os “entendidos”. Tenho tão viva em
mim a ideia de que a Filosofia não tem
nada a ver com “entendidos”, de que
não é uma especialidade, ou o é, mas só
na medida em que a pintura ou a músi-
ca também o são, que procuro ver esta
questão de outra forma.
Esperamos que elas possam servir de estí-
mulo para a interação com os textos e os
programas da série Filosofia: ensino e educa-
ção.
Rosa Helena Mendonça2
4
A relação entre filosofia e educação é rica,
complexa, de longa história. Por um lado,
desde seu nascimento – que pode ser situ-
ado nos denominados pré-socráticos, como
Pitágoras ou Thales, ou em Sócrates – a filo-
sofia teve pretensões educacionais: os filó-
sofos fizeram “escolas de pensamento” ou
se ocuparam de transmitir seu pensamento.
O caso de Sócrates é singular porque, nele,
a filosofia e a educação se confundem: sua
vida foi ao mesmo tempo filosófica e edu-
cacional, tanto que morreu em nome da fi-
losofia por uma acusação relacionada com
sua atividade pedagógica: corromper aos jo-
vens. Com Platão, a filosofia passa a fazer da
educação não apenas uma prática mas tam-
bém um objeto de reflexão teórica. Assim,
um número significativo dos seus diálogos
parte de um mesmo problema: a educação
dos atenienses é deficitária e, dessa forma,
o sentido desses textos é pensar a educação
de outra maneira. Platão inspira-se em Só-
crates numa ideia particular: que a filosofia
educa ou que a transformação política da
sociedade exige passar por uma educação
na filosofia.
A filosofia pode ser exercida como prática de
pensamento com pretensões educacionais
ou como reflexão teórica sobre questões
educacionais. Essas duas alternativas dão lu-
gar a dois campos de saber na contempora-
neidade que, embora estejam muito relacio-
nados, merecem ser diferenciados: o ensino
de filosofia e a filosofia da educação.
A área de ensino de filosofia reconhece um
crescimento exponencial tanto no cam-
po acadêmico como fora dele, nos últimos
anos. De fato, existe um campo usualmen-
te chamado de filosofia prática que envolve
toda uma série de experiências com a filoso-
fia, dentre as quais algumas das mais signifi-
cativas são: filosofia para crianças; filosofia
na terceira idade; filosofia no Ensino Médio;
café filosófico; filosofia clínica; filosofia e
cinema; philodrama; bioética; filosofia nas
prisões; universidades populares de filoso-
FilosoFia: ensino e educação
INTRODUÇÃO
Walter Omar Kohan
1 Professor Titular de Filosofia da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Cientista de Nosso Estado (FAPERJ) e pesquisador do CNPq e do Prociência (UERJ/FAPERJ). Doutor em Filosofia – Universidad Iberoamericana (México), com pós-doutorado na Universidade de Paris VIII (França). Consultor da série.
5
fia; Olimpíadas de Filosofia. Seria possível
afirmar que atualmente existe, tanto no
Brasil quanto em muitos outros países, uma
explosão de práticas realizadas em nome da
filosofia.
O objetivo deste programa é apresentar ex-
periências nesse campo, bem como elemen-
tos que permitam pensar seu alcance, senti-
do e possibilidades.
UM POUCO DE HISTÓRIA
Aliás, o que se faz em nome da filosofia?
Muitas coisas. A pergunta “o que é a filoso-
fia?” é aberta, contestável e polêmica. De
alguma forma, cada filósofo a responde de
maneira diferente. Assim, as escolas ou tra-
dições de pensamento inauguram um modo
de entender a filosofia e de afirmar uma
prática filosófica que pode querer significar
coisas muito diferentes. O que significaria,
então, ensinar filosofia?
Uma primeira resposta poderia ser: “ensi-
nar a pensar filosoficamente”. Mas o que
seria “pensar filosoficamente”? Parecemos
estar num círculo sem saída, uma vez que
responder à pergunta sobre a especificidade
do pensar filosófico exigiria alguns pressu-
postos sobre o que é a filosofia. Assim, não
poderíamos responder o que significa ensi-
nar filosofia a não ser desde uma concepção
de filosofia. Contudo, algumas distinções
podem nos ajudar a estender o alcance das
afirmações anteriores, na medida em que
atravessam diversas maneiras de compreen-
der o que é a filosofia.
Pensemos, por exemplo, na distinção entre
a filosofia como exercício, prática ou expe-
riência e a filosofia como saber, conteúdo
ou teoria. É notório que todas as filosofias
produzem filosofia, no sentido de promover
saberes, na forma de perguntas ou respos-
tas. Isso vale ainda para aqueles casos em
que a filosofia está longe de ser um saber
enciclopédico. Pensemos em contextos em
que a filosofia ainda não era enciclopédica;
por exemplo, consideremos o caso de Sócra-
tes, com seu saber de ignorância; ou o de
Diógenes, com suas práticas contestatórias;
ou ainda a ‘douta ignorância’ de Nicolau de
Cusa. Em todos esses casos, há uma filosofia
que emerge de uma prática, o que significa
um modo de responder à pergunta “o que
é a filosofia?”, que pode ser expresso tanto
num sentido discursivo quanto num modo
de viver uma vida filosófica, que produz
aquele saber consagrado na tradição da his-
tória da filosofia.
O caso de Sócrates é ilustrativo e também
interessante, porque ele, de certo modo, ins-
taurou uma tradição ainda presente entre
nós. É ainda mais significativo porque o que
Sócrates instaura é um modo de entender
o ensino de filosofia e a posição de quem
ocupa o lugar de ensinar (e de aprender).
Sócrates é um exemplo de que exercer a fi-
6
losofia significa ensiná-la ou, dito em outras
palavras, o filósofo e o professor de filosofia
se confundem.
Com efeito, é extremamente forte a ima-
gem que Sócrates oferece na sua defesa, na
Apologia de Sócrates, de Platão. Nesse texto,
temos as primeiras aparições da palavra fi-
losofia e a primeira oportunidade em que a
filosofia se descreve a si mesma. Ela aparece
justamente acusada de ensinar de maneira
tal que corromperia os jovens. É curioso: a
filosofia se apresenta publicamente, pela
primeira vez, acusada de ser uma pedagogia
corrosiva: são os jovens espíritos da cidade
que ela mal formaria. A política a acusa e a
filosofia deve se defender. A própria filosofia
está em risco: a pena pedida é a sua morte.
A filosofia fracassa em se defender. Pelo me-
nos, Sócrates é condenado à morte. Talvez
esse “fracasso” não deva ser visto de tal for-
ma e mostre os limites, tensões e conflitos
entre filosofia e política.
Ao se defender, Sócrates diz, literalmente,
“nunca fui mestre de ninguém” (Apologia de
Sócrates, 33a). Justifica esta negação com
três razões: a) não recebe dinheiro de quem
deseja escutá-lo, nem discrimina seus even-
tuais interlocutores por sua idade ou por
suas riquezas, como outros fazem; b) não
prometeu nem jamais ensinou a ninguém
conhecimento algum (máthema, 33b); c)
se alguém diz que aprendeu (matheîn, 33b)
dele em privado algo diferente daquilo que
afirma diante de todos os outros não diz a
verdade, já que Sócrates afirma se compor-
tar da mesma maneira – narra que fala o
mesmo – em conversas pessoais e em pú-
blico.
Atenção: Sócrates afirma que ele não foi
mestre de ninguém e, ao mesmo tempo,
que ninguém pode dizer que aprendeu com
ele algo diferente em público ou em priva-
do; ou seja, afirma que não foi mestre de
ninguém, mas que muitos aprenderam com
ele. Sócrates quer se diferenciar dos profis-
sionais do ensino, os que cobram por en-
sinar e afirmam ensinar um conhecimento
que os aprendizes não sabem. Sócrates, o
professor de filosofia, não ensina um co-
nhecimento ou saber, mas os que andam
com ele em seu caminho aprendem uma
relação com o saber.
Assim, Sócrates outorga uma especificidade
para o professor de filosofia: ele não trans-
mite um saber, mas possibilita aprendiza-
gens, através de uma palavra que interroga,
examina e confuta. O professor de filoso-
fia não ensina como aquele professor que
transmite um saber que o aluno ignora; ao
contrário, ele precisa não ensinar dessa for-
ma para que outro possa aprender; ele não
transmite um saber, mas possibilita proble-
matizar uma relação com o saber (e com a
ignorância). A partir disso, abrem-se outras
possibilidades para pensar e viver de outra
maneira.
