literatura brasileira iv machado de assis um intelectual tupiniquim
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
MACHADO: UM INTELECTUAL TUPINIQUIM
MARCELO TAVARES DOS SANTOS
SÃO PAULO2012
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
MACHADO: UM INTELECTUAL TUPINIQUIM
SÃO PAULO2012
Sumário
Introdução.............................................................................................................................3
Desenvolvimento..................................................................................................................4
Considerações finais...........................................................................................................20
Referências.........................................................................................................................22
Introdução
O tema a ser explorado é a obra maior de Machado de Assis: "Memórias póstumas de Brás
Cubas".
Importante aqui é compreender um dos textos fulcrais da literatura em língua portuguesa.
Deve servir para aqueles que desejam se aprofundar naquele que é considerado por muitos o
maior escritor brasileiro, capaz de entender o Brasil de sua época como poucos.
Inicialmente, apresentaremos uma pequena biografia de Machado. Depois, trataremos da
obra em si, finalizando com nossas considerações.
Desenvolvimento
1 Os passos de Machado
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 21 de junho de 1839 na cidade do Rio de
Janeiro, mais precisamente, no Livramento. Dois anos depois, nasceu sua irmã, Maria, entretanto
esta faleceu de sarampo, em 1845.
Maria Leopoldina Machado, dos Açores, e Francisco José de Assis, pais do escritor, eram
letrados, fato importante numa sociedade cuja grande maioria da população era analfabeta.
Acredita-se que Maria Leopoldina, falecida em 1849, foi a responsável pelo ensino da leitura e
escrita a Machado de Assis.
O lado paterno descendia de escravos, e o materno, de homens livres, mas ambos de origem
humilde. Seus pais podem ser considerados agregados superiores, e que prestavam seus serviços
numa chácara no morro do Livramento.
Quando ele tinha 15 anos, seu pai se casa novamente, com Maria Inês.
Não se sabe bem ao certo, mas o fato é que Machado toma as primeiras lições de francês
numa família de origem francesa.
Machado não deixa expressa sua preocupação com a cor de pele, mas conforme a sua
progressão social, ele foi se tornando cada vez mais branco.
Em meados dos anos cinquenta do século XIX, o Rio passou a ter iluminação a gás, além da
intensificação de contatos com a Europa, através de navios, e outras regiões do país, através do
transporte ferroviário. Italianos, espanhóis, alemães, ingleses, franceses e portugueses viviam na
urbe carioca.
No início de 1855 foi publicado seu primeiro texto, na “Marmota fluminense”. Começou a
participar também duma sociedade artística chamada “Petalógica”, a qual tratava principalmente de
literatura. Na mesma época, acredita-se que ele iniciou suas atividades profissionais como caixeiro
ou guarda-livros.
Sua primeira grande influência é outro jovem poeta, o português Francisco Gonçalves
Braga, ou simplesmente, Braga. Machado venerou alguns de seus poemas a ele.
Deixou-se guiar pela tradição poética da época, com Almeida Garrett e Gonçalves Dias
presentes em seus versos. Saudade e sofrimento são temas recorrentes de seus escritos.
Dedicou suas letras à cantora francesa Charton Demeur, então de passagem na urbe, e
também a Dom Pedro II. O amor, as paisagens naturais, os mitos e temas filosóficos se
acumularam. Pouco a pouco, a poesia deixa de ser sua forma de se expressar.
Acredita-se que no início de sua carreira literária teve contato pessoal com Antônio
Feliciano de Castilho e Quintino Bocaiuva É também de se crer que trabalhou entre 1856 e 1858 na
Tipografia Nacional, onde encontrou o autor de “Memórias de um sargento de milícias”, Manuel
Antônio de Almeida.
Em 1856 foi publicado seu primeiro texto em prosa na “Marmota” chamado de “Ideias
vagas”, onde ele tecia comentários sobre os gêneros literários. Para Machado, a poesia vinha do
coração. Ele deixa claro a influência das literaturas clássica e francesa em seus escritos. Dois anos
depois, Machado escreve seu primeiro conto “Três tesouros perdidos”, onde já apresenta uma
literatura que estuda o comportamento psicológico das personagens. No mesmo ano, publicou
poemas no “Correio mercantil”, com temas políticos e sociais. Em 1859, escreve “O passado, o
presente e o futuro da literatura”, onde reflete acerca da condição literária tupiniquim.
Na mesma época conheceu o intelectual francês emigrado Charles Ribeyrolles, personagem
que influencia suas ideias. Teve contato com as obras de Eugène Pelletan, o qual defendia a ideia de
continuo progresso em direção ao futuro. Outro ser que participa da formação de Machado é o
escritor Victor Hugo. Torna-se republicano e democrata.
Participa do periódico “Paraíba”, onde se envolveu numa discussão acerca da prostituta que
se redime pelo amor. Outro escritor que trata do mesmo assunto é José de Alencar, em “Lucíola”.
Isso tudo ocorre sob a influencia do romance “A dama das camélias”, de Alexandre Dumas Filho.
Com vinte anos, participa como redator de “O espelho”, onde apresentava seus artigos na
primeira página.
Idealista e com grande senso de dignidade. Era solidário às classes populares.
Em 1860, entra para o “Diário do Rio de Janeiro”. Anteriormente, muitos dos escritos que
publicara eram de forma gratuita. A partir do “Diário”, torna-se um profissional das letras. Vai aos
poucos mudando sua posição e se aproximando do regime imperial.
A literatura e o teatro deveriam ser o diagnóstico da sociedade. Defendia o estímulo estatal
às artes. Cada vez mais presente no jornalismo político e assistindo às sessões parlamentares, ele
tece comentários nada agradáveis aos os projetos legislativos, nem ao gabinete da Monarquia.
Acredita-se que em virtude disso, deixou de publicar, por um espaço de tempo, seus artigos. Esse
episódio talvez o tenha provocado uma grande desilusão, fazendo-o afastar-se da política. O teatro
foi capaz de ampliar o poder de seu periscópio para o social.
Sem dúvida, o ofício de jornalista propiciou que Machado de Assis desenvolve-se um modo
para a ulterior escrita de romances.
Em 1861, escreveu a primeira peça teatral: “Desencantos”. O idealismo das coisas sai como
triunfante. Quintino Bocaiuva critica a dificuldade de Machado para a linguagem da arte dramática.
