filosofia: ensino e educaÇÃo · a lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em...

32
FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO ISSN 1982 - 0283 Ano XXI Boletim 10 - Setembro 2011

Upload: phamtuyen

Post on 11-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

FILOSOFIA: ENSINO E

EDUCAÇÃO

ISSN 1982 - 0283

Ano XXI Boletim 10 - Setembro 2011

Page 2: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

SUMÁRIO

FilosoFia: ensino e educação

Apresentação da série ................................................................................................. 3

Rosa Helena Mendonça

Introdução ......................... ...................................................................................... 4

Walter Omar Kohan

Texto 1: Filosofia e educação

Filosofia e educação: pensamento e experiência ......................... .............................. 13

Sílvio Gallo

Texto 2: Filosofia e Infância............. .............................................. ............ ................ 20

Walter Omar Kohan

Texto 3: Filosofia no Ensino Médio

Filosofia no Ensino Médio: possibilidade de uma educação filosófica ....................... 25

Ingrid Xavier

Page 3: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

3

FilosoFia: ensino e educação APRESENTAÇÃO DA SÉRIE

1 O abecedário de Gilles Deleuze. Realização Sodeperaga, França, 1995/1998. Disponível no catálogo da TV Escola (MEC).

2 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV ESCOLA (MEC).

A relação entre filosofia e educação – tal

como abordada nos textos que compõem

esta publicação e nos programas de TV da

série Filosofia: ensino e educação – mostra-se

uma relação complexa e polissêmica. A gê-

nese dessa relação pode estar em Sócrates,

ou nos pré-socráticos, mas pode também

ser percebida como uma questão primordial

do ser humano, na busca por entender sua

existência no mundo e por transmitir essa

experiência aos outros seres.

Com relação à filosofia no currículo escolar,

a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-

no da disciplina em todas as séries do Ensi-

no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos

países, inclusive no Brasil, experiências de fi-

losofia prática para crianças.

A série que o programa Salto para o Futu-

ro, da TV Escola, ora apresenta conta com

a consultoria de Walter Kohan (UERJ) e tem

como objetivo a discussão sobre filosofia e

educação, filosofia e infância e filosofia no

Ensino Médio, tendo em vista contribuir

para o debate entre professores e gestores

da Educação Básica.

As palavras extraídas de O abecedário de Gil-

les Deleuze1 são estimulantes no sentido de

intensificar as práticas filosóficas na escola

e em outros espaços sociais:

Suponho que muita gente ache que a Fi-

losofia é uma coisa muito abstrata e só

para os “entendidos”. Tenho tão viva em

mim a ideia de que a Filosofia não tem

nada a ver com “entendidos”, de que

não é uma especialidade, ou o é, mas só

na medida em que a pintura ou a músi-

ca também o são, que procuro ver esta

questão de outra forma.

Esperamos que elas possam servir de estí-

mulo para a interação com os textos e os

programas da série Filosofia: ensino e educa-

ção.

Rosa Helena Mendonça2

Page 4: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

4

A relação entre filosofia e educação é rica,

complexa, de longa história. Por um lado,

desde seu nascimento – que pode ser situ-

ado nos denominados pré-socráticos, como

Pitágoras ou Thales, ou em Sócrates – a filo-

sofia teve pretensões educacionais: os filó-

sofos fizeram “escolas de pensamento” ou

se ocuparam de transmitir seu pensamento.

O caso de Sócrates é singular porque, nele,

a filosofia e a educação se confundem: sua

vida foi ao mesmo tempo filosófica e edu-

cacional, tanto que morreu em nome da fi-

losofia por uma acusação relacionada com

sua atividade pedagógica: corromper aos jo-

vens. Com Platão, a filosofia passa a fazer da

educação não apenas uma prática mas tam-

bém um objeto de reflexão teórica. Assim,

um número significativo dos seus diálogos

parte de um mesmo problema: a educação

dos atenienses é deficitária e, dessa forma,

o sentido desses textos é pensar a educação

de outra maneira. Platão inspira-se em Só-

crates numa ideia particular: que a filosofia

educa ou que a transformação política da

sociedade exige passar por uma educação

na filosofia.

A filosofia pode ser exercida como prática de

pensamento com pretensões educacionais

ou como reflexão teórica sobre questões

educacionais. Essas duas alternativas dão lu-

gar a dois campos de saber na contempora-

neidade que, embora estejam muito relacio-

nados, merecem ser diferenciados: o ensino

de filosofia e a filosofia da educação.

A área de ensino de filosofia reconhece um

crescimento exponencial tanto no cam-

po acadêmico como fora dele, nos últimos

anos. De fato, existe um campo usualmen-

te chamado de filosofia prática que envolve

toda uma série de experiências com a filoso-

fia, dentre as quais algumas das mais signifi-

cativas são: filosofia para crianças; filosofia

na terceira idade; filosofia no Ensino Médio;

café filosófico; filosofia clínica; filosofia e

cinema; philodrama; bioética; filosofia nas

prisões; universidades populares de filoso-

FilosoFia: ensino e educação

INTRODUÇÃO

Walter Omar Kohan

1 Professor Titular de Filosofia da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Cientista de Nosso Estado (FAPERJ) e pesquisador do CNPq e do Prociência (UERJ/FAPERJ). Doutor em Filosofia – Universidad Iberoamericana (México), com pós-doutorado na Universidade de Paris VIII (França). Consultor da série.

Page 5: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

5

fia; Olimpíadas de Filosofia. Seria possível

afirmar que atualmente existe, tanto no

Brasil quanto em muitos outros países, uma

explosão de práticas realizadas em nome da

filosofia.

O objetivo deste programa é apresentar ex-

periências nesse campo, bem como elemen-

tos que permitam pensar seu alcance, senti-

do e possibilidades.

UM POUCO DE HISTÓRIA

Aliás, o que se faz em nome da filosofia?

Muitas coisas. A pergunta “o que é a filoso-

fia?” é aberta, contestável e polêmica. De

alguma forma, cada filósofo a responde de

maneira diferente. Assim, as escolas ou tra-

dições de pensamento inauguram um modo

de entender a filosofia e de afirmar uma

prática filosófica que pode querer significar

coisas muito diferentes. O que significaria,

então, ensinar filosofia?

Uma primeira resposta poderia ser: “ensi-

nar a pensar filosoficamente”. Mas o que

seria “pensar filosoficamente”? Parecemos

estar num círculo sem saída, uma vez que

responder à pergunta sobre a especificidade

do pensar filosófico exigiria alguns pressu-

postos sobre o que é a filosofia. Assim, não

poderíamos responder o que significa ensi-

nar filosofia a não ser desde uma concepção

de filosofia. Contudo, algumas distinções

podem nos ajudar a estender o alcance das

afirmações anteriores, na medida em que

atravessam diversas maneiras de compreen-

der o que é a filosofia.

Pensemos, por exemplo, na distinção entre

a filosofia como exercício, prática ou expe-

riência e a filosofia como saber, conteúdo

ou teoria. É notório que todas as filosofias

produzem filosofia, no sentido de promover

saberes, na forma de perguntas ou respos-

tas. Isso vale ainda para aqueles casos em

que a filosofia está longe de ser um saber

enciclopédico. Pensemos em contextos em

que a filosofia ainda não era enciclopédica;

por exemplo, consideremos o caso de Sócra-

tes, com seu saber de ignorância; ou o de

Diógenes, com suas práticas contestatórias;

ou ainda a ‘douta ignorância’ de Nicolau de

Cusa. Em todos esses casos, há uma filosofia

que emerge de uma prática, o que significa

um modo de responder à pergunta “o que

é a filosofia?”, que pode ser expresso tanto

num sentido discursivo quanto num modo

de viver uma vida filosófica, que produz

aquele saber consagrado na tradição da his-

tória da filosofia.

O caso de Sócrates é ilustrativo e também

interessante, porque ele, de certo modo, ins-

taurou uma tradição ainda presente entre

nós. É ainda mais significativo porque o que

Sócrates instaura é um modo de entender

o ensino de filosofia e a posição de quem

ocupa o lugar de ensinar (e de aprender).

Sócrates é um exemplo de que exercer a fi-

Page 6: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

6

losofia significa ensiná-la ou, dito em outras

palavras, o filósofo e o professor de filosofia

se confundem.

Com efeito, é extremamente forte a ima-

gem que Sócrates oferece na sua defesa, na

Apologia de Sócrates, de Platão. Nesse texto,

temos as primeiras aparições da palavra fi-

losofia e a primeira oportunidade em que a

filosofia se descreve a si mesma. Ela aparece

justamente acusada de ensinar de maneira

tal que corromperia os jovens. É curioso: a

filosofia se apresenta publicamente, pela

primeira vez, acusada de ser uma pedagogia

corrosiva: são os jovens espíritos da cidade

que ela mal formaria. A política a acusa e a

filosofia deve se defender. A própria filosofia

está em risco: a pena pedida é a sua morte.

A filosofia fracassa em se defender. Pelo me-

nos, Sócrates é condenado à morte. Talvez

esse “fracasso” não deva ser visto de tal for-

ma e mostre os limites, tensões e conflitos

entre filosofia e política.

