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Maria Helena Santana temas portugueses LITERATURA E CIÊNCIA NA FICÇÃO DO SÉCULO XIX A NARRATIVA NATURALISTA E P A NARRATIVA NATURALISTA E PÓS-NATURALISTA PORTUGUESA ÓS-NATURALISTA PORTUGUESA

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Page 1: LITERATURA E CIÊNCIA NA FICÇÃO DO SÉCULO XIX · contradições do pensamento positivista no dealbar do século xx. Maria Helena Santana, professora da Faculdade de Letras de

O prestígio alcançado pela Ciência pós-iluminista contribuiu para uma acentuada subalternização das Humanidades, geran-do uma relação conflitual entre as duas culturas. Na segunda metade do século xıx, a reacção dos homens de letras à perda de poder simbólico traduziu-se, paradoxalmente, numa tentativa de mimetismo em relação à «ciência positiva» do seu tempo. Dos paradigmas biologista e darwinista emergentes, a Literatura incorporou uma nova visão da natureza e da vida, mas também uma mitologia científica, cristalizada num conjunto de produtos culturais (a selecção natural e o struggle for life; a histeria, a degenerescência, a nevrose mística e artística...) cujo rasto se procura seguir neste estudo. Ancorado nas doutrinas do Positivismo e na sua ideologia burguesa do Progresso, o romance naturalista reivindica uma «alta missão social»: a moralização da vida pública e privada; a utopia da cidade ideal e da perfeição individual; a vigilância dos costumes, das paixões e dos instintos. Mas a poética romanesca não vive apenas da normalidade, antes implica a dramatização do erro e do desvio, a dialéctica do desejo e da culpa — e aí reside o seu interesse literário. Eça de Queirós, Fialho de Almeida, Teixeira de Queirós e Abel Botelho são alguns dos autores aqui estudados. Muitas das suas obras, centradas na equação Progresso/Felicidade, ilustram as contradições do pensamento positivista no dealbar do século xx.

Maria Helena Santana, professora da Faculdade de Letras de Coimbra e investigadora do Centro de Literatura Portuguesa, tem-se dedicado ao estudo da narrativa e da crónica literária dos séculos xıx e xx. Publicou, na Imprensa Nacional-Casa da Moeda, as edições críticas de Textos de Imprensa VI, de Eça de Queirós (1995), e de O Arco de Sant’Ana, de Almeida Garrett (2005).

Maria Helena Santana

temas portugueses

Maria H

elena Santana

INCM9 7 8 9 7 2 2 7 1 4 6 2 4

ISBN 978-972-27-1462-4

LITERATURA E CIÊNCIANA FICÇÃO DO SÉCULO XIXA NARRATIVA NATURALISTA E PA NARRATIVA NATURALISTA E PÓS-NATURALISTA PORTUGUESAÓS-NATURALISTA PORTUGUESA

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IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA

LISBOA

2007

Maria Helena Santana

LITERATURA E CIÊNCIANA FICÇÃO DO SÉCULO XIXA NARRATIVA NATURALISTA

E PÓS-NATURALISTA PORTUGUESA

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PREFÁCIO

O livro que agora se publica reproduz, em versão integral, a disser-tação de doutoramento em Literatura Portuguesa apresentada à Facul-dade de Letras da Universidade de Coimbra, em Maio de 2001.

Como o título indica, pretendeu-se estudar a relação entre a Li-teratura e a Ciência, incidindo num período histórico — a segunda metade do século XIX — em que assistimos a uma singular confluência dos seus discursos legitimadores. Aliança efémera, ancorada na retó-rica positivista, eufórica como todas as utopias, mas que não esconde o enfrentamento entre duas formas diferentes de conhecer, representar e projectar o mundo. Esta dialéctica é analisada a partir do corpus literário e doutrinário do naturalismo português, pondo em relevo o diálogo do romance com as ideologias científicas mais divulgadas na época e também as tensões que determinaram a sua distanciação.