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Mesmo inútil como defesa, a intervenção de
Sócrates ajuda a pensar a relação entre edu-
cação e filosofia. O que Sócrates nega, ou
pelo menos questiona com sua negativa a se
considerar um mestre, é que seja necessário,
desejável ou ainda possível formar alguém
pela mera transmissão dos conhecimentos
que o mestre domina. Talvez o que Sócrates
esteja querendo dizer é que educar através
da filosofia não tenha a ver com transmitir
conhecimentos mas, sim, com certa manei-
ra de se olhar a si mesmo e aos outros. Em
outras palavras, o que se aprende com ele
é certa sensibilidade, uma atenção, um cui-
dado, em primeiro lugar, com a próprio sa-
ber e o pensamento e, de uma maneira mais
geral, consigo mesmo. Sócrates literalmente
nunca transmitiu nenhum saber (“ninguém
jamais aprendeu qualquer coisa de mim...”,
diz no Teeteto 150d), a não ser uma certa
sensibilidade, uma relação com a ignorân-
cia, com o próprio pensamento, com o mais
valioso de cada um.
Dessa maneira, com Sócrates nasce uma
filosofia e uma educação. Sócrates não dá
palestras, não cria nenhuma escola, não
monta qualquer instituição, não tem ne-
nhum conhecimento a transmitir. Seu ensi-
namento primeiro, fundador, é que não há o
que ensinar, a não ser que cada um deve dar
atenção ao que não costuma dar. A única
coisa que lhe interessa transmitir não é um
saber, mas uma inquietude, uma forma de
sensibilidade, a inquietude sobre si. Curio-
so é que filosofia e educação nascem mui-
to próximas: uma vida sem filosofia, sem
exame, não merece ser vivida para Sócrates
(Apologia 38a). Mas o exame não se limita a
si próprio e o que Sócrates continuamente
examina é que os outros devem se examinar
a si mesmos; cuida de que os outros cuidem
de si, de modo que, para ele, a filosofia não
tem sentido sem sua projeção educacional,
assim como uma educação sem o exame e
o cuidado filosóficos torna-se mera técnica,
instrumento, igualmente sem interesse.
Através de toda sua história, a educação
tem sido fonte de práticas e preocupações
para os mais diversos filósofos. Grandes no-
mes como Kant, Hegel, Nietzsche, dentre
outros, exerceram a docência e escreveram
textos sobre educação. Muitos filósofos con-
temporâneos também. Por exemplo, J. Der-
rida militou teórica e praticamente no cam-
po do ensino de filosofia. Fundou um Grupo
de pesquisa e atuação na área de ensino de
filosofia (GREPH) e fez diversas intervenções
teóricas e práticas reunidas num extenso vo-
lume: Du droit a la philosophie2.
Derrida explorou as tensões ou antinomias
constitutivas da posição da filosofia na insti-
tuição escolar. Uma antinomia é uma norma
contraditória, um mandato impossível de
2 DERRIDA, Jacques. Le droit a la philosophie. Paris: Galilée, 1990.
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ser seguido, tendo em vista que comporta
uma dupla exigência, sendo que a realização
de uma supõe a negação da outra. A tese de
Derrida é de que o ensino institucionalizado
da filosofia é antinômico: ele padece de exi-
gências contraditórias. Elas são: a do méto-
do; a do saber; a do universal; a da lógica; a
da autonomia; a do trabalho com outros; a
da unidade. Longe de essas antinomias gera-
rem ceticismo, elas são uma oportunidade
para fortalecer o caráter filosófico de seu
ensino e da relação do professor de filoso-
fia com sua prática. Em outras palavras, o
ensino de filosofia só pode ser ele mesmo fi-
losófico e, nessa medida, sempre submetido
à exigência de se problematizar a si próprio.
A SITUAÇÃO NO BRASIL
No Brasil, assistimos a uma explosão de
práticas filosóficas em diversos contextos
e instituições. Por exemplo, já são mais de
três décadas desenvolvendo-se experiências
de filosofia com crianças em escolas públi-
cas e privadas de todas as regiões do país.
Em alguns municípios o projeto faz parte
da grade curricular. Existem diversos pro-
jetos de formação de professores de Ensino
Fundamental. A recente aprovação de uma
lei que dispõe a obrigatoriedade do ensino
de filosofia nas três séries do Ensino Médio
brasileiro deu uma atenção singular à pre-
sença da filosofia nesta etapa da Educação
Básica.
Embora à primeira vista possam parecer
óbvios os benefícios da presença da filoso-
fia na escola, não há unanimidade a esse
respeito. Quando a filosofia é ameaçada de
ficar como optativa ou ficar de fora, ela bri-
ga para estar dentro e, para isso, mais uma
vez precisa defender suas credenciais para
tal fim. Quando entra na instituição escolar,
questiona-se sua presença e ela deve defen-
der sua legitimidade. A questão não se res-
tringe apenas ao Brasil. Na América Latina
toda, são poucos os países – talvez o Uruguai
permaneça como espaço de maior resistên-
cia a essa tendência – onde essa presença
permanece significativa e obrigatória. A
questão é inicialmente política. Se olharmos
para as ditaduras, elas nada querem com a
filosofia ou então mantêm seu nome na gra-
de curricular, mas a colocam sob condições
voltadas para fazer coisas nada filosóficas.
Por sua vez, as democracias parecem mais
sensíveis às pressões do mercado e também
não têm sido muito propícias a introduzir a
filosofia nos currículos. Nesse contexto, a
situação atual do Ensino Médio no Brasil é
excepcional, inclusive se olharmos para ou-
tras latitudes, tornando-se um dos sistemas
educacionais do mundo com maior presen-
ça da filosofia.
Depois da sanção da lei, a mídia tem divul-
gado novos e velhos argumentos contra o
ensino obrigatório de filosofia. Boa parte
desses argumentos costuma cair sobre os
professores. Com frequência, pode-se ler
9
que não haveria professores suficientes de
filosofia, que eles não estariam preparados
para ensinar a disciplina como deveriam,
ou que seriam doutrinadores. Geralmen-
te, identifica-se a doutrina que eles repas-
sariam com um marxismo que, a despeito
de sua escassa adesão internacional atual,
continua a ser um fantasma preocupante
para certos setores da intelectualidade na-
cional. Em todo o caso, por um lado, chama
a atenção que se exija da filosofia o que não
se exige de outras áreas. Ou seja, argumen-
ta-se contra a formação dos professores de
filosofia, como se a formação dos profes-
sores de matemática, português e outras
áreas fosse uma maravilha. Ou, então, não
se percebem as outras formas atuais de
doutrinar na escola, como a pressão por
um ensino técnico, profissional, exclusiva-
mente sensível às demandas do “mercado
de trabalho”. Por outro lado, parece tão
insignificante o número de professores de
filosofia que defendem que a filosofia deva
servir a qualquer tipo de formação ideoló-
gica, e é tão grosseiro e histérico o ataque,
que mal merece consideração.
Entretanto, a pergunta pelo sentido da filo-
sofia na escola não é tão fácil de responder.
Os sentidos da filosofia na escola podem
ser múltiplos: ensinar a pensar; transmitir
valores; repassar uma tradição de história
de pensamento; formar para a cidadania,
etc. De certo modo, voltamos aqui à ques-
tão inicial, na medida em que ela pressupõe
uma maneira de entender a filosofia. Numa
tradição que remonta a Sócrates, poder-se-
ia afirmar que esse sentido diz respeito a
transformar os modos dominantes de saber
e pensar ou a relação que se tem com eles. O
sentido de tudo isso seria poder transformar
os modos de vida mais mecânicos e poder
tornar-se “o que se é”. Se assim for, não é
claro que a filosofia, como transformação e
busca do que se é, possa ser aprendida (mui-
to menos ensinada) num instituição como
a escola, mas a atual conjuntura no Brasil
possibilita um espaço onde temos a oportu-
nidade de testá-lo. E nós que acreditamos
na filosofia como potência para transformar
o que somos e o modo como vivemos, te-
mos o compromisso de não deixar passar a
oportunidade em vão.
TEXTOS DA SÉRIE FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO3
A série tem como proposta pensar como a Filosofia, enquanto prática de pensamento, pode ser
exercida com pretensões educacionais, ou como reflexão teórica sobre questões educacionais.
Essas duas alternativas dão lugar a dois campos de saber na contemporaneidade que, embora
3 Estes textos são complementares à série Filosofia: ensino e educação, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola, de 12/09/2011 a 16/09/2011.