Ao se defender, Sócrates diz, literalmente,

“nunca fui mestre de ninguém” (Apologia de

Sócrates, 33a). Justifica esta negação com

três razões: a) não recebe dinheiro de quem

deseja escutá-lo, nem discrimina seus even-

tuais interlocutores por sua idade ou por

suas riquezas, como outros fazem; b) não

prometeu nem jamais ensinou a ninguém

conhecimento algum (máthema, 33b); c)

se alguém diz que aprendeu (matheîn, 33b)

dele em privado algo diferente daquilo que

afirma diante de todos os outros não diz a

verdade, já que Sócrates afirma se compor-

tar da mesma maneira – narra que fala o

mesmo – em conversas pessoais e em pú-

blico.

Atenção: Sócrates afirma que ele não foi

mestre de ninguém e, ao mesmo tempo,

que ninguém pode dizer que aprendeu com

ele algo diferente em público ou em priva-

do; ou seja, afirma que não foi mestre de

ninguém, mas que muitos aprenderam com

ele. Sócrates quer se diferenciar dos profis-

sionais do ensino, os que cobram por en-

sinar e afirmam ensinar um conhecimento

que os aprendizes não sabem. Sócrates, o

professor de filosofia, não ensina um co-

nhecimento ou saber, mas os que andam

com ele em seu caminho aprendem uma

relação com o saber.

Assim, Sócrates outorga uma especificidade

para o professor de filosofia: ele não trans-

mite um saber, mas possibilita aprendiza-

gens, através de uma palavra que interroga,

examina e confuta. O professor de filoso-

fia não ensina como aquele professor que

transmite um saber que o aluno ignora; ao

contrário, ele precisa não ensinar dessa for-

ma para que outro possa aprender; ele não

transmite um saber, mas possibilita proble-

matizar uma relação com o saber (e com a

ignorância). A partir disso, abrem-se outras

possibilidades para pensar e viver de outra

maneira.

Page 7: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

7

Mesmo inútil como defesa, a intervenção de

Sócrates ajuda a pensar a relação entre edu-

cação e filosofia. O que Sócrates nega, ou

pelo menos questiona com sua negativa a se

considerar um mestre, é que seja necessário,

desejável ou ainda possível formar alguém

pela mera transmissão dos conhecimentos

que o mestre domina. Talvez o que Sócrates

esteja querendo dizer é que educar através

da filosofia não tenha a ver com transmitir

conhecimentos mas, sim, com certa manei-

ra de se olhar a si mesmo e aos outros. Em

outras palavras, o que se aprende com ele

é certa sensibilidade, uma atenção, um cui-

dado, em primeiro lugar, com a próprio sa-

ber e o pensamento e, de uma maneira mais

geral, consigo mesmo. Sócrates literalmente

nunca transmitiu nenhum saber (“ninguém

jamais aprendeu qualquer coisa de mim...”,

diz no Teeteto 150d), a não ser uma certa

sensibilidade, uma relação com a ignorân-

cia, com o próprio pensamento, com o mais

valioso de cada um.

Dessa maneira, com Sócrates nasce uma

filosofia e uma educação. Sócrates não dá

palestras, não cria nenhuma escola, não

monta qualquer instituição, não tem ne-

nhum conhecimento a transmitir. Seu ensi-

namento primeiro, fundador, é que não há o

que ensinar, a não ser que cada um deve dar

atenção ao que não costuma dar. A única

coisa que lhe interessa transmitir não é um

saber, mas uma inquietude, uma forma de

sensibilidade, a inquietude sobre si. Curio-

so é que filosofia e educação nascem mui-

to próximas: uma vida sem filosofia, sem

exame, não merece ser vivida para Sócrates

(Apologia 38a). Mas o exame não se limita a

si próprio e o que Sócrates continuamente

examina é que os outros devem se examinar

a si mesmos; cuida de que os outros cuidem

de si, de modo que, para ele, a filosofia não

tem sentido sem sua projeção educacional,

assim como uma educação sem o exame e

o cuidado filosóficos torna-se mera técnica,

instrumento, igualmente sem interesse.

Através de toda sua história, a educação

tem sido fonte de práticas e preocupações

para os mais diversos filósofos. Grandes no-

mes como Kant, Hegel, Nietzsche, dentre

outros, exerceram a docência e escreveram

textos sobre educação. Muitos filósofos con-

temporâneos também. Por exemplo, J. Der-

rida militou teórica e praticamente no cam-

po do ensino de filosofia. Fundou um Grupo

de pesquisa e atuação na área de ensino de

filosofia (GREPH) e fez diversas intervenções

teóricas e práticas reunidas num extenso vo-

lume: Du droit a la philosophie2.

Derrida explorou as tensões ou antinomias

constitutivas da posição da filosofia na insti-

tuição escolar. Uma antinomia é uma norma

contraditória, um mandato impossível de

2 DERRIDA, Jacques. Le droit a la philosophie. Paris: Galilée, 1990.

Page 8: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

8

ser seguido, tendo em vista que comporta

uma dupla exigência, sendo que a realização

de uma supõe a negação da outra. A tese de

Derrida é de que o ensino institucionalizado

da filosofia é antinômico: ele padece de exi-

gências contraditórias. Elas são: a do méto-

do; a do saber; a do universal; a da lógica; a

da autonomia; a do trabalho com outros; a

da unidade. Longe de essas antinomias gera-

rem ceticismo, elas são uma oportunidade

para fortalecer o caráter filosófico de seu

ensino e da relação do professor de filoso-

fia com sua prática. Em outras palavras, o

ensino de filosofia só pode ser ele mesmo fi-

losófico e, nessa medida, sempre submetido

à exigência de se problematizar a si próprio.

A SITUAÇÃO NO BRASIL

No Brasil, assistimos a uma explosão de

práticas filosóficas em diversos contextos

e instituições. Por exemplo, já são mais de

três décadas desenvolvendo-se experiências

de filosofia com crianças em escolas públi-

cas e privadas de todas as regiões do país.

Em alguns municípios o projeto faz parte

da grade curricular. Existem diversos pro-

jetos de formação de professores de Ensino

Fundamental. A recente aprovação de uma

lei que dispõe a obrigatoriedade do ensino

de filosofia nas três séries do Ensino Médio

brasileiro deu uma atenção singular à pre-

sença da filosofia nesta etapa da Educação

Básica.

Embora à primeira vista possam parecer

óbvios os benefícios da presença da filoso-

fia na escola, não há unanimidade a esse

respeito. Quando a filosofia é ameaçada de

ficar como optativa ou ficar de fora, ela bri-

ga para estar dentro e, para isso, mais uma

vez precisa defender suas credenciais para

tal fim. Quando entra na instituição escolar,

questiona-se sua presença e ela deve defen-

der sua legitimidade. A questão não se res-

tringe apenas ao Brasil. Na América Latina

toda, são poucos os países – talvez o Uruguai

permaneça como espaço de maior resistên-

cia a essa tendência – onde essa presença

permanece significativa e obrigatória. A

questão é inicialmente política. Se olharmos

para as ditaduras, elas nada querem com a

filosofia ou então mantêm seu nome na gra-

de curricular, mas a colocam sob condições

voltadas para fazer coisas nada filosóficas.

Por sua vez, as democracias parecem mais

sensíveis às pressões do mercado e também

não têm sido muito propícias a introduzir a

filosofia nos currículos. Nesse contexto, a

situação atual do Ensino Médio no Brasil é

excepcional, inclusive se olharmos para ou-

tras latitudes, tornando-se um dos sistemas

educacionais do mundo com maior presen-

ça da filosofia.

Depois da sanção da lei, a mídia tem divul-

gado novos e velhos argumentos contra o

ensino obrigatório de filosofia. Boa parte

desses argumentos costuma cair sobre os

professores. Com frequência, pode-se ler

Page 9: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

9

que não haveria professores suficientes de

filosofia, que eles não estariam preparados

para ensinar a disciplina como deveriam,

ou que seriam doutrinadores. Geralmen-

te, identifica-se a doutrina que eles repas-

sariam com um marxismo que, a despeito

de sua escassa adesão internacional atual,

continua a ser um fantasma preocupante

para certos setores da intelectualidade na-

cional. Em todo o caso, por um lado, chama

a atenção que se exija da filosofia o que não

se exige de outras áreas. Ou seja, argumen-

ta-se contra a formação dos professores de

filosofia, como se a formação dos profes-

sores de matemática, português e outras

áreas fosse uma maravilha. Ou, então, não

se percebem as outras formas atuais de

doutrinar na escola, como a pressão por

um ensino técnico, profissional, exclusiva-

mente sensível às demandas do “mercado

de trabalho”. Por outro lado, parece tão

insignificante o número de professores de

filosofia que defendem que a filosofia deva

servir a qualquer tipo de formação ideoló-

gica, e é tão grosseiro e histérico o ataque,

que mal merece consideração.

Entretanto, a pergunta pelo sentido da filo-

sofia na escola não é tão fácil de responder.