De 1862 a 1864, o nosso escritor foi censor do Conservatório Dramático Brasileiro,
pronuncia-se contra os erros lexicais na língua em que se tornou mestre. Idealista à época,
acreditava, sobretudo, estar desempenhando um labor para o bem da cultura brasileira. Ainda dentro
desse período prestou serviço para a revista literária “O futuro”, dirigida por seu amigo Faustino
Xavier de Novais, um dos irmãos de sua futura esposa Carolina.
Alguns de seus contos são impressos no “Jornal das famílias”, o qual deveria nutrir as
fantasias dos lares brasileiros. Endereçava-se, mormente, às mulheres. O que era ali apresentado
tinha caráter romanesco. O importante era o triunfo do bem, o mais das vezes, através do amor
sincero, não interesseiro ou de caráter sexual.
A famosa “Questão Christie”, onde o referido diplomata anglo-saxônico exigiu desculpas
oficiais do nosso governo pela prisão de marinheiros embriagados a serviço de sua Majestade que
aqui causaram tumulto. Com a negação do nosso Imperador Dom Pedro II, as relações entre as duas
nações estavam estremecidas. O nosso personagem teceu alguns escritos em benefício à defesa da
honra nacional.
Começava também a participar de saraus, onde declama suas próprias poesias.
Publica “Crisálidas”, a primeira coletânea de poemas. Destaca-se “Versos a Corina”, onde
apresenta o seu próprio sentimento de amor secreto por uma mulher, de identidade ainda
desconhecida, o qual não foi correspondido. Resta dizer que a publicação é uma obra romântica.
Colaborou com a publicação dos estudantes universitários de São Paulo: “Imprensa
acadêmica”. Refletiu sobre a nossa situação política.
Suas retinas fadigadas o fazem usar óculos.
Ao fazer jornalismo político, era irônico, provocador e agressivo. Não fazia distinção de
partidos políticos. Procurava estar presente, sobretudo, nas sessões do Senado Federal.
Escreveu no jornal clerical “A Cruz”, onde defendia a necessidade da prática religiosa para a
saúde da nação. Defensor da ideologia liberal, ele aceitava o Estado laico de tolerância.
Já em 1865, em sua primeira crônica, faz um balanço do tempo perdido que passara. Algo
que está presente nas “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. A situação de penúria o leva a fazer
traduções.
No ano seguinte, acredita-se que foi candidato a cargo político pela província de Minas
Gerais. Não obteve êxito.
Foi um dos fundadores do clube literário chamado “Arcádia Fluminense”.
Através de suas letras reflete sobre as artes, possuidoras de uma responsabilidade estética,
não moral. O escritor é responsável pelo seu próprio destino.
Em 1867, foi nomeado para trabalhar no “Diário oficial”, como auxiliar do diretor.
Apaixona-se pela portuguesa do Porto, Carolina Augusta Xavier de Novais. Quatro anos
mais velha e que se retira de seu país em 1868 a fim de cuidar de seu irmão Faustino, acometido de
grave doença. Ao fim do ano seguinte, as duas almas, pertencentes ao extrato social médio, se
unem.
A experiência do laço matrimonial, quiçá fez o nosso escritor pensar no tema do ciúme. Eis
“Dom Casmurro”.
Machado publica sua segunda coletânea: “Falenas”. A presença de Carolina permite que ele
se aventure novamente nos versos, agora mais ricos. Nada mais honesto a um homem apaixonado
que busca sua felicidade através duma musa.
Os “Contos fluminenses” surgem logo após de “Falenas” e é capaz de atingir um público
maior. Uma mensagem moral procura ser sempre passada. Composto de sete contos, onde apenas
um é inédito e os outros seis já haviam sido publicados no “Jornal das famílias”.
O que segue a partir dos anos setenta, reflete em grande parte seus escritos e dúvidas
anteriores.
Aos 34 anos, torna-se empregado na Secretaria da Agricultura. Conseguia uma vida modesta
e digna. Funcionário público e romancista. Também em 1874, publicou-se “A mão e a luva”, no
folhetim “O globo”. Outrossim, encontrava-se a caso dum livreiro português, João Martins Ribeiro,
a fim de encontrar personalidades como Artur Azevedo, Sílvio Romero e Mário de Alencar.
Dois anos depois, sai “Helena”. Em 1878, em “O cruzeiro”, surge “Iaiá Garcia”. Ainda por
esta publicação, ele tece uma grande crítica acerca de “O Primo Basílio”. No mesmo ano, com um
estado de saúde não muito bom, viu-se obrigado a tirar férias pela primeira vez da vida. Dirigiu-se
com Carolina para Nova Friburgo.
No ano seguinte, retorna para a nova fase da “Revista brasileira”. Pela revista publica, em
1880, “Memórias póstumas de Brás Cubas”, atingindo sua culminância como escritor. Com grande
prestígio, é convidado para as Conferências de História e Geografia do Brasil. Um ano depois, foi
convidado pelo Gabinete Português de Leitura para participar da comemoração do terceiro
centenário de Camões.
Durante os anos oitenta, colabora com a publicação “A estação” escrevendo “O alienista”.
Em 1888, a Princesa Isabel confere-lhe o título da Ordem da Rosa. No ano seguinte, atinge o último
grau dentro da carreira de funcionário público, sendo nomeado para diretor da Diretoria de
Comércio.
Em 1891, aos seus cinquenta e um anos, publicou “Quincas Borba”. De forma assídua,
mantém encontros com Visconde de Taunay, Joaquim Nabuco, Graça Aranha, José Veríssimo e
outros.
Em 1897, foi fundada a Academia Brasileira de Letras. Machado foi seu primeiro
presidente.
Seu livro “Dom Casmurro” é posto em publicação em 1900. Três anos se passam e o
romance “Esaú e Jacó” é exibido.
Em 1904, não apenas Machado tem sua saúde débil, mas também sua eterna companheira,
Carolina. Volta a Nova Friburgo para repouso do casal. Após trinta e cinco anos de união, Carolina,
quase aos setenta, falece em outubro do trágico ano.
Em 1906, aparece o conto “Relíquias de casa velha”. Dois anos depois, aparece “Memorial
de Aires”. Relê algumas obras de sua mocidade. Sua saúde cada vez ficava pior. Em 29 de setembro
de 1908, faleceu Joaquim Maria Machado de Assis.
Há alguns anos, o jornal “Folha de São Paulo” fez uma pesquisa com jornalistas e
intelectuais visando descobrir qual seria o maior brasileiro de todos os tempos. Machado de Assis
não foi o mais citado, mas esteve entre os primeiros.