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estejam muito relacionados, merecem ser diferenciados: o ensino de Filosofia e a Filosofia da
educação. Nos programas da série, serão discutidas questões que envolvem a prática filosófica
no mundo contemporâneo, a Filosofia na Educação Infantil, no Ensino Fundamental e no Ensi-
no Médio e a formação de professores de Filosofia, entre outros temas.
TEXTO 1: FILOSOFIA E EDUCAÇÃO
Filosofia e Educação. O que é a filosofia. Filósofo e professor de filosofia. É possível ensinar
filosofia ou ensinar a filosofar? Como aprender filosofia ou a filosofar? A prática filosófica no
mundo contemporâneo: olimpíadas, café filosófico, filosofia nas prisões.
TEXTO 2: FILOSOFIA E INFÂNCIA
Filosofia para ou com crianças. Há uma idade para filosofar? Infância e filosofia. A formação
dos professores de Educação Infantil e Ensino Fundamental. Experiências com crianças. A voz
da infância.
TEXTO 3: FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO
Filosofia no Ensino Médio. A formação do jovem. Filosofia e cidadania: relações perigosas. A
formação do professor de filosofia. Filosofia e vestibular. Filosofia e outros saberes.
Os textos 1, 2 e 3 também são referenciais para as entrevistas e debates do PGM 4: Outros olhares
sobre Filosofia e Educação e do PGM 5: Filosofia e Educação em debate.
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REFERÊNCIAS
Dentre as inúmeras publicações sobre ensi-
no de filosofia, destacamos algumas e reco-
mendamos consultar banco de dados biblio-
gráfico com mais de 2.500 títulos em:
www.filoeduc.org/base
ARANTES, Paulo. A filosofia e seu ensino. 2ª
ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: EDUC, 1996.
CHILDHOOD & PHILOSOPHY.
www.filoeduc.org/childphilo
CHITOLINA, Claudinei Luiz. A criança e a edu-
cação filosófica. Maringá: Dental Press, 2003.
CUNHA, Auri (org.). Filosofia para a Criança:
orientação pedagógica para a educação infan-
til e ensino fundamental. Campinas: Alínea,
2008.
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ENCONTRO COM MATTHEW LIPMAN. São
Paulo: CBFC e ATTA Mídia e Educação, 1999.
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1997.
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Perspectivas. Belo Horizonte: Autêntica,
2002.
KOHAN, Walter O. (org.) Filosofia: caminhos
para seu ensino. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
KOHAN, Walter O. Filosofia para crianças. 2.
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KOHAN, Walter O.; LEAL, Bernardina: TEIXEI-
RA, Álvaro (orgs.). Filosofia na escola pública.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. (Série: “Filosofia
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LIPMAN, M. A filosofia vai à escola. Tradução
de Maria Elice de B. Prestes e Lucia Maria
Silva Kremer. São Paulo: Summus, 1990.
LIPMAN, M.; SHARP, A. M.; OSCANYAN, F. A
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LORIERI, Marcos Antônio. Filosofia. Funda-
mentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2002.
OBIOLS, G. Uma introdução ao ensino de filo-
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2004a.
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Paulo: Terceira Margem, 2000.
12
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Linhas Críticas. Brasília, v. 5-6, 1998, p. 31-37.
SILVEIRA, René José Trentin. A filosofia vai à
Escola? Campinas, SP: Autores Associados,
2002.
Coleções editoriais sobre ensino de filosofia
Editora da UNIJUÍ: Série “Filosofia e Ensino”.
Editora Vozes: Séries “Filosofia na Escola” e
“Textos para começar a filosofar”.
Editora Loyola: Série “Filosofar é preciso”.
Editora DP&A: Coleção “Sócrates”.
Páginas de Interesse
- Banco de Dados sobre ensino de filosofia:
www.filoeduc.org/base
- Fórum Sul de Filosofia:
www.forumsulfilosofia.org
- Fórum de Filosofia e Ensino do Rio de Ja-
neiro:
www.forumfilosofia.com
- Grupo de Trabalho “Filosofar e ensinar a
filosofar”, ANPOF:
www.filoeduc.org/gt
- Núcleo de Estudos Filosóficos da Infância,
UERJ:
www.filoeduc.org/nefi
- Olimpíada de Filosofia:
www.olimpiadadefilosofia.org
- International Council for Philosophical In-
quiry with Children - ICPIC
www.icpic.net
- Nouvelles Pratiques Philosophiques:
www.pratiquesphilo.free.fr
- Institute for the Advancement of Philoso-
phy for Children - IAPC
www.montclair.edu/iapc
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TEXTO 1
FilosoFia e educação
FilosoFia e educação: Pensamento e exPeriência
Sílvio Gallo 1
Desde uma perspectiva da tradição, a filo-
sofia é colocada do lado do pensamento
(teoria) e a educação é colocada do lado da
experiência (práxis). Ainda nesta perspecti-
va, quando falamos em relações da filoso-
fia com a educação, em geral pensamos a
filosofia como um dos fundamentos da edu-
cação, isto é, um pensamento que sirva de
base para a práxis educativa; ou então pen-
samos a filosofia como uma reflexão sobre a
educação, ou seja, um pensamento sobre a
ação pedagógica. Em um ou em outro caso,
nega-se à educação a dimensão do pensa-
mento, assim como se nega à filosofia a
dimensão da experiência. O pensamento é
sempre a segurança do já pensado; a experi-
ência é sempre a segurança de experimentar
com redes de segurança; um experimentar
o já posto; um experimentar sem, de fato,
experimentar.
Pretendo aqui exercitar uma experiência de
pensamento. Uma experiência de pensar o
não pensado, de experimentar sem redes
de segurança. Uma abertura ao risco, como
prática da liberdade, como busca do novo e
da criatividade. E, com isso, pensar uma fi-
losofia e uma educação que sejam, ambas e
a um só tempo, pensamento e experiência.
Filosofia como pensamento e experiência;
educação como experiência e pensamento.
Somos testemunhas, neste tempo que nos
foi dado viver, de uma nova guinada do
mundo rumo ao fundamentalismo. Os pro-
jetos libertários e criativos, que ganharam
voz e se fizeram práxis nos anos 1960, foram
primeiro cooptados pelo capitalismo, pas-
sando a ser eles mesmos parte do sistema,
para depois se tornarem sua alma mesma,
como se sempre tivessem feito parte dele.
***
Explico, ainda que brevemente: a potência
de um pensamento e de uma práxis criati-
vos, libertários, que buscava e produzia no-
vos agenciamentos, que começou a se espa-
1 Mestre e Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professor associado (MS-5) da Universidade Estadual de Campinas.
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lhar por todos os campos do pensamento e
da vida, foi sendo aos poucos absorvida pelo
Estado. Aquilo que era como que uma “má-
quina de guerra”2, produzido às margens do
sistema, foi sendo incorporado por ele, ajus-
tado às suas regras. A criatividade passou a
ser norma na própria produção industrial. E
aí precisamos questionar: que criatividade é
esta, que se torna norma? Quando a potên-
cia do pensamento é instrumentalizada pelo
marketing, pela indústria cultural e pela
produção de forma geral, quando os fluxos
de desejo são uma vez mais capturados pela
máquina de produção, ‘cadê’ o desejo? A
máquina de guerra torna-se máquina de Es-
tado. Mais uma engrenagem; ou, para falar
com Pink Floyd, “mais um tijolo na parede”.
O fundamentalismo é manchete na mídia,
ao menos em sua vertente religiosa. Mas
não é apenas no islamismo que ele está pre-
sente: também nas religiões ocidentais, no
cristianismo, vemos leituras fundamentalis-
tas cada vez mais presentes. Não é com fun-
damentalismo cristão que os “ocidentais”
respondem a cada novo atentado terroris-
ta? O fundamentalismo não está restrito ao
campo religioso. Também na política ele fin-
ca suas raízes; ao menos no Brasil, cada vez
tem mais força o braço político das igrejas
fundamentalistas, com deputados e mesmo
ocupantes de cargos no Executivo de muitas
cidades. De forma geral, não é também com
fundamentalismo político que os “ociden-
tais” respondem a uma visão de mundo islâ-
mica, criticada justamente por sua rigidez3?
No âmbito da educação, cada vez mais pa-
rece que também buscamos a segurança do
fundamentalismo. Queremos certezas para
educar; queremos fundamentos sólidos nos
quais ancorar nossos projetos educativos.
Não queremos experiências, não queremos
riscos. E tudo isso em nome de quê? Ora, em
nome da segurança de nossas crianças, em
nome da segurança de nosso mundo. Cons-
truímos nossas escolas como se fossem
ilhas de segurança, nas quais temos absolu-
to controle sobre o processo de educação de
nossas crianças. Experiências em educação?