Os sentidos da filosofia na escola podem

ser múltiplos: ensinar a pensar; transmitir

valores; repassar uma tradição de história

de pensamento; formar para a cidadania,

etc. De certo modo, voltamos aqui à ques-

tão inicial, na medida em que ela pressupõe

uma maneira de entender a filosofia. Numa

tradição que remonta a Sócrates, poder-se-

ia afirmar que esse sentido diz respeito a

transformar os modos dominantes de saber

e pensar ou a relação que se tem com eles. O

sentido de tudo isso seria poder transformar

os modos de vida mais mecânicos e poder

tornar-se “o que se é”. Se assim for, não é

claro que a filosofia, como transformação e

busca do que se é, possa ser aprendida (mui-

to menos ensinada) num instituição como

a escola, mas a atual conjuntura no Brasil

possibilita um espaço onde temos a oportu-

nidade de testá-lo. E nós que acreditamos

na filosofia como potência para transformar

o que somos e o modo como vivemos, te-

mos o compromisso de não deixar passar a

oportunidade em vão.

TEXTOS DA SÉRIE FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO3

A série tem como proposta pensar como a Filosofia, enquanto prática de pensamento, pode ser

exercida com pretensões educacionais, ou como reflexão teórica sobre questões educacionais.

Essas duas alternativas dão lugar a dois campos de saber na contemporaneidade que, embora

3 Estes textos são complementares à série Filosofia: ensino e educação, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola, de 12/09/2011 a 16/09/2011.

Page 10: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

10

estejam muito relacionados, merecem ser diferenciados: o ensino de Filosofia e a Filosofia da

educação. Nos programas da série, serão discutidas questões que envolvem a prática filosófica

no mundo contemporâneo, a Filosofia na Educação Infantil, no Ensino Fundamental e no Ensi-

no Médio e a formação de professores de Filosofia, entre outros temas.

TEXTO 1: FILOSOFIA E EDUCAÇÃO

Filosofia e Educação. O que é a filosofia. Filósofo e professor de filosofia. É possível ensinar

filosofia ou ensinar a filosofar? Como aprender filosofia ou a filosofar? A prática filosófica no

mundo contemporâneo: olimpíadas, café filosófico, filosofia nas prisões.

TEXTO 2: FILOSOFIA E INFÂNCIA

Filosofia para ou com crianças. Há uma idade para filosofar? Infância e filosofia. A formação

dos professores de Educação Infantil e Ensino Fundamental. Experiências com crianças. A voz

da infância.

TEXTO 3: FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO

Filosofia no Ensino Médio. A formação do jovem. Filosofia e cidadania: relações perigosas. A

formação do professor de filosofia. Filosofia e vestibular. Filosofia e outros saberes.

Os textos 1, 2 e 3 também são referenciais para as entrevistas e debates do PGM 4: Outros olhares

sobre Filosofia e Educação e do PGM 5: Filosofia e Educação em debate.

Page 11: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

11

REFERÊNCIAS

Dentre as inúmeras publicações sobre ensi-

no de filosofia, destacamos algumas e reco-

mendamos consultar banco de dados biblio-

gráfico com mais de 2.500 títulos em:

www.filoeduc.org/base

ARANTES, Paulo. A filosofia e seu ensino. 2ª

ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: EDUC, 1996.

CHILDHOOD & PHILOSOPHY.

www.filoeduc.org/childphilo

CHITOLINA, Claudinei Luiz. A criança e a edu-

cação filosófica. Maringá: Dental Press, 2003.

CUNHA, Auri (org.). Filosofia para a Criança:

orientação pedagógica para a educação infan-

til e ensino fundamental. Campinas: Alínea,

2008.

DANIEL, M. F. A filosofia e as crianças. São

Paulo: Nova Alexandria, 2000.

ENCONTRO COM MATTHEW LIPMAN. São

Paulo: CBFC e ATTA Mídia e Educação, 1999.

HENNING, Leoni Maria Padilla (org.). Apoio

ao ensino de filosofia nas séries iniciais. Lon-

drina, PA: UEL, 1999.

JAPIASSU, H. Um desafio à filosofia: pensar-se

nos dias de hoje. São Paulo: Letras & Letras,

1997.

KOHAN, Walter (org.). Ensino de filosofia.

Perspectivas. Belo Horizonte: Autêntica,

2002.

KOHAN, Walter O. (org.) Filosofia: caminhos

para seu ensino. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

KOHAN, Walter O. Filosofia para crianças. 2.

ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008.

KOHAN, Walter O.; LEAL, Bernardina: TEIXEI-

RA, Álvaro (orgs.). Filosofia na escola pública.

Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. (Série: “Filosofia

e Escola”, volume V).

LIPMAN, M. A filosofia vai à escola. Tradução

de Maria Elice de B. Prestes e Lucia Maria

Silva Kremer. São Paulo: Summus, 1990.

LIPMAN, M.; SHARP, A. M.; OSCANYAN, F. A

filosofia na sala de aula. Tradução de Ana Lu-

íza Fernandes Falcone. São Paulo: Nova Ale-

xandria, 1997.

LORIERI, Marcos Antônio. Filosofia. Funda-

mentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2002.

OBIOLS, G. Uma introdução ao ensino de filo-

sofia. Ijuí: Editora da UNIJUÍ, 2002.

OLIVEIRA, P. R. de. Filosofia para a formação

da criança. São Paulo: Thomson Learning,

2004a.

SANTOS, Nilton. Filosofia para crianças. São

Paulo: Terceira Margem, 2000.

Page 12: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

12

SARDI, Sérgio. Para filosofar com crianças...

Linhas Críticas. Brasília, v. 5-6, 1998, p. 31-37.

SILVEIRA, René José Trentin. A filosofia vai à

Escola? Campinas, SP: Autores Associados,

2002.

Coleções editoriais sobre ensino de filosofia

Editora da UNIJUÍ: Série “Filosofia e Ensino”.

Editora Vozes: Séries “Filosofia na Escola” e

“Textos para começar a filosofar”.

Editora Loyola: Série “Filosofar é preciso”.

Editora DP&A: Coleção “Sócrates”.

Páginas de Interesse

- Banco de Dados sobre ensino de filosofia:

www.filoeduc.org/base

- Fórum Sul de Filosofia:

www.forumsulfilosofia.org

- Fórum de Filosofia e Ensino do Rio de Ja-

neiro:

www.forumfilosofia.com

- Grupo de Trabalho “Filosofar e ensinar a

filosofar”, ANPOF:

www.filoeduc.org/gt

- Núcleo de Estudos Filosóficos da Infância,

UERJ:

www.filoeduc.org/nefi

- Olimpíada de Filosofia:

www.olimpiadadefilosofia.org

- International Council for Philosophical In-

quiry with Children - ICPIC

www.icpic.net

- Nouvelles Pratiques Philosophiques:

www.pratiquesphilo.free.fr

- Institute for the Advancement of Philoso-

phy for Children - IAPC

www.montclair.edu/iapc

Page 13: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

13

TEXTO 1

FilosoFia e educação

FilosoFia e educação: Pensamento e exPeriência

Sílvio Gallo 1

Desde uma perspectiva da tradição, a filo-

sofia é colocada do lado do pensamento

(teoria) e a educação é colocada do lado da

experiência (práxis). Ainda nesta perspecti-

va, quando falamos em relações da filoso-

fia com a educação, em geral pensamos a

filosofia como um dos fundamentos da edu-

cação, isto é, um pensamento que sirva de

base para a práxis educativa; ou então pen-

samos a filosofia como uma reflexão sobre a

educação, ou seja, um pensamento sobre a

ação pedagógica. Em um ou em outro caso,

nega-se à educação a dimensão do pensa-

mento, assim como se nega à filosofia a

dimensão da experiência. O pensamento é

sempre a segurança do já pensado; a experi-

ência é sempre a segurança de experimentar

com redes de segurança; um experimentar

o já posto; um experimentar sem, de fato,

experimentar.

Pretendo aqui exercitar uma experiência de

pensamento. Uma experiência de pensar o

não pensado, de experimentar sem redes

de segurança. Uma abertura ao risco, como

prática da liberdade, como busca do novo e

da criatividade. E, com isso, pensar uma fi-

losofia e uma educação que sejam, ambas e

a um só tempo, pensamento e experiência.

Filosofia como pensamento e experiência;

educação como experiência e pensamento.

Somos testemunhas, neste tempo que nos

foi dado viver, de uma nova guinada do

mundo rumo ao fundamentalismo. Os pro-

jetos libertários e criativos, que ganharam

voz e se fizeram práxis nos anos 1960, foram

primeiro cooptados pelo capitalismo, pas-

sando a ser eles mesmos parte do sistema,

para depois se tornarem sua alma mesma,

como se sempre tivessem feito parte dele.

***

Explico, ainda que brevemente: a potência

de um pensamento e de uma práxis criati-

vos, libertários, que buscava e produzia no-

vos agenciamentos, que começou a se espa-

1 Mestre e Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professor associado (MS-5) da Universidade Estadual de Campinas.

Page 14: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

14

lhar por todos os campos do pensamento e

da vida, foi sendo aos poucos absorvida pelo

Estado. Aquilo que era como que uma “má-

quina de guerra”2, produzido às margens do

sistema, foi sendo incorporado por ele, ajus-

tado às suas regras. A criatividade passou a

ser norma na própria produção industrial. E

aí precisamos questionar: que criatividade é

esta, que se torna norma? Quando a potên-

cia do pensamento é instrumentalizada pelo

marketing, pela indústria cultural e pela

produção de forma geral, quando os fluxos

de desejo são uma vez mais capturados pela

máquina de produção, ‘cadê’ o desejo? A

máquina de guerra torna-se máquina de Es-

tado. Mais uma engrenagem; ou, para falar

com Pink Floyd, “mais um tijolo na parede”.