2 Memórias Cubanas
Quando perguntado por Capistrano de Abreu se as “Memórias Póstumas de Brás Cubas”
eram um romance, Machado escreveu: “O que é fundamental e orgânico é a descrição dos
costumes, a filosofia social que está implícita”. Nada melhor que o próprio autor para definir sua
obra. O termo “memórias” nos denota algo a ser escrito em vida, e “póstumas” a algo acontecido de
forma ulterior à vida de alguém. A contradição invade a obra.
Em diversas vezes, Brás Cubas fala diretamente ao leitor acerca de sua obra. No prólogo,
cita Stendhal, pseudônimo de Henry Beyle, o qual no prefácio dum texto seu, “Do amor”, escreveu
sobre o parco reconhecimento de sua obra. O narrador defunto usa-se duma falsa modéstia sobre a
sua obra, deseja que o interlocutor seja agradado, mas ao fim ameaça aqueles que não se
envolverem com suas linhas. A preocupação com a quantidade numérica de leitores e o tamanho da
narrativa encaixa-se num espectro materialista, onde o texto é visto também como mercadoria. O
pessimismo e humor buscam puxar o outro para o interior narrativo. Isso denota o viés materialista
de Brás Cubas. Esse texto chamado “Ao leitor” foi organizado para a primeira edição em forma de
livro (1881) e não na publicação periódica “Revista brasileira”.
As “Memórias póstumas” representam uma escrita de ruptura com o passado romântico de
Machado. O amadurecimento ocorre numa situação de franca ascensão social após um longa vida
jornalística e o aparecimento dos primeiros problemas de saúde. A primeira fase, marcada pela veia
romântica, apresenta a situação do homem livre e dependente do senhorio escravocrata. A dignidade
é incompleta pela diminuta existência do mercado de trabalho. Quem dá a forma narrativa é o
agregado. A fase madura e realista nos traz a mudança de orientação narrativa, onde é o ser
dominante que se expressa, ávido pela elegância europeia que é incapaz de se completar. O sinal de
atraso moderno é apresentado de forma mais dinâmica e espetacular.
Começamos assim pela definição de Machado e Brás Cubas. Este último deixa expresso que
ele é que escreve a obra. Ao mesmo tempo, não podemos esquecer que quem escreve é o próprio
Machado. Porque esse fingimento de ausência da feitura da obra por Machado? A crítica mais
recente trabalha com a ideia de que Machado utilizou-se intencionalmente com este jogo para evitar
que as afirmações na presente obra lhe fossem imputadas.
Com um olhar aguçado, Machado descreve o sentimento de cinismo da alma humana. O
sofrimento sobre a condição humana e de certa forma uma simpatia com ela, permitiu-o escrever as
“Memórias” com um grau bastante requintado de humor, a fim de, quiçá, buscar explicações sobre
o nosso comportamento. O esforço humano em trazer sentido a sua vida permeia toda a obra. A obra
é contaminada pelo moralismo cético em relação ao ser humano. A distância entre o real e o ideal
provoca uma crise existencial. Ao qualificar-se como homem, Brás Cubas mostra que os
sentimentos confusos e contraditórios estão inseridos na conduta humana. O professor Alfredo Bosi
assinala: “o egoísmo vencedor costuma estar do lado do rico e poderoso”.1
Ideias evolucionistas, positivistas, naturalistas, além de outras estão no contexto em que é
escrita a obra aqui situada. Baseadas na ciência moderna prometem uma ruptura a fim de oferecer
uma dinâmica nunca vista à alma humana. Céticos em relação a elas se levantam. Eis Machado. Ele
consegue compreender também que essas criações europeias não poderiam ser aplicadas por aqui de
modo integral, criando formas de aproveitamento peculiares, inusitadas e até risíveis. A realidade
varia de local em local. O Bruxo do Cosme Velho, nomeado assim por Carlos Drummond de
Andrade, também assinala que o nosso ponto de partida seria de desvantagem. O desvirtuamento
das ideias originais seria capaz de criar um espírito pedante, fútil, contraditório e invertido, a ponto
de tornar digno de defesa aquilo que seria tido como nefasto, impossível e infundado em ambiente
original. O que permanece na retina do leitor atento é a inadequação das explicações detalhadas.
Em seu núcleo familiar, Brás Cubas torna-se um completo egoísta, com a grande admiração
conferida a ele pelos seus pais, que fazem desdém de suas ações traquinas com os escravos. É nessa
família com valores da fase colonial que encontra piedade e compreensão. Quando adulto, ele está
consciente das ideias liberais. A vida doméstica é o centro de sua formação, cheia de erros. A
narrativa é uma busca dele consigo, através de métodos racionais, científicos, naturalistas. A
facilidade de ter tido tudo com facilidade, faz Cubas um ser bastante entediado com a própria vida.
Não existe apresentação dum projeto grande, que exija um trabalho árduo na vida de Brás Cubas. A
vida é dotada de sensações, mas vazia de sentidos. A soma das experiências resulta em nada.
Brás Cubas é um ator de muitos papéis sociais, é um judiador de escravos, protetor duma
senhora velha e pobre, moço de boa família e enganador para uma moça jovem e pobre, um rapaz
com posses e de grande futuro para uma moça de família. Ele é capaz de sintetizar um tipo da classe
dominante tupiniquim, descompromissado com seres distantes de sua estirpe e acomodado diante da
1 Brás Cubas em três versões: estudos machadianos, 2006, p. 15.
vida, oportunidade em que prefere o tédio a perder suas benesses. O narrador tem a propriedade de
divagar acerca da inutilidade dos pobres e viver a desfaçatez dum adultério local. Está sempre
maquiado com valores oligárquicos de prepotência, apadrinhamento político, casamento de
interesses, desprezo pelos humildes, contato com a leitura moderna.
Apoiando-se também nas pesquisas do professor inglês John Gledson, podemos expor sobre
os paralelismos narrados por Brás com os episódios históricos do Brasil. A primeira paixão do autor
é pela espanhola Marcela, durante o período da Assembleia Constituinte do governo de Dom Pedro
I, onde um dos modelos a ser discutidos era a carta de Espanha. Brás fica órfão de pai e mãe no
período da abdicação de D. Pedro I, em 1831. Por volta dos anos 50 e 60, ele se interessa por
grandes negócios, como o transporte ferroviário e grandes invenções. A vida do nosso amigo autor
prossegue paralelamente à vida nacional. Ao fornecer um pedaço do nome da terra adorada ao
primeiro nome do autor-narrador confere-lhe um caráter nacional.