Nem pensar. Fiquemos com a segurança e
os fundamentos sólidos daquilo que sabe-
mos dar certo.
Impossível não lembrar aqui do belo filme
de M. Night Shyamalan, The Village (2004).
O diretor hindo-americano mostra-nos uma
vila rural na qual se vive, percebemos pelas
2 Gilles Deleuze e Félix Guattari trabalham com o conceito de “máquina de guerra” em Mille Plateaux – capitalisme et schizophrènie (Paris: Minuit, 1980). Máquina de guerra é o modo de operação dos povos nômades, que não têm instituída a máquina de Estado. Não devemos confundir máquina de guerra, portanto, com um exército institucionalizado, com o exercício da guerra por uma sociedade instituída como Estado, mas sim como uma forma de luta subversiva, corrosiva, que age contra o instituído.
3 Se olharmos com as lentes de Nietzsche, diremos que o fundamentalismo nada mais é do que a outra face do niilismo; quanto mais negamos, mais buscamos princípios sólidos nos quais confiar.
15
roupas, em algum momento do século de-
zenove. Os costumes são rígidos e os mais
velhos governam a vila com pulso firme,
de modo a garantir a manutenção de seus
valores e de seus costumes. O que garante
a coesão social da vila é o fato de ela ser
rodeada por florestas, habitadas por estra-
nhas e violentas criaturas. Os habitantes da
vila só estão seguros se não ultrapassarem o
seu perímetro. A “cidade” – isto é, o mundo
exterior – é vista como lugar de corrupção e
violência, que não deve ser visitada, pois isso
influenciaria negativamente os costumes da
vila. O filme de Shyamalan é uma clara crí-
tica ao fundamentalismo norte-americano,
que tem crescido após os atentados de 11 de
setembro de 2001. Mas me parece também
uma bela metáfora para o crescimento do
fundamentalismo na educação, algo que
deve nos deixar atentos.
***
Quando relacionamos filosofia e educação
na perspectiva do fundacionismo, paralisa-
mos o pensamento. Se colocamos a filoso-
fia no lado do pensamento e a educação no
lado da experiência, afirmamos que o pen-
samento não é possível em educação, sem o
recurso da filosofia. Isso significa tirar toda
a potência da educação. E significa também
instrumentalizar a filosofia.
Se compreendemos a educação nesta di-
mensão metafísica (um equivalente ao que
tenho chamado de fundacionismo ou fun-
damentalismo), admitimos que a educação
precisa de bases sólidas nas quais se apoie.
Tais bases são fornecidas pela filosofia, pela
história, pela sociologia, pela psicologia,
por exemplo, as assim chamadas “ciências
da educação”. O que a educação traz para
estas ciências é um objeto: o fenômeno edu-
cativo; cada ciência, por sua vez, contribui
com suas ferramentas para a análise deste
objeto. Com base nesses conhecimentos ob-
jetivos, pode-se, enfim, construir métodos
pedagógicos eficazes e seguros.
A partir dos fundamentos da educação, po-
demos definir nossos objetivos para com o
processo educativo, planejar as ações pe-
dagógicas, avaliar os resultados e fazer as
correções de rota necessárias, com toda a
segurança. Podemos saber exatamente o
que ensinar, para que ensinar, como ensinar,
quando ensinar. E com isso garantir o apren-
dizado de cada criança.
A ideia presente é a de que são os funda-
mentos, as bases que garantem o sucesso e
a potência da educação. No entanto, afirmo
que essa visão fundacionista, fundamenta-
lista, tira toda a potência da educação. Pois,
neste registro, a educação nada é sem tais
fundamentos. No caso específico da filoso-
fia, se a retiramos do rol dos fundamentos
da educação, tiramos toda a potência de
pensamento, de reflexão sobre a educação.
Pois só pensamos a educação pela filosofia;
16
a educação seria incapaz de pensar-se por si
mesma.
No entanto, uma tal perspectiva também é
despotencializadora para a própria filosofia.
Se esta é colocada como um dos fundamen-
tos daquela, importa o que já foi pensado, o
que já foi produzido, e não o que está ainda
por pensar, por produzir. Nesta dimensão
fundacionista, a filosofia fica do lado do
pensamento, mas do já pensado; e a educa-
ção do lado da experiência, mas da experiên-
cia da segurança, do controle.
***
Experimentemos uma
outra forma de pen-
sar. Tenhamos a co-
ragem de lançar-nos
ao risco de enfrentar
um percurso sem sa-
ber qual nosso ponto
de chegada. Ensaiemos a ideia de uma pers-
pectiva não fundacionista, não fundamenta-
lista de educação, mas também de filosofia.
Apostemos numa filosofia que invista no
risco da diferença, em lugar de investir na
segurança do mesmo.
Aprendemos com Deleuze e Guattari que vi-
vemos sempre à beira do caos, que ameaça
nos tragar. Cair no caos é ceder ao não pen-
samento. Há uma promessa de segurança: a
opinião nos oferece proteção contra o caos.
A opinião promete nos manter afastados do
caos, na segurança do pensamento correto,
na segurança de sempre saber que decisão
tomar. Mas a promessa da opinião é um can-
to de sereia, afirmam os filósofos franceses,
pois é impossível vencer o caos. Aquilo que
a opinião oferece é uma falsa saída. É tam-
bém, ao seu modo, uma forma de não pen-
samento, pois a falsa sensação de segurança
nos impede de arriscar e, fora do risco, não
há criatividade ou pensamento possíveis4.
Segundo estes au-
tores, há três po-
tências do pensa-
mento, que ousam
mergulhar no caos,
para nele encon-
trar a criatividade,
retornando como
vencedores, sem
perder-se no não pensamento. Cada uma
destas três potências age de modo próprio;
cada uma delas cria de forma diferente; e
cada uma delas tem um produto distinto.
Assim, sendo completamente distintas, elas
são complementares: cada uma nos oferece
sua contribuição específica.
As três potências do pensamento são a Arte,
a Ciência e a Filosofia. Em seu mergulho
Tenhamos a coragem de
lançar-nos ao risco de
enfrentar um percurso sem
saber qual nosso ponto de
chegada.
4 Ver O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
17
no caos, a Arte traça um plano de compo-
sição e cria perceptos e afetos. A Ciência,
por sua vez, traça um plano de referência e
cria funções. Já a Filosofia traça um plano
de imanência e cria conceitos. Pensar por
perceptos, pensar por funções, pensar por
conceitos: são as três modalidades do pen-
samento criativo, produtivo, que não ape-
nas repete o já pensado, que não cede aos
apelos da opinião.
Arte, Ciência e Filosofia nada nos prometem,
mas nos convidam a pensar, a experimentar,
a buscar novos cami-
nhos, novos aconte-
cimentos. Estão em
constante luta contra
a opinião, que nos
promete a segurança
do mesmo, do já pen-
sado, de uma suposta fuga do caos.
Como relacionar a educação com as três po-
tências do pensamento? Se ousarmos sair da
opinião do já pensado, de uma perspectiva
fundacionista da educação, podemos fazer a
experiência de pensá-la como uma intersec-
ção destas três áreas.
A educação já foi pensada exclusivamente
no âmbito da filosofia. Na antiguidade, ela
era tomada como um capítulo da filosofia
(aliás, como quase tudo o era). Em Platão
e em Aristóteles, por exemplo, as conside-
rações sobre educação aparecem em obras
destinadas à política, e ela era considerada
como tekné, isto é, como uma forma de arte,
de prática. Na modernidade, com a emer-
gência do método científico, também a edu-
cação foi contaminada com a “vontade de
verdade”, e desejou constituir-se como ciên-
cia, através das ciências da educação.
Parece-me suficiente claro, portanto, que
historicamente a educação tem transitado
por entre as três áreas que Deleuze e Guatta-
ri identificam como as potências do pensa-
mento, mas ora identificando-se com uma,
ora identificando-se
com outra. A educa-
ção já se compreen-
deu como uma espé-
cie de arte; já tomou
a filosofia como fun-
damento; já tomou
as ciências como fundamentos. Mas em
momento algum a educação considerou-se
mestiça, na confluência destas três áreas.
E, ao assumir-se ora uma coisa ora outra, a
educação valia-se de uma potência específi-
ca, mas perdia as demais. Ora servia à edu-
cação a potência do conceito; ora a potência
das funções; ora a potência dos perceptos e
afetos.
Se, no entanto, pensarmos a educação na
confluência das três potências do pensa-
mento, poderemos ter a educação como
conceito, como função e como afeto, ao
mesmo tempo.