O fundamentalismo é manchete na mídia,

ao menos em sua vertente religiosa. Mas

não é apenas no islamismo que ele está pre-

sente: também nas religiões ocidentais, no

cristianismo, vemos leituras fundamentalis-

tas cada vez mais presentes. Não é com fun-

damentalismo cristão que os “ocidentais”

respondem a cada novo atentado terroris-

ta? O fundamentalismo não está restrito ao

campo religioso. Também na política ele fin-

ca suas raízes; ao menos no Brasil, cada vez

tem mais força o braço político das igrejas

fundamentalistas, com deputados e mesmo

ocupantes de cargos no Executivo de muitas

cidades. De forma geral, não é também com

fundamentalismo político que os “ociden-

tais” respondem a uma visão de mundo islâ-

mica, criticada justamente por sua rigidez3?

No âmbito da educação, cada vez mais pa-

rece que também buscamos a segurança do

fundamentalismo. Queremos certezas para

educar; queremos fundamentos sólidos nos

quais ancorar nossos projetos educativos.

Não queremos experiências, não queremos

riscos. E tudo isso em nome de quê? Ora, em

nome da segurança de nossas crianças, em

nome da segurança de nosso mundo. Cons-

truímos nossas escolas como se fossem

ilhas de segurança, nas quais temos absolu-

to controle sobre o processo de educação de

nossas crianças. Experiências em educação?

Nem pensar. Fiquemos com a segurança e

os fundamentos sólidos daquilo que sabe-

mos dar certo.

Impossível não lembrar aqui do belo filme

de M. Night Shyamalan, The Village (2004).

O diretor hindo-americano mostra-nos uma

vila rural na qual se vive, percebemos pelas

2 Gilles Deleuze e Félix Guattari trabalham com o conceito de “máquina de guerra” em Mille Plateaux – capitalisme et schizophrènie (Paris: Minuit, 1980). Máquina de guerra é o modo de operação dos povos nômades, que não têm instituída a máquina de Estado. Não devemos confundir máquina de guerra, portanto, com um exército institucionalizado, com o exercício da guerra por uma sociedade instituída como Estado, mas sim como uma forma de luta subversiva, corrosiva, que age contra o instituído.

3 Se olharmos com as lentes de Nietzsche, diremos que o fundamentalismo nada mais é do que a outra face do niilismo; quanto mais negamos, mais buscamos princípios sólidos nos quais confiar.

Page 15: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

15

roupas, em algum momento do século de-

zenove. Os costumes são rígidos e os mais

velhos governam a vila com pulso firme,

de modo a garantir a manutenção de seus

valores e de seus costumes. O que garante

a coesão social da vila é o fato de ela ser

rodeada por florestas, habitadas por estra-

nhas e violentas criaturas. Os habitantes da

vila só estão seguros se não ultrapassarem o

seu perímetro. A “cidade” – isto é, o mundo

exterior – é vista como lugar de corrupção e

violência, que não deve ser visitada, pois isso

influenciaria negativamente os costumes da

vila. O filme de Shyamalan é uma clara crí-

tica ao fundamentalismo norte-americano,

que tem crescido após os atentados de 11 de

setembro de 2001. Mas me parece também

uma bela metáfora para o crescimento do

fundamentalismo na educação, algo que

deve nos deixar atentos.

***

Quando relacionamos filosofia e educação

na perspectiva do fundacionismo, paralisa-

mos o pensamento. Se colocamos a filoso-

fia no lado do pensamento e a educação no

lado da experiência, afirmamos que o pen-

samento não é possível em educação, sem o

recurso da filosofia. Isso significa tirar toda

a potência da educação. E significa também

instrumentalizar a filosofia.

Se compreendemos a educação nesta di-

mensão metafísica (um equivalente ao que

tenho chamado de fundacionismo ou fun-

damentalismo), admitimos que a educação

precisa de bases sólidas nas quais se apoie.

Tais bases são fornecidas pela filosofia, pela

história, pela sociologia, pela psicologia,

por exemplo, as assim chamadas “ciências

da educação”. O que a educação traz para

estas ciências é um objeto: o fenômeno edu-

cativo; cada ciência, por sua vez, contribui

com suas ferramentas para a análise deste

objeto. Com base nesses conhecimentos ob-

jetivos, pode-se, enfim, construir métodos

pedagógicos eficazes e seguros.

A partir dos fundamentos da educação, po-

demos definir nossos objetivos para com o

processo educativo, planejar as ações pe-

dagógicas, avaliar os resultados e fazer as

correções de rota necessárias, com toda a

segurança. Podemos saber exatamente o

que ensinar, para que ensinar, como ensinar,

quando ensinar. E com isso garantir o apren-

dizado de cada criança.

A ideia presente é a de que são os funda-

mentos, as bases que garantem o sucesso e

a potência da educação. No entanto, afirmo

que essa visão fundacionista, fundamenta-

lista, tira toda a potência da educação. Pois,

neste registro, a educação nada é sem tais

fundamentos. No caso específico da filoso-

fia, se a retiramos do rol dos fundamentos

da educação, tiramos toda a potência de

pensamento, de reflexão sobre a educação.

Pois só pensamos a educação pela filosofia;

Page 16: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

16

a educação seria incapaz de pensar-se por si

mesma.

No entanto, uma tal perspectiva também é

despotencializadora para a própria filosofia.

Se esta é colocada como um dos fundamen-

tos daquela, importa o que já foi pensado, o

que já foi produzido, e não o que está ainda

por pensar, por produzir. Nesta dimensão

fundacionista, a filosofia fica do lado do

pensamento, mas do já pensado; e a educa-

ção do lado da experiência, mas da experiên-

cia da segurança, do controle.

***

Experimentemos uma

outra forma de pen-

sar. Tenhamos a co-

ragem de lançar-nos

ao risco de enfrentar

um percurso sem sa-

ber qual nosso ponto

de chegada. Ensaiemos a ideia de uma pers-

pectiva não fundacionista, não fundamenta-

lista de educação, mas também de filosofia.

Apostemos numa filosofia que invista no

risco da diferença, em lugar de investir na

segurança do mesmo.

Aprendemos com Deleuze e Guattari que vi-

vemos sempre à beira do caos, que ameaça

nos tragar. Cair no caos é ceder ao não pen-

samento. Há uma promessa de segurança: a

opinião nos oferece proteção contra o caos.

A opinião promete nos manter afastados do

caos, na segurança do pensamento correto,

na segurança de sempre saber que decisão

tomar. Mas a promessa da opinião é um can-

to de sereia, afirmam os filósofos franceses,

pois é impossível vencer o caos. Aquilo que

a opinião oferece é uma falsa saída. É tam-

bém, ao seu modo, uma forma de não pen-

samento, pois a falsa sensação de segurança

nos impede de arriscar e, fora do risco, não

há criatividade ou pensamento possíveis4.

Segundo estes au-

tores, há três po-

tências do pensa-

mento, que ousam

mergulhar no caos,

para nele encon-

trar a criatividade,

retornando como

vencedores, sem

perder-se no não pensamento. Cada uma

destas três potências age de modo próprio;

cada uma delas cria de forma diferente; e

cada uma delas tem um produto distinto.

Assim, sendo completamente distintas, elas

são complementares: cada uma nos oferece

sua contribuição específica.

As três potências do pensamento são a Arte,

a Ciência e a Filosofia. Em seu mergulho

Tenhamos a coragem de

lançar-nos ao risco de

enfrentar um percurso sem

saber qual nosso ponto de

chegada.

4 Ver O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

Page 17: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

17

no caos, a Arte traça um plano de compo-

sição e cria perceptos e afetos. A Ciência,

por sua vez, traça um plano de referência e

cria funções. Já a Filosofia traça um plano

de imanência e cria conceitos. Pensar por

perceptos, pensar por funções, pensar por

conceitos: são as três modalidades do pen-

samento criativo, produtivo, que não ape-

nas repete o já pensado, que não cede aos

apelos da opinião.

Arte, Ciência e Filosofia nada nos prometem,

mas nos convidam a pensar, a experimentar,

a buscar novos cami-

nhos, novos aconte-

cimentos. Estão em

constante luta contra

a opinião, que nos

promete a segurança

do mesmo, do já pen-

sado, de uma suposta fuga do caos.

Como relacionar a educação com as três po-

tências do pensamento? Se ousarmos sair da

opinião do já pensado, de uma perspectiva

fundacionista da educação, podemos fazer a

experiência de pensá-la como uma intersec-

ção destas três áreas.

A educação já foi pensada exclusivamente

no âmbito da filosofia. Na antiguidade, ela

era tomada como um capítulo da filosofia

(aliás, como quase tudo o era). Em Platão

e em Aristóteles, por exemplo, as conside-

rações sobre educação aparecem em obras

destinadas à política, e ela era considerada

como tekné, isto é, como uma forma de arte,

de prática. Na modernidade, com a emer-

gência do método científico, também a edu-

cação foi contaminada com a “vontade de

verdade”, e desejou constituir-se como ciên-

cia, através das ciências da educação.