A ideia do emplasto para curar a melancolia da humanidade permite a nós muitas
interpretações. Essa invenção pessoal de Brás nos mostra seu apetite individual de glória, marca
duma sociedade burguesa, bem como o fato do emplasto significar um produto a ser
comercializado. Tal produto tem seu caráter universal, pois serve a todos. O desejo da cura da alma
humana deve seguir preceitos científicos. Nós destacamos o fato de que esse conjunto de ideias
modernas, baseadas na livre iniciativa do indivíduo e raciocínio científico, faz-lhe perder o senso de
limites de si mesmo.
Perto do fim, as personagens reaparecem para dar seu último sinal, com um certo grau de
dinamismo. Eugênia pede esmolas, em virtude, na cabeça de Brás, por ter tido altivez a ele.
Dona Plácida está miserável, Marcela não possui a beleza de outrora, Quincas Borba retorna à
situação de penúria, Prudêncio é senhor de escravos, Cotrim está mais rico e Virgília colhe os frutos
positivos de sua falsa santidade. No capítulo de despedida, o saldo superavitário é melancólico,
onde Brás fica satisfeito por não ter perpetuado a condição de miséria humana. O déficit não é
somente dele, mas de toda espécie humana. No desfecho, ele possui a percepção de sua vida vazia,
onde não há obra de mérito individual. O niilismo presente tem atmosfera engraçada.
Uma análise histórica-sociológica
Devemos chamar a atenção para o momento em que se passa a ação, que é quase toda na
primeira metade do século XIX. Da colônia chega-se ao II Império.
A soberania política não significou a mudança profunda nos paradigmas sociais e
econômicos brasileiros. O latifúndio, a escravidão, o tráfico e o senhor aqui permaneceram, num
mundo que já convivia com as ideias liberais, trabalho livre, industrialização, igualdade perante a
lei. Mesmo quando tais ideias aqui se solidificaram, elas tiveram que conviver com a estrutura
colonial já existente. Houve uma adaptação. A elite que absorve as ideias do mundo adiantado
convive com a escravidão. Acomodou-se em suas conveniências, preservando seu poder. Da época,
resulta-se um Brasil contraditório, com ideias esclarecidas e hábitos obsoletos.
O cinismo narrado é fruto da contradição, onde vive a autoridade e opulência material do
mundo colonial até a adolescência, e a posterior influência do modo moderno, calcado em
pensamentos filosóficos, ideias científicas e aspirações políticas.
As famílias com patrimônio desejam se inserir nas estruturas políticas. O pai de Brás Cubas
mente sobre a origem da família, dando uma origem mais nobre. Faoro assinala: “burguesia
mascarada de nobreza, incerta de suas posses, indefinida no estilo de vida”2. O nosso “herói”, Lobo
Neves e Virgília são exemplos de um Brasil patrimonialista. O estilo de vida burguês permite o
acesso a um modo de vida antes inacessível para se completar. Configura-se o desejo de uma
imagem vencedora perante o corpo social.
O eixo narrativo
Os adeptos do Naturalismo e Realismo faziam uso da narração em terceira pessoa,
acreditando na melhor objetividade, onde o papel do narrador seria arrefecido e suas palavras
seriam indiscutíveis aos olhos do leitor. Machado vai de encontro a esses movimentos. Ele não quer
apresentar descrições e explicações completas. A omissão da primeira pessoa disposta em
“Memórias póstumas” deve ser preenchida pelo interlocutor.
Utilizando-se de suas próprias memórias, o narrador consegue maior verossimilhança no
relato de sua história. A confiabilidade somente ocorre através de sua interpretação, daquilo que viu,
sabe ou lhe parece, como ressalta Bosi. Possui opinião sobre tudo aquilo que apresenta ao leitor. Ao
mesmo tempo, observa-se a inverossimilhança no fato dum narrador morto possuir a capacidade de
narrar a história de sua vida. A situação é estranha a um romance realista, pois um morto narra suas
peripécias desprovidas de objetividade.
Brás Cubas na condição de defunto está num plano diferente do acontecimento de suas
ações em vida. Está também num plano superior ao do próprio leitor. Escreve do mundo dos mortos
para falar sobre e para o mundo dos vivos. Ele escreve acerca de sua própria atividade literária. O
narrador e o personagem ora se juntam, ora se dissociam. Examina os feitos em vida diretamente
das catacumbas. A narrativa em primeira pessoa permite esse efeito ambivalente. Narra o passado e
o interpreta como quer.
A narração em primeira pessoa sob a ordem biográfica possui seu lado libertino, pois Brás
2 Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio, 1974, p. 14.
Cubas utiliza-se de digressões e também de muitas conversa com o leitor, como no capítulo “O
senão do livro”. A tensão ocorre muitas vezes de forma humorada e sádica, passando até pela
agressão, capaz de construir parábolas fantásticas. Todo poderoso, intervém da forma que deseja em
sua contação. A relação de Brás com o interlocutor é dúbia, ele o trata de forma jocosa, bem como
de cúmplice de seu relato, conseguindo atrair sua atenção. O narrador é o centro. Essa situação nos
lembrou da “commedia dell´arte”, onde é costumeiro que os personagens mascarados rompam com
a quarta parede e provoquem o público. Nota-se também que esse recurso se efetiva no século XIX,
onde se busca entreter o leitor, visto também como consumidor, capaz de sustentar a atividade
literária do escritor.
A obra, um tanto desordenada, faz-nos acreditar que ela é escrita sem nenhuma grande
intenção por um narrador volúvel, não obstante não podemos esquecer que há um narrador por trás
do outro, este sim, interessado em apresentar essa volubilidade. O rompimento temporal e espacial é
influenciado pelas obras “A vida e as opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy”, de Laurence Sterne,
e a “Viagem à roda de meu quarto”, de Xavier de Maistre, lembra assim Alfredo Bosi. Do inglês
Sterne temos a preocupação com os detalhes, mudanças bruscas e marcas de ironia.