As três potências do
pensamento são a Arte, a
Ciência e a Filosofia.
18
Não esteve sempre presente na educação a
potência do afeto? Enquanto relação huma-
na, não se vale a educação das relações afe-
tivas? Em grande medida, não é a educação
um processo de sedução, pelo conhecimen-
to, pelo mundo, pelas pessoas?
Não esteve sempre presente, também, a po-
tência da função? Não procuramos sempre
compreender os processos, para, numa re-
lação de causa-efeito, produzir nas relações
pedagógicas os efeitos desejados?
E não esteve sempre ali a potência do con-
ceito? Não vemos também na educação
esse pensamento que ilumina os problemas
de uma forma completamente nova, insti-
tuindo acontecimentos?
Educação mestiça, sem fundamentos, mas
em diálogo criativo com as artes, as ciên-
cias, as filosofias, produzindo, nas relações
pedagógicas, afetos e perceptos, ao modo
da arte; funções, ao modo da ciência; con-
ceitos, ao modo da filosofia. Na intersecção
das três potências do pensamento, pode-
mos ver a educação como esta zona de in-
discernibilidade, na qual as experiências são
constantes, as criações são constantes.
No âmbito desta mestiçagem, a educação
está do lado da experiência (da práxis), mas
também está do lado do pensamento (da
teoria). E a filosofia, por sua vez, está do
lado do pensamento, mas também da expe-
riência. Na mestiçagem, levamos à filosofia
a potência da experiência no pensamento,
na medida em que os desafios postos pela
educação a fazem seguir em busca do ainda
não pensado, fazendo-a abrir-se ao risco do
caos, na necessidade de criar novos concei-
tos para pensar os problemas educacionais.
E levamos à educação a potência do pensa-
mento, fazendo-a sair da falsa segurança do
fundamentalismo para, uma vez mais, pen-
sar e repensar suas experiências, buscando
novas alternativas criativas.
Este é o desafio que nos coloco, para nós
que trabalhamos em e com educação: na
busca de antídoto contra o fundamentalis-
mo que invade nosso mundo: valermo-nos
das potências do pensamento, das potên-
cias de criação para, a cada dia, experimen-
tar o novo. Experimentar a educação como
acontecimento, que se produz no cotidiano
de nossas salas de aula, e sobre o qual não
temos nenhum controle, mas somos per-
sonagens ativos na sua produção coletiva,
com nossas crianças, também personagens
centrais nesta produção.
Finalizo lembrando de Nietzsche e das três
metamorfoses do espírito. Afirma o filóso-
fo alemão que o espírito torna-se camelo, o
animal que carrega todo o peso da tradição;
no deserto, o camelo, torna-se leão, aquele
que nega o peso do dever e afirma seu de-
sejo; mas o leão, por fim, torna-se criança,
que é inocência e esquecimento, apenas ela
19
capaz de dizer que sim, o sim necessário à
criação5.
Para uma educação que se quer antídoto
ao fundamentalismo, império do dever-ser,
do mundo dos adultos, é preciso um devir-
criança, a chance de recomeçar, de brincar
com o mundo e de criar.
5 Ver Assim Falava Zaratustra. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1998, p. 28-30.
FILOSOFIA
CIÊNCIAARTE
EDUCAÇÃO
20
TEXTO 2
FILOSOFIA E INFÂNCIAWalter Omar Kohan 1
Infância quer dizer, etimologicamente, au-
sência de fala. Essa ausência foi entendida,
tradicionalmente, como incapacidade de
falar. A partir desse sentido etimológico, há
duas formas principais de se compreender
a infância. A primeira, mais evidente, como
a etapa inicial da vida. Neste sentido, a vida
é entendida como processo em desenvolvi-
mento, e a infância como o primeiro tempo
cronológico de vida transcorrido. Basta ter
um número de anos que se está na infância.
Nesta lógica, crianças e adultos são termos
relativos e opostos: toda criança para ser
adulta precisa abandonar a infância e todo
adulto é adulto porque deixou de ser crian-
ça, o que significa que já foi antes criança e
também que já não é mais criança. Na se-
gunda forma de pensar a infância, ela não
é uma etapa da vida, mas uma condição
do humano que está presente (ou pode es-
tar presente) em diversas idades. Enquanto
condição, a infância pode ser entendida de
diversas maneiras, por exemplo, como: figu-
ra do começo e da afirmação (em Assim fa-
lou Zaratustra, de F. Nietzsche); experiência
original e originária a ser recuperada (em A
criança, o brinquedo, a educação de W. Ben-
jamin); condição da experiência, da história
e da linguagem (em Infância e história, de G.
Agamben); bloco, devir, figura da transfor-
mação minoritária (em Mil Platôs, de G. De-
leuze e F. Guattari); uma dívida do humano
com o inumano (em Memórias da infância,
de J. F. Lyotard).
No campo da educação, podem ser perce-
bidas duas tendências claramente diferen-
ciadas a partir dessas duas possibilidades de
pensar a infância. A primeira pensa a educa-
ção como formação e a infância como obje-
to dessa formação. Os antecedentes desta
possibilidade na chamada tradição ociden-
tal são tão antigos quanto os gregos (Pla-
tão, Aristóteles, etc.) e ela tem se mantido
como a forma dominante de pensar a edu-
cação das crianças ao longo da história das
1 Professor Titular de Filosofia da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Cientista de Nosso Estado (FAPERJ) e pesquisador do CNPq e do Prociência (UERJ/FAPERJ). Doutor em Filosofia – Universidad Iberoamericana (México), com pós-doutorado na Universidade de Paris VIII (França). Consultor da série.
21
ideias pedagógicas dessa mesma tradição. A
segunda parte da ideia de que a infância é
uma condição e, nesse sentido, ela é um es-
tado – pelo menos em potência – tanto dos
educandos quanto dos educadores. A infân-
cia, então, deixa de ser algo que uma boa
educação permitiria abandonar para pas-
sar a ser o que ela tenta alimentar, cuidar,
atender. A infância deixa de ser o informe,
a possibilidade, e passa a ser o enigma da
alteridade, a estrangeiridade de uma língua
que não fala a língua da condição adulta.
Entre os que promovem as práticas filosó-
ficas na infância, Matthew Lipman criou o
programa filosofia para crianças, que já foi
traduzido e praticado no Brasil nos últimos
trinta anos. Lipman morreu recentemente,
com 87 anos, nos Estados Unidos de Amé-
rica. Fez um programa completo, chamado
philosophy for children, incluindo novelas
filosóficas para crianças e manuais para
professores de educação básica, bem como
uma fundamentação teórica com numero-
sos livros e artigos, dentre eles A filosofia vai
à escola e O pensar na educação. Lipman con-
siderava que, incluindo a filosofia na forma-
ção das crianças, elas teriam uma educação
mais consistente, significativa e democráti-
ca. Não considerava a filosofia um conteú-
do, mas uma forma de investigação coletiva
que desenvolve o pensamento crítico, cria-
tivo e ético de seus participantes. Mais do
que um programa ou uma teoria, Lipman
é o iniciador – junto a Ann Margaret Sharp
(1942-2010) – de um movimento que se es-
tendeu por mais de cinquenta países de to-
dos os continentes para ajudar as crianças
a pensar de forma crítica, criativa e cuida-
dosa sobre si mesmas e o mundo que as ro-
deia.
Contudo, a proposta de Lipman é só uma
possibilidade entre muitas: há diversas
maneiras de pensar e fazer a filosofia com
crianças. Em um sentido, a prática filosófi-
ca pode ampliar-se se o conceito de infância
diz respeito não apenas às crianças, mas a
certa condição da experiência da subjeti-
vidade, como sugerido anteriormente. Em
outro, a depender do que se entende por fi-
losofia, podem ser propostas práticas muito
diferentes. De fato, muitos recusam a ideia
de que se possa fazer filosofia com crianças
justamente a partir de concepções da filo-
sofia muito fechadas e atreladas a imagens
também debilitadas da infância. Em outro
sentido, se afirmarmos, com o filósofo fran-
cês H. Bergson, que a filosofia é uma forma
de estender, aprofundar e intensificar a vi-
são de uma pessoa, ou uma forma de apren-
der a perceber e atender o mundo, as pes-
soas e nós mesmos; ou, com outro filósofo
francês, M. Merleau-Ponty, que “a filosofia
é reaprender a ver o mundo”, então resulta
evidente que qualquer ser humano de qual-
quer idade está em condições de praticar a
filosofia e negar seu acesso é também negar
um direito por viver uma vida mais signifi-
cativa e humana.