Parece-me suficiente claro, portanto, que

historicamente a educação tem transitado

por entre as três áreas que Deleuze e Guatta-

ri identificam como as potências do pensa-

mento, mas ora identificando-se com uma,

ora identificando-se

com outra. A educa-

ção já se compreen-

deu como uma espé-

cie de arte; já tomou

a filosofia como fun-

damento; já tomou

as ciências como fundamentos. Mas em

momento algum a educação considerou-se

mestiça, na confluência destas três áreas.

E, ao assumir-se ora uma coisa ora outra, a

educação valia-se de uma potência específi-

ca, mas perdia as demais. Ora servia à edu-

cação a potência do conceito; ora a potência

das funções; ora a potência dos perceptos e

afetos.

Se, no entanto, pensarmos a educação na

confluência das três potências do pensa-

mento, poderemos ter a educação como

conceito, como função e como afeto, ao

mesmo tempo.

As três potências do

pensamento são a Arte, a

Ciência e a Filosofia.

Page 18: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

18

Não esteve sempre presente na educação a

potência do afeto? Enquanto relação huma-

na, não se vale a educação das relações afe-

tivas? Em grande medida, não é a educação

um processo de sedução, pelo conhecimen-

to, pelo mundo, pelas pessoas?

Não esteve sempre presente, também, a po-

tência da função? Não procuramos sempre

compreender os processos, para, numa re-

lação de causa-efeito, produzir nas relações

pedagógicas os efeitos desejados?

E não esteve sempre ali a potência do con-

ceito? Não vemos também na educação

esse pensamento que ilumina os problemas

de uma forma completamente nova, insti-

tuindo acontecimentos?

Educação mestiça, sem fundamentos, mas

em diálogo criativo com as artes, as ciên-

cias, as filosofias, produzindo, nas relações

pedagógicas, afetos e perceptos, ao modo

da arte; funções, ao modo da ciência; con-

ceitos, ao modo da filosofia. Na intersecção

das três potências do pensamento, pode-

mos ver a educação como esta zona de in-

discernibilidade, na qual as experiências são

constantes, as criações são constantes.

No âmbito desta mestiçagem, a educação

está do lado da experiência (da práxis), mas

também está do lado do pensamento (da

teoria). E a filosofia, por sua vez, está do

lado do pensamento, mas também da expe-

riência. Na mestiçagem, levamos à filosofia

a potência da experiência no pensamento,

na medida em que os desafios postos pela

educação a fazem seguir em busca do ainda

não pensado, fazendo-a abrir-se ao risco do

caos, na necessidade de criar novos concei-

tos para pensar os problemas educacionais.

E levamos à educação a potência do pensa-

mento, fazendo-a sair da falsa segurança do

fundamentalismo para, uma vez mais, pen-

sar e repensar suas experiências, buscando

novas alternativas criativas.

Este é o desafio que nos coloco, para nós

que trabalhamos em e com educação: na

busca de antídoto contra o fundamentalis-

mo que invade nosso mundo: valermo-nos

das potências do pensamento, das potên-

cias de criação para, a cada dia, experimen-

tar o novo. Experimentar a educação como

acontecimento, que se produz no cotidiano

de nossas salas de aula, e sobre o qual não

temos nenhum controle, mas somos per-

sonagens ativos na sua produção coletiva,

com nossas crianças, também personagens

centrais nesta produção.

Finalizo lembrando de Nietzsche e das três

metamorfoses do espírito. Afirma o filóso-

fo alemão que o espírito torna-se camelo, o

animal que carrega todo o peso da tradição;

no deserto, o camelo, torna-se leão, aquele

que nega o peso do dever e afirma seu de-

sejo; mas o leão, por fim, torna-se criança,

que é inocência e esquecimento, apenas ela

Page 19: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

19

capaz de dizer que sim, o sim necessário à

criação5.

Para uma educação que se quer antídoto

ao fundamentalismo, império do dever-ser,

do mundo dos adultos, é preciso um devir-

criança, a chance de recomeçar, de brincar

com o mundo e de criar.

5 Ver Assim Falava Zaratustra. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1998, p. 28-30.

FILOSOFIA

CIÊNCIAARTE

EDUCAÇÃO

Page 20: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

20

TEXTO 2

FILOSOFIA E INFÂNCIAWalter Omar Kohan 1

Infância quer dizer, etimologicamente, au-

sência de fala. Essa ausência foi entendida,

tradicionalmente, como incapacidade de

falar. A partir desse sentido etimológico, há

duas formas principais de se compreender

a infância. A primeira, mais evidente, como

a etapa inicial da vida. Neste sentido, a vida

é entendida como processo em desenvolvi-

mento, e a infância como o primeiro tempo

cronológico de vida transcorrido. Basta ter

um número de anos que se está na infância.

Nesta lógica, crianças e adultos são termos

relativos e opostos: toda criança para ser

adulta precisa abandonar a infância e todo

adulto é adulto porque deixou de ser crian-

ça, o que significa que já foi antes criança e

também que já não é mais criança. Na se-

gunda forma de pensar a infância, ela não

é uma etapa da vida, mas uma condição

do humano que está presente (ou pode es-

tar presente) em diversas idades. Enquanto

condição, a infância pode ser entendida de

diversas maneiras, por exemplo, como: figu-

ra do começo e da afirmação (em Assim fa-

lou Zaratustra, de F. Nietzsche); experiência

original e originária a ser recuperada (em A

criança, o brinquedo, a educação de W. Ben-

jamin); condição da experiência, da história

e da linguagem (em Infância e história, de G.

Agamben); bloco, devir, figura da transfor-

mação minoritária (em Mil Platôs, de G. De-

leuze e F. Guattari); uma dívida do humano

com o inumano (em Memórias da infância,

de J. F. Lyotard).

No campo da educação, podem ser perce-

bidas duas tendências claramente diferen-

ciadas a partir dessas duas possibilidades de

pensar a infância. A primeira pensa a educa-

ção como formação e a infância como obje-

to dessa formação. Os antecedentes desta

possibilidade na chamada tradição ociden-

tal são tão antigos quanto os gregos (Pla-

tão, Aristóteles, etc.) e ela tem se mantido

como a forma dominante de pensar a edu-

cação das crianças ao longo da história das

1 Professor Titular de Filosofia da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Cientista de Nosso Estado (FAPERJ) e pesquisador do CNPq e do Prociência (UERJ/FAPERJ). Doutor em Filosofia – Universidad Iberoamericana (México), com pós-doutorado na Universidade de Paris VIII (França). Consultor da série.

Page 21: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

21

ideias pedagógicas dessa mesma tradição. A

segunda parte da ideia de que a infância é

uma condição e, nesse sentido, ela é um es-

tado – pelo menos em potência – tanto dos

educandos quanto dos educadores. A infân-

cia, então, deixa de ser algo que uma boa

educação permitiria abandonar para pas-

sar a ser o que ela tenta alimentar, cuidar,

atender. A infância deixa de ser o informe,

a possibilidade, e passa a ser o enigma da

alteridade, a estrangeiridade de uma língua

que não fala a língua da condição adulta.

Entre os que promovem as práticas filosó-

ficas na infância, Matthew Lipman criou o

programa filosofia para crianças, que já foi

traduzido e praticado no Brasil nos últimos

trinta anos. Lipman morreu recentemente,

com 87 anos, nos Estados Unidos de Amé-

rica. Fez um programa completo, chamado

philosophy for children, incluindo novelas

filosóficas para crianças e manuais para

professores de educação básica, bem como

uma fundamentação teórica com numero-

sos livros e artigos, dentre eles A filosofia vai

à escola e O pensar na educação. Lipman con-

siderava que, incluindo a filosofia na forma-

ção das crianças, elas teriam uma educação

mais consistente, significativa e democráti-

ca. Não considerava a filosofia um conteú-

do, mas uma forma de investigação coletiva

que desenvolve o pensamento crítico, cria-

tivo e ético de seus participantes. Mais do

que um programa ou uma teoria, Lipman

é o iniciador – junto a Ann Margaret Sharp

(1942-2010) – de um movimento que se es-

tendeu por mais de cinquenta países de to-

dos os continentes para ajudar as crianças

a pensar de forma crítica, criativa e cuida-

dosa sobre si mesmas e o mundo que as ro-

deia.

Contudo, a proposta de Lipman é só uma

possibilidade entre muitas: há diversas

maneiras de pensar e fazer a filosofia com

crianças. Em um sentido, a prática filosófi-

ca pode ampliar-se se o conceito de infância

diz respeito não apenas às crianças, mas a

certa condição da experiência da subjeti-

vidade, como sugerido anteriormente. Em

outro, a depender do que se entende por fi-

losofia, podem ser propostas práticas muito

diferentes. De fato, muitos recusam a ideia

de que se possa fazer filosofia com crianças

justamente a partir de concepções da filo-

sofia muito fechadas e atreladas a imagens

também debilitadas da infância. Em outro

sentido, se afirmarmos, com o filósofo fran-

cês H. Bergson, que a filosofia é uma forma

de estender, aprofundar e intensificar a vi-

são de uma pessoa, ou uma forma de apren-

der a perceber e atender o mundo, as pes-

soas e nós mesmos; ou, com outro filósofo

francês, M. Merleau-Ponty, que “a filosofia

é reaprender a ver o mundo”, então resulta

evidente que qualquer ser humano de qual-

quer idade está em condições de praticar a

filosofia e negar seu acesso é também negar

um direito por viver uma vida mais signifi-

cativa e humana.