Roberto Schwarz acalenta nossos pensamentos ao afirmar que o estilo narrativo um tanto
ébrio, não retilíneo, cheio de ziguezagues, é fornecido por um autor abastado, que nunca precisou
fazer grandes esforços, ocioso, situado numa sociedade escravista, mas que já se encontra na ordem
do capitalismo internacional, com a prática de costumes burgueses. Pode-se pressupor que sua
situação de um ser oriundo duma família detentora de propriedades formata seu modo de dizer, agir,
refletir. O personagem principal caracteriza-se por ser duma família com certa tradição, mas com
costumes burgueses, apresentando, à época, a realidade brasileira, uma nação que deseja se
modernizar, mas com costumes ainda inadequados. Machado não se utiliza de tipos das classes
desprestigiadas, como os naturalistas, mas sim de personagens abastados para descrever a situação
esdrúxula da terra “brasilis”. O olhar aguçado de observação e a escrita expressiva são marcos de
influência do Naturalismo.
O primeiro capítulo, “Óbito do autor”, é capaz de deixar claro o tempero do livro. Ao se
saber que é um morto que escreve suas próprias memórias, temos certo toque de humor, ainda
tímido. Brás Cubas tem uma escrita rebuscada, fazendo uso de termos antagônicos e binários. Ao
trazer alguns dados sobre si mesmo, ele deixa o leitor mais tranquilo. Já nos mostra que a relação
será desproporcional, onde é ele, Brás, quem controla a narração. Ele nos mostra o grau de seu
diálogo conosco, mostrando ser uma pessoa de classe média, com vida material confortável, não
obstante o mais importante é o fato de que um de seus amigos ter prestigiado seu enterro graças a
apólices que deixara a ele. A escrita da obra é tom coloquial.
Podemos relacionar o termo de volubilidade à narração, onde há o desrespeito a fim de
satisfazer-se. Brás faz isso ao interromper a linearidade esperada, reclama do leitor para o próprio
leitor. Rompe as regras esperadas dum romance. Mas isso vai além do estilo narrativo. As infrações
são também morais, como aparece nos “causos”. Machado tipifica a volubilidade de Brás como
tola, pitoresca e retrógrada. Um ser que se acha superior, mimado, que reluta com a ideia de
igualdade. No Brasil da época, é possível conciliar a ideia de autonomia individual oriunda d´além
mar com a manutenção do vínculo familiar numa sociedade profundamente desigual. Há uma
concorrência entre a ideia estática colonial e a dinâmica burguesa, onde esta ocorre de modo
incompleto.
Esse método narrativo onde a descontinuidade é permanente nos faz lembrar a linguagem
audiovisual, consagrada no cinema e videoclipe, onde imagens em sequências não possuem,
necessariamente, uma continuidade lógica e esperada. Os episódios são rápidos e insuficientes,
como a vida humana.
Brás constrói reflexões gerais sobre o humano. Deixa flagrantemente ser influenciado pelo
Livro Sagrado, cientificismo oitocentista, moralismo francês e princípios liberais. As situações
cotidianas desconexas abrem espaço para atingir uma perspectiva universalista. Nas frequentes
explicações, surge uma atmosfera de determinismo. Perante o leitor, apresenta-se superior,
entretanto, diante da vida, apresenta-se impotente e cansado.
O narrador espera um juízo ético do outro, no caso, do leitor. Sempre configura suas ações
contraditórias e cínicas como humanas. É permanente o jogo entre o eu narrador e o outro leitor.
Porém, para ele o saldo é positivo, pois sabe que não pode mais ser punido. Busca manipular aquele
que lê seu romance através da própria estrutura deste.
Ao ler a narração do defunto, verifica-se diversas vezes que ele faz uso de frases cortantes,
mostrando irritação e impaciência com aquilo que não lhe apetece. O clima narrativo deixa claro
seu modo de agir e pensar.
O lado engraçado da morte
A comicidade presente dá-se pela existência das situações inesperadas vividas por Brás
Cubas, a começar por ser um ser falecido que conta suas memórias. Até mesmo na condição de
morto, há de se achar algum sentido, oportunidade em que pode confessar diversos episódios de sua
medíocre vida, atitudes suas e alheias de puro charlatanismo. Não procura celebrar nada sobre o
sentido da vida ou a vida após a morte. Escreve para o mundo dos vivos, sem se preocupar com o
julgamento deles. Enfim, a morte parece que o libertou.
Uma vida manca
Sob o prisma de uma das ideias mais influentes que percorreu o século XIX, temos a palavra
“eugenia”. Surge o personagem Eugênia, a “flor da moita”, uma menina linda, socialmente inferior,
e que mancava. Brás relata seu preconceito em relação à personagem feminina, mas assegura seus
sentimentos e ações dissimuladas no fato de ser humano, situação também do leitor. Numa situação
da qual consideramos pusilânime, ele prefere trair as pessoas à sua consciência. A menina é filha
ilegítima da relação entre Doutor Vilaça e Dona Eusébia, o que a diminui ainda mais. Ela não é uma
flor nobre.
Durante a leitura do trecho que narra o contato entre os dois personagens, há uma
expectativa que leve a união duradoura deles, algo que não ocorre. Sente-se atraído também pela
dignidade da pobre moça, mas pensa em seu futuro e na sua posição social. Vale lembrar que o
mercado de trabalho é rarefeito a pessoas pobres e livres, pois grande parte das tarefas é exercida
pelos escravos. Observa-se que pessoas na situação igual de Eugênia são dependentes da vontade de
membros da classe abastada. Há grandes dificuldades por parte dessas pessoas para o acesso ao
mundo material. Ocorre uma relação clientelista entre pobres e ricos.
Brás Cubas buscar conferir um caráter universal às suas reações, pois são tipicamente
humanas. A própria personagem Eugênia, mesmo entristecida por ficar só, compreende a
preocupação com a autopreservação do outro, de Brás. Depois da separação entre os dois
personagens, ele sentiu-se amargurado, não obstante também mais leve. A vida continua.
Em dado instante Brás está acompanhado de Eugênia e de sua genitora, D. Eusébia, quando
aparece uma borboleta que é espantada pelo nosso protagonista. Horas depois, depara-se com a
rapariga na rua e se cumprimentam. Com seu ar superior, acredita que ela voltará a olhá-lo, mas isso
não acontece e o aborrece. No dia ulterior, o moço está em seu quarto quando é surpreendido por
outra borboleta negra. Primeiramente, boas lembranças são trazidas à tona pelos bons modos de
Eugênia, mas depois se recorda da irritação pela ausência de gesto subalterno. Desfere um golpe na
borboletinha. Apresenta-se aí o que a cor preta significa: má sorte. Interpreta-se também que essa
atitude diante de tal substrato colorido invoca o preconceito presente nas relações entre senhores e
escravos. Esse último episódio permite também a reflexão de Cubas sobre a existência humana e a
relação entre natureza e ser humano.