22
Atualmente, existem no mundo diversos
projetos trabalhando, a partir de diversos
pressupostos, na educação filosófica da in-
fância. Dentre eles, podemos apresentar
o projeto “Em Caxias a filosofia en-caixa?”
da Universidade do Estado do Rio de Janei-
ro (www.filoeduc.org/caxias). Os princípios
norteadores desse projeto são: a PROBLE-
MATIZAÇÃO, como maneira de abrir os es-
paços onde habitualmente não há pergun-
tas; a INVESTIGAÇÃO CRIATIVA, como modo
de compor e recompor o pensar e o sentir,
de re-configurá-los e fazê-los proliferar; o
DIÁLOGO PARTICIPATIVO, aberto e funda-
mentado na inter-relação com os outros; o
TRABALHO COLABORATIVO, enquanto forma
de se envolver nas práticas educacionais; a
RESISTÊNCIA frente a toda imposição; o EN-
RIQUECIMENTO da vida, para tornar mais
COMPLEXO o mundo e explorar outras di-
mensões da existência; o EXERCÍCIO perma-
nente sobre o próprio pensamento, sobre
as ideias com as quais nos lemos e lemos o
mundo; a IGUALDADE das inteligências dos
participantes como seres capazes de pensar
sem distinção de idade, lugar institucional,
cor de pele, opção sexual, etc.; a EXPERI-
ÊNCIA, como modo de se abrir ao novo e
se relacionar com o próprio pensamento; a
DIFERENÇA, como afirmação da irredutível
singularidade da vida.
Este projeto não aplica qualquer programa
em particular e também não propõe téc-
nicas definidas. Os próprios métodos são
objeto de investigação junto a professores,
crianças e adultos. Afirmam-se algumas
pautas de trabalho: em todas as aulas de fi-
losofia se compartilha um texto, que é pro-
blematizado e debatido. Sendo assim, “o que
se constitui em um texto adequado para um
debate filosófico?”, “o que significa ler?”,
“qual é o sentido da leitura em uma aula de
filosofia?” são perguntas que atravessam a
prática do projeto. Utilizam-se textos de filó-
sofos, literatura brasileira, filmes, letras de
músicas e outras formas textuais que propi-
ciem a irrupção do filosófico. Periodicamen-
te são planejadas as atividades de filosofia
segundo os projetos do(a)s professore(a)s. É
propiciada ao(à)s professore(a)s e crianças
uma atitude ativa frente à filosofia, própria
de uma prática que não se transmite, mas
que se exerce.
A proposta de levar a filosofia à escola não
é considerada no projeto como o transporte
para a escola de um conteúdo que poderia
ser considerado filosófico, mas como a pos-
sibilidade de abrir nela um espaço para o fi-
losofar como verbo, para se entregar a esse
particular exercício de pensar. O filosofar é
visto aqui como uma experiência, como um
trabalho sobre o sentido: sobre o sentido do
que somos e do que nos acontece. O que nos
acontece nos afeta particularmente, afeta a
relação que temos conosco e com o mundo.
Desde a perspectiva experiencial, a filosofia,
ou melhor, o filosofar é inconciliável com
23
a ideia de um modelo, de uma forma pre-
viamente determinada à qual haveria que
se ajustar. Se a experiência de pensar não
é nem um conteúdo nem um mecanismo,
a ideia tradicional de “formar” como um
“moldar” a outro para garantir essa expe-
riência deve ser repensada. Não é possível
formar a infância segundo a lógica da expe-
riência do pensar.
A experiência não pode ser garantida. Não
só é intransferível e pessoal: também é im-
previsível. Irrompe, se faz presente sem pré-
vio aviso. Não há método que assegure seu
acontecimento, não temos como garantir o
que nos afetará e de
que modo nos afeta-
rá e re-configurará
ou não nosso senti-
do do mundo.
A possibilidade de aprender, diz Deleuze (em
Proust e os signos), tem a ver com a possi-
bilidade de tornar-se sensível à complexida-
de do mundo, à sua essência complicada.
Pensamos quando nos deparamos com essa
multiplicidade complicada que é o mundo.
Esse movimento se opõe àquele que se ocu-
pa de se ajustar a um padrão unívoco prede-
terminado. Filosofar é se surpreender com
o mundo.
Se o exercício de pensar não responde à
lógica da transmissão de um conteúdo, a
partir de qual perspectiva abordamos o tra-
balho de convite ao outro do pensar como
atividade, como exercício? Sobre qual di-
mensão dessa tarefa concentrar nosso tra-
balho? Como acompanhar alguém que está
disposto a embarcar nessa experiência? De
que maneira gerar confiança e oferecer os
elementos que o outro precisa para percor-
rer seu próprio caminho? Como tornar essa
possibilidade aberta? Se não temos conteú-
do e não temos método a transmitir, como
dar consistência a um espaço de “forma-
ção”?
Eis algumas notas para pensar essas pergun-
tas difíceis: o trabalho em filosofia é um tra-
balho de e sobre a
atenção. Aprender
é atender. Pensar é
atender. Ensinar é
atender. A atenção é
uma forma de rela-
ção com algo que demanda certo esforço e
que parece criar um âmbito de intimidade;
a atenção propicia uma particular forma de
sermos afetados pelo mundo. De modo que
o que fazemos é estar atentos e propiciar a
atenção, estar sensíveis e propiciar a sensi-
bilidade. Ali começa o pensamento, ao tor-
nar-nos sensíveis ao movimento, à comple-
xidade do mundo. Também é uma forma de
“dis-tensão”, de relaxamento da tensão que
nos liga a interesses práticos e utilitários.
No final, é um trabalho para des-aprender
hábitos incorporados como típicos ou natu-
rais que inibem a experiência do pensar.
Filosofar é se surpreender
com o mundo.
24
A filosofia não é útil ou instrumental. Ela
não é “instrumento para” a democracia, a
formação de cidadãos críticos, criativos,
bem sucedidos, ou qualquer outra coisa. A
utilidade e a instrumentalidade respondem
à lógica da produção, ao estabelecimento de
médios e etapas para conseguir alcançar ob-
jetivos previamente traçados. Entrar nessa
lógica implica restringir nossa capacidade
de percepção, supõe reduzir nossa capaci-
dade de ser afetados pelo movimento desse
mundo que está ali, ainda que não consiga-
mos entendê-lo. Os interesses e funcionali-
dades externos nos
abrumam, abarro-
tam nossa atenção,
nos distraem, nos
tornam desatentos.
A filosofia tem senti-
do, abre os sentidos,
expande a sensibili-
dade, a partir da qual
ganha forças nosso pensamento. A filosofia
e a infância são formas de alteridade. O ca-
minho da filosofia transitado pela infância
é um caminho inacabado e inacabável no
pensamento. A filosofia e a infância ajudam
a manter o ritmo, a não se fixar exagera-
damente nas comodidades encontradas, a
desconfiar das certezas fáceis, a valorizar as
incompletudes, a deixar-se surpreender pe-
las sendas não transitadas. Filosofar é uma
maneira de acompanhar desde dentro o
enigma do pensamento. Filosofar na infân-
cia significa convidar todos que habitam a
condição da infância a participar desse ca-
minhar e desse enigma e estar dispostos a
ouvir o que as diversas infâncias nos podem
ajudar a pensar.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
Filosofia para crianças é apresentada por M.
Lipman em dois livros traduzidos ao portu-
guês: Philosophy Goes to School (A Filosofia
vai à Escola. São Paulo: Summus, 1990) e Phi-
losophy in the classroom (A Filosofia na Sala de
Aula. São Paulo: Nova
Alexandria, 1994; em
colaboração com
Ann M. Sharp e F.
Oscanyan). Sua fun-
damentação teórica
mais forte está em
Thinking in Education
(Pensar na Educação.
Petrópolis, RJ: Vozes,
1995) que teve uma segunda edição recen-
te, com mudanças significativas (Cambridge
University Press, 2004, 2. ed., ainda inédita
em português). Escrevi alguns livros sobre a
matéria: dentre eles, Filosofia com crianças
(Rio de Janeiro: Lamparina, 2009, 2ª ed.); In-
fância. Entre educação e filosofia (Belo Hori-
zonte: Autêntica, 2004); (Petrópolis: Vozes,
2000).
Os interesses e
funcionalidades externos
nos abrumam, abarrotam
nossa atenção, nos
distraem, nos tornam
desatentos.