Page 22: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

22

Atualmente, existem no mundo diversos

projetos trabalhando, a partir de diversos

pressupostos, na educação filosófica da in-

fância. Dentre eles, podemos apresentar

o projeto “Em Caxias a filosofia en-caixa?”

da Universidade do Estado do Rio de Janei-

ro (www.filoeduc.org/caxias). Os princípios

norteadores desse projeto são: a PROBLE-

MATIZAÇÃO, como maneira de abrir os es-

paços onde habitualmente não há pergun-

tas; a INVESTIGAÇÃO CRIATIVA, como modo

de compor e recompor o pensar e o sentir,

de re-configurá-los e fazê-los proliferar; o

DIÁLOGO PARTICIPATIVO, aberto e funda-

mentado na inter-relação com os outros; o

TRABALHO COLABORATIVO, enquanto forma

de se envolver nas práticas educacionais; a

RESISTÊNCIA frente a toda imposição; o EN-

RIQUECIMENTO da vida, para tornar mais

COMPLEXO o mundo e explorar outras di-

mensões da existência; o EXERCÍCIO perma-

nente sobre o próprio pensamento, sobre

as ideias com as quais nos lemos e lemos o

mundo; a IGUALDADE das inteligências dos

participantes como seres capazes de pensar

sem distinção de idade, lugar institucional,

cor de pele, opção sexual, etc.; a EXPERI-

ÊNCIA, como modo de se abrir ao novo e

se relacionar com o próprio pensamento; a

DIFERENÇA, como afirmação da irredutível

singularidade da vida.

Este projeto não aplica qualquer programa

em particular e também não propõe téc-

nicas definidas. Os próprios métodos são

objeto de investigação junto a professores,

crianças e adultos. Afirmam-se algumas

pautas de trabalho: em todas as aulas de fi-

losofia se compartilha um texto, que é pro-

blematizado e debatido. Sendo assim, “o que

se constitui em um texto adequado para um

debate filosófico?”, “o que significa ler?”,

“qual é o sentido da leitura em uma aula de

filosofia?” são perguntas que atravessam a

prática do projeto. Utilizam-se textos de filó-

sofos, literatura brasileira, filmes, letras de

músicas e outras formas textuais que propi-

ciem a irrupção do filosófico. Periodicamen-

te são planejadas as atividades de filosofia

segundo os projetos do(a)s professore(a)s. É

propiciada ao(à)s professore(a)s e crianças

uma atitude ativa frente à filosofia, própria

de uma prática que não se transmite, mas

que se exerce.

A proposta de levar a filosofia à escola não

é considerada no projeto como o transporte

para a escola de um conteúdo que poderia

ser considerado filosófico, mas como a pos-

sibilidade de abrir nela um espaço para o fi-

losofar como verbo, para se entregar a esse

particular exercício de pensar. O filosofar é

visto aqui como uma experiência, como um

trabalho sobre o sentido: sobre o sentido do

que somos e do que nos acontece. O que nos

acontece nos afeta particularmente, afeta a

relação que temos conosco e com o mundo.

Desde a perspectiva experiencial, a filosofia,

ou melhor, o filosofar é inconciliável com

Page 23: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

23

a ideia de um modelo, de uma forma pre-

viamente determinada à qual haveria que

se ajustar. Se a experiência de pensar não

é nem um conteúdo nem um mecanismo,

a ideia tradicional de “formar” como um

“moldar” a outro para garantir essa expe-

riência deve ser repensada. Não é possível

formar a infância segundo a lógica da expe-

riência do pensar.

A experiência não pode ser garantida. Não

só é intransferível e pessoal: também é im-

previsível. Irrompe, se faz presente sem pré-

vio aviso. Não há método que assegure seu

acontecimento, não temos como garantir o

que nos afetará e de

que modo nos afeta-

rá e re-configurará

ou não nosso senti-

do do mundo.

A possibilidade de aprender, diz Deleuze (em

Proust e os signos), tem a ver com a possi-

bilidade de tornar-se sensível à complexida-

de do mundo, à sua essência complicada.

Pensamos quando nos deparamos com essa

multiplicidade complicada que é o mundo.

Esse movimento se opõe àquele que se ocu-

pa de se ajustar a um padrão unívoco prede-

terminado. Filosofar é se surpreender com

o mundo.

Se o exercício de pensar não responde à

lógica da transmissão de um conteúdo, a

partir de qual perspectiva abordamos o tra-

balho de convite ao outro do pensar como

atividade, como exercício? Sobre qual di-

mensão dessa tarefa concentrar nosso tra-

balho? Como acompanhar alguém que está

disposto a embarcar nessa experiência? De

que maneira gerar confiança e oferecer os

elementos que o outro precisa para percor-

rer seu próprio caminho? Como tornar essa

possibilidade aberta? Se não temos conteú-

do e não temos método a transmitir, como

dar consistência a um espaço de “forma-

ção”?

Eis algumas notas para pensar essas pergun-

tas difíceis: o trabalho em filosofia é um tra-

balho de e sobre a

atenção. Aprender

é atender. Pensar é

atender. Ensinar é

atender. A atenção é

uma forma de rela-

ção com algo que demanda certo esforço e

que parece criar um âmbito de intimidade;

a atenção propicia uma particular forma de

sermos afetados pelo mundo. De modo que

o que fazemos é estar atentos e propiciar a

atenção, estar sensíveis e propiciar a sensi-

bilidade. Ali começa o pensamento, ao tor-

nar-nos sensíveis ao movimento, à comple-

xidade do mundo. Também é uma forma de

“dis-tensão”, de relaxamento da tensão que

nos liga a interesses práticos e utilitários.

No final, é um trabalho para des-aprender

hábitos incorporados como típicos ou natu-

rais que inibem a experiência do pensar.

Filosofar é se surpreender

com o mundo.

Page 24: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

24

A filosofia não é útil ou instrumental. Ela

não é “instrumento para” a democracia, a

formação de cidadãos críticos, criativos,

bem sucedidos, ou qualquer outra coisa. A

utilidade e a instrumentalidade respondem

à lógica da produção, ao estabelecimento de

médios e etapas para conseguir alcançar ob-

jetivos previamente traçados. Entrar nessa

lógica implica restringir nossa capacidade

de percepção, supõe reduzir nossa capaci-

dade de ser afetados pelo movimento desse

mundo que está ali, ainda que não consiga-

mos entendê-lo. Os interesses e funcionali-

dades externos nos

abrumam, abarro-

tam nossa atenção,

nos distraem, nos

tornam desatentos.

A filosofia tem senti-

do, abre os sentidos,

expande a sensibili-

dade, a partir da qual

ganha forças nosso pensamento. A filosofia

e a infância são formas de alteridade. O ca-

minho da filosofia transitado pela infância

é um caminho inacabado e inacabável no

pensamento. A filosofia e a infância ajudam

a manter o ritmo, a não se fixar exagera-

damente nas comodidades encontradas, a

desconfiar das certezas fáceis, a valorizar as

incompletudes, a deixar-se surpreender pe-

las sendas não transitadas. Filosofar é uma

maneira de acompanhar desde dentro o

enigma do pensamento. Filosofar na infân-

cia significa convidar todos que habitam a

condição da infância a participar desse ca-

minhar e desse enigma e estar dispostos a

ouvir o que as diversas infâncias nos podem

ajudar a pensar.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

Filosofia para crianças é apresentada por M.

Lipman em dois livros traduzidos ao portu-

guês: Philosophy Goes to School (A Filosofia

vai à Escola. São Paulo: Summus, 1990) e Phi-

losophy in the classroom (A Filosofia na Sala de

Aula. São Paulo: Nova

Alexandria, 1994; em

colaboração com

Ann M. Sharp e F.

Oscanyan). Sua fun-

damentação teórica

mais forte está em

Thinking in Education

(Pensar na Educação.

Petrópolis, RJ: Vozes,

1995) que teve uma segunda edição recen-

te, com mudanças significativas (Cambridge

University Press, 2004, 2. ed., ainda inédita

em português). Escrevi alguns livros sobre a

matéria: dentre eles, Filosofia com crianças

(Rio de Janeiro: Lamparina, 2009, 2ª ed.); In-

fância. Entre educação e filosofia (Belo Hori-

zonte: Autêntica, 2004); (Petrópolis: Vozes,

2000).

Os interesses e

funcionalidades externos

nos abrumam, abarrotam

nossa atenção, nos

distraem, nos tornam

desatentos.

Page 25: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

25

Pelo menos desde Sócrates a filosofia mos-

trou-se ligada à educação. Por muito tem-

po, essa antiga aliança floresceu à margem

da institucionalização e da escolarização e,

portanto, a salvo de programas, currículos,

livros didáticos e vestibulares. Antes de tudo

era o desejo que sustentava a relação entre

um que se dispunha a ensinar e outro que

se propunha a aprender; tudo a ver quando

se trata de ensinar e aprender, mais ainda

quando o que se ensina e o que se aprende

traz em seu nome um afeto: a philía.