Salienta-se que a tensão entre os dois é causada na esfera social. O defeito físico acaba
servindo de apoio dissimulado para a resolução de afastamento. O amor idealizado do romantismo
não se configura. Ele poderia fazer tudo o que gostaria desde que fosse o esperado pela família e
amigos, visando à manutenção de sua condição social, tornando-se partícipe de projetos de arranjo,
como a carreira política e o matrimônio. O seu projeto individual fica diminuído, exemplificado
pela relação com Eugênia, uma figura decente. Essa situação fere a norma liberal, satisfação da
vontade individual.
Quincas, o amigo perturbado
Ainda temos Quincas Borba e seu Humanitismo, onde a guerra, é “uma operação
conveniente”3, o que nos fez lembrar de Immanuel Kant, onde este diz que o episódio bélico é
amargo, mas necessário para melhorar as relações entre os homens. De encontro a esse pensamento,
encontra-se o intelectual italiano Norberto Bobbio, o qual teve a triste experiência de viver no
período de grande autoritarismo político, espelhado nas figuras Mussolini e Hitler. Quincas nos
mostra o delírio cômico.
A sátira alude de forma flagrante às ideias positivistas e evolucionistas. Tudo vem dum
único princípio, onde da guerra generalizada, não há perda alguma, não há motivo para dor. Essa
obra filosófica está perfeitamente situada numa sociedade permeada por hábitos do Antigo Regime,
não apoiada no trabalho livre. Quincas sai da situação de mendicância graças a uma fortuna
herdada. Brás não conhecia pessoalmente a labuta e é um ser originário duma família escravocrata.
Ambos se adoram, pois são presunçosos.
O Humanitismo baseia-se no que há mais moderno do mundo adiantado, influenciado por
ideias científicas. Tal sistema peculiar legitima a ordem desigual, onde os mais fracos sirvam os
mais fortes. É uma construção tupiniquim, adaptada a nossa realidade, trazendo consigo um
sentimento nacionalista, de princípio monista, como a fé cristã. O ideal do Humanitismo é calcado
pelo nosso egoísmo, resultado, talvez, das condições favoráveis a que podemos estar submetidos. A
busca do narcisismo, cuja moralidade é a tranquilidade da própria consciência, onde não há
idealismo subjetivo, nem a virtude através da solidariedade, aproxima-se, para nós, do pensamento
da russa Ayn Rand. O ser existe porque há a ausência do ser. As ações de Cotrim e Prudêncio são
vistas sob a forma dos princípios criados por Quincas Borba. A obra nos permite dizer que os
sistemas filosóficos e as doutrinas não são capazes de alterar a condição humana.
Não existe almoço de graça
A crítica ao apego ao mundo material está presente em várias partes onde crítica a
importância da aparência e do dinheiro. A personagem Marcela o qual era “a flama da cobiça” 4,
prostituta e comerciante, simboliza isso. A personagem possui uma morte triste, sozinha e velha,
3 Memórias póstumas de Brás Cubas, 2008, p. 220.4 Ibidem, p.117.
onde o lucro foi “o verme roedor daquela existência”5, incapaz de amar outro semelhante, ao
contrário de Virgília, a musa de Cubas, que, por seu turno, cobiça a herança de Viegas, amigo da
família, além dum título nobiliárquico. A própria personagem D. Plácida começa a ter melhor
afeição por Cubas, após ele ter doado a ela cinco contos. Essa personagem só mostrou sua
“utilidade relativa”6 ao participar da armação entre Cubas e Virgília, a fim de diminuir as suspeitas
entre o casal. Levou uma vida honesta, mas por ser pobre, sem reconhecimento social.
Interessante observar o papel duma prostituta na obra. Um de seus maiores amigos, José de
Alencar, escrevera “Lucíola”, sob o alicerce do Romantismo, em 1862, onde o romance entre uma
meretriz, Lúcia, e um rapaz distinto, Paulo, dá-se numa perspectiva idealizada, diversa da
apresentada nas “Memórias”. Machado utilizou-se de seus amigos na feitura de sua obra.
As mulheres são vistas, em geral, de forma negativa. A de maior destaque, Virgília, é fútil e
utiliza-se da desfaçatez diante do esposo e do próprio Brás. Pior que uma meretriz, é uma moça de
família que engana. Ocorrem situações dentro da obra que as mulheres são seres irresistíveis a um
cavalheiro, incapaz de perceber a falsidade duma alma feminina. Na presença de Virgília, ou mesmo
de Eugênia, Brás tenta mostrar-se superior, mas muitas vezes acaba por ceder.
Para Brás Cubas, seu cunhado Cotrim reserva grandes qualidades: comerciante – inclusive
de escravos, bom marido, membro de associações assistenciais, apesar de praticar atos violentos
contra negros. O narrador procura fazer de seu parente uma imagem positiva diante das ideias
europeias, que apontariam contradições. Ele ressalta que uma pessoa é produto das interações
sociais existindo uma determinação sociológica. Essa visão é influência direta do Naturalismo. No
caso brasileiro, a situação simultânea – uma pessoa afeita às ideias liberais e que tinha escravos em
seu domínio – era válida e natural. Uma pessoa que pensasse e agisse nesse Brasil dessa forma seria
respeitável. A defesa de Brás provoca comicidade, diante de tanto cinismo. Essa preocupação em
defender o marido de sua esposa, nos faz pensar num suposto sentimento de inferioridade em
relação aos países de intelecto hegemônico.
Brás, Virgília e Lobo Neves vivem um triângulo de acomodações, num sistema de pesos e
contrapesos. A mulher amada prefere acomodar-se num caso infiel a perder seu privilégio social.
Lobo Neves finge de que nada sabe, até o momento em que é incomodado por informação alheia. O
cinismo prossegue sob os termos do arcaísmo colonial, onde a busca pela felicidade plena
individual do mundo moderno é vista como muito dura.
Nos seus livros e escritos jornalísticos, Machado de Assis observa com ojeriza a
compatibilidade das ideias adiantadas e a barbaridade do pensamento colonial na realidade
brasileira. Procurar tratar isso com bom humor. Rir para não chorar.