A natureza interdisciplinar do tema pressupõe uma orientação me-todológica que não se circunscreve à crítica literária; para além dela convoca necessariamente a história das ideias científicas, a crítica epistemológica e, em sentido mais amplo, a história cultural. Procurei conciliar estes diferentes contributos sem perder de vista o objecto central da análise: o texto ficcional, enquanto «imitação» da vida, em particular o romance, na sua dúplice dimensão lúdica e pedagógica.

No mesmo âmbito temático surgiram nos últimos anos numerosos estudos que, inevitavelmente, permitiriam reconfigurar e amplificar al-guns dos aspectos teórico-críticos debatidos neste trabalho. Não obstante, quer o enfoque adoptado quer o diálogo com as fontes continuam, a meu ver, globalmente pertinentes — razão por que decidi manter, com ligeiras correcções formais, o texto original.

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Durante os anos de investigação e redacção, pude contar com o apoio de pessoas e instituições às quais cumpre expressar reconheci-mento e gratidão: em primeiro lugar a Professora Doutora Ofélia Paiva Monteiro, minha orientadora, a quem devo o conselho sempre lúcido, rigoroso e questionador, mas também a amizade e um exemplo univer-sitário de verdadeira distinção; o Professor Doutor Telmo Verdelho, que me facultou numerosos volumes da sua ecléctica biblioteca; a Profes-sora Doutora Marta Anacleto, pelo prestimoso auxílio na revisão final do texto; os meus professores de Literatura da Faculdade de Letras de Coimbra, de quem recebi ensino e encorajamento ao longo do percurso académico; a Fundação Calouste Gulbenkian, cujo apoio financeiro me permitiu realizar, em 1996, uma pesquisa bibliográfica na Biblioteca da Sorbonne. Não poderia deixar de registar o dedicado incentivo da minha família (em particular a minha mãe, infatigável leitora) e dos companheiros de todas as horas, Ana Maria Machado e Luís Andrade.

Uma palavra final de reconhecimento é devida ao Professor Doutor António Machado Pires, a quem agradeço o estimulante diálogo inte-lectual e o empenho generoso na publicação deste livro, e à Imprensa Nacional-Casa da Moeda, que me honrou com a sua edição.

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A Arte é tudo porque só ela tem a duração — e tudo o resto é nada! […] Só ela torna os deuses ver-dadeiramente imortais — dando-lhes forma.

EÇA DE QUEIRÓS, pref. de Azulejos.

Les livres scientifiques sont un fait: la vie du savant pourra se résumer en deux ou trois résultats, dont l’expression n’occupera peut-être que quelques lignes ou disparaître complètement dans des formu-les plus avancées. […]

L’art seul, où la forme est inséparable du fond, passe tout entier à la postérité. Or, il faut le recon-naître, ce n’est point par la forme que nous valons. On lira peu les auteurs de notre siècle; mais qu’ils s’en consolent, on en parlera beaucoup dans l’his-toire de l’esprit humain. Les monographes les liront et feront sur eux de curieuses thèses, comme nous en faisons sur d’Urfé, sur La Boétie, sur Bodin…

E. RENAN, L’Avenir de la Science.

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INTRODUÇÃO

LITERATURA E CIÊNCIA OU AS DUAS CULTURAS

A afirmação do estatuto e da importância social da ciência é um facto incontornável da história europeia pós-iluminista. Que essa supremacia se operou no espaço disputado à religião e às humanidades, até então paradigmas dominantes da cultura oci-dental, constitui também hoje um dado adquirido, embora não isento de controvérsia. Desde o início do século XIX o tema tem vindo a ser debatido por historiadores, filósofos e críticos, dadas as implicações e as perplexidades que as «crises» culturais sem-pre suscitam.