Bem diferente é o cenário atual em que a

filosofia entra na sala de aula no Ensino

Médio pelas mãos da lei, sem que se saiba

muito bem para que e como praticá-la – ain-

da que os documentos oficiais atrelem-na a

uma cidadania pretendida. Dispersa entre

várias disciplinas, espremida entre uma aula

de física e outra de história, eis o lugar da

filosofia, outrora praticada em campo aber-

to. De um lado, seu público alvo, alunos em

plena adolescência, muitos dos quais aves-

sos à escola, atenção flutuante em meio à

febril agitação e, diante deles, o professor

com a ocupação de como e qual conteúdo

ministrar e a preocupação de como instau-

rar um ambiente minimamente propício

para filosofar. De outro, há que considerar

que a instituição educativa visa à formação

e se sustenta essencialmente na repetição,

na medida em que seu trabalho consiste em

apresentar e inserir os jovens na cultura já

existente. Nada mais distante do filosofar

que a mera repetição. Não é, pois, peque-

no o desafio do professor de filosofia. Talvez

para enfrentá-lo seja de ajuda ter sempre

presente a philía.

TEXTO 3

FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO

FilosoFia no ensino médio: Possibilidade de uma educação FilosóFica

Ingrid Xavier 1

O filósofo sempre se achou e teve de se achar em contradição

com seu hoje: seu inimigo sempre foi o ideal de hoje2.

1 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora e Coordenadora Pedagógica do Colégio Pedro II e Coordenador do Estágio em Prática de Ensino no CPII da Licenciatura em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora em Educação pelo PROPED- UERJ.

2 NIETZSCHE, F. Sobre el porvenir de nuestras escuelas. Barcelona: Tusquets, 2000, p.118.

Page 26: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

26

A lógica da educação pautada no ideal de

formação tem por pressuposto teleológico

uma forma ideal prévia e normativa à qual o

aprendiz deve adequar-se. Um dever ser está

na raiz do gesto de dar forma: ajustar cada

um ao que deve ser. E, embora muitas vezes

digamos que educamos para a liberdade, de

algum modo em nossos esforços para for-

mar ressoa um já saber, de antemão, aonde

se quer chegar e nossas boas intenções for-

mativas não se cansam de repetir e procla-

mar modelos preestabelecidos capazes de

educar para um mundo melhor.

Ser professor de filosofia requer problemati-

zar, na teoria e na prática, o ensinar e apren-

der filosofia, fazendo dialogar a teoria e a

prática na instituição escolar, onde a prin-

cípio nada parece possível. Através da pro-

blematização do impossível nasce também

a necessidade impostergável para cada um

que ocupa a posição de professor de filosofia

de se pensar desde um novo lugar, de per-

correr outros caminhos no pensamento em

nome da filosofia e de seu ensino. Trata-se,

em certo modo, de colocar em questão os

discursos mais otimistas e pessimistas sobre

a posição da filosofia na escola.

É mesmo desconcertante que a filosofia

ocupe um lugar na escola, pois afinal pelo

menos três pontos a tornam de certo modo

estranha à escolarização: mais do que pro-

priamente um saber, ela é uma atitude;

tampouco há um método que garanta que

alguém possa aprender a filosofar; e, por úl-

timo, a filosofia não tem um objeto delimi-

tado, o que parece colocar um ponto final

desencorajador.

A educação é um espaço de incessantes con-

flitos. Transgredir a naturalização dos sabe-

res e exercitar-se como máquina de guerra

frente ao aparelho de Estado são estratégias

a serem tentadas por aqueles que pensam

ser interessante problematizar o lugar e o

sentido do ensino de filosofia em direção a

uma educação filosófica.

O fato de que haja diversas tentativas de jus-

tificar a filosofia na escola, nenhuma delas

cabal, instaura um campo de problemas que

se organiza em torno de pelo menos duas

instâncias: a dificuldade de pôr em acordo

as diversas concepções do que seja isto, a

filosofia, bem como encontrar concordância

quanto ao que seja ensiná-la e, principal-

mente, o sentido de fazê-lo: para que levar a

filosofia à escola?

A filosofia, filha da cidade, nasceu enraizada

no político, na discussão racional das ordens

cósmica e humana, e em franco embate com

a palavra poética transpassada pelo mito

oriundo do campo do sagrado. Subjaz desde

a origem da filosofia esta tensão entre a pala-

vra-poética produtora de efeitos e a palavra-

verdade, que estreia a racionalidade consti-

tuinte da filosofia. Esse estatuto ambíguo da

filosofia mostra uma oposição essencial en-

Page 27: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

27

tre dois modos de experimentar o logos. Por

um lado, o logos como instaurador de sen-

tido, identificado com o pensar e assumido

como phármakon, capaz de produzir efeitos;

por outro, associado ao conhecer, uma com-

preensão epistêmica do logos que se organi-

za como dispositiva para melhor conhecer o

real e pretender a verdade. É inegável a força

que esta última compreensão de logos vem

tendo para afirmar-se como o viés mais pró-

prio da filosofia. Contudo, no terreno da filo-

sofia, a tensão inicial ressoa: produzir efeitos

desde o pensar ver-

sus conhecer.

Mais do que per-

guntar que filosofia

ensinar nos inte-

ressa problematizar

para que filosofar

na escola. Não é de

maneira alguma re-

cente a demanda de que a filosofia decla-

re sua utilidade. O “para que”, comumente

seguido de serve, busca na resposta uma

utilidade, uma função. Mas a utilidade da

filosofia não se confunde com as exigências

de funcionalidade exigidas pelo pragmatis-

mo reinante, e à pergunta “o que se pode

fazer com a filosofia?” cabe como resposta a

afirmação de que a filosofia pode fazer algo

com aquele que pergunta, uma vez que se

deixe afetar por ela. Entendemos que uma

educação filosófica pode contribuir para

pensar possibilidades de transformar o

modo como nos pensamos no mundo; para

forçar o pensamento a se pensar.

Se partilhamos o suposto de que uma das

possibilidades da filosofia é dar-se conta do

nosso presente, então que hoje é este que,

apoderado pela ciência da técnica, tem no

mercantil a significação a priori capaz de in-

formar as redes simbólicas e conceituais da

convivência? Pensar este tempo que, empo-

derado como nunca para efetuar velozmen-

te destinações, avança desabalado e pouco

tempo se dá para

pensar as forças que

o orientam, é uma

das maneiras de ex-

pressar um possível

sentido para filoso-

far na escola hoje.

Talvez por isso, pela

obstinação e vora-

cidade do modo de

vida dominante da chamada sociedade pós-

moderna para negar ou combater os modos

de vida verdadeiramente alternativos, esse

sentido apareça como particularmente sig-

nificativo quando a filosofia adentra o espa-

ço de educação dos jovens.

A sociedade de consumo, ao tornar rotina a

“novidade” de seus produtos, promove uma

imobilidade de fundo agenciando a forma-

ção de subjetividades adestradas às vitri-

nes do shopping. Diante disso, os sentidos

clássicos outorgados à filosofia, tais como

Intempestiva,

extemporânea, a filosofia

afirma que o mundo

poderia ser diferente.

Sempre.

Page 28: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

28

“ensinar a pensar”, “promover a cidadania”,

“desenvolver o pensamento crítico” entre

tantos outros que há tanto vêm sido reite-

rados, talvez não sejam os mais significati-

vos ou pelo menos suficientes para promo-

ver uma educação filosófica comprometida

com a construção de subjetividades preocu-

padas em inaugurar outros modos de vida.

Assim, pensar as possibilidades da filosofia

no Ensino Médio pressupõe ocupar-se tam-

bém dos mesmos incômodos que indicam

hoje sentidos que a própria filosofia sinaliza

para o filosofar. Intempestiva, extemporâ-

nea, a filosofia afir-

ma que o mundo

poderia ser diferen-

te. Sempre. Nunca

há um só mundo.

A filosofia nasce de

certo inconformis-

mo com o mundo.

Com este mundo, com outros mundos, com

todos os mundos. É confrontando-se ao in-

cômodo com o presente que a filosofia pode

encontrar um sentido que justifique sua

prática e seu lugar na escola; para espantar

a besteira, para compartilhar junto com os

jovens o incômodo com a besteira e desa-

comodar e desinstalar os que dela se apro-

ximam.

Uma educação filosófica pode ser extrema-

mente fértil no terreno da escola como ins-

tauradora de um espaço de resistência ca-

paz de incentivar o rechaço aos imperativos

hodiernos que convocam incessantemente

ao apetite consumista, à acomodação dissi-

mulada em conforto, ao hedonismo disfar-

çado em carpe diem, ao ‘salve-se quem pu-

der do cada um por si’ que vem solapando

o interesse pela vida política. Filosofia como

convocação à resistência. Resistir, contu-

do, não é somente rechaçar, não é a sim-

ples negação passiva do que há – o que no

caso aproximaria a resistência do niilismo –,

mas resistir consiste, sobretudo, em afirmar

possibilidades e sentidos que permitam in-

ventar e experimentar coletivamente outras

formas de vida, ou-

tros modelos de

convivialidade pas-

síveis de migrar do

espaço construído

através de uma edu-

cação filosófica na

escola para outros

espaços, tendo os jovens como seus inter-

cessores. O que parece mais próprio e fe-

cundo para a filosofia no Ensino Médio é

sua potência de educar filosoficamente, sua

força de impulsionar os jovens à desacomo-

dação; efeito que pode ser conquistado pela

resistência à platitude dos modos de vida,

muitas vezes empobrecidos e anódinos nos

quais, contemporaneamente, sobrevivemos

desencantados e incrédulos.