25
Pelo menos desde Sócrates a filosofia mos-
trou-se ligada à educação. Por muito tem-
po, essa antiga aliança floresceu à margem
da institucionalização e da escolarização e,
portanto, a salvo de programas, currículos,
livros didáticos e vestibulares. Antes de tudo
era o desejo que sustentava a relação entre
um que se dispunha a ensinar e outro que
se propunha a aprender; tudo a ver quando
se trata de ensinar e aprender, mais ainda
quando o que se ensina e o que se aprende
traz em seu nome um afeto: a philía.
Bem diferente é o cenário atual em que a
filosofia entra na sala de aula no Ensino
Médio pelas mãos da lei, sem que se saiba
muito bem para que e como praticá-la – ain-
da que os documentos oficiais atrelem-na a
uma cidadania pretendida. Dispersa entre
várias disciplinas, espremida entre uma aula
de física e outra de história, eis o lugar da
filosofia, outrora praticada em campo aber-
to. De um lado, seu público alvo, alunos em
plena adolescência, muitos dos quais aves-
sos à escola, atenção flutuante em meio à
febril agitação e, diante deles, o professor
com a ocupação de como e qual conteúdo
ministrar e a preocupação de como instau-
rar um ambiente minimamente propício
para filosofar. De outro, há que considerar
que a instituição educativa visa à formação
e se sustenta essencialmente na repetição,
na medida em que seu trabalho consiste em
apresentar e inserir os jovens na cultura já
existente. Nada mais distante do filosofar
que a mera repetição. Não é, pois, peque-
no o desafio do professor de filosofia. Talvez
para enfrentá-lo seja de ajuda ter sempre
presente a philía.
TEXTO 3
FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO
FilosoFia no ensino médio: Possibilidade de uma educação FilosóFica
Ingrid Xavier 1
O filósofo sempre se achou e teve de se achar em contradição
com seu hoje: seu inimigo sempre foi o ideal de hoje2.
1 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora e Coordenadora Pedagógica do Colégio Pedro II e Coordenador do Estágio em Prática de Ensino no CPII da Licenciatura em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora em Educação pelo PROPED- UERJ.
2 NIETZSCHE, F. Sobre el porvenir de nuestras escuelas. Barcelona: Tusquets, 2000, p.118.
26
A lógica da educação pautada no ideal de
formação tem por pressuposto teleológico
uma forma ideal prévia e normativa à qual o
aprendiz deve adequar-se. Um dever ser está
na raiz do gesto de dar forma: ajustar cada
um ao que deve ser. E, embora muitas vezes
digamos que educamos para a liberdade, de
algum modo em nossos esforços para for-
mar ressoa um já saber, de antemão, aonde
se quer chegar e nossas boas intenções for-
mativas não se cansam de repetir e procla-
mar modelos preestabelecidos capazes de
educar para um mundo melhor.
Ser professor de filosofia requer problemati-
zar, na teoria e na prática, o ensinar e apren-
der filosofia, fazendo dialogar a teoria e a
prática na instituição escolar, onde a prin-
cípio nada parece possível. Através da pro-
blematização do impossível nasce também
a necessidade impostergável para cada um
que ocupa a posição de professor de filosofia
de se pensar desde um novo lugar, de per-
correr outros caminhos no pensamento em
nome da filosofia e de seu ensino. Trata-se,
em certo modo, de colocar em questão os
discursos mais otimistas e pessimistas sobre
a posição da filosofia na escola.
É mesmo desconcertante que a filosofia
ocupe um lugar na escola, pois afinal pelo
menos três pontos a tornam de certo modo
estranha à escolarização: mais do que pro-
priamente um saber, ela é uma atitude;
tampouco há um método que garanta que
alguém possa aprender a filosofar; e, por úl-
timo, a filosofia não tem um objeto delimi-
tado, o que parece colocar um ponto final
desencorajador.
A educação é um espaço de incessantes con-
flitos. Transgredir a naturalização dos sabe-
res e exercitar-se como máquina de guerra
frente ao aparelho de Estado são estratégias
a serem tentadas por aqueles que pensam
ser interessante problematizar o lugar e o
sentido do ensino de filosofia em direção a
uma educação filosófica.
O fato de que haja diversas tentativas de jus-
tificar a filosofia na escola, nenhuma delas
cabal, instaura um campo de problemas que
se organiza em torno de pelo menos duas
instâncias: a dificuldade de pôr em acordo
as diversas concepções do que seja isto, a
filosofia, bem como encontrar concordância
quanto ao que seja ensiná-la e, principal-
mente, o sentido de fazê-lo: para que levar a
filosofia à escola?
A filosofia, filha da cidade, nasceu enraizada
no político, na discussão racional das ordens
cósmica e humana, e em franco embate com
a palavra poética transpassada pelo mito
oriundo do campo do sagrado. Subjaz desde
a origem da filosofia esta tensão entre a pala-
vra-poética produtora de efeitos e a palavra-
verdade, que estreia a racionalidade consti-
tuinte da filosofia. Esse estatuto ambíguo da
filosofia mostra uma oposição essencial en-
27
tre dois modos de experimentar o logos. Por
um lado, o logos como instaurador de sen-
tido, identificado com o pensar e assumido
como phármakon, capaz de produzir efeitos;
por outro, associado ao conhecer, uma com-
preensão epistêmica do logos que se organi-
za como dispositiva para melhor conhecer o
real e pretender a verdade. É inegável a força
que esta última compreensão de logos vem
tendo para afirmar-se como o viés mais pró-
prio da filosofia. Contudo, no terreno da filo-
sofia, a tensão inicial ressoa: produzir efeitos
desde o pensar ver-
sus conhecer.
Mais do que per-
guntar que filosofia
ensinar nos inte-
ressa problematizar
para que filosofar
na escola. Não é de
maneira alguma re-
cente a demanda de que a filosofia decla-
re sua utilidade. O “para que”, comumente
seguido de serve, busca na resposta uma
utilidade, uma função. Mas a utilidade da
filosofia não se confunde com as exigências
de funcionalidade exigidas pelo pragmatis-
mo reinante, e à pergunta “o que se pode
fazer com a filosofia?” cabe como resposta a
afirmação de que a filosofia pode fazer algo
com aquele que pergunta, uma vez que se
deixe afetar por ela. Entendemos que uma
educação filosófica pode contribuir para
pensar possibilidades de transformar o
modo como nos pensamos no mundo; para
forçar o pensamento a se pensar.
Se partilhamos o suposto de que uma das
possibilidades da filosofia é dar-se conta do
nosso presente, então que hoje é este que,
apoderado pela ciência da técnica, tem no
mercantil a significação a priori capaz de in-
formar as redes simbólicas e conceituais da
convivência? Pensar este tempo que, empo-
derado como nunca para efetuar velozmen-
te destinações, avança desabalado e pouco
tempo se dá para
pensar as forças que
o orientam, é uma
das maneiras de ex-
pressar um possível
sentido para filoso-
far na escola hoje.
Talvez por isso, pela
obstinação e vora-
cidade do modo de
vida dominante da chamada sociedade pós-
moderna para negar ou combater os modos
de vida verdadeiramente alternativos, esse
sentido apareça como particularmente sig-
nificativo quando a filosofia adentra o espa-
ço de educação dos jovens.
A sociedade de consumo, ao tornar rotina a
“novidade” de seus produtos, promove uma
imobilidade de fundo agenciando a forma-
ção de subjetividades adestradas às vitri-
nes do shopping. Diante disso, os sentidos
clássicos outorgados à filosofia, tais como
Intempestiva,
extemporânea, a filosofia
afirma que o mundo
poderia ser diferente.
Sempre.
28
“ensinar a pensar”, “promover a cidadania”,
“desenvolver o pensamento crítico” entre
tantos outros que há tanto vêm sido reite-
rados, talvez não sejam os mais significati-
vos ou pelo menos suficientes para promo-
ver uma educação filosófica comprometida
com a construção de subjetividades preocu-
padas em inaugurar outros modos de vida.
Assim, pensar as possibilidades da filosofia
no Ensino Médio pressupõe ocupar-se tam-
bém dos mesmos incômodos que indicam
hoje sentidos que a própria filosofia sinaliza
para o filosofar. Intempestiva, extemporâ-
nea, a filosofia afir-
ma que o mundo
poderia ser diferen-
te. Sempre. Nunca
há um só mundo.
A filosofia nasce de
certo inconformis-
mo com o mundo.
Com este mundo, com outros mundos, com
todos os mundos. É confrontando-se ao in-
cômodo com o presente que a filosofia pode
encontrar um sentido que justifique sua
prática e seu lugar na escola; para espantar
a besteira, para compartilhar junto com os
jovens o incômodo com a besteira e desa-
comodar e desinstalar os que dela se apro-
ximam.