A literatura teve neste debate um lugar central, em particular na segunda metade de Oitocentos e primeiras décadas do século XX. Referimo-nos ao chamado «conflito das modernidades» que opôs, de forma mais ou menos ostensiva, «artistas» e «filisteus» e que, num âmbito mais alargado, se manifestou na clivagem ideológica e institucional entre as duas culturas — literária e científica. Deve dizer-se que esse conflito nem sempre se travou entre cientistas e literatos, mas sobretudo entre estes e um adversário difuso, subsumível no conceito de progresso burguês. Na verdade, não se pode falar de uma atitude corporativa generalizada quer por parte dos «artistas» — muitos deles francamente seduzidos pelo espírito cientista do tempo —, quer dos cientistas, cuja formação era ainda muito marcada pela matriz humanística. A um nível menos elitista, e decerto mais expressivo no espaço público oi-tocentista, o confronto processou-se (então como hoje) entre os guardiões da «humanitas» e os defensores da positividade cientí-fica, base e fundamento da sociedade tecno-industrial.

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O ideal enciclopédico das Luzes estava destinado a dar lugar à especialização profissional. É no século XIX que se começa a tomar consciência da separação entre os dois campos da actividade inte-lectual bem como da ameaça que tal separação representa, tanto no que respeita ao prestígio relativo dos saberes, como nas suas con-sequências indirectas. Uma delas seria a perda de reconhecimento social do literato-humanista, cada vez mais confinado a uma esfera de intervenção restrita, de carácter lúdico ou especulativo; outra seria o progressivo abandono da tradição cultural hermenêutica, quando a capacidade de explicar o real pela linguagem da objec-tividade científica prometia resultados mais concretos e universais do que a dos escritores, filósofos e ideólogos 1. A preocupação dos filósofos positivistas (como Comte, Spencer e outros) em estabe-lecerem uma nova hierarquia ou galáxia do conhecimento, privi-legiando as ciências naturais, não deixa de constituir uma tenta-tiva de controlo desse mesmo saber, colocando-o sob a égide da «moral», ou seja, da ideologia. Por último, sedimentou-se a ideia de que a crescente importância da ciência e da técnica traria por arrastamento uma desvalorização do factor humano e dos valores do espírito (espaço que as humanidades, e a literatura em parti-cular, sentem como seu); ou a percepção, não menos angustiante, de que uma nova era antinatural se anuncia, em que a sociedade industrializada e materialista ficará entregue a si própria, qual di-namismo mecânico sem possibilidades de regulação externa.

Muitas destas inquietudes são ainda as mesmas que se expri-mem na chamada «cultura desencantada» do século XX que, em

1 «No século XIX, os cientistas encerram-se nos píncaros protegidos da Academia recentemente organizada, para aí conduzirem, na ‘ascese intelec-tual’, uma investigação de que afirmam a autonomia e o desapego em rela-ção às preocupações da sociedade que os abriga. Assim [depois da física], a química e a ciência do corpo vivo, a fisiologia, […] vão tornar-se ciências académicas por excelência, limitar-se a uma prática experimental hostil a toda a especulação intelectual, designadamente por uma reacção deliberada e reflectida contra as filosofias da natureza»: Ilya Prigogine e Isabelle Sten-gers, A Nova Aliança. Metamorfose da Ciência, Lisboa, Gradiva, s. d. [1987], pp. 147-148. Os autores atribuem ao enclausuramento dos cientistas e ao pensamento kantiano (que ratificou uma visão dualista do conhecimento) a responsabilidade pela clivagem histórica da cultura ocidental.