O conhecer está, de modo geral, comprome-

tido com a razão e a lógica em seu empenho

No pensar têm lugar

também o imaginar, o

sentir, o desejar.

Page 29: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

29

de apropriação do real. No entanto, em si

mesma, a lógica não é o real, nem sequer

o possível, mas apenas um dos dispositivos

capazes de articular o possível com o real

de modo a estabelecer uma intersubjetivi-

dade objetiva. Mas o conhecer não esgota as

possibilidades do pensar, o conhecimento é

tão somente uma das possibilidades do pen-

samento. No pensar têm lugar também o

imaginar, o sentir, o desejar. Pensar permite

instituir possíveis, a imaginação a partir de

experiências singulares abre o pensamento

aos possíveis. Sem pretender verdades, a

arte de pensar pode

contribuir para a

arte de viver con-

centrada no lema de

Píndaro “vir a ser o

que se é”.

Cabe um esclareci-

mento: colocar em

questão a primazia da razão no filosofar

está muito distante de defender qualquer

espécie de “irracionalismo”, não se trata

de desconfiar da razão e a ela simplesmen-

te opor o que estaria fora do pensamento,

mas abrir mais espaço para o pensamento

ampliando sua extensão, de modo que o

conceito de pensamento contenha a razão

e não esta aquele.

Uma filosofia deve ser capaz de fazer com

que se experimente viver de acordo com ela.

Isto é decisivo e convoca a praticar uma fi-

losofia na escola não tanto preocupada em

ministrar conteúdos, mas a aspírar uma di-

mensão de educação filosófica capaz de res-

soar na maneira de viver dos estudantes. E,

desde logo, é a partir da relação que o pro-

fessor tem com a filosofia e com os filósofos

pelos quais se interessa que essa possibilida-

de pode ser atualizada. Em especial, ao res-

gatar o que Sócrates nos ensina na Apologia

“interrogar, examinar e confutar” a própria

vida.

A filosofia na escola, ou uma educação filo-

sófica, pode ser um

convite a criar um

ambiente, instau-

rar uma atmosfera,

propiciar uma sensi-

bilidade atenta para

acontecer o pen-

samento. Antes de

ocupar-nos do con-

teúdo disciplinar – quais temas, textos ou

problemas que iremos trazer para explorar

com os alunos – pensamos ser condição de

possibilidade para ensinar a filosofar com

adolescentes a preocupação em construir

uma atmosfera propícia ao desaprender. De-

saprender no sentido de desvestir alguns há-

bitos, desconstruir alguns supostos, dar as

costas às certezas. E isso passa necessaria-

mente pelo afeto, uma educação filosófica

não é somente tarefa do pensamento, mas

talvez e, sobretudo, trabalho do sentimento.

O gosto por pensar juntos pode emergir na

O pensamento não aparece

quando queremos, mas

sim quando as condições

de seu aparecimento são

provocadas.

Page 30: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

30

instauração de um clima, uma ambiência de

espera atenta ao inesperado e ao aparente-

mente sem sentido: philía.

O pensamento não aparece quando quere-

mos, mas sim quando as condições de seu

aparecimento são provocadas. Contudo,

provocar não significa produzir, nem toda

provocação tem uma resposta. Provocar es-

sas condições está ligado a criar uma atmos-

fera que expulse o medo de errar, de ensaiar

a pensar em voz alta; e como é difícil desa-

prender o hábito escolar de responder cor-

retamente, dizer o certo, falar o oportuno.

A criação desta “ambiência pática” parece

ser uma das condições para provocar o pen-

samento, pois não pensamos espontanea-

mente, como bate o coração; pensar é um

esforço e decorre de um incômodo, é uma

reação operada por algo que nos força a pen-

sar. Não é um eu voluntário que produz o

pensamento, como o pâncreas produz insu-

lina, mas forças involuntárias que obrigam

o pensamento a se pôr em marcha. Não é de

uma boa vontade que o pensamento depen-

de, mas das forças que atuam na sua instau-

ração, do terreno em que está posta a vida

em que o pensamento acontece. Antes que

um método ou um caminho há que oferecer

um terreno propício ao pensamento. O que

constitui propriamente esse terreno para fi-

losofar na escola é a instauração de um pá-

thos, de uma correlação de forças cuja resul-

tante intensiva seja a atenção. Esse páthos

deriva, pois, de uma composição de forças

afetivas, do desdobramento da philía que in-

veste a filosofia. A philía da filosofia é uma

paixão, uma relação que não se sustenta nos

vínculos parentais, pois a filosofia, afinal, é

uma relação baseada em um afeto e não um

afeto baseado em uma relação.

Talvez seja possível desenvolver o senti-

do de philía em suas acepções como amor,

amizade e desejo e chamar também para

ela o cuidado, a confiança e a hospitalida-

de. Confiança não no sentido moral de uma

passividade ingênua acomodada, mas como

resistência à desconfiança imperante. Cui-

dado como disposição interessada, preo-

cupação com o outro. Hospitalidade como

acolhimento do estrangeiro, do imprevisto.

Abertura para o que está fora, experiência

do puro dom. O estrangeiro, por certo, não

fala a língua do anfitrião e essa condição de

estrangeiridade está quase sempre presente

no ensino de filosofia: a língua do ensinante

é a língua da filosofia, língua desconhecida

pelos aprendizes convidados a habitar uma

educação filosófica.

Uma educação filosófica comprometida

com a vida de cada um e com o hoje comum

a todos está em sintonia com o imperativo

pindárico antes anunciado: Vir a ser o que se

é. Autoexigência de transformação, abertu-

ra a novos devires. Vir a ser o que se é não

indica a transição de um ser em potência

a um ser em ato. Também não se trata de

Page 31: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

31

trazer à luz uma identidade oculta, um si

mesmo, pois não há um ser, um substrato

substantivo subjacente ao devir. O que o

lema sugere são ressignificações do que se

é, deslocamentos, devires, reconfigurações,

rearranjos de forças que não podem ser

separadas das afecções e agenciamentos,

das sucessões e encontros que constituem

o instável e mutante efeito do que chama-

mos “eu”. Vir a ser como tarefa de criação

contínua, invenção de si que depende de

desaprender-se e esquecer constantemen-

te o que se é para inaugurar-se em outras

configurações, desfigurando-se a cada vez

para efetivar-se em outra nova figura tam-

bém sempre transitória. Vir a ser o que se é

abriga um lindo paradoxo: aquilo que somos

e que podemos vir a ser, aquilo que mais nos

fortalece como indivíduos é saber o quão

pouco somos como indivíduos. É nos per-

dendo que nos encontramos.

Deste modo, o movimento de ensinar filo-

sofia com vistas a uma educação filosófica

implica fazer do aprender próprio e alheio

uma experiência de abertura e de encontro

no pensamento. Encontros no pensamento

em si e nos outros, relacionando-se com a

filosofia de maneira vital e comprometida.

Fazer do ensinar e aprender filosofia uma

oportunidade para virmos a ser aqueles que

aprendemos a ser. Quem sabe, então, numa

educação filosófica encontremos essa força

para aprender e o aprender dessa força que

dê outra intensidade a nossas vidas.

BIBLIOGRAFIA

DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio

de Janeiro: Graal, 1988.

DOTTI, Jorge. Sobre los tiempos que corren. In:

CERLETTI, Alejandro; KOHAN, Walter Omar.

Filosofia no ensino médio. Brasília: UNB, 1999.

FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits. Vol. IV. Pa-

ris: Gallimard, 1994.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever

esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009.

HADOT, Pierre. La philosophie commme ma-

nière de vivre. Paris: Albin Michel, 2001.

NIETZSCHE, Friedrich. III Consideração in-

tempestiva: Schopenhauer educador. In: Escri-

tos sobre educação. São Paulo: Loyola, 2003.

p. 138-222.

__________Sobre el porvenir de nuestras es-

cuelas. Barcelona: Tusquets, 2000.

KOHAN, Walter Omar. Sócrates: el enigma de

enseñar. Buenos Aires: Biblos, 2009.

Page 32: FILOSOFIA: ENSINO E EDUCAÇÃO · a Lei n. 1.684/2008 torna obrigatório o ensi-no da disciplina em todas as séries do Ensi-no Médio. Estão em curso, ainda, em muitos ... Olimpíadas

32

Presidência da República

Ministério da Educação

Secretaria de Educação Básica

TV ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO

Coordenação-geral da TV Escola

Érico da Silveira

Coordenação Pedagógica

Maria Carolina Mello de Sousa

Supervisão Pedagógica

Rosa Helena Mendonça

Acompanhamento Pedagógico

Luís Paulo Borges

Coordenação de Utilização e Avaliação

Mônica MufarrejFernanda Braga

Copidesque e Revisão

Magda Frediani Martins

Diagramação e Editoração

Equipe do Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Impressa – TV BrasilGerência de Criação e Produção de Arte

Consultor especialmente convidado

Walter Omar Kohan

E-mail: [email protected]

Home page: www.tvbrasil.org.br/salto

Rua da Relação, 18, 4o andar – Centro.

CEP: 20231-110 – Rio de Janeiro (RJ)

Setembro 2011