Uma educação filosófica pode ser extrema-
mente fértil no terreno da escola como ins-
tauradora de um espaço de resistência ca-
paz de incentivar o rechaço aos imperativos
hodiernos que convocam incessantemente
ao apetite consumista, à acomodação dissi-
mulada em conforto, ao hedonismo disfar-
çado em carpe diem, ao ‘salve-se quem pu-
der do cada um por si’ que vem solapando
o interesse pela vida política. Filosofia como
convocação à resistência. Resistir, contu-
do, não é somente rechaçar, não é a sim-
ples negação passiva do que há – o que no
caso aproximaria a resistência do niilismo –,
mas resistir consiste, sobretudo, em afirmar
possibilidades e sentidos que permitam in-
ventar e experimentar coletivamente outras
formas de vida, ou-
tros modelos de
convivialidade pas-
síveis de migrar do
espaço construído
através de uma edu-
cação filosófica na
escola para outros
espaços, tendo os jovens como seus inter-
cessores. O que parece mais próprio e fe-
cundo para a filosofia no Ensino Médio é
sua potência de educar filosoficamente, sua
força de impulsionar os jovens à desacomo-
dação; efeito que pode ser conquistado pela
resistência à platitude dos modos de vida,
muitas vezes empobrecidos e anódinos nos
quais, contemporaneamente, sobrevivemos
desencantados e incrédulos.
O conhecer está, de modo geral, comprome-
tido com a razão e a lógica em seu empenho
No pensar têm lugar
também o imaginar, o
sentir, o desejar.
29
de apropriação do real. No entanto, em si
mesma, a lógica não é o real, nem sequer
o possível, mas apenas um dos dispositivos
capazes de articular o possível com o real
de modo a estabelecer uma intersubjetivi-
dade objetiva. Mas o conhecer não esgota as
possibilidades do pensar, o conhecimento é
tão somente uma das possibilidades do pen-
samento. No pensar têm lugar também o
imaginar, o sentir, o desejar. Pensar permite
instituir possíveis, a imaginação a partir de
experiências singulares abre o pensamento
aos possíveis. Sem pretender verdades, a
arte de pensar pode
contribuir para a
arte de viver con-
centrada no lema de
Píndaro “vir a ser o
que se é”.
Cabe um esclareci-
mento: colocar em
questão a primazia da razão no filosofar
está muito distante de defender qualquer
espécie de “irracionalismo”, não se trata
de desconfiar da razão e a ela simplesmen-
te opor o que estaria fora do pensamento,
mas abrir mais espaço para o pensamento
ampliando sua extensão, de modo que o
conceito de pensamento contenha a razão
e não esta aquele.
Uma filosofia deve ser capaz de fazer com
que se experimente viver de acordo com ela.
Isto é decisivo e convoca a praticar uma fi-
losofia na escola não tanto preocupada em
ministrar conteúdos, mas a aspírar uma di-
mensão de educação filosófica capaz de res-
soar na maneira de viver dos estudantes. E,
desde logo, é a partir da relação que o pro-
fessor tem com a filosofia e com os filósofos
pelos quais se interessa que essa possibilida-
de pode ser atualizada. Em especial, ao res-
gatar o que Sócrates nos ensina na Apologia
“interrogar, examinar e confutar” a própria
vida.
A filosofia na escola, ou uma educação filo-
sófica, pode ser um
convite a criar um
ambiente, instau-
rar uma atmosfera,
propiciar uma sensi-
bilidade atenta para
acontecer o pen-
samento. Antes de
ocupar-nos do con-
teúdo disciplinar – quais temas, textos ou
problemas que iremos trazer para explorar
com os alunos – pensamos ser condição de
possibilidade para ensinar a filosofar com
adolescentes a preocupação em construir
uma atmosfera propícia ao desaprender. De-
saprender no sentido de desvestir alguns há-
bitos, desconstruir alguns supostos, dar as
costas às certezas. E isso passa necessaria-
mente pelo afeto, uma educação filosófica
não é somente tarefa do pensamento, mas
talvez e, sobretudo, trabalho do sentimento.
O gosto por pensar juntos pode emergir na
O pensamento não aparece
quando queremos, mas
sim quando as condições
de seu aparecimento são
provocadas.
30
instauração de um clima, uma ambiência de
espera atenta ao inesperado e ao aparente-
mente sem sentido: philía.
O pensamento não aparece quando quere-
mos, mas sim quando as condições de seu
aparecimento são provocadas. Contudo,
provocar não significa produzir, nem toda
provocação tem uma resposta. Provocar es-
sas condições está ligado a criar uma atmos-
fera que expulse o medo de errar, de ensaiar
a pensar em voz alta; e como é difícil desa-
prender o hábito escolar de responder cor-
retamente, dizer o certo, falar o oportuno.
A criação desta “ambiência pática” parece
ser uma das condições para provocar o pen-
samento, pois não pensamos espontanea-
mente, como bate o coração; pensar é um
esforço e decorre de um incômodo, é uma
reação operada por algo que nos força a pen-
sar. Não é um eu voluntário que produz o
pensamento, como o pâncreas produz insu-
lina, mas forças involuntárias que obrigam
o pensamento a se pôr em marcha. Não é de
uma boa vontade que o pensamento depen-
de, mas das forças que atuam na sua instau-
ração, do terreno em que está posta a vida
em que o pensamento acontece. Antes que
um método ou um caminho há que oferecer
um terreno propício ao pensamento. O que
constitui propriamente esse terreno para fi-
losofar na escola é a instauração de um pá-
thos, de uma correlação de forças cuja resul-
tante intensiva seja a atenção. Esse páthos
deriva, pois, de uma composição de forças
afetivas, do desdobramento da philía que in-
veste a filosofia. A philía da filosofia é uma
paixão, uma relação que não se sustenta nos
vínculos parentais, pois a filosofia, afinal, é
uma relação baseada em um afeto e não um
afeto baseado em uma relação.
Talvez seja possível desenvolver o senti-
do de philía em suas acepções como amor,
amizade e desejo e chamar também para
ela o cuidado, a confiança e a hospitalida-
de. Confiança não no sentido moral de uma
passividade ingênua acomodada, mas como
resistência à desconfiança imperante. Cui-
dado como disposição interessada, preo-
cupação com o outro. Hospitalidade como
acolhimento do estrangeiro, do imprevisto.
Abertura para o que está fora, experiência
do puro dom. O estrangeiro, por certo, não
fala a língua do anfitrião e essa condição de
estrangeiridade está quase sempre presente
no ensino de filosofia: a língua do ensinante
é a língua da filosofia, língua desconhecida
pelos aprendizes convidados a habitar uma
educação filosófica.
Uma educação filosófica comprometida
com a vida de cada um e com o hoje comum
a todos está em sintonia com o imperativo
pindárico antes anunciado: Vir a ser o que se
é. Autoexigência de transformação, abertu-
ra a novos devires. Vir a ser o que se é não
indica a transição de um ser em potência
a um ser em ato. Também não se trata de
31
trazer à luz uma identidade oculta, um si
mesmo, pois não há um ser, um substrato
substantivo subjacente ao devir. O que o
lema sugere são ressignificações do que se
é, deslocamentos, devires, reconfigurações,
rearranjos de forças que não podem ser
separadas das afecções e agenciamentos,
das sucessões e encontros que constituem
o instável e mutante efeito do que chama-
mos “eu”. Vir a ser como tarefa de criação
contínua, invenção de si que depende de
desaprender-se e esquecer constantemen-
te o que se é para inaugurar-se em outras
configurações, desfigurando-se a cada vez
para efetivar-se em outra nova figura tam-
bém sempre transitória. Vir a ser o que se é
abriga um lindo paradoxo: aquilo que somos
e que podemos vir a ser, aquilo que mais nos
fortalece como indivíduos é saber o quão
pouco somos como indivíduos. É nos per-
dendo que nos encontramos.
Deste modo, o movimento de ensinar filo-
sofia com vistas a uma educação filosófica
implica fazer do aprender próprio e alheio
uma experiência de abertura e de encontro
no pensamento. Encontros no pensamento
em si e nos outros, relacionando-se com a
filosofia de maneira vital e comprometida.
Fazer do ensinar e aprender filosofia uma
oportunidade para virmos a ser aqueles que
aprendemos a ser. Quem sabe, então, numa
educação filosófica encontremos essa força
para aprender e o aprender dessa força que
dê outra intensidade a nossas vidas.
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tempestiva: Schopenhauer educador. In: Escri-
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enseñar. Buenos Aires: Biblos, 2009.
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Setembro 2011