língua e fala

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1 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Roraima Campus Boa Vista Diretoria de Graduação Licenciatura em Letras Espanhol e Literatura Hispânica Linguística I: Fundamentos epistemológicos Prof. Miguel Linhares LÍNGUA E FALA UNIDADE II 1 1. Resumindo a dicotomia Como se disse na unidade anterior, um dos grandes méritos de Saussure foi ter percebido que os estudos linguísticos que se faziam até então não possuíam sequer uma conceituação de língua que os fundamentasse, e isto acarretava certa dúvida sobre a sua natureza. Saussure começa, então, a distinguir aquilo que é mais geral, que é, antes de tudo, humano: a linguagem. Ela é entendida como uma faculdade, ou seja, todos os seres humanos sadios nascem com a capacidade de atribuir signos à realidade, nomeá- la, e usar tal faculdade para comunicar com outros indivíduos da espécie. Não obstante, os seres humanos não falam a mesma língua; ao contrário, há milhares. Portanto, a linguagem não pode ser o mesmo que a língua. Ora, as fronteiras entre as línguas não marcam apenas gramáticas e léxicos diferentes, mas todo um jeito diferente de interagir com o outro. Noutras palavras, as fronteiras linguísticas também são fronteiras sociais, separam sociedades distintas. Assim, se a linguagem é uma faculdade com a qual já nascemos, a língua adquirimos por crescermos em uma determinada sociedade. Quem crescer dentro da sociedade brasileira falará o português, ainda que os pais tenham lhe ensinado outra língua no lar. Na concepção de Saussure, todos nascem com a capacidade de produzir linguagem, mas sem uma sociedade ficam privados de uma língua. A língua é, pois, um fato social. Depois, cabe fazer outra distinção. Ora, os usuários de uma língua não falam igual. Nós falamos português, mas cada vez que usamos a língua portuguesa o fazemos de modo diferente, e assim a língua se caracteriza como algo virtual, que não está na realidade física; algo que tem natureza psíquica, por estar dentro das nossas mentes. De fato, é esta abstração o que nos faz ignorar as inúmeras variações do falar entre pessoas diferentes, classes diferentes, situações diferentes, regiões diferentes, e reconhecer este conjunto muito heterogêneo como a mesma língua. Para Saussure, a língua é a dimensão homogênea que subjaz a heterogeneidade da fala 2 , que é como o mestre chama a realização da língua. 2. O que a linguística estuda: a língua ou a fala? Como se depreende do CLG, para Saussure tudo o que é individual e, portanto, variável está na fala, enquanto a língua corresponde à dimensão social, comum, da linguagem. Sendo assim, acredita que enquanto a língua é sistemática, e, por isto, 1 Esta unidade corresponde ao terceiro e quarto capítulos do Curso de linguística geral (doravante CLG), de Ferdinand de Saussure, que está contido na apostila de Linguística I: Fundamentos epistemológicos. 2 Às vezes se preferem usar os termos franceses langue [lɑ͂ ɡ] e parole [paˈʁɔl] para evitar ambiguidades com outros sentidos do termo língua em português, por exemplo, “idioma”.

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Texto sobre os conceitos saussurianos de língua e fala.

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Page 1: Língua e fala

1

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Roraima

Campus Boa Vista

Diretoria de Graduação

Licenciatura em Letras – Espanhol e Literatura Hispânica

Linguística I: Fundamentos epistemológicos

Prof. Miguel Linhares

LÍNGUA E FALA – UNIDADE II1

1. Resumindo a dicotomia

Como se disse na unidade anterior, um dos grandes méritos de Saussure foi ter

percebido que os estudos linguísticos que se faziam até então não possuíam sequer uma

conceituação de língua que os fundamentasse, e isto acarretava certa dúvida sobre a sua

natureza.

Saussure começa, então, a distinguir aquilo que é mais geral, que é, antes de

tudo, humano: a linguagem. Ela é entendida como uma faculdade, ou seja, todos os

seres humanos sadios nascem com a capacidade de atribuir signos à realidade, nomeá-

la, e usar tal faculdade para comunicar com outros indivíduos da espécie.

Não obstante, os seres humanos não falam a mesma língua; ao contrário, há

milhares. Portanto, a linguagem não pode ser o mesmo que a língua. Ora, as fronteiras

entre as línguas não marcam apenas gramáticas e léxicos diferentes, mas todo um jeito

diferente de interagir com o outro. Noutras palavras, as fronteiras linguísticas também

são fronteiras sociais, separam sociedades distintas. Assim, se a linguagem é uma

faculdade com a qual já nascemos, a língua adquirimos por crescermos em uma

determinada sociedade. Quem crescer dentro da sociedade brasileira falará o português,

ainda que os pais tenham lhe ensinado outra língua no lar. Na concepção de Saussure,

todos nascem com a capacidade de produzir linguagem, mas sem uma sociedade ficam

privados de uma língua. A língua é, pois, um fato social.