Uma sociedade oligárquica vê com desdém o serviço prestado por pessoas humildes, ao 5 Ibidem, loc. cit.6 Ibidem, p. 248.
passo que a vida burguesa apresenta descrédito em relação à ociosidade no meio popular. Aqueles
com posses olham com desprezo quando os pobres desistem duma vida independente e honesta.
Brás, um ser rico, sadicamente, assinala que a pobreza deve fornecer, a pessoas como ele,
privilégios materiais e de ideias.
Mais que um simples embrulho
O episódio do embrulho misterioso nos chama a atenção. Ao deparar-se com tal pacote, Brás
olha para os lados com receio de ser visto ao pegá-lo, demonstrando que tal ação pode ser digna de
censura alheia. Leva-o para casa, mas demora a abri-lo, pois pensa que pode ser alguma troça. O
olhar do outro ainda o persegue. Não resiste e o abre. Ao descobrir ali a quantia pecuniária, diverte-
se da preocupação que teve, pois já era abastado. Como se percebe no relato de suas memórias, ele
é nada sovina com suas amantes, mas mesquinho com o desconhecido. Decide fazer o depósito no
banco, na possibilidade duma doação a uma mulher pobre. A avareza é também um impulso egótico
de autoconservação, presente no indivíduo com mais ou menos dinheiro.
Buscamos lembrar aqui, a situação da moeda encontrada após a valsa com Virgília, onde
esta é tomada de Lobo Neves. Incomodado na consciência em relação a sua amante, Brás resolve
devolver a moeda ao legítimo dono indo à polícia. Ele torna este fato público e é recebido com
aplausos pelos conhecidos. Somente ele tem a consciência pela compensação do déficit pecuniário.
Sua hipocrisia interior permite sua aparência positiva.
Os dois episódios mostram a forma contraditória da existência de Brás Cubas. Num
momento busca a virtude, noutro o vício. A ação, de devolução ou não, é comandada pelo valor
encontrado.
A escravidão como triste sequela
Ao envelhecer, Brás Cubas encontra seu ex-escravo Prudêncio, o qual reproduzia as formas
de hierarquia da época, ao ter seu escravo, após liberto. O pequeno Brás tratava com violência os
escravos da família; Prudêncio, procura fazer o mesmo. Machado, através de seu defunto autor,
mostra seu lado conservador, defendendo que certas coisas não mudariam, mesmo após o fim da
escravidão. O progresso é limitado pelo indivíduo e pela sociedade. É importante também ressaltar
que Machado está tomado pela moral do trabalho livre, onde se constitui uma infração, um sinal de
atraso, um indivíduo ser proprietário de outro.
No interior da obra, temos desde o mendigo ao trabalhador remunerado, passando por
situações de favores. A escravidão é apresentada como algo pernicioso, duma sociedade que não se
rende facilmente à ideia de civilização, seja nos hábitos de seres da elite, ou de escravos forros. As
atitudes dos dois tipos de personagens sociais são assaz complexas.
Em “Memórias Póstumas”, o narrador-personagem é um representante da classe senhorial
branca decadente que conta a própria violência. A escravidão é algo que permanece tão forte nas
relações sociais e na psique do indivíduo, mesmo em declínio, e que Prudêncio e Brás aprendem já
na infância tal relação perniciosa. O menino escravo é diminuído na condição dum animal, sem
direito algum e em nada resiste aos desmandos do pequeno senhor.
Muitos anos mais tarde, Brás intervém ao ver Prudêncio castigando seu escravo, o qual
imediatamente o obedece. Isso mostra a relação de diferença mesmo entre dois homens com
liberdade, onde o primeiro já nasceu com ela e o outro teve seu acesso durante a vida. O ex-escravo
teve sua atividade senhorial censurada por alguém que é tido ainda como superior a ele. O negro
forro jamais terá a liberdade absoluta. Se o senhor ocupasse a mesma posição social, Brás
intercederia?
Com efeito, a maioria dos escritos machadianos não tem a escravidão como o centro da
questão. Talvez, esse esquecimento tenha sido proporcional, mostrando como a oligarquia tratava de
forma silenciosa as relações escravagistas. O sistema escravocrata também é motivo para a
melancolia machadiana. Machado se faz historiador em suas ficções, como afirma Sidney
Chalhoub.
A biblioteca dum morto
A mistura mágica de pensadores, tais como Giacomo Leopardi, Arthur Schopenhauer e
Luigi Pirandello, permite formar os traços do humor machadiano, sarcástico e melancólico. O
filósofo alemão defende que toda ação humana é motivada por interesses egoístas. Raymundo Faoro
anuncia a influência dos humoristas anglo-saxônicos, como Jonathan Swift, e dos moralistas
franceses na obra.
Nas “Memórias póstumas de Brás Cubas” é recorrente o uso de intertextualidade em relação
à Antiguidade Clássica e ao Livro Sagrado. É um livro que se constrói a partir de outros livros. Há
passagens na obra que ocorre uma absorção do intertexto de forma a dar um novo sabor à passagem
referencial. Brás tem a propriedade de deturpar as referências usadas. No anseio de adaptar as obras
de outros autores, que tem senso de pilhéria, Brás deixa claro que as obras devem estar submetidas
à realidade, à situação.
Ao ver dois cães disputarem um osso, Quincas e Brás concordam que a disputa entre os
seres é algo natural e que dá brilho ao mais forte. Utiliza-se da correção das ideias de Blaise Pascal,
ressalta Leonardo Almeida.
As indagações interiores presentes do narrador na obra de Maistre, “Viagem à roda do meu
quarto”, são levadas um espaço físico limitado, o cotidiano carioca oitocentista. Por ter vivido em
boa parte do século XIX, Machado percebe a passagem do declínio do elemento nacional, para a
elevação dos valores modernos europeus. Ele mesmo se apropria da literatura francesa em seus
escritos. A ilusão deixada pelo escritor francês em viajar por um quarto por 42 dias permite ao
brasileiro deixar seu falecido fazer uma volta pela própria vida. No livro de Maistre, o narrador está
isolado em seu quarto; no de Machado, nas catacumbas, lembra Emmanuel Souza. Essa separação
do mundo real tem a capacidade de libertá-los para as apologias morais e metafísicas baseadas em
suas experiências vividas. A alma e a besta - a razão e o instinto - fazem parte da mesma moeda, ou
melhor, do homem. Os narradores comportam-se como observadores da espécie humana.