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ÍNDICE GERAL

Prefácio ........................................................................................................ 9

INTRODUÇÃO — Literatura e Ciência ou as duas culturas ..................... 13

CAP. I — O PARADIGMA BIOLOGISTA .................................................. 33

1. Do organicismo romântico à epistemologia comtiana ........... 332. Darwinismo e darwinistas ........................................................... 463. A fisiologia ou a revelação do corpo e do espírito ................ 544. Entre o progresso e a degenerescência: o triunfo dos higie-

nistas ............................................................................................... 62

CAP. II — A EMERGÊNCIA DO REALISMO CIENTÍFICO ................. 69

1. Do realismo ao naturalismo ........................................................ 69

1.1. Alguns dados históricos ................................................... 741.2. A teorização ........................................................................ 78

2. O naturalismo português: doutrinação e crítica ...................... 91

2.1. Eça de Queirós e o realismo crítico ................................ 912.2. Os primeiros textos e a crítica ......................................... 972.3. Os anos 80 e a consolidação da «escola» naturalista 1072.4. A Estética Naturalista de J. Lourenço Pinto ................... 1152.5. A segunda «geração nova» e a inflexão do paradigma

doutrinário ........................................................................... 1212.6. As transformações: o naturalismo depois de Os Maias 1282.7. Epigonismo e derivações .................................................. 1332.8. Algumas conclusões .......................................................... 134

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CAP. III — O TEXTO NATURALISTA: PEDAGOGIA SOCIAL ............ 139

1. A determinação ideológica do romance ................................... 1392. A ordem burguesa ........................................................................ 151

2.1. A célula familiar ................................................................ 1532.2. Público/privado ................................................................. 1692.3. O(s) poder(es) ..................................................................... 1752.4. Os profetas da revolução ................................................. 1952.5. O Povo: dos marginais ao proletariado ......................... 207

CAP. IV — PEDAGOGIA CIENTÍFICA ...................................................... 231

1. Mitos darwinistas .......................................................................... 237

1.1. Struggle for life — a fórmula mágica ............................. 2371.2. Selecção sexual versus ordem social ............................... 2451.3. Evolução e regressão: os monstros ................................. 2521.4. Os filhos de Adão .............................................................. 260

2. Poética dos temperamentos ......................................................... 2663. Hereditariedade e degenerescência ........................................... 2764. As paixões ...................................................................................... 292

4.1. As paixões intelectuais ...................................................... 2984.2. A paixão mística ................................................................ 3004.3. A paixão amorosa .............................................................. 3064.4. Uma alternativa filosófica: a moral e as paixões segundo

Schopenhauer ..................................................................... 309

5. A nevrose, a histeria e o génio ................................................... 316

5.1. A figuração feminina da histeria .................................... 3175.2. A criação artística como nevrose .................................... 3345.3. O fim da literatura? ........................................................... 3455.4. Entre o génio e o filisteu: a reabilitação dos intelectuais 355

6. Vitalismo: os mitos da energia universal ................................. 358

6.1. Uma estética da entropia .................................................. 367

CAP. V — POÉTICA NATURALISTA: DA PEDAGOGIA À TRAGICIDADE 371

1. Exemplaridade ............................................................................... 3712. Tragicidade ..................................................................................... 3773. Ironia ............................................................................................... 390

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CAP. VI — O LUGAR DA CIÊNCIA E DA TÉCNICA ........................... 405

1. A ciência e a técnica em Teixeira de Queirós .......................... 410

1.1. Industrialização e decadência .......................................... 4101.2. Os usos da ciência: hybris vs. compromisso social ...... 423

2. De regresso à Natureza: a lição tolstoiana ............................... 4343. Eça de Queirós: o mundo desencantado .................................. 442

3.1. As crónicas .......................................................................... 4473.2. A infância da humanidade e a idade da razão: A Relíquia 4583.3. De Topsius a Fradique: a senescência da Razão .......... 4683.4. Fradique e Eça: a crítica da Modernidade .................... 4763.5. Uma utopia risonha: Civilização ...................................... 4933.6. A Cidade e as Serras: desconstruindo a utopia .............. 497

CONCLUSÃO ................................................................................................... 527

Bibliografia .................................................................................................... 533

Índice de autores .......................................................................................... 559

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