Depois, cabe fazer outra distinção. Ora, os usuários de uma língua não falam

igual. Nós falamos português, mas cada vez que usamos a língua portuguesa o fazemos

de modo diferente, e assim a língua se caracteriza como algo virtual, que não está na

realidade física; algo que tem natureza psíquica, por estar dentro das nossas mentes. De

fato, é esta abstração o que nos faz ignorar as inúmeras variações do falar entre pessoas

diferentes, classes diferentes, situações diferentes, regiões diferentes, e reconhecer este

conjunto muito heterogêneo como a mesma língua. Para Saussure, a língua é a

dimensão homogênea que subjaz a heterogeneidade da fala2, que é como o mestre

chama a realização da língua.

2. O que a linguística estuda: a língua ou a fala?

Como se depreende do CLG, para Saussure tudo o que é individual e, portanto,

variável está na fala, enquanto a língua corresponde à dimensão social, comum, da

linguagem. Sendo assim, acredita que enquanto a língua é sistemática, e, por isto,

1 Esta unidade corresponde ao terceiro e quarto capítulos do Curso de linguística geral (doravante CLG),

de Ferdinand de Saussure, que está contido na apostila de Linguística I: Fundamentos epistemológicos. 2 Às vezes se preferem usar os termos franceses langue [lɑ͂ɡ] e parole [paˈʁɔl] para evitar ambiguidades

com outros sentidos do termo língua em português, por exemplo, “idioma”.

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descritível e explicável, mas a fala comporta tantos elementos que se torna

assistemática. Ora, à ciência cabe descrever e explicar os fatos que são passíveis de tais

ações, pelo que à linguística cabe estudar a langue.

Vejamos um exemplo. Em português a palavra que se escreve parto se diz de

várias maneiras: um português ou um brasileiro do Sul dizem [ˈpaɾtʊ], um brasileiro do

interior de São Paulo ou de Goiás diz [ˈpaɹtʊ], do Rio de Janeiro [ˈpaxtʊ], do Nordeste

ou do Norte [ˈpahtʊ]. Apesar de serem sequências de sons diferentes, todos

compreendem que é a mesma palavra, porque na langue da língua portuguesa, isto é,

nas mentes de seus usuários, há uma só forma ideal, que podemos transcrever como

/ˈpaRto/. Na estrutura fonológica da língua portuguesa a variação entre os sons [ɾ], [ɹ],

[x] e [h] é irrelevante. O importante é que /ˈpaRto/ se opõe a /ˈpaSto/ (que pode soar

[ˈpastʊ] ou [ˈpaʃtʊ] e se escreve pasto). À linguística interessa encontrar as formas

abstratas, virtuais, como os fonemas /R/ e /S/ do português, que se escondem por trás da

heterogeneidade da fala.

A seguir você pode complementar a sua leitura dos capítulos terceiro e quarto do

CLG e deste comentário com as definições de linguagem, língua e fala dadas pelo

Dicionário de Lingüística organizado por Jean Dubois [ˌʒɑ͂ dyˈbwa], traduzido e

publicado pela editora Cultrix. Uso a edição de 2006.

3. Linguagem

Linguagem é a capacidade específica à espécie humana de comunicar por meio

de um sistema de signos vocais (ou língua), que coloca em jogo uma técnica corporal

complexa e supõe a existência de uma função simbólica e de centros nervosos

geneticamente especializados. Esse sistema de signos vocais utilizado por um grupo

social (ou comunidade lingüística) determinado constitui uma língua particular. Pelos

problemas que apresenta, a linguagem é o objeto de análises muito diversas, que

implicam relações múltiplas: a relação entre o sujeito e a linguagem, que é o domínio da

psicolingüística; entre a linguagem e a sociedade, que é o domínio da sociolingüística;

entre a função simbólica e o sistema que constitui a língua; entre a língua como um todo

e as partes que a constituem; entre a língua como sistema universal e as línguas que são

suas formas particulares; entre a língua particular como forma comum a um grupo

social e as diversas realizações dessa língua pelos falantes, sendo tudo isso o domínio da

lingüística. Esses diversos domínios são necessária e estreitamente ligados uns aos

outros.