O latino Apuleio compôs “O asno de ouro”, que apresenta ritmo realista e texto com grande
clareza. O narrador Lúcio traça suas aventuras, onde é transformado em burro, mas sem a perda do
pensamento e sentimento humano. É tratado com crueldade a quem serve, até conseguir retornar à
aparência humana, prestando seus serviços à deusa Íris e a Osíris, purificando-se. O mal e o bom
ocorrem em virtude de sua metamorfose. Nas “Memórias” escritas pelo nosso Mestre, Brás Cubas
passa para a situação de defunto, transformando-se em narrador. Apuleio dirige-se ao leitor de
forma honesta ao contrário de Brás. Ambos oferecem um livro ao interlocutor. Apuleio acrescenta
Machado.
Brás Cubas dá sinais de diferenciação ao declamar referências de prestígio intelectual. Cita o
filósofo estoico Sêneca que escreveu “Apocolocyntosis” e Suetônio que compôs “De Vita
Caesarum”. Ambas as escritas tratam o imperador Cláudio como um ser desprovido de virtudes.
Sêneca parodia o governante utilizando-se de sátira e de uma narrativa desproporcional, mesclando
verso e prosa. O nosso defunto cita nominalmente os dois escritores em conjunto com seus
Claúdios. A narrativa escorregadia é influência latina, mas no contexto ele busca apresentar a sua
incompletude com a época moderna.
Machado também visita Virgílio, a começar pelo nome da amada de Brás, Virgília, a qual
escolheu a águia (Lobo Neves) ao invés do pavão (Brás Cubas). A águia é a insígnia de Napoleão,
mas também se relaciona com as legiões romanas; o pavão refere-se à qualidade de ostentação.
Virgílio trata da fundação de Roma em “Aeneis”, que ocorre graças a Rômulo e Remo que foram
cuidados por uma loba. Brás se vê embasbacado diante dum ser ligeiro como uma águia opulente
que é configurada por feições napoleônicas e romanas, capaz de raptar a sua pretendida.
Considerações finais
Gostaríamos de iniciar nossas despedidas tecendo algumas observações sobre a pesquisa.
Agradavelmente, há um farto material sobre o autor e a obra aqui tratados. Como prosseguimento
de estudos, nós destacamos a possibilidade de comparação entre a obra aqui tratada com “Quincas
Borba” ou “Dom Casmurro”, chamando atenção desta última para o foco narrativo. Destacamos
aqui dois trabalhos muitos interessantes que nos serviram como interessante fonte de consulta: “Um
mestre na periferia do capitalismo”, de Roberto Schwarz, e “A juventude de Machado de Assis”, de
Jean-Michel Massa.
Machado é um dos maiores pensadores brasileiros, obtendo esse preparo intelectual através
das discussões com outros seres doutos, leituras em demasia e reflexões acerca do elemento
humano. Sem dúvida, continua atual. Não ter se inserido num curso que o transformasse em
bacharel não o diminui, muito pelo contrário, dignifica-o muito mais.
Conseguiu ser ácido e irônico ao mesmo tempo. Suas palavras refletem de forma bem-
humorada sob a condição humana. Desgostou-se pela realidade de como as coisas públicas eram
tratadas. Isso o fez cada vez menos idealista, e mais realista. Seu trabalho de fôlego apresentado em
“Memórias póstumas de Brás Cubas” nos apresenta um Machado calejado pela vida, desiludido e
cético com os homens e com suas obras, como a política.
Como crítico Machado acreditava que deveria ser um farol capaz de nortear a escuridão das
pessoas. Outrossim, ele acreditava que as artes deveriam educar a nação. Fez da palavra seu
instrumento maior. A pena foi seu pincel onde pintou a realidade urbana carioca.
Percebeu-se de sua integração à vida social, através das próprias atividades profissionais que
exerceu, bem como dos saraus, clubes, apresentações teatrais, sessões legislativas. Raras foram às
vezes que se distanciou da urbe carioca. Uma vez e outra para Petrópolis, além de Nova Friburgo.
Somente grandes autores como Machado de Assis são capazes de nos ajudar traçar a
essência da natureza humana. Esta obra, “Memórias póstumas de Brás Cubas”, desempenhou de
modo eficaz esse propósito. As “Memórias” possuem a capacidade de nos atentar acerca da
importância da literatura de ficção, que é de nos fazer refletir acerca de nós mesmos, de propiciar
um melhor autoconhecimento. Atento a tudo que o cerca, vê-se obrigado a desferir golpes contra os
diversos “ismos” do século XIX, como o evolucionismo e o positivismo. Machado também percebe
que as ideias liberais não seriam capazes de renovar integralmente os costumes da nação que queria
e precisava se modernizar. O moralismo cético toma conta da obra.
Brás Cubas e os demais personagens são movidos por interesses, geralmente de forma
superficial. Ele próprio deseja ter reconhecimento social através do poder político ou através da
invenção do emplasto. Marcela utiliza-se da beleza para obter vantagem pecuniária. Lobo Neves
também deseja ter “status” político. Cotrim e suas doações públicas. Virgília vive um casamento de
interesses. D. Plácida não possui grandes desejos e aspirações.
Brás Cubas permanece o mesmo daquele que esteve em vida. Na situação de alma, pode
contar tudo daquilo que lhe aconteceu em vida, contudo ao dizer que escreve sem nenhuma
intenção, parece-nos que continua sendo cínico, pois o faz dotado de sentido que é assinalar a
situação de miséria humana. Um dos pontos mais interessantes é a capacidade de (auto)análise do
protagonista, com efeitos corrosivos de humor e de reflexões morais profundas.
Levamos da obra a reflexão sobre o egoísmo o qual é algo que perdura a vida do homem
durante o seu tempo de existência. Essa busca incessante pelo sentido da vida abre um espaço para
pensar sobre a condição humana, dialogando com grandes autores como Søren Kierkegaard e
Friedrich Nietzsche. Por mais que a ciência se desenvolva, pensamentos filosóficos sejam
divulgados, parece a nós que o ser humano continua andando em círculos, fazendo-nos lembrar de
Edmund Burke e David Hume.
Para nós, Machado não merece ser considerado o maior brasileiro de todos os tempos, mas
sim o maior antibrasileiro de todos os tempos. Escolheu para amar uma só mulher, não foi atrás de
títulos acadêmicos, jamais teve desejo de se retirar do Brasil. Desde cedo, soube que há outros
valores que vão assaz além da vida material. Não foi um homem vazio, deixou sua sabedoria para
nós. Teve bom senso e bom gosto. Foi admirador das artes. Enfim, acreditava em muitas coisas das
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