4. Língua

Para F. DE SAUSSURE, para a Escola de Praga e o estruturalismo americano, a

língua é considerada como um sistema de relações, ou, mais precisamente, como um

conjunto de sistemas ligados uns aos outros, cujos elementos (sons, palavras, etc.) não

têm nenhum valor independentemente das relações de equivalência e de oposição que os

unem. Cada língua apresenta esse sistema gramatical implícito, comum ao conjunto dos

falantes dessa língua. É esse sistema que F. DE SAUSSURE chama efetivamente a língua;

o que depende das variações individuais constitui para ele a fala.

A oposição língua vs. fala é a oposição fundamental estabelecida por F. DE

SAUSSURE. A linguagem, que é uma propriedade comum a todos os homens e depende

de sua faculdade de simbolizar, apresenta dois componentes: a língua e a fala. A língua

é, portanto, uma parte determinada da linguagem, mas uma parte essencial. É ao estudo

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da língua tal como a definiu F. DE SAUSSURE que se dedicaram os fonólogos, os

estruturalistas distribucionalistas e funcionalistas.

Nessa teoria, a língua é um produto social, enquanto que a fala é definida como

o “componente individual da linguagem”, como um “ato de vontade e de inteligência”.

A língua é um produto social no sentido de que o “indivíduo a registra passivamente”;

essa parte social da linguagem é “exterior ao indivíduo”, que não pode nem criá-la, nem

modificá-la. É um contrato coletivo, ao qual todos os membros da comunidade devem

submeter-se em bloco, se quiserem se comunicar. No vocabulário saussuriano, a língua

é, por ordem, “um tesouro depositado pela prática da fala nos indivíduos que pertencem

a uma mesma comunidade”, “uma soma de marcas depositadas em cada cérebro”, “a

soma das imagens verbais armazenadas em todos os indivíduos”. Assim, a língua é a

parte da linguagem que existe na consciência de todos os membros da comunidade

lingüística, a soma das marcas depositadas pela prática social de inúmeros atos de fala

concretos.

Um dos princípios essenciais de F. DE SAUSSURE, fundamental para a lingüística

moderna, é a definição da língua como um sistema de signos. “Em uma língua, um

signo só se define como tal no seio das oposições que contrai com eles. Ele tira seu

valor, seu rendimento, por suas relações com aqueles que o envolvem... Extraindo o

signo do sistema que lhe confere seu valor, privamo-nos, portanto, do único meio que se

tem para definir sua existência lingüística”. Segundo essa teoria, a língua é, portanto,

um princípio de classificação. Em um estado de língua, tudo repousa sobre relações ―

relações de oposição, de diferenciação, de associação entre os signos ou unidades

lingüísticas, formando o conjunto dessas relações um sistema de símbolos ou signos,

“um sistema que só conhece sua ordem própria”, “um sistema cujas partes devem ser

consideradas em sua solidariedade sincrônica”.

F. DE SAUSSURE ilustra essa idéia por uma comparação com o jogo de xadrez:

“Se eu substituir as peças de madeira por peças de marfim, a troca é indiferente para o

sistema; mas, se eu diminuir ou aumentar o número de peças, essa mudança atinge

profundamente a gramática do jogo... O valor respectivo das peças depende de sua

posição sobre o tabuleiro, da mesma forma que, na língua, cada termo tem seu valor por

oposição com todos os outros termos.”

[...]

5. Fala

Partindo da linguagem, F. DE SAUSSURE define a primeira bifurcação, “que se

encontra quando se procura estabelecer a teoria da linguagem” (p. 38), isto é, a distinção

língua/fala. Para ele, com efeito, “o estudo da linguagem comporta duas partes: uma,

essencial, tem por objeto o estudo da língua, que é social em sua essência e

independente do indivíduo; a outra, secundária, tem por objeto a parte individual da

língua, isto é, a fala, e compreende a fonética: ela é psicofisiológica”. Esta distinção

entre a língua e a fala acarreta, para F. DE SAUSSURE, uma série de distinções.

A língua existe na e para a coletividade. “É um produto social da faculdade da

linguagem e um conjunto de convenções necessárias entre os indivíduos”. A língua é,

portanto, uma instituição social específica. A fala se distingue, assim, da língua como

aquilo que é de vontade e de inteligência”. “O lado executivo [da linguagem] fica, pois,

fora de causa, porque a execução não é jamais o fato da massa; ela é individual e o

indivíduo é sempre o senhor; nós a chamaremos de fala”.

Numa segunda oposição, F. DE SAUSSURE distingue a língua “produto que o

indivíduo registra passivamente”, da fala, “ato de vontade e de inteligência”, ato livre,

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ato de criação. Com efeito, precisando que a língua não pode ser “nem criada, nem

modificada por um indivíduo”, ele confirma, por este fato, por oposição, o caráter

criador e livre da fala. O ato criador, que é a fala, domínio da liberdade individual, se

opõe ao processo passivo de registro, de memorização, que é a língua.

A língua mostra-se, pois, como um conjunto de meios de expressão, como um

código comum ao conjunto de indivíduos pertencentes a uma mesma comunidade

lingüística; a fala, ao contrário, é a maneira pessoal de utilizar o código; ela é, diz F. DE

SAUSSURE, a “parte individual da linguagem”, o domínio da liberdade, da fantasia, da

diversidade.

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ATIVIDADES

1. Com as palavras língua e fala complete os espaços vazios.

a) A __________ é necessária para que a __________ se realize.

b) A __________ é o instrumento e o produto da __________.

c) A __________ é que faz evoluir a __________.

2. Relacione a primeira coluna de acordo com a segunda.

1. Parte física

2. Parte fisiológica

3. Parte psíquica

( ) Imagens verbais e conceitos

( ) Ondas sonoras

( ) Fonação e audição

3. Marque a alternativa que contém três concepções concernentes à língua.

a) Acervo linguístico, criação individual, realidade sistemática e não funcional.

b) Acervo linguístico, instituição social e realidade sistemática e funcional.

c) Instituição social, assistemática, psicofísica.

4. Assinale “V” (verdadeiro) ou “F” (falso).

a) ( ) Todo elemento linguístico deve ser estudado a partir de sua relação com os outros

elementos do sistema e segundo sua função.

b) ( ) A prioridade da língua sobre a fala vem do fato de que é através da língua que se

torna possível a comunicação, por meio de uma espécie de contrato entre pessoas de

uma mesma comunidade.

c) ( ) A língua não é aparência, e sim essência.

5. Em 1962 o linguista romeno Eugenio Coseriu publicou em espanhol o ensaio

Sistema, norma y habla, no qual acrescenta um terceiro conceito à dicotomia

saussuriana língua × fala. A partir da leitura da referência indicada a seguir,

redija três parágrafos que perfaçam no mínimo 20 linhas e no máximo 30 sobre a

tricotomia coseriana sistema × norma × fala.

Referência: http://www.nead.uncnet.br/2009/revistas/letras/4/46.pdf (também

disponível em anexo)

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ORIENTAÇÕES PARA A REDAÇÃO DA ATIVIDADE

Redija as suas respostas com a fonte (tipo de letra) Times New Roman ou Arial

com tamanho 12 e espaçamento simples entre as linhas.

Preste atenção ao uso do negrito e do itálico: o negrito serve, por exemplo, para

ressaltar o título, e o itálico, para assinalar palavras soltas.

Na primeira página da sua resposta redija o cabeçalho com o seu nome

centralizado, pule duas linhas e redija o título em negrito no modo justificado:

Resposta às atividades. Pule uma linha e redija suas respostas. No caso da

primeira questão reescreva as frases com a sua resposta. No caso da segunda

reescreva as alternativas da coluna direita com a numeração correta da esquerda,

p. ex., 1. abdcfg. No caso da terceira, reescreva somente a alternativa correta. No

caso da quarta, escreva somente a sequência correta de vês e efes. No caso da

quinta, redija o seu comentário.

Insira a numeração das páginas no canto inferior direito.

Salve o seu documento com o formato .doc. Se redigir o documento no Word

2007 e salvá-lo automaticamente, ficará com o formato .docx, e eu não poderei

lê-lo. Salve o documento com o seu nome e o numeral romano corresponde à

unidade, neste caso II.

Se quiser, estude com o seu colega, mas não copie as respostas dele. Respostas

“clonadas” serão sumariamente anuladas, e você o prejudicará. Também não

copie os textos de suas fontes. Os comentários que redijo para você saem da

minha própria cabeça, e quando uso um texto alheio informo isto, de modo que

lhe peço apenas o cuidado e a atenção que eu mesmo lhe dispenso. Se há algo

que a linguística gerativa provou é que cada texto é uma produção inédita em

uma língua. Se eu mesmo perdesse o texto destas orientações por algum motivo,

quando as reescrevesse não sairiam igual, muito menos se fossem escritas por

outra pessoa.

As atividades primeira, segunda, terceira e quarta valem 1 ponto cada, atribuído

objetivamente, enquanto que a quinta vale 3 pontos, atribuídos subjetivamente.

Devem ser entregues impreterivelmente até segunda-feira.